UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO REITOR: Adriano Aparecido Silva VICE-REITOR: Dionei José da Silva PRÓ-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO: Ana Maria Di Renzo PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO: Antônio Francisco Malheiros PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA: Juliana Vitória Vieira M. Silva PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVOLVIMENTO INSTITUCIONAL: Weily Toro Machado PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO: Valter Gustavo Danzer PRÓ-REITORIA DE GESTÃO FINANCEIRA: Ariel Lopes Torres PRÓ-REITORIA DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL Francisco Lledo dos Santos DIRETORIA DO INSTITUTO DE LINGUAGEM: Ana Luiza Artiaga Rodrigues da Motta COORDENADOR DO CAMPUS DE TANGARÁ DA SERRA Sérgio Baldinotti PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS LITERÁRIOS Coordenadora: Walnice Aparecida Matos Vilalva Vice-Coordenador: Agnaldo Rodrigues da Silva Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT - 78200-000 ISSN 2176-1841 (digital) ISSN 1984-0055 (impressa) P ROGRAMA DE P ÓS -G RADUAÇÃO EM E STUDOS L ITERÁRIOS -PPGEL N ÚCLEO DE P ESQUISA W LADEMIR D IAS -P INO U NIVERSIDADE DO E STADO DE M ATO G ROSSO A NO 06, VOL . 07, N. O 07, JUL. 2013 – T ANGARÁ DA S ERRA /MT – P ERIODICIDADE SEMESTRAL © copyright 2013 by autores EDITORES: Walnice Aparecida Matos Vilalva Hélvio Moraes Tieko Yamaguchi Miyazaki Aroldo José Abreu Pinto CONSELHO EDITORIAL: Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT) Antônio Manoel dos Santos Silva (UNESP) Antônio Roberto Esteves (UNESP) Dante Gatto (UNEMAT) Diléa Zanotto Manfio (UNESP) Diana Junkes Martha Toneto (UNESP) Emerson da Cruz Inácio (USP) Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT) Frederico Góes Fernandes (UEL) Gilvone Furtado Miguel (UFMT) Graciela Sánchez Guevara (ENAH-Mx) Josalba Fabiana dos Santos (UFS) José Javier Villarreal Álvarez Tostado (UANL-Mx) Julieta Haidar (ENAH-Mx) Madalena Aparecida Machado (UNEMAT) Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (USP) Manuel Cáceres (UGR-ES) Marcos Siscar (UNICAMP) Maria de Lourdes Netto Simões (UESC) María Eugenia Flores Treviño (UANL-Mx) Mário Lugarinho (USP) Olga Maria Castrillon-Mendes (UNEMAT) Susi Frank Sperber (UNICAMP) Tânia Celestino Macedo (USP) Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNESP-UNEMAT) Vera Lúcia Rodella Abriata (UNIFRAN) Vima Lia de Rossi Martin (USP) DIAGRAMAÇÃO, ARTE CAPA E MIOLO: Walnice Aparecida Matos Vilalva (UNEMAT) Aroldo José Abreu Pinto REVISÃO (PORTUGUÊS): Tieko Yamaguchi Miyazaki TRADUÇÃO E REVISÃO (INGLÊS): Ricardo Marques Macedo CORRESPONDÊNCIA: UNEMAT - Secretaria de Pós-Graduação Rodovia MT - 358, Km 07, Jardim Aeroporto Tangará da Serra / MT - CEP: 78.300-000. É proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização dos autores. Revista Alere / Programa de Pós-Graduação em Estudos LiteráriosPPGEL - Núcleo Estudos da Literatura de Mato Grosso Wlademir DiasPino, Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário de Tangará da Serra - v. 07. n.07, jul. 2013 - Tangará da Serra: Editora da Unemat, 2013. Periodicidade semestral ISSN 2176-1841 (digital) ISSN 1984-0055 (impressa) 1.Linguística. 2. Letras. 3. Literatura. I. Universidade do Estado de Mato Grosso CDU 81 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 4 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT CEP: 78200-000 9 APRESENTAÇÃO ARTIGOS 13 ONDE CANTA O SABIÁ: O REGIONALISMO BRASILEIRO EM DOIS PROJETOS ESTÉTICOS WHERE SINGING THE THRUSH: THE BRAZILIAN REGIONALISM IN TWO AESTHETIC PROJECTS Walnice Vilalva 31 O ROMANCE EM MATO GROSSO: UM ESTUDO SOBRE MIRKO, DE FRANCISCO BIANCO FILHO ROMANCE IN MATO GROSSO: A STUDY ABOUT MIRKO, BY FRANCISCO BIANCO FILHO Franceli Aparecida da Silva Mello e Cibele Antonia de Souza Rodrigues 51 DA RECUSA À CUMPLICIDADE: ANÁLISE DO ESTRANGEIRO NO CONTO “O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA”, DE GUIMARÃES ROSA FROM REJECTION TO PARTNERSHIP: AN ANALYSIS OF THE FOREIGNER IN THE SHORT STORY “O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA”, BY R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 5 Sumário GUIMARÃES ROSA Aline Maria Magalhães de Oliveira 73 EXERCÍCIOS DE IMAGINAR – UMA LEITURA DE EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA DE MANOEL DE BARROS EXERCISES TO IMAGINE – A READING ABOUT EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA BY MANOEL DE BARROS Carolina Tito Camarço e Elisabeth Battista 97 MÍNIMOS INSTANTES EM JOÃO CABRAL E STELLA LEONARDOS MINIMUM INSTANTS IN JOÃO CABRAL AND STELLA LEONARDOS Irene Severina Rezende 115 GABRIEL ZAID: INGENIERÍA LUMINOSA GABRIEL ZAID: LUMINOUS ENGINEERING Minerva Margarita Villarreal 135 A MULHER E O ESPELHO EM PADRE ANTÔNIO VIEIRA – RELAÇÕES DE CONTINGUIDADE DIALÉTICA NO SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO THE WOMAN AND MIRROR IN PRIEST ANTONIO VIEIRA – AFFILIATIONS OF DIALECTIC ADJACENCY IN SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO Paulo Geovane e Silva 149 REFLEXÕES SOBRE NOVAS TECNOLOGIAS E EDUCAÇÃO THOUGHTS ABOUT NEW TECHNOLOGIES AND EDUCATION Alexandre Vilas Boas da Silva R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 6 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Sumário PALESTRAS 167 A IDADE LÍRICA - (TRÊS MOVIMENTOS) THE LYRIC AGE - (THREE MOVIMENTS) José Javier Villarreal, Tradução: Tieko Yamaguchi Miyazaki 183 OS JOGOS COMO UMA DISCIPLINA HUMANÍSTICA GAMES AS HUMANISTIC DISCIPLINE Tamer Thabet, Tradução: Helvio Moraes ENTREVISTA 191 ENTRE A CRÍTICA E A POETISA: ENTREVISTA DE MARIA LÚCIA DAL FARRA BETWEEN THE POET AND CRITIC: INTERVIEW WITH MARIA LÚCIA DAL FARRA Concedida a Fabio Mario da Silva RESENHAS 197 CAVALCANTI, Hérlon. Xilogravuras do Mestre Dila. Uma Visão Poética do Nordeste. 2.ª ed. Caruaru: Edições Fafica, 2011. Por Fabio Mario da Silva 203 ESPANCA, Florbela. Obras Completas de Florbela Espanca. Livro de “Soror Saudade” (organização, fixação crítica dos textos e notas de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva). Lisboa: Estampa: Lisboa, 2012. Por Anamarija Marinoviæ 207 ANTUNES, António Lobo. Quarto Livro de Crónicas. Alfragide: Dom Quixote, 2011. Por André Corrêa de Sá R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 7 Sumário RESUMOS DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS 213 FRANCO, Andréia. Terno de Reis, de Ricardo Ramos, e o herói problemático: a representação do sujeito num mundo em decadência. 2012. Orientador: Aroldo José de Abreu Pinto. 215 SFOGIA, Leocir Antonio . Leite derramado - aspectos da configuração estética da memória e do narrador. 2012. 217 LUZ, Loraine Ferrari. No rastro da poaia: caminhos do romance-folhetim em Mato Grosso. 2012. Orientador: Olga Maria Castrillon-Mendes. 219 MENEGUCI , Sebastiana Rodrigues da Cruz . Representações da guerra e o intelectual em Nós, os do Makulusu, de Luandino Vieira. 2012. Orientador: Vera Lúcia da Rocha Maquêa 221 RIBEIRO, Aparecida Cristina da Silva. Viagens, identidades e travessias: uma leitura comparada das obras Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum e O outro pé da sereia, de Mia Couto. 2012. Orientação: Vera Lúcia da Rocha Maquêa 223 RODRIGUES, Clarice Gomes Clarindo. Personagem feminina em cena: um estudo de O Primo Basílio, de Eça de Queirós. 2012. Orientador: Elisabeth Battista 225 NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS / RULES FOR SUBMISSION OF ARTICLES TO ALERE MAGAZINE R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 8 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Reúnem-se neste número da Revista ALERE colaborações da Universidad Autónoma de Nuevo León, México; da Universidade Estadual de São Paulo, da Universidade Federal de Mato Grosso; da Brock University, Canadá; da Universidade de Coimbra, da Universidade de Lisboa, Portugal, Universidade Estadual de Londrina e da Universidade do Estado de Mato Grosso . Colaborações que se diversificam também quanto à modalidade: artigos, palestras, entrevista e resenhas. Abre o número do artigo de Walnice Vilalva, O regionalismo brasileiro em dois projetos estéticos, que, rejeitando a visão de que o regionalismo seja hoje uma questão já superada ou resolvida, volta a apreciar a perspectiva ideológica, dominante na crítica tradicional para, em seguida, discutir, do ponto de vista estético, o projeto que, elegendo como tema o sertanejo, o eleva à condição de herói emblemático. Na esteira da mesma preocupação, Franceli Mello e Cibele Rodrigues, em O romance em Mato Grosso: um estudo sobre Mirko, de Francisco Bianco Filho, fecha a perspectiva sobre a literatura produzida no estado de Mato Grosso, no início do século XX, em vista do contexto cultural dessa região brasileira, distanciada do centro cultural brasileiro. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 9 Apresentação Pela lente de uma literatura do centro, o sertão brasileiro volta no artigo de Aline de Oliveira que vai buscá-lo em Primeiras Estórias, e analisá-lo em Da recusa à cumplicidade: análise do estrangeiro no conto “o cavalo que bebia cerveja”, de Guimarães Rosa, onde a figura do outro, ainda representado pelo europeu, ocupa um dos termos da dinâmica dramática do enredo. Nessa trajetória, Manoel de Barros pode ser considerado como um amálgama literariamente bem logrado, não só em sua obra adulta como em seus livros destinados à infância, nos quais confere outra dimensão ao encontro da temática de uma determinada região interiorana brasileira com a sua elaboração literária, original mesmo dentro de uma perspectiva do centro. Isso é que demonstra o trabalho – Exercícios de imaginar – uma leitura de exercícios de ser criança de Manoel de Barros – de Elisabeth Battista e Carolina Tito Camarço. Essa mesma questão retorna não mais na narrativa mas na lírica, em que um tema rural ganha expressão estética em que a marca, moderna, contemporânea, do trabalho artesanal se faz evidente, para veicular significações não restritas a um determinado espaço geográfico, social, de tal maneira que possibilita a sua abordagem em outro poema, agora, de além mar. Numa perspectiva intertextual, em Mínimos instantes em João Cabral e Stella Leonardos, Irene Rezende aproxima os poemas “Tecendo a manhã” e “Amanhecência”. É sobre lírica o texto de Minerva M.Villarreal, ao abordar a obra do mexicano de Monterrey, Gabriel Zaid, cujas características assim sinteza a autora: un poeta que ubica su registro esencialmente en el terreno del poema breve, del soneto (con su innovación del soneto en prosa) y del epigrama de filiación latina —agudo en ironía y eléctrico en sarcasmo. Atravessando a mesma ponte sobre o Atlântico, e voltando a 1651, Paulo Geovane e Silva oferece A mulher e o espelho em Padre Antônio Vieira – relações de contiguidade dialética no Sermão do demônio mudo, situando-se na área dos estudos do gênero. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 10 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Apresentação Fechando a seção de artigos, Alexandre Vilas Boas da Silva indica com clareza em seu título - Reflexões sobre novas tecnologias e educação – as áreas em que se move e o tema abordado. Além dos artigos, o presente número da ALERE oferece também uma seção em que foram reunidas duas palestras e uma entrevista. As palestras, pronunciadas durante o ano de 2013, dentro das atividades do Mestrado em Estudos Literários, foram mantidas em sua forma original para que ficassem preservadas as marcas dessa modalidade de discurso. A palestra A idade lírica, de José Javier Villarreal, faz eco não só com o artigo sobre o poeta mexicano Gabriel Zaid, principalmente, como com a entrevista com a poetisa e crítica brasileira Maria Lúcia Dal Farra. Da mesma forma, a conferência Os jogos como uma disciplina humanística, de Tamer Thabet, pode ser vista como uma outra face das questões levantadas em Reflexões sobre novas tecnologias e educação, de Alexandre Vilas Boas da Silva. Seguem-se três resenhas. Uma sobre. Xilogravuras do Mestre Dila. Uma visão poética do Nordeste, de Hérlon Cavalcanti; outra sobre Obras Completas de Florbela Espanca. Livro de “Soror Saudade”; e uma terceira sobre Quarto livro de crônicas, de António Lobo Antunes. Fecham o número resumos de dissertações defendidas no ano no Mestrado em Estudos Literários da UNEMAT. OS EDITORES R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 11 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 12 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 ONDE CANTA O SABIÁ: O REGIONALISMO BRASILEIRO EM DOIS PROJETOS ESTÉTICOS WHERE SINGING THE THRUSH: THE BRAZILIAN REGIONALISM IN TWO AESTHETIC PROJECTS Walnice Vilalva (UNEMAT)1 Quanta melancolia baixa à terra com o cair da tarde. (Visconde de Taunay) RESUMO: Para uma parte da crítica se faz inócua, nos dias de hoje, a reflexão sobre regionalismo, considerando o tema uma questão superada para as nossas letras. Talvez haja alguma razão nisso: a superação de algumas fórmulas, a consciência de que o processo de formação da literatura brasileira silenciou, melhor 1 Docente do Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Mato Grosso. [email protected]. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 13 seria dizer, acomodou realidades antagônicas e contrastantes. Todavia, persiste a questão: o regionalismo como “síntese” e oposição a uma literatura e a um Brasil litorâneo carrega consigo apenas a imperfeição dos traços, o risco torto, ainda que impere uma maneira de trazer identidades e regiões marcadas pelo esquecimento e pelo abandono? Esta reflexão traz, inicialmente, ponderações sobre o projeto ideológico do regionalismo, segundo a crítica tradicional. Na sequência, discutimos algumas questões que norteiam o projeto estético da geração que elege o sertanejo como herói emblemático da cultura. PALAVRAS-CHAVE: Regionalismo. Antagonismo. Contrastes. Esquecimento. ABSTRACT: For a portion of criticism it is innocuous, these days, the debate about regionalism, considering the issue a matter overcomed to our lyrics. Perhaps there is some reason it: overcoming some formulas, the awareness that the forming process of Brazilian literaturewas silenced, better to say, settled antagonistic and contrasting realities. However, the question persists: regionalism as “synthesis”and as opposed to literature and a coastal Brazil carries with it only imperfection traces, crooked risk still prevails that a way to bring identities and regions marked by neglect and abandonment? This reflection brings initially considerations about the ideological project of regionalism, according to the traditional criticism. Further, we discuss some issues that guide the aesthetic design of the generation that elects the backcountry as emblematic hero of culture. KEYWORDS: Regionalism. Antagonism. Contrasts. Forgetfulness Um projeto ideológico O anseio pela identidade emerge em pleno Romantismo como sinônimo de consciência da elite intelectual da colônia, nossos R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 14 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 homens de letras, frente às radicais transformações sociais, políticas e culturais pelas quais passava o Brasil desde o final do século XVIII, e mais fortemente a partir do século XIX. As questões nacionais são discutidas, procurando firmar o caminho da nova pátria. A identidade, alavancada por desejo consciente e opressor, ou, mais que isso, ingênuo e eloquente, procurava tecer, à luz do patriotismo, a nacionalidade literária. Uma nacionalidade que transpira unidade política, traduzida pela unidade literária, que negligencia a diversidade que presidiu à formação e desenvolvimento de nossa cultura. O nacionalismo, então, irrompe no Romantismo, encontrando nele sua expressão maior, com ele se confundindo. Antes, parece ser “o romantismo brasileiro tributário do nacionalismo” (CANDIDO, 1981, p.15), no qual “ o patriotismo se aponta como estímulo e dever”(CANDIDO, 1981, p.10) ao homem das letras. A labuta dos nossos homens das Letras centra-se em “dotar o Brasil de uma literatura equivalente às européias, que exprimisse de maneira adequada a sua realidade própria, ou, como então se dizia, uma Literatura nacional.” (CANDIDO, 1981, p.10). A Literatura nasce com a missão de instituir uma nacionalidade. Esse perfil eufórico inunda os crédulos escritores de esperançosa liberdade cultural, mesmo tomando a Europa como modelo para suas realizações. Cabe aqui a feliz expressão de Flora Sussekind. Tal Brasil, Qual romance?(1984), denunciando a forma singular de nossos escritores pensarem em Literatura uma nacionalidade, sobretudo no Naturalismo. Para a autora, importa menos “o romanesco, o literário e prevalece a possibilidade de tais narrativas retratarem com verdade e honestidade aspectos da ‘realidade brasileira’. (1996, p. 38) O desejo de integração faz da literatura registro e documento do país (tanto geográfico quanto cultural), forjando a identidade nacional pela idéia de homogeneidade. O Regionalismo surge no seio desse nacionalismo, ancorado também no desejo de integração, mas, contraditoriamente, sua R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 15 realização vai expor as fraturas ocultadas pelo discurso nacional, comprometendo a essência singular da Nação imaginada 2 independente. A nação imaginada brasileira encontra na Literatura o caminho para recapitular traços característicos da História e dos costumes, formando os enredos da cultura, fazendo do índio e do sertanejo personagens que emblemam o povo. Esse movimento ideológico pseudo-integrador manifesta a crença de que, tão logo a literatura consiga expressar a riqueza da natureza, retrato geográfico (e limite de fronteiras), e cultural (que filtram a desigualdade), a Nação haveria de comemorar sua independência literária. Nas palavras de Machado (1873) “essa outra independência não tem Sete de Setembro nem campo do Ipiranga; não se fará em um dia, mas pausadamente para sair mais duradoura; não se será obra de uma geração nem duas [...]”. Machado de Assis já verifica os equívocos desse projeto nacional de uma literatura nascente em seu Instinto de nacionalidade (1873). Nessa reflexão o crítico avalia uma das mais graves contradições presentes no início de nossa formação literária e que vai marcar definitivamente os rumos de nossas letras. Se por um lado nos “fechamos” num esforço de representação da realidade local brasileira, por outro, nos revestimos da segurança das transformações ocorridas na Europa. Lucia Miguel Pereira (1988, p. 191) assevera que esse procedimento legou-nos atraso de amadurecimento. [...] muito atrelada, às transformações ocorridas na Europa, a nossa Literatura não surgiu espontaneamente, não se originou da necessidade íntima de expressão: fruto da imitação, antecedeu essa necessidade, mormente no que ela pudesse conter de genuinamente brasileiro. [...] A cultura intelectual, vinda da Europa, atuando em sentido diverso da cultura na acepção dada ao termo da sociologia, retarda nos escritores o amadurecimento da mentalidade nacional. Cabe aqui ressaltar que essa mentalidade nacional, consoante com o Romantismo, aparece como reflexo de um contexto político que R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 16 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 assumiu efeitos que ratificam a divisão (econômica e política) pela qual passava a Europa e a América: aquela, construída sob imagem do colonizador; esta, a colônia, vivia o quimérico desejo de emancipação, sob o reflexo do colonizador. A nossa situação de infância (brasileira) nos colocava numa incômoda condição de sem controle da marcha, tendo que contar, portanto, com o “apoio da mãecolonizadora”. Os rumos da “criança” Brasil parecem norteados pelo andador-europeu, e, nessa relação, ainda que a criança cresça e supere o suporte de apoio, por algum período a imagem produzida no espelho tem muito daquilo que o andador conseguiu definir. Esse jogo de conhecer no e com o outro implicava (re) conhecermos as nossas limitações sob o aspecto da comparação (colônia/Europa). Os olhos voltados à Europa não permitiam, a muitos de nossos escritores, um conhecimento tanto geográfico quanto cultural de nossa então sociedade brasileira. Muitos conhecedores apenas da capital brasileira, ou das capitais europeias, não estavam atentos às transformações ocorridas num Brasil que ficasse fora dos limites litorâneos: procurávamos a farda de alferes. É como movimento de resistência, que nasce do centro para as margens, enxergando um equívoco de percepção e a saturação da imagem do índio no projeto nacional, que o sertão e o sertanejo revigoram o desejo de identidade. Sobre o escritor regionalista, Lúcia Miguel Pereira (1957, p.180) observa: “há na sua atitude alguma coisa da do turista ansioso por descobrir os encantos peculiares de cada lugar que visita sempre pronto a extasiar-se ante as novidades e a exagerar-lhes o alcance.” Essa posição de turista assumida inconscientemente pelo escritor se transforma, segundo Lúcia Miguel Pereira, no grande empecilho do regionalismo. E acaba por constituir um processo longo de amadurecimento de nossas letras, diante do dilema local, universal. Para a crítica tradicional, embora sobressaia o caráter de “humanidade sincera mas artificial”, (CANDIDO, 1981, p.211) não parece ser suficiente para assegurar a qualidade estética de algumas obras regionalistas. A mão estrangeira do escritor brasileiro tenta pintar o regionalismo, não raro R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 17 esboçando um saudosismo de civilizado diante da vida primitiva, ou como o colonizador diante da mítica imagem tropical brasileira. Será que só é isso mesmo? O sertão sertanejo e as sonoridades da solidão... A primeira geração regionalista que desponta com O gaúcho (1870), Tronco do ipê (1871), Til (1872) e O sertanejo (1875), todos de Alencar, passando por O garimpeiro, de Bernardo Guimarães e Inocência, Visconde de Taunay encontra no sertanejo, homem do interior, das terras longínquas, que pouco ou quase nada sofreram pelo contato externo, os filhos de Peri e Ceci, os filhos de Martim e Iracema, a nova face do nacionalismo. E Alencar permanece o grande líder frente à fase de revitalização do projeto nacional. Alceu Amoroso Lima (1922, p. 596) acentua que o sertanismo representa uma transição do índio para o sertanejo, e nasce nas mesmas bases do indianismo com a mesma força e proposta de integração. O regionalismo põe em perspectiva, portanto, o sertanejo, raça cruzada, homem forte, que em sua imensidão de terra vira Rei. Nessa perspectivação, a natureza mostra-se através do sertanejo como ocorre, por exemplo, em Inocência (2009, p.16-17): O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devastar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja varado. [...] Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe dá o substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 18 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera outrora. Como sujeito num processo de auto-enunciação, o sertanejo aparece pleno na manifestação de consciência frente ao espaço. No ato enunciativo, o sertanejo sempre afirmativo conclama: Eu sou. Em Inocência podemos perceber a magnitude dessa voz - “Ninguém pode comigo, exclama ele enfaticamente. Nos campos da Vacaria, no sertão do Mimoso e nos pântanos do Pequiri, sou rei”. Poderíamos inferir que essa presença, indicada pelo processo de enunciação, registro da fala do sertanejo em discurso direto livre, quer o literal, capaz de revelar a verdade. A afirmativa Eu sou Rei diz sobre o homem do sertão, diz, na mesma medida, como o sertanejo percebe a si mesmo. Nesse sertanejo a linguagem persegue a fala ainda a passos vacilantes “- Mas o senhor fala que nem cachoeira. E não cansa?”(TAUNAY, 2009, p. 61); nessa fala, tanto em Inocência como, por exemplo, em Era um poaieiro (2008), a cultura popular impregna em versos a história romanesca: Quem inventou a partida Não sabia o que é amor Quem fica, morre de dor. A imagem do sertanejo é construída na narrativa por meio de uma apresentação panorâmica com tratamento que oscila entre pictórico e dramático. O que permite o efeito de distanciamento tanto do narrador quanto do leitor. A função, nesse momento da imagem panorâmica, é informativa pela síntese do quadro. Eis o processo que parece predominante na matéria romanesca, cujo narrador, em terceira pessoa, manifesta uma consciência focal do sertanejo. Na extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima província de Mato Grosso, a estrada que da Vila de Sant’Ana do R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 19 Paranaíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã. Desde aquela poviação, assente próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato grosso até o Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná [...] (2009, p. 11) Nesses campos tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do Sol transforma-se em vicejante tapete de relva. (TAUNAY, 2009, p. 12) A perspectiva de afastamento temporal é acentuada pelo pretérito épico, percebido como presente perpétuo. “Na mão empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distraidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de árvores que se dobravam ao alcance do braço (TAUNAY, 2009, p. 18). Esse acabamento estético se repete em O gaúcho e O sertanejo em que prevalece a apresentação panorâmica da terra, assim como em O guarani e Iracema, na sua relação profunda e integrada ao homem. O que se procura nessa for mula é re presentar com o máximo de verdade e imaginação, a identidade. Em Alencar percebemos a natureza como a grande Mãe terra, para fixar a atitude reverente do homem do sertão, mostrando-o herói. A floresta cede lugar à campina; essa natureza em profunda integração com o homem é a natureza como “o espaço que habito”: o homem pertence à terra assim como a terra pertence ao homem. Em O sertanejo, o narrador assim apresenta: “Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal” Não menos épico é o tom expresso quando o narrador de O gaúcho (ALENCAR, 2006, p.20) diz do pampa: “[...] as vastas campinas que cingem as margens do Uraguai e seus afluentes. A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas que figuram das flutuações das vagas nesse verde oceano.” Para depois definir o gaúcho, herói emblemático, expressão do brasileiro, assim e na mesma medida que se quis o índio, com Peri e Iracema, representar o Brasil genuíno. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 20 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Nenhum ente, porém, inspira mais energeticamente a alma pampa do que o homem, o gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, o torna o melhor; tem a velocidade da ema e da onça; os brios do corcel e a veemência do touro. O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como a vasta coxilha; a paixão que o agita lembra os ímpetos do furacão; o mesmo bramido, a mesma pujança. A esse turbilhão do sentimento era indispensável uma amplitude de coração, imensa como a savana. Tal é o pampa. (ALENCAR, 2006, p.22) A passagem citada é exemplar quanto ao sentido de integração épica entre espaço, personagem, ação. A natureza e o gaúcho aparecem articulados para compor um quadro único da grandiosidade brasileira. Essa majestade do sertão imprime a metamorfose do espaço rústico para o espaço mítico, mantendo o sertão como espaço que habito. José Maurício Gomes de Almeida (1981, p. 67) afirma que para essa primeira fase do romance regionalista, “é possível denominar de regionalismo mítico, em oposição ao regionalismo de caráter realista, documental [...]”. Frente a essa nova fase do nacionalismo brasileiro, persiste a almejada unidade de Nação atrelada a uma imagem em que a substituição do índio pelo sertanejo denuncia o esgotamento da imagem do índio, e a busca por um fundamento histórico bem mais concreto. José Maurício Gomes de Almeida (1981, p. 65) observa que nesse processo “Alencar assimila parte das exigências de maior fidelidade ao real que a nova geração vinha propugnando, adaptandoas porém livremente ao seu modo pessoal de conceber uma narrativa épica”. É, inserido nesse complexo que Alencar assim define a região em O gaúcho (2006, p. 21): “Cada região da terra tem uma alma sua, raio criador que lhe imprime o cunho de originalidade. A natureza infiltra em todos os seres que ela gera e nutre aquela seiva própria; e forma assim uma família na grande sociedade universal.” Notadamente para Alencar, o local percebido na região não se fecha, ou inda, não se isola, antes integra o plano universal, e R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 21 manifesta a singularidade, a particularidade desse universal. Eis a fórmula de reflexão que propõem seu romance e seu projeto romanesco. O dilema exaustivamente abordado pela crítica entre regional ou universal, como excludentes, parece ter sido percebido de maneira diferente do que propõe o autor de O gaúcho. E nessa medida, ou, desmedida, vale e muito o julgamento estético feito das obras em questão. Para Antonio Candido (1981, p.210), por exemplo: É notório que livros, como O sertanejo, O garimpeiro, Inocência, Lourenço, são construídos em torno de um problema humano, individual ou social, e que, a despeito de todo o pitoresco, os personagens existem independentemente das peculiaridades regionais. Mesmo a inabilidade técnica ou a visão elementar de um batedor de estradas, como Bernardo Guimarães, não abafam esta humanidade da narrativa. Sobre essa impressão, Lúcia Miguel Pereira (1988, p.181) comenta sobre os escritores regionalistas: “O movimento dá-se de fora para dentro, mais do que um movimento de dentro para fora, nascendo do encontro, com forma de vida rudimentares, de espíritos que lhes sentem a sedução precisamente por conhecerem outras mais complexas”. Ao definir o romancista regionalista, José Aderaldo Castelo (1996, p.47) observa: “O verdadeiro romancista regionalista é aquele que observa diretamente a paisagem e conhece ou colhe por meio de informações seguras os fatos essenciais, tipos e tradições que constituirão o material de seu romance”. Essa afirmativa parece ter saído das páginas escritas no Prefácio de O cabeleira, de Franklin Távora. Contrapondo exaustivamente ao projeto apresentado pelo romance de Alencar, Távora dá ênfase à observação da realidade na criação romanesca para afirmação de uma literatura brasileira. Notadamente Franklin Távora (2005, p. 23) explicita “As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no norte, porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 22 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 literatura brasileira, filha da terra. A razão é óbvia:o Norte não foi invadido como está sendo Sul de dia em dia pelo estrangeiro” O argumento de Távora em defesa de uma Literatura Brasileira indica dois caminhos: 1) a defesa pelo norte se deve ao fato de não ter sofrido influência do estrangeiro; vejam que esse mesmo argumento sustenta a imagem do Sertanejo para Alencar; e 2) o argumento de que a literatura assim como o Norte e o Sul não pode ser expressa em uma única face. Eis uma verdade irrecusável: “Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o de outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses [...]” (TÁVORA, 2005, p.24). Nessa posição diferenciadora, declarada pelo romancista, acentuamse as fronteiras geográfica, política e econômica, para estendê-las ao nível literário. Eis que a região, definida em O gaúcho, é ressignificada, por Távora, como regional (sinônimo de nacional) na medida em que a literatura deve constar da dimensão plural e heterogênea da cultura. A posição de Távora é de destaque nessa fase de inquietude e conflito frente aos rumos das letras, ao discutir em seu romance O cabeleira o engodo do discurso de integração do nacional e as fronteiras que descobrem o Brasil. Essa linha de tensão que separa o projeto nacionalista de Alencar da geração de Távora se redesenha nas conhecidas cartas a Cincinato.3 A definição de regionalismo proposta por José Aderaldo Castelo, mencionada anteriormente, se contraposta à reflexão de Távora, veremos que não é exatamente a mesma coisa. Ainda que José Aderaldo Castello ressalte a carência estética, a geografia e a paisagem minuciosas não são a essencialidade do regional. Mas a integração entre homem e natureza, ou, o inverso dela: a desintegração homem-natureza, na sua dimensão socio-cultural e econômica. Eis o caminho que Távora parece indicar. A matéria, o sertanejo, continua sendo a mesma; enquanto em Alencar o traço épico acentua a Nação, em Távora buscam-se a diferença e a dessemelhança, não apenas da terra Norte-Sul (ainda que irmãs) mas do homem, o brasileiro. Para a crítica, essa crise não se resolve bem esteticamente. E vai legar ao R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 23 regionalismo, muitas vezes, o que Lucia Miguel Pereira (1988, p.18) chama de um artificialismo quase teatral, ao definir o escritor regionalista como turista ansioso. Isso já no Realismo. [...] toda arte condensa e deforma, mas o regionalismo, pondo nas exterioridades e nas peculiaridades o seu acento tônico, erigindo estas em aspectos habituais, e aquelas em manifestações únicas da personalidade, leva tão longe essa condensação que, devendo por sua índole, ser simples e espontâneo, cai num artificialismo quase teatral. Se o regionalismo romântico transpira humanidade sincera, com o advento do Naturalismo, o Regionalismo assume uma forma diferenciada, preconizada por Távora. Embora persigam o mesmo resultado, os meios empregados pelos autores, assim como os resultados por eles obtidos, são diversos. Enquanto movimento estético o Realismo-Naturalismo impõe a objetividade e o compromisso com o retrato do real, ou, mais que isso, na Literatura o texto deve se aproximar “do diagnóstico médico a captar sintomas e mazelas nacionais (...) ao buscar uma identidade chamada Brasil”. (SUSSEKIND, 1984, p.37). Engajado com o compromisso do diagnóstico, a segunda fase do regionalismo, que nasce com O cabeleira (1876), de Távora, passando por Os retirantes (1879),de José do Patrocínio, A fome (1890) de Rodolfo Teófilo, Dona Guidinha do Poço (1891), de Manuel de Oliveira Paiva, chegando a Luzia-Homem (1903), acaba por priorizar, na apresentação do real, o já conhecido máximo de honestidade, na tentativa de assegurar ao texto, uma “rígida exatidão”. Flora Sussekind (1984, p.37) critica severamente essa exatidão empunhada pelo Naturalismo e, nesse sentido, avaliamos que o nascer do regionalismo sucumbiu às imposições da época. Quando um romance tenta ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma referencialidade, talvez os seus grandes modelos estejam efetivamente na ciência e na informação jornalística, via de regra considerados paradigmas da objetividade e da veracidade [...] apontam R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 24 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 para um mundo e uma linguagem extratextuais. O leitor de uma obra cientifica ou de uma noticia de jornal pouco observa a linguagem em que foram escritos, contando que lhe transmitam uma impressão de veracidade. Contanto que pareçam apontar para além de si mesmos, para um mundo e uma linguagem extratextuais. Do mesmo modo, o leitor de um texto ‘naturalista’ é conduzido para fora da linguagem. Como se as emoções e a sedução que a literatura porventura lhe possa provocar não adviessem de um texto, de um modo próprio de narrar, de uma ficção, internamente trabalhada. Oculta-se todo o trabalho da linguagem, dissolve-se a ficcionalidade ao romanesco e obriga-se o leitor a olhar o fato ficcional sempre em analogia a uma referente extratextual ao qual deve corresponder o mais possível. . Essa exatidão, que beira a um diagnostico, assinalada por Flora Sussekind, fruto de indagações propostas pela década de 90 do século XIX, acaba por legar a essa geração uma inapropriada adequação entre forma e conteúdo, e o acabamento estético que o romance realiza. Se em Alencar a natureza tinha uma dimensão idílica, apresentada em tons épicos, moldura ao homem do sertão, nesta geração essa natureza se expressa pelo cotidiano do herói na condição socio-econômica. A natureza como espaço inóspito e de exclusão que determina um homem oprimido. Dessa geração, iniciada por Távora, a representação do povo, vista sob o prisma da hierarquia entre as classes sociais, dando vez e voz a heróis como José Gomes, Luzia, Alexandre e Guidinha, expõe-se a condição de esquecimento, miséria e violência no sertão. A terra que “já não mais habito” potencializa, nesta fase, a tragédia da marginalidade. E questões como evasão do campo, procissão do êxodo, banditismo, fanatismo religioso, projetam-se a partir da trajetória do herói (como homem do povo), mostrando o drama do brasileiro dentro de um sistema cultural e econômico complexo. Assim como nos mostra Luzia-Homem (1983, p.17): A população da cidade triplicava com a extraordinária afluência de retirantes. Casas de taipa, palhoças, latadas, ranchos e abarracamento de R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 25 subúrbio, estavam repletos a transbordarem. Mesmo sob os tamarineiros das praças se aboletavam famílias no extremo passo da miséria [...] É o caso de José Gomes que, herói e bandido no sertão, pertence à fronteira entre a História e a memória. Nas palavras de Távora (2005, p. 90): Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas pela minha fantasia. São fatos acontecidos há pouco mais de um século. Se só alguns deles foram recolhidos pela história, quase todos pertencem à tradição, que no-los legou, antes como límpido espelho, que como tenebrosa notícia do passado. Não estou imaginando, estou sim, recordando; e recordar é instruir. Essa fronteira entre memória e História é problematizada pelo romance O cabeleira, e externada por Távora desde o prefácio da obra, constitui o grande desafio estético para sua geração. Em consonância com essa perspectiva, Távora afirma em O cabeleira que este romance não se vale da imaginação (contrapondo-se a Alencar), mas da recordação. Notadamente, essa afirmativa lança o regionalismo, enquanto percepção do sertão e do passado, como memória: um projeto romanesco que se vale da memória e da História para criar uma perspectiva de ficcionalização da realidade representada, sempre identitária. O dilema se localiza nessa ficcionalização da história privada do herói e sua inserção na História da cultura brasileira. Esses dois eixos, essas duas dimensões narrativas apresentadas pelo romance, é que parece terem constituído um desafio consciente, anunciado, experienciado, mas não resolvido esteticamente em duas gerações. Nesse momento produzir uma imagem de país que não se vale exclusivamente da imaginação e da idealização, mas que projete, a partir do percurso histórico as identidades, torna-se praticamente uma obrigação; uma espécie de cartografia brasileira para se chegar R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 26 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 a existência da identidade nacional. Ou ainda, e mais uma vez, nas palavras de Távora, o texto como espelho da cultura. Menos um espelho e mais uma proporção matemática, é assim que Flora Sussekind (1984, p.96) avalia esse período: [...] uma literatura que funcione como uma espécie de sinal de igualdade ou proporção matemática, que produza ficcionalmente a nacionalidade... ou como um plágio, uma Literatura que faça surgir na cena brasileira, de dentro de um falso naturalista, uma tão ansiosamente desejada identidade nacional. Esse dilema se traduz em um projeto estético quer seja em algum momento frágil, quer seja em constante encontro entre a História e a memória. Todavia, é inegável que constitui processo de formação do romance brasileiro, mostrando seus vários caminhos, suas experimentações e possibilidades, na fronteira entre a História, a memória e a identidade nacional. Flávio Wolf Aguiar (Revista do Brasil, p.118)fala dos enredos da cultura brasileira, nas várias experiências desse processo, desde Brasil colônia, e localiza como segundo enredo dominante da nossa cultura a tragédia da marginalidade que traz não somente o sertão, mas a figura trágica do migrante e os conflitos de ocupação da terra. Para o crítico, os primeiros romances expõem a fratura, as diferenças entre campo e cidade, entre progresso e atraso. As zonas relegadas ao esquecimento e ostracismo projetam-se como imagem do Brasil. E que Brasil é esse? Disforme, atrasado, analfabeto e violento. Desde o final do século XIX, a vida literária brasileira apresenta o extraordinário esforço de penetração crítica na realidade presente. De Os sertões passando por Macunaíma renova-se ao longo do tempo o esforço solidário na busca pela cultura brasileira. Nessa direção quer a Escola de Recife articular o enfoque das obras para as regiões não litorâneas, em franco desvio do caminho da produção literária dos grandes centros. O Brasil distante da capital ganha R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 27 espaço e expressividade não apenas com Euclides e Graça Aranha, mas também em autores como Simões Lopes, Valdomiro Silveira e Monteiro Lobato. E com isso a nação é reencontrada pelas distinções e fraturas históricas, negligenciadas na visão total do Nacional. Nacional por subtração, como analisa Roberto Schwarz (1987). Nesses autores, as diferenças se multiplicam em imagens anunciadoras de contrastes profundos que se mostram pela variação linguística, pelas crenças e costumes, pelas diferentes cidades, pelas várias fases do progresso e do atraso, pela miséria. Na fase terceira do regionalismo na aurora dos ventos fortes do século XX, que antecedem a geração de trinta, o luar já se faz sertão. Finalizando, o romance é o gênero que melhor acomoda as questões regionalistas, embora haja muitos momentos belíssimos em contos de Simões Lopes, Waldomiro Silveira e José de Mesquita. O regionalismo, portanto, implica não apenas processo de expressão da literatura brasileira - vingou gerações, pelo menos quatro, em dois séculos; mais que isso, implica processo de conformação estética do romance brasileiro: desde O gaúcho, de José de Alencar, de O cabeleira, de Franklin Távora, passando por Euclides da Cunha, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Alfredo Marien, Dunga Rodrigues, alcançando seu ponto ápice em Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte.” Referências AGUIAR, Flávio. Os enredos da cultura. Revista do Brasil. n. 04 s/d ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo, Ática 2006 __________. Til. São Paulo: Ática, 2003. __________. O gaúcho. São Paulo: Ática, 2005 __________. O tronco do ipê. São Paulo: Ática. 2005 ALMEIDA , José Maurício Gomes de. A tradição regionalista do romance brasileiro. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 28 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 ASSIS, Machado. Instinto de nacionalidade. São Paulo: Ática. s/d CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Itatiaia, 1981. CASTELLO, José Aderaldo. Aspectos do romance brasileiro. São Paulo, 1994. MARIAN, Alfredo. Era um poaieiro. Cuiabá: KCM Editora, 2008. OLIMPYO, Domingos. Luzia-homem. São Paulo: Ática, 1983. PAIVA, Manuel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. São Paulo: Ática, 1981. PEREIRA, Marcio Roberto. Regionalismo revisitado. In: Dispersa memória. Org. Luiz Roberto Velloso Cairo, Sílvia Maria Azevedo, Marcio Roberto Pereira. São Paulo: EDUNESP, 2009. PEREIRA, Lúcia Miguel. A prosa de ficção brasileira: 1890 a 1920. Belo Horizonte: Itatiaia. 1988. SCHWARZ , Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, Qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. TÁVORA, F. O cabeleira. São Paulo: Ática, 2005. Notas 2 O termo imaginado é introduzido aqui no sentido que é usado por Benedict Anderson no livro Imagined Comunities: reflections on the origin ande spread of nationalism. Segundo Anderson os membros da menor nação jamais conhecerão, encontrarão ou escutarão qualquer coisa sobre seus compatriotas. Mesmo assim na metade de cada um, sobrevive a imagem de comunhão. Para Anderson todas as comunidades humanas tendem a ser entidades imaginadas. As comunidades, argumenta, ‘não diferem pela sua falsidade’/genuinidade, mas pelo estilo em que foram imaginadas. Anderson desenvolve três aspectos caracterizadores da nação moderna: 1) A nação é imaginada como algo limitado porque até mesmo as maiores [...] têm fim; ainda que se estabeleçam fronteiras elásticas, do outro lado sempre haverá outras nações [...]. .2) É imaginada como soberana porque o conceito nasceu em uma época em que o iluminismo e a Revolução destruíram a legitimidade dos reinos hierárquicos dinásticos, governados pelo direito divino [...]. 3) R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 29 Finalmente, é imaginada como uma comunidade. Apesar da desigualdade e da exploração que prevalecem, a nação é sempre concebida como um grande companheiro horizontal. Enfim, é a partir dessa fraternidade que nos dois últimos ‘séculos tornou-se possível para milhares de pessoas matar e morrer por tais limitadas imaginações. ( negrito nosso) (1999, p. 129) 3 José Maurício Gomes de Almeida analisa em como o ponto de vista Franklin Távora, nas cartas a Cincinato, documenta de modo privilegiado a crise do momento cultural daquela época.. Em A tradição regionalista do romance brasileiro. Rio de Janeiro:Achiamé, 1981. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 30 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 O ROMANCE EM MATO GROSSO: UM ESTUDO SOBRE MIRKO, DE FRANCISCO BIANCO FILHO ROMANCE IN MATO GROSSO: A STUDY ABOUT MIRKO, BY FRANCISCO BIANCO FILHO Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT)1 Cibele Antonia de Souza Rodrigues (EEEB Adalgisa de Barros)2 RESUMO: O romance em sua emergência na Europa, como em seu estabelecimento no Brasil, esteve relacionado a mudanças 1 Doutora em Literatura Brasileira (USP); pesquisadora do RG Dicke; professora do Departamento de Letras e do Mestrado em Estudos de Linguagem/IL/UFMT; Cuiabá/MT/ CEP: 78040-505. [email protected] 2 Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT); professora da EEEB Adalgisa de Barros; Várzea Grande/MT/CEP:78110-300. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 31 sociais que se refletiram nas concepções de mundo e de literatura. No contexto mato-grossense, a construção do campo literário apresentou características próprias, na medida em que respondeu a estímulos e condições específicas, gerando uma temporalidade particular. No início do século XX, a literatura mato-grossense sofria a influência de Dom Aquino, maior nome da literatura local e defensor da tradição clássica. A proposta deste trabalho é proceder a uma análise do romance Mirko, de Francisco Bianco Filho, obra que, acreditamos, corresponde às concepções literárias existentes na época em Mato Grosso. Nosso principal objetivo é subsidiar a pesquisa sobre a consolidação do romance entre nós. PALAVRAS-CHAVE: Romance. Literatura mato-grossense. Mirko ABSTRACT: The novel in its emergence in Europe, as in its establishment in Brazil, was related to social changes that promoted changes in the conceptions of world and literature. In the context of Mato Grosso, the construction of the literary field presented its own characteristics, as it responded to specific stimuli and conditions, generating a peculiar temporality. In the early twentieth century, the literature of Mato Grosso was influenced by Dom Aquino, major name in local literature and defender of the classical tradition. The proposal of this work is to proceed to an analysis of the novel Mirko, by Francisco Bianco Filho, work which, we believe, corresponds to the literary conceptions prevalent at the time in Mato Grosso. Our main objective is to subsidize research on the constitution of novel in Mato Grosso. KEYWORDS: Novel. Literature. Mato Grosso. Mirko Introdução O romance moderno surgiu num momento marcado por profundas transformações na história da humanidade. No campo literário, houve uma ruptura com os preceitos clássicos R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 32 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 protagonizada pelo romance, cuja estrutura incorporou as novas concepções de mundo (modernização, secularização, individualismo, luta de classes, originalidade, nacionalismo etc). Entretanto, na medida em que respondeu a estímulos específicos, em cada lugar diferente, o novo gênero apresentou desenvolvimento desigual. Em Mato Grosso, embora os historiadores registrem um surto de desenvolvimento econômico após a Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX, ainda não era possível editar livros na província, cabendo à imprensa a abertura de espaço para a produção literária local. Desde as primeiras manifestações literárias, a poesia foi o gênero preferido pelos autores mato-grossenses e somente em meados do século XIX surgiram escritores que se notabilizaram como prosadores, destacando-se produções de diversas áreas como ciências, geografia, história, letras jurídicas, crônica política, jornalismo. Já a prosa de ficção aparece apenas no início do século XX, alicerçada no discurso de reestruturação da sociedade local, tanto em nível cultural quanto em progresso material. Dom Aquino, bispo e presidente do Estado, tendo capital cultural e político, comandava os rumos de uma literatura calcada em ideais moralistas e de representação nacional, o que aqui significava a valorização do regional. Considerado um poeta de “fina inspiração”, Dom Aquino foi grande apologista das belezas naturais da região, sendo o primeiro a usar a expressão pela qual Cuiabá ficaria conhecida, qual seja, “cidade verde”. Escreveu também, em prosa, diversos tipos de textos entre os quais se destacam os artigos publicados no jornal católico A Cruz. Dom Aquino foi o responsável por imprimir um tom conservador à literatura em Mato Grosso, o que pode ser observado claramente em uma de suas principais obras, Terra natal (1919), em que afirma: Bem inspirado nestes princípios, o Centro Mato-grossense de Letras se propõe a fazer uma literatura que não só respeite a moral, mas a edifique exalte e sublime. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 33 Nosso fim é cultivar as belas letras, que tão sugestivamente são também chamadas boas-letras (AQUINO apud MAGALHÃES, 2002, p. 24). O regionalismo em Mato Grosso não se limitou a cantar as belezas da terra. No início do século XX, a cena literária se abriu para um escritor mineiro que, tendo morado algum tempo em Cuiabá, foi eleito para ocupar a cadeira nº. 24 da Academia Matogrossense de Letras. Ainda que não mencionasse a realidade matogrossense em sua obra, Francisco Bianco Filho retratou costumes sertanejos que podem ser estendidos a qualquer região do interior do Brasil, o que levou Rubens de Mendonça (2005) a classificar Mirko como um “romance de costumes regionais”. Ao escolher Mirko para ilustrar os momentos de emergência do romance em Mato Grosso, pensamos abordá-la a partir do que diz Edward M. Forster quando afirma que obras tidas como menores devem ser vistas como “pequenas residências” da ficção e não como “grandes edifícios”, mas que devem ser “avaliadas e respeitadas pelo que são” (FORSTER, 2005, p. 37). Deste modo, não se trata aqui de “reabilitar” a obra, mas de avaliar a relevância de sua contribuição para a história literária de Mato Grosso e para a compreensão do papel do romance nesse processo. Neste sentido, compartilhamos com Pierre Bourdieu a convicção de que O analista que conhece do passado apenas os autores que a história literária reconheceu como dignos de ser conservados condena-se a uma forma intrinsecamente viciosa de compreensão e de explicação: pode apenas registrar, à sua revelia, os efeitos que esses autores ignorados por ele exerceram, segundo a lógica da ação e da reação, sobre os autores que pretende interpretar e que, por sua recusa ativa, contribuíram para o seu desaparecimento; ele se impede por isso de compreender realmente tudo que, na própria obra dos sobreviventes, é, como suas recusas, o produto indireto da existência e da ação dos autores desaparecidos (BOURDIEU, 2005, p.88-89). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 34 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 O romance Mirko foi publicado pela primeira vez em 1927 e reeditado em 2008, pela UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso) em parceria com a Academia Mato-grossense de Letras, integrando a Coleção Obras Raras. Rubens de Mendonça (2005) afirma que a obra data de 1920, e Lenine Póvoas (1994) de 1927. Isso poderia causar alguma confusão. Mas, na apresentação à primeira edição, Francisco Bianco Filho afirma que escreveu a obra aos dezenove anos, portanto, em 1920. Assim, essa divergência de informação se explica na medida em que um autor considerou o ano da escritura e outro o da publicação do livro. Esta colocação pode, num primeiro momento, parecer deslocada, mas se explica na medida em que serve para elucidar uma questão posta por Walnice Nogueira Galvão (2008, p. 7) que, no prefácio à segunda edição, questiona: “[...] como escapou a influências atualizadoras, quando a Semana de 22 já ocorrera e as idéias estéticas do Modernismo tinham sido postas em circulação?”. Mas, em seguida a crítica argumenta que, em se tratando de fenômenos de vida literária, pode-se recorrer às ciências sociais, que desenvolveram o conceito de “demora cultural” (cultural mog) para explicar o fato de que “[...] numa dada sociedade, nem todos os componentes evoluem no mesmo ritmo e na mesma velocidade, uns avançando e outros ficando para trás”. Assim, afirma a autora, “[...] a ausência de sinais modernistas”, em Mirko, “[...] não seria excepcional”. O conceito de “demora cultural” até pode ser aplicado ao estudo da literatura matogrossense em geral, mas não com relação a esta obra, haja vista que sua escritura é anterior à Semana de 22. A história de Mirko Por tratar-se de “obra rara”, isto é, desconhecida da maioria, segue-se um resumo detalhado do enredo. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 35 O romance inicia-se com o encontro do protagonista, Mirko, aos 17 anos, com a carioca Leda, por quem demonstra interesse, mas é rejeitado. Tempos depois, ele encontra a moça, acompanhada de Luciano, em um sarau no Rio de Janeiro, cidade onde estuda Direito. Começam a dançar e acabam tendo uma relação sexual na biblioteca. Logo depois, Leda vai embora com Luciano. Durante as férias, Mirko vai para o arraial onde vive seu pai. Um dia, cavalgando, é surpreendido por uma tempestade e se depara com uma moça descordada, é Yara. Leva-a para um abrigo e, na manhã seguinte, para a casa dos pais dela, onde está Luciano, que a acompanhava no passeio, mas a deixara sozinha quando a chuva começou. Nos dois meses seguintes, Mirko e Yara namoram, até que ele volta aos estudos. Já no Rio de Janeiro, ele reencontra Leda que, percebendo seu distanciamento, tenta seduzi-lo. Não conseguindo, decide relatar sua história. Ela conta que quando seu pai ficou viúvo, passou-lhe propriedades que lhe proporcionariam renda para uma vida tranquila. Nessa mesma época, como estava de casamento marcado, acabou se entregando ao noivo. Porém, ele sofre um acidente e morre dias antes de se casarem. Preocupada com uma possível gravidez, Leda decide ir ao médico. Este lhe revela que ela não pode engravidar, mas que o problema é sanável. E, assim, totalmente emancipada, decide não seguir as convenções sociais e viver seus desejos. Mirko, depois de ouvir o relato de Leda, acaba se aproximando dela, deixando-se seduzir novamente. Mas, arrependido, resolve que isto não mais se repetirá. Durante os meses seguintes, Leda tenta reconquistá-lo. Não obtendo sucesso, a moça parte para o arraial, onde Mirko havia retornado em férias, e lá reencontra Luciano. Os dois, então, resolvem tramar a separação de Mirko e Yara. Mirko voltou para o arraial levando a amiga Laura. Luciano, aproveitando-se disso, incita ciúmes e desconfiança em Yara. Nesse ínterim, seduz Rosalina, filha do jardineiro da fazenda. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 36 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Numa festa de São Sebastião, Luciano apresenta Yara a Leda que, mentindo ter sido seduzida e abandonada por Mirko, consegue separar o casal. Meses depois, já formado, o protagonista retorna ao arraial devido ao estado de saúde do pai. Leda casara-se com um fazendeiro rico e, mesmo arrependida, não conta para Mirko que Yara se separou dele por causa de uma intriga sua e de Luciano. Yara volta a viver na fazenda de sua família, saindo do arraial. Certa noite, Mirko vai até a casa de Yara. Enquanto isso, Luciano, que já estava na casa dela, tenta forçar uma aproximação com a jovem, quando, subitamente, a luz se apaga. Ao buscar o interruptor, ela depara-se com Luciano morto. Sai correndo e, ao ver Mirko no lado de fora, foge apressada. O corpo de Luciano é encontrado perto de um chicote com o nome de Mirko gravado no cabo, fato que o leva à prisão. O rapaz, pensando ter sido Yara a autora do crime, resolve não denunciá-la, apenas jura inocência. Já Yara supõe que foi Mirko o assassino, porém não conta que ele teria feito isso para salvar sua honra. Pois, ele sairia como mentiroso, já que se disse inocente. Ele é condenado, mas acaba fugindo e desaparecendo. Pouco tempo depois, o jardineiro da fazenda confessa ter matado Luciano por vingança pela desonra da filha Rosalina, que acabou matando a criança e se suicidando. Assim, começa a procura por Mirko, sem sucesso, o que fragiliza a saúde de Yara. Desiludida, ela resolve dedicar-se à caridade, acabando por acolher um louco que aparece na região. Uma noite ela pede a um criado que raspe a barba dele. Ao reconhecer Mirko no desconhecido, tem uma crise nervosa e seus pais, sem perceber de quem se tratava, expulsam o “louco” da casa. Durante a madrugada, Yara morre. O “louco”, ao ver o caixão no cemitério, volta à razão, abraça o corpo de Yara e também morre. Os dois são enterrados lado a lado. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 37 O campo e a cidade Em seu estudo sobre a obra, Walnice Nogueira Galvão (2008, p.7) sugere que é “[...] sobretudo da imbricação de Naturalismo com Regionalismo, com laivos de Romantismo, que surge Mirko”. E que, sendo um romance “[...] situado em Minas Gerais, desarma a expectativa de costumes e linguajar mato-grossenses ao dissolvêlos numa espécie de generalidade sertaneja”. Assim, talvez se visasse “[...] a uma amplitude maior, que não se confinasse nos limites de um único estado da federação”. A autora lança mão, em sua análise, da simbologia espacial ao ressaltar a oposição entre o campo e a cidade. Um é representado pelo sertão, a fazenda, o arraial, a aldeia, lugares de virtude, amor verdadeiro, valores familiares etc. O outro é representado pelo Rio de Janeiro, símbolo de modernidade, lugar de novidade, de tentações, de mulheres emancipadas e de desvio dos valores sociais. Os espaços do romance em tela são, portanto, tratados de forma antitética. Cabendo lembrar que Dentro da história do mundo, a literatura dá corpo a uma variedade infinita de experiências e interpretações. E, o campo e a cidade são realidades em transformação em si, como em suas inter-relações, sendo o contraste entre os dois uma das principais formas de se tomar consciência das experiências e crises sociais. Porém, isso pode levar à redução da variedade histórica em símbolos e arquétipos, o que ocorre quando certas formas, idéias e imagens importantes persistem durante períodos de grandes transformações sociais [...] Na verdade é necessário investigar a que tipo de experiências elas parecem interpretar e por que acontecem nesse ou naquele momento (WILLIAMS, 2011, p.475) Assim, se o contraste entre campo e cidade “[...] levantam questões de perspectiva e fatos históricos, porém também levantam questões de perspectiva e fatos literários” (WILLIAMS, 2011, p. 27). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 38 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Em Mirko, o campo é representado como “singela aldeia”, “solo de rincão bendito” que proporciona “vida simples e bela”, numa visão completamente idealizada. Isto também pode ser observado na fala de Alexandre, pai de Mirko, um estrangeiro sempre alegre, de “uma alegria franca que somente a mansidão dos campos faz germinar num coração”. Ao contrário da cidade, lugar de tentações, corrupção, “luxúria”. Esse recurso estético, tomando-se em conta que o romance lança mão de elementos parnasianos (linguagem rebuscada e imagens da mitologia grega), também pode ser sintetizado pelos conceitos de locus amoenus e fugere urbem, como se observa no seguinte trecho: Ao fundo – a grande serra que se esgarça pelo horizonte e em cuja altura se eleva uma singela aldeia. Jóia graciosa cravada em recanto tão bendito da natureza, possui como todas as aldeias a igrejinha branca ao topo da colina. Ali, porém, não penetrara ainda o mal dos preconceitos da civilização e o vírus das frivolidades mundanas (BIANCO FILHO, 2008, p. 35-36). A noção de que no campo está o homem não corrompido também é típica do romantismo nacionalista. No final do século XVIII e início do XIX, “[...] quando a cultura popular tradicional estava justamente começando a desaparecer”, os intelectuais alemães, como Herder e os irmãos Grimm, foram ao campo coletar contos, cantos e tradições orais, pois consideravam que lá estava intocado o espírito da nação em oposição à cidade, onde teria desaparecido (BURKE, 1995, p. 31). Nesse sentido, segundo Burke (1995, p. 32), “[...] Herder chegou a sugerir que a verdadeira poesia faz parte de um modo de vida particular”, o qual seria, posteriormente, descrito como “[...] comunidade orgânica”, onde os povos chamados “selvagens” muitas vezes “[...] são mais morais do que nós.” R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 39 Partindo-se desses princípios, podemos refletir sobre as razões de a cidade do Rio de Janeiro, representação do espaço urbano, ser valorizada apenas com relação às suas belezas naturais. Pois, ela é vista como um “painel maravilhoso vivificado pelo labor humano, que tem como fundo a majestade sublime dos Dedos de Deus”, e assim apresentada: [...] cidade da Guanabara, ante cuja magnificência se curvam reverentes os mais famosos recantos da terra, universalizados pelo primor da sua natureza. À entrada da formosa baía, ergue-se majestoso o Pão de Açúcar, como atalaia que não cochila na guarda de seus tesouros. Um pouco além, o imperial Corcovado, de píncaro adunco, dominando dos seus visos a cidade inteira, entrecortada de ruas e alamedas, praias e jardins. Pelo oceano, espraia-se o Leblon imenso e Copacabana aristocrática com a maravilhosa Atlântica, engalhardada pelo fulgor do seu colar de luzes, onde as ondas, que ao longe rompem em borbotões de alvas espumas, afagam a areia luzidia num marulhar suave de beijos e carícias (BIANCO FILHO, 2008, p. 50-51). Entretanto, quando se trata do espaço mundano, a imagem de ambiente corrompido, e corruptor, se sobrepõe. Vejamos: Cada grupo pelos passeios, cada carro pelo corso, cada par pelos salões apresenta um feitio característico, quando não encobre um romance misterioso. É um diplomata ou político que passa. Um cavalheiro abastado com esposa e filhas. Um novo rico a tresandar da casaca pouco elegante ou da rosa enorme da lapela, quando em seu automóvel vistoso, o mau cheiro de bacalhau deteriorado, de cujas grandes partidas lhe advieram o ouro e o fausto. É finamente um par voluptuoso, ela, melindrosa e linda, a lhe comprar o amor com as libras pelas quais se unira matrimonialmente a algum velhote decrépito... (BIANCO FILHO, 2008, p. 60). Assim, a imagem da cidade apresentada, num primeiro momento, como um “paraíso, [que] tudo encanta e seduz”, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 40 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 contrapõe-se à outra que “tudo fanatiza e prende para não dizer que perde e corrompe”. Por isso, o retorno do protagonista ao campo, pois “entre o néctar desse ambiente viciado, que atrai, encanta, amortoa e corrompe, extingue-se para Mirko o penúltimo ano de seu curso. E Mirko volta jubiloso ao arraial querido...”. Além das descrições da paisagem, a cor local é introduzida no romance, basicamente, por elementos da cultura regional. Não especificamente a de Mato Grosso, mas de uma cultura interiorana brasileira, sertaneja, como, por exemplo, as festas religiosas populares de São João e São Sebastião. A representação regional se dá ainda mais claramente quando surgem na narrativa figuras folclóricas, como o Sucupira, personagem de uma lenda indígena, mas que no caso é o apelido do velho Zeferino, “chefe do batuque”, do “samba sertanejo”, “cantadô” famoso pelas redondezas e na festa de São João. As quadras do velho Zeferino são uma verdadeira demonstração da linguagem sertaneja, como podemos observar: [...] Minha gente venham vê O tatu sofrê paixão Já mataro as mulas toda Da maior estimação [...] Lá do céu caiu um lenço De tão arto foi caíno E se havera de me dá Foi dá ele ao Zeferino (BIANCO FILHO, 2008, p. 42). A perspectiva adotada para contrastar campo e cidade, baseada nas concepções de inocência e estabilidade rurais e corrupção urbana, demonstra uma postura conservadora do narrador de Mirko, pois, como afirma Williams, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 41 Se o que se via na cidade não podia ser aprovado, por tornar evidente a sordidez das relações decisivas que regiam a vida das pessoas, o remédio não era jamais a moralidade da vida simples [...] Era uma mudança das relações sociais e da moralidade essencial. E era precisamente nesse ponto que a ficção de “cidade e campo” era útil: para promover comparações superficiais e impedir comparações reais (WILLIAMS, 2011, p. 94). Por outro lado, ao tempo da publicação desta obra, o Brasil, de modo geral, encontrava-se num período de transição e de confluência entre tendências conservadoras e progressistas. Para Williams (2011), a perspectiva idealizadora do passado ocorre no momento em que um novo sistema social começa a ser bem sucedido, sendo provável que surja alguma nostalgia, que toma o lugar do protesto. Isto é, o recuo a uma sociedade “orgânica” e “natural” como forma de combater a “decadência” da sociedade urbana e seus problemas sociais. A tensão entre cidade e campo é um tema recorrente da cultura ocidental, ainda que revestida de abordagens distintas. Essa dualidade acabou por constituir dois pólos de concepções da realidade: um rural, tradicional e em harmonia com a natureza; e outro, urbano, capitalista, moderno, mas ofuscado pela fragmentação do indivíduo. No romance em tela, a persistência desta dicotomia é tão significativa em si quanto a busca por suas várias possibilidades de representação. Se ela é frágil, enquanto tentativa de explicação do mundo, é importante na medida em que perpetua o constante retorno a uma sociedade “natural”, ao mito de um passado paradisíaco. Contudo, na medida em que o capitalismo se consolida, surge outra perspectiva, mais conservadora, a de que a transição da vida rural para a urbana é uma decadência, a responsável pela degradação social. Um enredo folhetinesco Para Antonio Candido (1975), o romance no Brasil nasceu “sob o signo do folhetim”, referindo-se a Teixeira e Souza. Neste R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 42 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 sentido, o gênero seguiu um caminho contrário ao da França, onde o folhetim surgiu após a consolidação do romance. Segundo Marlise Meyer (1996), é notória a “[...] influência concreta do folhetim à francesa na elaboração do romance ‘oficial’ brasileiro desde as influências temáticas” até as formais. Em Mato Grosso, o folhetim também teve grande importância no processo de formação da literatura local. Para Nadaf, o tipo de folhetim que mais influenciou o produzido na região foi o de estrutura mais suave, entenda-se, menos “rocambolesco”, com enredos focados em lares e em valores morais referentes “[...] ao amor, de preferência o lírico e o sublime, a unidade familiar, a honra, a modéstia, a resignação, o vigor às adversidades, a bondade, a supremacia da verdade sobre a mentira” (NADAF, 2002, p. 69), entre outras virtudes. Mirko incorpora esta estrutura, cujas principais características correspondem ao “romance de vítimas”. Esse tipo de folhetim é “[...] a banalização do grande folhetim romântico”, pois acabou com o “herói”, aquele “[...] indivíduo erguido contra a coerção social”, que foi diluído na “vítima”, “[...] uma vítima que respeita as convenções sociais até no mais extremo sofrimento”. O vilão, por sua vez, “transforma-se num reles sedutor, amante ou criminoso barato”. Ao final, “a sedução, o adultério ou as falsas acusações recebem o justo castigo, as autoridades reconhecem a inocência redimida, reabilitada e... submissa após duras provas”. Tal folhetim é ainda mais deslegitimado que seus predecessores, sendo considerado sinônimo do que é “folhetinesco”, confundido com suas denominações pejorativas como “[...] romance dos crimes de amor” ou “[...] romance de dramas da vida”. Enfim, o romance “[...] da desgraça pouca é bobagem” (MEYER, 1996, p. 218). Ao elencar os temas recorrentes a esse tipo de folhetim, Meyer (1996) observa que são sempre os que podem provocar um grande sofrimento: amor, ódio, paixão, ciúme, a traição, desejo, ganância, ambição, sedução, crime, luxúria, loucura. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 43 A sedução, segundo a autora, normalmente é o estopim da ação, na medida em que é a corrupção da inocência ludibriada, tendo sempre como consequências a maternidade, a loucura, a criança ilegítima, o casamento. A loucura nasce do desencontro dos desejos, do desequilíbrio interior. O adultério pode ser verdadeiro ou atribuído em falso. O dinheiro é considerado o que move o mundo, alvo do desejo de todas as camadas sociais. A ambição engendra o crime, mas numa sociedade em que cada um deve conhecer o seu lugar. Mata-se por ciúme, inveja, vingança etc. Voltando a Mirko, em que pesem as complicações provocadas por situações circunstanciais (tramóias e enganos), o romance não apresenta um enredo muito complexo quando se trata de questionamentos de caráter mais abrangente. Na verdade, as [...] singularidades da zona romanesca nas suas diferentes variantes se manifestam de vários modos. Um romance pode ser isento de qualquer problemática. Tomemos, por exemplo, o romance de folhetim. Nele, não há nada de problemática filosófica ou sócio-política e nem de psicologia [...] (BAKHTIN, 1998, p. 421). Assim, temos em Mirko uma obra que agrega vários estilos, apresentando, principalmente, nuances folhetinescas, presentes, por exemplo, na temática, na falta de conotação social ou política e no caráter melodramático do enredo. O folhetinesco também transparece na tentativa de se criar “ganchos” entre os capítulos, sendo as reticências o principal artifício empregado para ligar os fatos, deixando o final em suspenso, criando, assim, uma expectativa quanto à continuidade da história, como nos seguintes exemplos: Talvez o ópio das papoulas orientais lhe não despertasse tão suave enleio, entrecortado de estranhas emoções... E as horas passam insensivelmente... (BIANCO FILHO, 2008, p. 43). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 44 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Somente como o decorrer dos anos, quando as responsabilidades lhe curvam a fronte e a cruenta realidade lhe consome as alegrias, é que seu coração plange de dor e nos seus olhos transbordam lágrimas pungentes de saudades e recordações... (BIANCO FILHO, 2008, p. 52). E Mirko volta jubiloso ao arraial querido... (BIANCO FILHO, 2008, p. 61). Mirko volta o animal em galope desmedido e se agasalha no enorme impermeável de seu pai. Saltando poças e troncos derrubados, por entre empecilhos sem par, cavalga violentamente a procura de qualquer abrigo provisório... (BIANCO FILHO, 2008, p. 63). Ainda sobre o encadeamento dos acontecimentos, vale enfatizar que, no desenvolvimento do romance moderno, o tempo de aventuras de tipo grego ainda se manifesta, na forma do destino ou da providência divina, que podem ser representados por românticos “benfeitores misteriosos”, cuja personificação na obra é o próprio Mirko, salvador de Yara; ou “vilões ardilosos”, representados por Leda e Luciano, que tramam contra o casal de namorados. Os elementos de encontro, despedida (separação), perda, buscas, descoberta, reconhecimento, são constitutivos de romances de várias épocas e de vários tipos, como também de outros gêneros (épicos, dramáticos, até mesmo líricos). Eles se manifestam quando o equilíbrio inicial é rompido pelo acaso e restabelecido no final. No caso de Mirko, o equilíbrio não se dá pelo casamento, mas com a morte do casal, solução para eles terminarem juntos, caracterizando um típico final romântico. Sobre isto, Forster afirma: “[...] não fosse a existência da morte e do casamento, não sei como o romancista mediano concluiria seus livros” (FORSTER, 2005, p. 115). Quanto às personagens, é interessante lembrar que o romance moderno desenvolveu uma complicação crescente na psicologia das personagens. A revolução que lhe deu origem proporcionou a mudança de um enredo complicado com personagem simples para R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 45 um enredo simples com personagem complexas. As personagens em Mirko são, no geral, o que Forster chama de planas, sem complexidade psicológica, definidas por um único aspecto enfatizado e reiterado durante todo o decorrer da história, numa perspectiva marcadamente maniqueísta e folhetinesca. Assim, Mirko é virtuoso; Yara, pura/bondosa; Rosalina, simples/ingênua; Luciano, mau caráter. Apenas Leda demonstra certa ambiguidade (sincera/ cínica) e relativa variação de perfil, de mulher emancipada e liberal para esposa de fazendeiro. Ao contrário do herói do romance moderno que enfrenta uma multiplicidade de situações, movido sempre pelo desejo de mudança, o herói de uma narrativa folhetinesca apresenta uma postura conservadora, passiva, “de vítima”. Mirko às vezes se mostra um herói romântico, um cavaleiro que salva a heroína, que busca defender sua honra e que, sendo honrado e virtuoso, não pode apresentar-se como um mentiroso; em outros, lembra um herói clássico, à mercê do destino. De todo modo, diferente do herói “problemático” de Lukács (2000), que não se conforma com sua situação e movimenta a trama, tem iniciativa e toma para si a responsabilidade por seu destino. Esse poderia ser o arrivista Luciano, se não fosse sua pobre construção psicológica e seu final folhetinesco. Os acontecimentos que interferem, determinantemente, na vida das personagens retardando o desfecho da história são a intriga, que separa os protagonistas, e a fuga de Mirko da prisão, exatamente quando o verdadeiro culpado confessa o crime. Para Candido (1975, p. 127), no romance, a “[...] peripécia não é um acontecimento qualquer, mas aquele cuja ocorrência pesa, impondo-se aos personagens, influindo, decisivamente, no seu destino e no curso da narrativa”. Em um nível mais elaborado de narrativa “o personagem se revela em parte através do acontecimento”. Pois, a partir dele R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 46 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 [...] o autor vai comentando, apontando o significado humano da situação, desvendando o propósito do personagem, mostrando o seu amadurecimento ou simplesmente o seu imprevisto. Não se trata disso, porém na esfera romanesca, onde, por uma inversão de perspectiva, o personagem é que serve ao acontecimento. Este adquire consistência própria, impõe-se e incorpora o personagem (CANDIDO, 1975, p. 127). Mirko, Yara, Rosalina, e até Alexandre (pai de Mirko), são “levados” pelos acontecimentos, não questionam, nem se posicionam. Mirko, eventualmente, duvida e questiona, mas não toma iniciativa, não interfere de forma decisiva na história. Yara e Rosalina, por serem crédulas, sucumbem às mentiras, tacitamente, sem buscar a verdade ou retratação. Como não poderia deixar de ser, apenas os antagonistas, Luciano e Leda, em determinados momentos, conseguem influenciar o rumo dos acontecimentos. Deve-se ter em mente que o acontecimento pelo acontecimento, aliado ideal para a fatalidade, é um expediente muito utilizado no romance de folhetim como recurso para concatenar fatos, buscando a coesão da história a partir de um “acaso”. A maneira como o reconhecimento é construído em Mirko, quase de forma gratuita, é um exemplo disto. Considerações finais No início deste artigo, referimos a influência de Dom Aquino sobre a constituição do campo literário no início do século XX em Mato Grosso. Esta influência manifestou-se sob vários aspectos, desde os formais aos ideológicos, estes, relacionados às suas convicções quanto ao caráter moralizante da literatura. O tom moralizante, característico do folhetim, que se verifica tanto nas ações das personagens, como nas digressões do narrador de Mirko, é reforçado pela inclusão da temática da religiosidade, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 47 elemento que percorreu todo o enredo, não só para ilustrar as crenças populares, como para ressaltar a virtude dos protagonistas e a vileza dos antagonistas. Outros traços moralizantes estão presentes na narrativa, como a discussão de questões relativas à condição da mulher na sociedade da época, diluída nas passagens referentes a Leda, com seu comportamento liberal, e a Rosalina, punida por ter “ameaçado” a instituição da família ao se tornar mãe solteira; a luta do “bem contra o mal”, metaforizada, inclusive, na dualidade campo x cidade; a retratação de Leda através do arrependimento sincero e do casamento com um fazendeiro no final da obra. Assim, acreditamos ser lícito postular que a tendência conservadora, observada nos elementos acima, contribuiu para a consagração de Mirko ao tempo de sua primeira publicação. Quanto ao “resgate” da obra na atualidade, registramos sua relevância, na medida em que se trata de um documento fundamental para quem quiser estudar os primórdios do romance em Mato Grosso. Referências BAKTHIN, Mikail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Editora Unesp, 1998. BIANCO FILHO, Francisco. Mirko. 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N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 DA RECUSA À CUMPLICIDADE: ANÁLISE DO ESTRANGEIRO NO CONTO “O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA”, DE GUIMARÃES ROSA FROM REJECTION TO PARTNERSHIP: AN ANALYSIS OF THE FOREIGNER IN THE SHORT STORY “O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA”, BY GUIMARÃES ROSA Aline Maria Magalhães de Oliveira (UNESP) 1 RESUMO: Este artigo analisa o conto “O cavalo que bebia cerveja”, de Guimarães Rosa, com enfoque no estrangeiro, 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UNESP/ Araraquara. Mestre em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura pela UFF/ Niterói. <[email protected] R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 51 mostrando como ele se torna substancial para a narrativa, influenciando nas escolhas linguísticas, no discurso, no desenvolvimento dos outros personagens, enfim, em toda construção narrativa. Além disso, o trabalho procura mostrar como essa escolha temática revela Rosa como um escritor transculturador, que se situa entre dois polos contraditórios e inconciliáveis, entre o centro e periferia, o arcaico e o moderno, entre o oral e o escrito e procura estabelecer pontes entre culturas distantes. Acreditamos que o estudo da presença do estrangeiro na obra rosiana pode ser um importante instrumento de investigação para uma compreensão renovada de suas narrativas. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Estrangeiros. Transculturação narrativa. Cultura. ABSTRACT: This paper analyzes the short story “O cavalo que bebia cerveja”, by Guimarães Rosa, focusing on the foreigner, showing how he becomes substantial in the narrative and how he influences on the linguistic choices, on the discourse, on the development of other characters, ultimately on all the narrative construction. Moreover, this work intends to show how this thematic choice reveals Rosa as a transcultural agent who is situated between two contradictory and incompatible poles, the center and the periphery, the archaic and the modern, the spoken and the written languages and it also aims at establishing bridges between distant cultures. We believe that the study of the foreigner’s presence in Guimarães Rosa’s books can be an important investigation tool for a renewed comprehension of his narratives. KEYWORDS: Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Foreigners. Transcultural aspects narrative. Culture. O conto “O cavalo que bebia cerveja” é o 13º conto a compor o livro Primeiras estórias, publicado em 1962. Após ser consagrado romancista com Grande sertão: veredas (1956), Guimarães Rosa R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 52 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 publica essa coletânea de contos curtos, sintetizados tanto quanto poemas, que levou o escritor a se autodefinir como contista: “Não sou romancista; sou narrador de contos críticos” (LORENZ, 1991, p.70). A condensação dos textos, os títulos enigmáticos - tanto da coletânea, quanto de cada conto em particular - bem como as ilustrações que acompanham os contos, convidam o leitor à decifração de tais enigmas. As vinte e uma estórias que compõem a coletânea podem parecer, em uma primeira impressão, narrativas diversas coletadas e organizadas para compor um livro, mas sem qualquer ligação entre elas. No entanto, diversos críticos já apontaram a unidade na diversidade de Primeiras estórias. Katrin Rosenfield afirma que, embora as narrativas sejam temática e estilisticamente diversas, os contos: [...] não são uma sequência aleatória, mas um ciclo de ‘exercícios’ no duplo sentido da palavra: exercícios espirituais ou meditações e exercícios de virtuosismo que lembram certas composições musicais, cuja finalidade é treinar a habilidade das mãos. No entanto, em geral, encontramos embutido nesses exercícios técnicos todo um universo emocional característico de uma obra acabada ou de uma época espiritual (ROSENFIELD, 2006, p.152). Não obstante a diversidade de temas, de ritmos e tons, que vão do popular ao lírico, as diferentes situações ou problemas apresentados e até mesmo a diversidade de subgêneros ou variantes às quais cada narrativa pertence, é possível estabelecer uma “homogeneidade perfeita” entre as estórias, conforme afirma Paulo Rónai. Para o crítico, todas as narrativas apresentam um “[...] inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo halo, trescalando o mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços estilísticos: provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte” (RÓNAI, 2005, p.23). Um dos pontos de unidade apontados por Rónai são os protagonistas das histórias que representam seres guiados pelo instinto e ainda intocados pela civilização R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 53 racionalizadora e, por isso, estão mais próximos de atingir o surreal, o mágico, ou o metafísico. Assim como ocorre em outras obras de Guimarães Rosa, os personagens de Primeiras estórias são seres de exceção, os excluídos e marginalizados, “seres empurrados para a grota do mundo, os humilhados à espera de redenção” (OLIVEIRA, 1985, p. 408). São crianças cujas palavras não têm valor no mundo dos adultos devido à sua falta de conhecimento, senis que perderam crédito no que dizem porque já não raciocinam tão bem devido à avançada idade, e loucos que vivem no seu mundo à parte, na loucura que os separa do mundo racional, mas que no universo rosiano ganham voz e valor, pois para o autor no conto “A terceira margem do rio”: “Ninguém é doido. Ou então, todos” (ROSA, 1967, p.36). Walnice Galvão também considera que os personagens “iluminados, fora-das-convenções”, os “desajustados ou excepcionais” só inadequadamente poderiam ser considerados normais. Para a autora: “O grosso da comparsaria é constituída por excêntricos, no sentido etimológico, ou seja, pessoas que estão fora da centralidade” (GALVÃO, 2008, p.234). Como seres ex-cêntricos que estão fora do centro, fora da realidade comum, esses personagens se constituem sempre como exceções, como seres estranhos e o estrangeiro talvez seja um dos melhores representantes dessa excentricidade, já que o sentido etimológico da palavra designa aquele que vem de fora, aquele que não faz parte da comunidade. Em geral, os forasteiros também não têm voz, suas palavras não levam crédito, afinal “a palavra do estrangeiro é uma palavra nula. Por não ter um passado não tem poder sobre o futuro do grupo. Ninguém o ouve” (KRISTEVA, 1994, p.27). Contudo, nas narrativas de Primeiras estórias eles ganham voz e protagonizam diversas narrativas. A respeito da escolha pelo autor de seres de exceção para protagonizar suas estórias, Lenira Marques Covizzi (1978) acredita que os estrangeiros talvez sejam os mais representativos dessa característica excêntrica: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 54 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 A presença de estrangeiros é a própria encarnação dessa característica, que ocorre de maneira explícita em “O cavalo que bebia cerveja” – onde o personagem principal é um italiano envolvido em acontecimentos muito estranhos – e, em todas as outras narrativas de maneira alusiva. (COVIZZI, 1978, p.65). O conto “Um moço muito branco” também pode ser considerado uma história de estrangeiro, pois do moço muito branco, que aparece e desaparece misteriosamente, só se sabe que ele veio de alguma terra distante, aparentemente de outro planeta, e é identificado pela sua característica física muito distinta dos habitantes locais: a cor da pele muito alva. Se aceitarmos a palavra estrangeiro também com o sentido de estranho, aproximação que pode ser feita analisando-se a base etimológica das duas palavras2, que compreende o forasteiro como o Outro diferente do Eu, o incompreendido, o sujeito de difícil aceitação e acolhimento pela comunidade, podemos considerar toda a gama de personagens estranhos que compõem as Primeiras estórias um pouco como de estrangeiros. No entanto, nosso foco está no estrangeiro imigrante, aquele que vem de outro país para habitar as terras brasileiras e encontra a dificuldade de adaptação e aceitação da comunidade local. Do estranhamento à compreensão do estrangeiro No conto “O cavalo que bebia cer veja” o narradorprotagonista Reivalino conta a sua experiência de estranhamento diante de um imigrante italiano, Seu Giovânio, que veio para o Brasil para fugir da gripe espanhola e da Primeira Guerra, e o desenrolar dessa relação que passará da recusa do Outro à cumplicidade entre os dois. Devido ao curioso título do conto e ao clima de suspense instaurado na narrativa, a atenção do leitor é voltada para o R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 55 esclarecimento do caso do cavalo que o italiano dizia beber cerveja. No entanto, esse fato passa para um segundo plano, inserido como mais um dos mistérios sobre a vida do estrangeiro. O que se destaca na narrativa é o desenrolar da transfor mação gradual dos sentimentos do narrador em relação ao forasteiro, a mudança do estranhamento inicial e do preconceito contra o imigrante para uma cumplicidade e compreensão de tudo o que aquele homem já havia vivido e de como a guerra o havia transformado: “Tem-se aí outra história à margem da primeira, de mistério não menos profundo que o do cavalo bebedor de cerveja” (RÓNAI, 2005, p. 29). Como a história é narrada em primeira pessoa por um narrador homodiegético, situado num tempo ulterior ao da história que está sendo contada, este narrador está em uma posição privilegiada, já que ele conta uma história encerrada e, portanto, conhece os eventos em sua totalidade. Isso poderia fazer com que o narrador manipulasse os eventos para amainar a representação do repúdio e nojo que inicialmente ele tinha do estrangeiro. No entanto, este narrador parece estar sempre querendo comprovar sua fidelidade aos fatos narrados e confirmar a veracidade de sua história e, para isso, ele procura transcrever as falas de outros personagens, como o delegado Seo Priscilio, ou ainda tenta retratar o linguajar do italiano reproduzindo até mesmo a entonação da língua e a maneira como o estrangeiro pronunciava seu nome errado: “— ‘Irivalíni, pecado que nós dois não gostemos de cerveja, hem?’” (ROSA, 1967, p. 95); “— Irivalíni...que esta vida... bisonha. Caspité?’” (ROSA, 1967, p. 96). A segunda frase do narrador já sintetiza a problemática do que ele está prestes a contar: “Era um homem estrangeiro” (ROSA, 1967, p.91). O atributo “ser estrangeiro” precede qualquer outra descrição física ou psicológica, pois esta é a característica mais importante do personagem para o narrador: o ser estranho, o exótico, aquele que não pertence ao local, que não possui uma história conhecida e que traz uma cultura diferente da local. É a estrangeiridade de Seo Giovânio que conduz o olhar do narrador R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 56 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 ao contar sua história e é esta característica que será o centro da narrativa. A história da chegada do italiano ao vilarejo é contada segundo a versão da mãe de Reivalino, que disse ao filho que o estrangeiro teria vindo da Itália no ano da gripe espanhola, ocorrida no período da Primeira Guerra Mundial, por volta de 1918. Mas o desenrolar da narrativa vai provar que não foi a gripe espanhola que fez esse personagem deixar sua terra natal e vir para o Brasil, mas foram os horrores da Primeira Guerra ( que o fez emigrar). A primeira evidência está no temor que o forasteiro deixa transparecer, como alguém que se esconde ou guarda algum segredo: ele vivia numa chácara isolada, escurecida pelas árvores e vigiada por muitos cães, além de ter a espingarda sempre pronta: “Essa chácara do homem ficava meio ocultada, escurecida pelas árvores, que nunca se viu plantar tamanhas tantas em roda de uma casa” (ROSA, 1967, p.91). A descrição desse ambiente reflete a identidade de seu dono: isolada, intrigante e que remete o leitor a um espaço de exílio e de refugiados, uma sensação de cativeiro ou de privação de liberdade que o italiano confirma em sua reflexão sobre a vida: “— ‘Irivalini, eco, a vida é bruta, os homens são cativos... ’” (ROSA, 1967 p.95, grifo nosso). Outra evidência de que o italiano veio residir no Brasil para escapar da guerra está no tratamento dado ao seu cachorro: Mussolino. Seu nome remete ao grande ditador italiano Benito Mussolini, um dos responsáveis pelo fascismo italiano e que lutou na Primeira Guerra: Ele se rodeava de diversos cachorros, graúdos, para vigiarem a chácara. De um, mesmo não gostasse, a gente via, o bicho em sustos, antipático — o menos bem tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de ao pé dele, estava, a toda a hora, de desprezo, chamando o endiabrado do cão: por nome “Mussulino” (ROSA, 1967, p.91). Pelo excerto, observamos como o dono trata mal o cão Mussolino em relação aos outros cães: “o menos bem tratado”, “o R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 57 endiabrado do cão” e o narrador claramente diz que era por desprezo que o patrão lhe o chamava (por) Mussolini, ou como Reivalino entendia: “Mussolino”. Certamente o cão representa para o italiano uma rejeição a tudo que o nome de Mussolini representa, principalmente, a lembrança da guerra e os horrores praticados por regimes autoritários como o fascismo a que Mussolini esteve ligado. A diferença de hábitos do estrangeiro é recebida com asco pelo narrador e pelo povo da região, que espalhavam diversos rumores sobre seus estranhos hábitos: “Falavam que comia a quanta imundície, caramujo, até rã, com as braçadas de alfaces, embebidas num balde de água” (ROSA, 1967, p.91). A singularidade do estrangeiro é um fator que ao mesmo tempo em que atrai, repele; ela atrai pela curiosidade da diferença, mas afasta os autóctones que não aceitam tais hábitos tão estranhos aos seus. Conforme observa Kristeva, a diferença física e de hábitos do estrangeiro faz com que ele se destaque entre os demais habitantes. E essa diferença se revela ao sujeito local como um problema identitário, uma vez que significa a ruptura com uma banalidade que é necessária, pois: “é o banal, precisamente, que constitui uma identidade para os nossos hábitos diários” (KRISTEVA, 1994, p.11), ou seja, os costumes estrangeiros quebram uma rotina que é necessária para nossa formação identitária. Quase inevitavelmente, surge na comunidade um desejo de eliminar aquela diferença para voltar a conviver apenas com sua própria singularidade. A segunda barreira que desencadeia a aversão do narrador ao estrangeiro é a linguística: “Tudo nele me dava raiva. Não aprendia a referir meu nome direito” (ROSA, 1967, p.91). Ora, sabemos que o nome é a marca mais evidente da identidade de uma pessoa e sua história. Não ter seu nome pronunciado corretamente parece destituir Reivalino de parte de sua identidade, ou colocá-la a prova. Para o narrador, era uma desfeita o estrangeiro não pronunciar direito o português: “[...] ‘Cerveja, Irivalíni. É para o cavalo... ’ o que dizia, a sério, naquela língua de bater ovos” (ROSA, 1967, p.92, grifo nosso). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 58 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Ele se irritava porque o estrangeiro estava em terras brasileiras e vinha “pronunciar a feia fala” (id.,ibid.). Porém, quando a situação se inverte, e é Reivalino que pronuncia e interpreta o falar italiano a seu modo, não há qualquer julgamento e o estrangeiro aceita sua maneira de interpretar sua língua: “‘Irivalíni... que esta vida... bisonha. Caspité? ’ – perguntava, em todo tom de canto. Ele avermelhadamente me olhava. – ‘Cá eu pisco... ’ – respondi” (ROSA, 1967, p.96). Assim, o que nos parece é que no entender do nativo lhe é permitido interpretar a outra língua como quiser, pois ele está em seu território. A barreira linguística é um ponto crítico na relação entre o nativo e o estrangeiro. Muitas vezes é ela que impossibilita uma relação de proximidade entre os dois, dificultando um entendimento das partes e até mesmo levando o estrangeiro e o nativo a optarem pelo silêncio, pois, segundo Kristeva, no encontro entre duas línguas a resultante pode ser o silêncio: “O silêncio não lhe é somente imposto, ele está em você” (KRISTEVA, 1994, p.22). De fato, o silêncio é uma marca do personagem italiano que é representado como homem de poucas palavras, pois em toda a narrativa há a transcrição de apenas dez frases do italiano dirigidas a Reivalino, e parece que o estrangeiro vivia recluso sem falar com mais ninguém. E o silêncio do estrangeiro é o responsável por aumentar a curiosidade local, que fica intrigada ao ver esse forasteiro que não fala de suas origens, nem de suas raízes, nem o que faz por ali. Ao longo da narrativa, a distância entre o narrador e o estrangeiro só aumenta, beirando o ódio, e Reivalino insultava Seo Giovânio em pensamento: “– Tu espera, porco, para se, mais dia menos dia, eu não estou bem aí, no haja o que há” (ROSA, 1967, p.92). O italiano, por sua vez, estimava tanto a mãe de Reivalino que, quando ela adoeceu, lhe fez a gentileza de oferecer dinheiro para pagar suas despesas médicas que o protagonista aceitou sem agradecer, pois atribuiu o gesto a um possível remorso: “Aceitei; quem é que vive de não? Mas não agradeci. Decerto ele tinha remorso R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 59 de ser estrangeiro e rico” (ROSA, 1967, p.92). O empregado não via a atitude do patrão como uma caridade, mas como uma obrigação de alguém que tem remorso, uma atitude defensiva que mostra o orgulho do sertanejo que precisa aceitar a ajuda de um estrangeiro. Quando a senhora falece, o italiano paga todas as despesas do enterro e convida Reivalino a trabalhar para ele. Reivalino não demonstrava gratidão pelas atitudes do estrangeiro porque seu poder aquisitivo era mais um motivo de rancor. A sua mágoa era ver o estrangeiro rico fazer do nativo seu empregado e ainda ter de vê-lo esbanjar dinheiro comprando o que é da sua terra: Eu remoía o rancor: de que, um homem desses, cogotudo, panturro, rouco de catarros, estrangeiro às náuseas – se era justo que possuísse o dinheiro e estado, vindo comprar terra cristã, sem honrar a pobreza dos outros, e encomendando dúzias de cerveja, para pronunciar a feia fala (ROSA, 1967, p. 91-92, grifo nosso). É uma situação corrente o autóctone enxergar no imigrante o culpado por sua situação desfavorável, o que em geral não corresponde à verdade, como afirma Kristeva (1994, p.09): “Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade [...]”. Se no início da narrativa o narrador dizia: “Era um homem estrangeiro” (ROSA, 1967, p.91), no terceiro parágrafo as diferenças já se tornaram tão latentes que o homem era “estrangeiro às náuseas” (ROSA, 1967, p.92) ou seja, causava-lhe repúdio aquele sujeito estranho. As cervejas que Seo Giovânio regularmente pedia para Reivalino comprar para o cavalo só faziam aumentar a sua curiosidade e a do povo quanto a esse homem enigmático, que não se mostrava a ninguém. O empregado não acreditava que fossem para o cavalo, mas para o patrão mesmo, que talvez só bebesse escondido e, mesmo a contragosto, ele trazia as cervejas. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 60 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 As autoridades começam a desconfiar da clausura e da vida velada do italiano e resolvem investigar, interrogando o empregado, se acaso o patrão não tinha marcas de ter fugido de uma prisão. O narrador não se envergonha de contar que aceitou dinheiro dos funcionários do Consulado, vindos da capital, para dizer tudo o que sabia do patrão. Delatou-o apenas por vingança: “Mas contei tudo ou tanto, por vingança, com muito caso” (ROSA, 1967, p.94). Para acabar com as desconfianças das autoridades e provar que o cavalo bebia mesmo as cervejas, Seo Giovânio despeja o conteúdo das garrafas numa gamela e o cavalo bebe muito afoito. Mas, não possuir uma história, uma família, uma origem, destitui o estrangeiro de qualquer crédito diante de uma comunidade e sua palavra não tem valor. A partir da sugestão de Reivalino, que precisava matar sua curiosidade e descobrir o que estava trancado nos quartos, o investigador resolve revistar toda a casa e descobre um grande cavalo empalhado dentro de um dos quartos do casarão: “[...] – um cavalão branco empalhado. Tão perfeito, a cara quadrada, que nem um de brinquedo, de menino; reclaro, branquinho, limpo, crinado e ancudo, alto feito um de igreja – cavalo de São Jorge” (ROSA, 1967, p.95). O narrador compara o cavalo empalhado com o cavalo de São Jorge, que é um dos santos de maior devoção popular, e que figura muitas histórias orais. Esta comparação, por um lado, traz ao texto a marca da tradição das narrativas orais e, por outro, aponta para o início de uma sincronia entre a cultura estrangeira e a local, visto que a personagem autóctone adapta a sua realidade e tradição cultural a algo que vem de fora, remetendo ao princípio de plasticidade cultural3 que o escritor transculturado utiliza nessa narrativa, visto que a literatura de transculturação utiliza a plasticidade cultural para transitar por culturas diferentes, estabelecendo um diálogo entre culturas em conflito, livre de hierarquias entre ambas, discriminações ou xenofobias. Essa sincronia entre as culturas começa a apontar para um possível diálogo entre as diferenças. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 61 Nesse ponto da história, o narrador começa a compreender melhor a situação de exilado do patrão e uma ponta de compadecimento aparece em Reivalino: “Tive a vontade contar a ele o que por detrás se estava passando. [...] Coisa terrível assistir aquele homem, no não dizer de suas lágrimas” (ROSA, 1967, p.95). Depois, o patrão o convida a comer com ele, mas apesar de estar ocorrendo uma proximidade entre os dois, ele ainda tinha nojo daquele sujeito: “Queria que eu comesse com ele, mas o nariz dele pingava, o ranho daquele monco, fungando, em mal assôo, e ele fedia a charuto, por todo lado” (ROSA, 1967, p.95). Não houve uma diminuição da diferença e do nojo que Reivalino sentia por esse estranho; mesmo assim, ele consegue, aos poucos, aceitar sua diferença e encontrar nela alguma semelhança. Talvez na solidão daquele homem ele tenha visto um espelho de sua própria personalidade. O narrador não apenas vê o estrangeiro como seu semelhante, mas se coloca em seu lugar, e não só “no sentido humanista, de nossa aptidão em aceitar o outro, mas de estar em seu lugar – o que equivale a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo” (KRISTEVA, 1994, p.20), mas é fazendo-se semelhante ao estrangeiro que o empregado consegue compreender e aceitar o patrão. Então, ele procura as autoridades para impedi-las de voltar à casa do patrão e afirma: “Se tornassem a vir, eu corria com eles, despauterava, escaramuçava – alto aí! Isto aqui é Brasil, eles também eram estrangeiros” (ROSA, 1967, p.95, grifo nosso). Reivalino reconhece que tanto ele quanto os outros membros da comunidade poderiam ser considerados tão estrangeiros quanto o italiano, afinal “Isto aqui é Brasil” um país miscigenado, formado pelo encontro de diversas etnias e culturas. A reflexão de Reivalino nos leva a compreender melhor a afirmação de Julia Kristeva (1994, p.09) que diz “[...] o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros”. O conflito cultural só é interrompido quando as diferenças são aceitas – e não abolidas R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 62 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 – e quando todos se reconhecem na estranheza, afinal todos são um poucos estranhos e o que nos faz lembrar disto é a estranheza do Outro. Pouco depois é revelado o segredo do senhor Giovânio. O que ele escondia em um dos quartos do casarão era o irmão moribundo que teve a face desfigurada por um tiro na guerra e, por isso, se reservava de qualquer contato com as pessoas. O irmão só é revelado quando Reivalino é chamado para tratar de seu enterro. Após o enterro, o empregado decide ir embora daquele lugar e da tristeza que pairou por ali após a morte do italiano. A pedido do patrão, antes de partir, Reivalino bebe com ele as cervejas que haviam restado e leva consigo o cavalo bebedor de cerveja. Tempos depois de sua partida, fica sabendo do falecimento de Seo Giovânio que deixou todos seus bens ao empregado fiel. Contudo, Reivalino não consegue mais viver naquele lugar, vende a propriedade herdada e não volta nunca mais. O narrador demonstra toda sua cumplicidade ao patrão bebendo pela rua todas as garrafas de cerveja que restaram, para que as pessoas pensassem que era ele mesmo quem consumia a bebida, e com isso reservando a imagem do italiano falecido. Ao final da narrativa o narrador confessa: “Eu, Reivalino Belarmino, capisquei” (ROSA, 1967, p.97, grifo nosso). O verbo criado a partir da expressão italiana: Capisco mostra que o contato com a cultura do estrangeiro deixou marcas profundas em Reivalino, mudou sua visão de mundo e sua concepção do que é ser estrangeiro e ainda deixou as marcas do contato com a língua italiana. Capisco em italiano quer dizer “compreendo”, “entendo”. Assim, a frase supracitada significa que o narrador finalmente compreendeu o estrangeiro e aprendeu a lidar com a diferença. Entretanto, para demonstrar o resultado do contato entre as culturas, o autor poderia ter optado por construir a frase utilizando o verbo em português: “compreendi” e esse sentido provavelmente R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 63 permaneceria claro. Contudo, a escolha do neologismo criado a partir da palavra italiana consegue demonstrar que o narrador aprendeu muito mais do que simplesmente o significado daquela palavra. Lembramos aqui que o aprendizado se deu aos poucos, pois anteriormente ele dizia “Cá eu pisco...”, e o narrador transcreve exatamente o que ele entendia ao ouvir a expressão. O neologismo revela que ele assimilou a cultura estrangeira e, como um antropófago, deglutiu-a e inseriu-a em sua gramática, transformandoa em um verbo no português. O que Reivalino faz é o que Guimarães Rosa chamaria de “traduzadaptar” (ROSA, 2003, p.39), isto é, traduzir o falar do italiano adaptando à sua língua. Esse recurso se parece muito com aquele utilizado pelo escritor para criar neologismos e produzir novos significados, contudo, sem perder suas origens: “Ainda que seu referencial básico seja a língua portuguesa e suas variantes brasileiras empregadas nos usos linguísticos do sertão mineiro, ocorre, na ‘língua rosiana’, uma visível hibridização entre o português e outros idiomas” (FANTINI, 2003, p.61). Essa “hibridização idiomática” significa para Marli Fantini “microprocessos de ‘conversação’ entre línguas” que reproduz recursivamente o processo de transculturação tanto no plano lexical quanto no sintático. A transculturação narrativa de Guimarães Rosa Podemos nos arriscar a dizer que esse conto é uma síntese do processo de transculturação narrativa realizado por Guimarães Rosa, que, através do processo de plasticidade cultural, consegue transitar pela cultura italiana e a cultura sertaneja e estabelecer um diálogo entre as alteridades em conflito, sem, contudo, apagar suas diferenças. Foi o crítico uruguaio Angel Rama que denominou transculturadores aqueles escritores que desafiam a cultura estática, presa à tradição local, e produzem novos significados, mas sem perder R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 64 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 suas origens. Os escritores que produzem essa literatura de transculturação são criadores literários que “constroem pontes indispensáveis para resgatar as culturas regionais” (RAMA, 2001, p.213), capazes de rever os conteúdos culturais regionais e revitalizar as tradições, adequando as contribuições artísticas vindas com a modernidade à cultura local. O trabalho de Guimarães Rosa representa essa proposta revitalizadora, pois o escritor possui como cerne de sua criação artística um minucioso processo de renovação da linguagem, de recriação do vocabulário remontando às suas origens, de restauração da oralidade na narrativa escrita e soube construir, de maneira original, as pontes necessárias entre o regional e o universal. Deste modo, estabelecendo pontes entre as culturas do estrangeiro e do sertanejo, unindo o regional com o universal e mediando culturas em conflito sem negar o jogo das diferenças, mas respeitando e valorizando cada uma delas, é que Guimarães Rosa consegue falar do estrangeiro sem estereotipá-lo, como muitas vezes acontece ao tratar dessa temática. Caso o escritor negasse o jogo das diferenças, ele poderia ter caído no perigo da estereotipação da personagem. Segundo Tonico Amâncio: “O pensamento estereotipado se define aqui por ser uma imagem ou opinião aceita sem reflexão por uma pessoa ou um grupo e exprime um julgamento simplificado, não verificável e às vezes falso sobre tal grupo ou sobre algum acontecimento” (AMÂNCIO, 2000, p.137). O pensamento estereotipado não procura explorar a singularidade do indivíduo, pois apresenta um discurso preestabelecido generalizante que é reproduzido sem reflexão. De acordo com Homi Bhabha, o estereótipo é uma forma limitada de alteridade e é importante questionar as formas de representação dessa alteridade, que, em geral, é um discurso preconcebido que é repetido até se fixar como verdade. Para ele o estereótipo é uma simplificação “porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais” (BHABHA, 1998, p. 117). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 65 Ao colocar em cena um italiano no sertão mineiro, o escritor poderia ter feito um estereótipo do estrangeiro baseado no discurso popular generalizante que representa uma forma fixa e simplificada de um povo. No entanto, ele compõe uma personagem singular, densa emocionalmente, mas que se revela com sutileza, por meio de poucas frases que demonstram sentimentos intensos, reflexões filosóficas sobre a vida, e cuja complexidade psicológica Guimarães Rosa transmite com astúcia, num texto condensado. Mesmo sua nacionalidade, que ficaria evidente num discurso estereotipado, em nenhum momento é explicitada na narração. Só descobrimos que o personagem é um italiano por traços sutilmente plantados no discurso, como seu nome “Seo Giovânio” (provavelmente Giovanni), pelo nome de seu irmão: “Josepe” (possivelmente Giuseppe) e pelo nome do cachorro: “Mussolino”, que faz referência ao ditador fascista italiano Mussolini, além, é claro, das dez frases transcritas pelo narrador, com a reprodução de seu modo de falar e com algumas palavras italianas. Se compararmos este personagem a outros personagens italianos da literatura brasileira, notaremos a diferença que estamos tentando demonstrar na maneira delicada como Guimarães Rosa compõe a personagem. Alcântara Machado apresenta em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) uma galeria de tipos italianos ou ítalo-paulistanos, predominantemente caricaturais, sem preocupar-se com um aprofundamento psicológico de seus personagens, pois seu interesse está em traçar um perfil do imigrante e retratar as transformações sociais que ocorreram após chegada dos italianos em São Paulo. Em Laranja da China (1928), o autor dedica 10 capítulos à Itália, no entanto, com personagens extremamente caricaturais e estereotipados. Mário de Andrade divide sua opinião sobre os imigrantes italianos, que vai desde a crítica aos imigrantes aburguesados, caracterizada no gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra de Macunaíma (1928), que é o estrangeiro que veio usurpar a pedra R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 66 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 da sorte e representa a figura do novo-rico imigrante, ao olhar sensível às dificuldades por que passaram muitos imigrantes, como é o caso dos jovens italianos pobres que tentam buscar um futuro melhor na cidade de São Paulo do início do século XX, conforme Carlos Capela (2001, p.151) observa em vários contos do escritor. Oswald de Andrade também cai no uso do esterótipo arraigado em Marco Zero, romance “mural” publicado em dois volumes, I – A revolução melancólica (1943) e II – Chão (1945), no qual o autor busca traçar um panorama da sociedade paulista da década de 1930. Dentre os personagens representativos de grupos sociais distintos, figuram muitos imigrantes, de origens diversas. Das relações sociais descritas, sobressaem, muitas vezes, conflitos e tensões entre os personagens imigrantes e os brasileiros, que se refletem no processo histórico que está sendo retratado. Apesar de aceitos como integrantes do complexo social brasileiro, esses imigrantes não deixam de ser retratados com estereótipos bastante caricaturais. A esse respeito, Antonio Candido (1997, p.82) afirma que o romance “derrapa num pitoresco bastante constrangedor” que resulta um enfoque da sociedade de modo bastante caricatural. Esses autores marcam as diferenças culturais principalmente através da linguagem, utilizando uma perspectiva dualista que procura transcrever o falar caipira, símbolo nacionalista, em contraste ao falar “macarrônico” dos ítalo-paulistanos, representativo da ameaça estrangeira à nação. A linguagem de Guimarães Rosa não procura marcar as diferenças, mas a correlação das culturas que se tocam, se misturam e se transformam. Isso acontece porque o escritor transculturado está integrado à sua comunidade linguística e fala a partir dela, de modo que ele não procura mais “imitar de fora uma fala regional, mas sim elaborá-la de dentro dela” (RAMA, 2001, p. 220), aproveitando todas as possibilidades linguísticas para construir uma língua especificamente literária. Além disso, ao invés de contrapor a língua estrangeira com o português, a antropofagia de Rosa consiste R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 67 no uso da plasticidade cultural para aproveitar as virtudes de outra língua a fim de enriquecer a própria, recriando a linguagem e produzindo algo completamente novo. O conto aqui estudado é emblemático para mostrar como Guimarães Rosa atua como um transculturador e um mediador de conflitos, uma vez que pontes entre as culturas são estabelecidas ao longo da narrativa, assim como ele faz em toda sua obra uma intercessão entre o universal e o regional. Essa mediação revela um escritor apaixonado pela diferença e preocupado em aproximar os povos, não pela homogeneização de traços, mas pela valorização das particularidades de cada língua e cultura. A narrativa mostra que, em meio à diferença, sempre é possível encontrar traços universais comuns. A aproximação entre os opostos pode ser feita tanto por meio de semelhanças entre as culturas quanto por meio da linguagem, através de processos como o de aglutinação, que une dois idiomas distintos e forma uma nova palavra, ou de aproximação sonora, que imita no português a sonoridade da língua estrangeira, ou mesmo dos inúmeros vocábulos que tomamos de empréstimo de outras línguas. No conto “O cavalo que bebia cerveja” a aceitação e compreensão do Outro só ocorrem quando todos se reconhecem estrangeiros, o que nos remete à maneira como a psicanálise entende a relação entre o estrangeiro e o autóctone, ou entre o Eu e o Outro. Para Freud (1996), o que incomoda o Eu no encontro com o estranho não é sua estranheidade, mas, ao contrário, é o familiar presente no insólito que causa a angústia. Já a psicanalista Julia Kristeva acredita que se a estranheza está em nós mesmos, então podemos dizer que o estrangeiro também está em nós, somos todos um pouco estrangeiros: “Se sou estrangeiro, não existem estrangeiros” (KRISTEVA, 1994, p.201). Na narrativa aqui analisada, Reivalino se dá conta disso a partir da reflexão sobre a heterogeneidade cultural e étnica que formou o Brasil, na miscigenação que ocorreu entre os índios e os portugueses, e, posteriormente, entre os demais R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 68 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 imigrantes, de onde ele conclui que todo brasileiro pode se considerar um pouco estrangeiro. Assim, acreditamos ter mostrado que apesar de o estrangeiro aparecer pouco na narrativa, com poucas falas do personagem italiano, e apesar de ser o conto narrado por outro personagem, Reivalino, é em torno do estrangeiro que a história é construída, é ele o tema central da narrativa, em torno do qual todas as categorias da narrativa foram cuidadosamente construídas. Esse conto revela, também, um modo de ver o mundo sobre a ótica da universalidade rosiana. Referências AMÂNCIO, Tonico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto, 2000. BHABHA, Homi k. O local da cultura. Tradução de Myrian Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. BUENO, Francisco da S. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1986. p.1277. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. 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Mas, de acordo com Bueno (1986, p.1277), no caso do vocábulo “estrangeiro” a formação imediata foi operada no domínio provençal do latim extranicus: o sufixo icus palatiza-se em provençal antigo em tch que passa ao francês como Ge e também ao português Ge, como o que ocorre na evolução da palavra “viagem”: viaticus/ viathe /viage/ viagem. Do mesmo modo, de extranicus/ extrantche/ extrange ao qual se acrescentou em português o sufixo – eiro: estrange + eiro – estrangeiro. 3 Plasticidade cultural é o nome dado pelo crítico uruguaio Angel Rama para designar o processo de integrar novas estruturas formais sem se afastar de suas origens ou recusar suas próprias tradições. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 71 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 72 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 EXERCÍCIOS DE IMAGINAR – UMA LEITURA DE EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA DE MANOEL DE BARROS EXERCISES TO IMAGINE – A READING ABOUT EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA BY MANOEL DE BARROS Carolina Tito Camarço (UNEMAT)1 Elisabeth Battista (UNEMAT)2 RESUMO: A partir do momento em que a infância passa a ser vista como uma construção social, a criança passa a receber bens 1 Mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT. Email: [email protected] 2 Pós-doutora pela Universidade de Lisboa – UL. Doutorado e Mestrado em Letras/Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo-USP. Docente no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários-PPGEL, da Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT. e-mail: [email protected] R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 73 culturais específicos, entre eles uma literatura própria. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar uma leitura de Exercício de ser criança (1999), de Manoel de Barros, seu primeiro livro infantil/juvenil. Barros retoma algumas características recorrentes na sua obra poética: as peraltagens, o ser-poeta, conceitos poéticos sobre a matéria da poesia, a atitude de recordar a infância, a consciência do faz-de-conta das brincadeiras, a busca do anti-pragmatismo da poesia. PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros. Literatura infantil/ juvenil. Poesia. ABSTRACT: From the time when the child is seen as a social construction, the children receive specific cultural goods, including a literature of its own. In this direction, the goal of this work is to present a reading about Exercícios de Ser Criança (1999), Manoel de Barros,his first book for children / youth. Barros takes certain recurrent features in his poetry: the mischief, the be-poet, poetic conceptsabout the poetry subject, the attitude of remembering childhood, awareness of make-believe of play, the pursuit of anti-pragmatismpoetry. KEYWORDS: Manoel de Barros. Literature for children / Youth. Poetry. As produções poéticas infantis, até meados da década de 60, eram caracterizadas pelo conservadorismo e, compromissadas com a pedagogia da época, tratavam de temas como exaltação à pátria e ensinamento de valores morais. Já entre as décadas de 60 e 70 buscouse a autenticidade infantil na poesia. Passou a respeitar também no texto destinado à criança a natureza do texto, isto é, um produto artístico, literário, e uma adequação às faixas etárias, ainda que segundo concepção do próprio autor. Desta forma, a poesia infantil brasileira teria encontrado seu caminho, quando as produções passaram a valorizar o mundo da R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 74 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 criança, seu cotidiano, suas brincadeiras. Poetas como Vinícius de Moraes, José Paulo Paes, Henriqueta Lisboa e o próprio Manoel de Barros possuem como característica comum o manejo com a língua, utilizam a própria linguagem como matéria para suas produções. Se, segundo Bosi (2000, p.163) “a poesia tem o poder de reconhecer sentidos da natureza íntima das coisas e dos seres”, na literatura destinada ao público infantil, esse seria, também, o horizonte perseguido: o poeta seria esse que proporcionaria à criança esses sentidos. Trabalhando prioritariamente com a linguagem, o apelo melodioso do som das palavras, conforme aduz Bosi, contribui para a sedução do leitor nascente e para construção do imaginário e da imaginação, pois uma das características da aproximação da criança com o discurso poético são o discurso e pensamento “livres”, é o olhar da criança para o mundo, pois tanto o discurso como a criança compartilham o uso da imagem. Bosi (2000, p. 184) afirma que “a arte resiste porque a percepção animista ainda é, ao menos para a infância e, em outro nível, para o poeta, uma fonte de conhecimento.” Em relação à poesia infantil Turchi (2004, p. 43) afirma que a mesma: [...] desprende-se de um imaginário condicionador e alcança um imaginário libertador, levando em consideração a alteridade, a voz da criança e a diversidade cultural, seja no poema que se realiza de maneira mais lírica ou mais lúdica; no poema narrativo que é a história contada em versos com rima e ritmo; ou na prosa poética que, sem estar presa ao verso, se constrói a partir de imagens poéticas. É nesse contexto que se situa Manuel de Barros. Regina Zilberman, em A literatura infantil brasileira, ao traçar uma trajetória da produção poética infantil, desde a figura que ela considera de certa forma o iniciador dela no Brasil, e passando pelos que se R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 75 sobressaíram no século passado, finaliza citando Manoel de Barros, apontando-o como “um dos mais importantes poetas nacionais, nesse começo de milênio” (ZILBERMAN, 2005, 128). Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura de Exercício de ser criança (1999) seu primeiro livro infantil/juvenil, que recebeu vários prêmios: “O melhor da literatura infantil” da ABL- Academia Brasileira de Letras; “O melhor livro de poesia para criança” da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e o Prêmio Jabuti na categoria “Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil”, todos em 2000. Com relação à dimensão expressiva do texto, os de Barros são permeados de metáforas, de imagens que exigem do leitor um desprendimento das regras, de normas consagradas pelo uso, convidando-o a abandonar a lógica do cotidiano, do usual, do pragmático e se transportar para um mundo fantástico, sui generis. Por isso, Isaac Newton Ramos (2008, p.187) assim define o seu estilo: “rebeldias e processos irreverentes de construção poética constituem a tônica dos livros publicados por Manoel de Barros”. Em seus versos há pouca pontuação, quase não utiliza vírgulas, preferindo o ponto final e as reticências; sempre presentes também os travessões, parênteses, interrogações e exclamações, não há rimas em seus versos. Conforme afirma Castrillon-Mendes (2009, p.49), sua poesia “é marcada por elementos gráfico-visuais do tipo hífen, numeração desconexa, parênteses, sinais de pontuação e a livre ocupação do espaço na folha em branco com períodos curtos [...]” Já nos títulos dos livros se verifica a orientação poética dos textos. Mirian Garcia (2006, p.83.) afirma que “é um processo importante quando são estudados os poemas de Manoel de Barros. Os títulos de suas obras normalmente são expressões semanticamente tão significativas quanto os poemas que contêm”. Tendo em vista que os títulos normalmente são expressões – denominadores-síntese do conteúdo condensado dos poemas, estes podem, assim, ser considerados como expressões expandidas dos R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 76 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 mesmos conteúdos. Isto é, uma relação metalinguística de denominação e definição. Em Exercícios de ser criança, Barros retoma algumas características recorrentes na sua obra poética, tanto para adultos como também para o público infantil: as peraltagens, o ser-poeta, conceitos poéticos sobre a matéria da poesia, a atitude de recordar a infância, a consciência do faz-de-conta, das brincadeiras, a busca do anti-pragmatismo da poesia. O título da obra indicia que Barros trata do que ele afirma serem “exercícios” característicos da criança. Segundo Ferreira (1986, p.209) a palavra exercício significa: “1. Ato de exercer, prática, ou uso a fim de desenvolver ou melhorar uma capacidade ou habilidade”. Neste sentido, Barros não utiliza “Exercícios de criança”, em que se entenderia tratar-se de atividades próprias, características de uma determinada faixa etária. Compõe a expressão: “Exercícios de ser criança”, enfatizando, desta forma, a essência fundamental dessa faixa etária. Embora o leitor (ideal, pressuposto), a criança, deva saber exatamente as atividades e postura a que se refere o título, o recurso linguístico provoca uma aproximação com o leitor e cria um perfil identitário, abrindo a possibilidade de que outras pessoas que não se enquadrem nessa qualificação possam da mesma maneira assumir essa essência e praticá-la. O livro é composto por três histórias. Na primeira, sem título, Barros explora as perguntas que seriam típicas da criança, a que muitas vezes os adultos não têm respostas: “-E se o avião tropicar num passarinho?” (BARROS, 1999, s/p). Na segunda, “O menino que carregava água na peneira”, Barros trata do fazer poético: “Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira” (BARROS, 1999, s/p). E a terceira, “A menina avoada”, gira em torno do tema da imaginação infantil. Percebe-se que, nessa sequência, Barros, após narrar “sua” experiência de fantasia – “O menino que carregava água na peneira” - deixa espaço para a apresentação das experiências de outras R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 77 crianças, relembrando as brincadeiras de infância. As histórias se ampliam e complementam uma às outras, principalmente as significações poéticas das ações do menino. Pode-se entender que as três histórias apresentam como tema comum: poder criativo e imaginativo da criança. Wanêssa Cruz (2009) destaca que a infância é um tema sempre presente nas obras de Manoel de Barros e está quase sempre ligada ao fazer poético, tendo a infância como momento em que a criatividade e a liberdade manifestam-se de maneira muito explícita. E esta condição infantil possibilita um clima de total liberdade de pensamento durante a construção de sua poesia. As duas últimas histórias de aproximam, ambas têm como espaço o meio rural, local de descobertas a respeito da dimensão do fazer poético a partir de brincadeiras e experiências com elementos do cotidiano. “O menino que carregava água na peneira” e “A menina avoada” estão intrinsecamente relacionados: o primeiro coloca a poética do fazer, do ser poético, e o segundo é a pratica desse fazer. Tanto que os dois textos estão precedidos por uma página que funciona como uma apresentação; não leva título - o que é muito comum na produção de Barros - e pode ser considerado como um prólogo, um prólogo metapoético, o qual reflete a respeito da matéria da poesia, a aproximação do pensamento infantil com a dimensão poética de expressão/significação. Este texto é uma pequena narrativa, centrada no diálogo entre os pais e um garoto, assim denominados: menino, pai e mãe. Ou seja, são apresentados em suas funções sociais, temáticas, de forma genérica. Um diálogo entre criança e adultos no qual se pode conferir uma relação de poder, em que os papéis fundamentais estão naturalmente dados: os pais, destinadores-doadores de saber, e filho, destinatário desse saber: “No aeroporto o menino perguntou:/ - E se o avião tropicar num passarinho?” R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 78 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 O cenário é um aeroporto, ou seja, um cenário civilizado, tecnicamente avançado, em que está implícito o universo próprio: aviões que decolam e aterrissam. Mas a pergunta que inicia a narrativa surpreende: o menino não se interessa pelo avião, na sua potência tecnológica, mas remete a um ser que está no mesmo paradigma: ambos voam: passarinho, ou seja, é o elemento natural que ocupa o pensamento do menino. A pergunta remete ao universo infantil, tal que o poeta escolha um termo do que seria uma “norma infantil”: “tropicar”, em lugar de “tropeçar”. Aqui se delineia a linha de força do texto: os dois mundos, as duas visões que se defrontam: a do adulto, prático e utilitário, representado pelo avião, e o da criança, representado pelo passarinho, ambos do mesmo paradigma: do voar. “O pai ficou torto e não respondeu” (BARROS, 1999, s/p). O pai, diante da pergunta do filho, talvez absurda para o olhar do adulto, pautado apenas pelo real e concreto, sem ter uma resposta se cala: ou seja, o doador de saber não sabe. Ricardo Rodrigues (2006, p.91) afirma que “só o silêncio tem força de se mostrar para evidenciar a fraqueza da razão. [...] A figura paterna, como em outros de seus poemas, pode ser lida como metáfora da razão, da certeza e da segurança dos conceitos”. Mas o menino não se sente constrangido em sua curiosidade, insiste no seu questionamento, pois para ele um avião tropeçar em um passarinho não é absurdo, é algo possível de acontecer, é real, por isso, preocupante, pois sua atenção está focada nas ações e comportamentos visíveis a ele e não na lógica da sociedade, o que interessa é sua lógica própria, peculiar: “O menino perguntou de novo:/- E se o avião tropicar num/ passarinho triste?” (BARROS, 1999, s/p). Se o pai que normalmente encarna o saber da autoridade, do saber instituído, do saber prático, o princípio da realidade, enfim, a mãe, mais sensível à curiosidade do filho, encarna o princípio do prazer, por isso se (ao menino e a si mesma) responde com duas perguntas: “A mãe teve ternuras e pensou:/Será que os absurdos não são as maiores/virtudes da poesia?/Será que os despropósitos R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 79 não são mais/carregados de poesia do que o bom senso?” (BARROS, 1999, s/p). E se é a mãe – princípio do prazer – que chega a essa formulação, o pai acaba se tornando beneficiário dessa descoberta feita pela mulher: “Ao sair do sufoco o pai refletiu:/Com certeza, a liberdade e a poesia a gente/aprende com as crianças./E ficou sendo” (BARROS, 1999, s/p). A expressão “sufoco” representa o incômodo que o questionamento do filho causa ao pai, no modo, já estabelecido, de pensar do adulto. Na conclusão do pai, procede-se a uma aproximação, em que a infância se assemelha à maneira do fazer poético, ambos imunes às limitações propostas pela realidade. Desta forma, cria-se um universo imprescindível à obra de Barros: poesia, criança e liberdade, pontos principais de todo o trabalho desenvolvido no interior da linguagem. E o pai conclui: o destinador-doador de conhecimento não é o adulto, mas a criança. A questão da liberdade é reforçada durante toda a narrativa pelos elementos relacionados ao ato de voar: aeroporto, avião, passarinho. Mirian Garcia (2006, p.66) afirma que “O campo semântico ao qual estes elementos pertencem é frequentemente associados ao tema da liberdade”. Este prólogo reflete a questão do estranhamento que a imaginação/questionamento da criança causa ao adulto, destaca a ideia-chave que será desenvolvida nos dois textos seguintes: a aproximação da infância com a poesia e a liberdade, o que caracteriza estas duas dimensões e que é potencializada neste contato. Mirian Garcia (2006) observa que a infância em Barros não é apenas figurativa, mas representa uma dimensão de significação e ressignificação do mundo e do ser humano, pois transcende a própria condição cronológica e permanece atuante na sensibilidade de Manoel de Barros. Desta forma, reporta-se ele à infância não como vivência passada e finita, mas como uma dimensão subjetiva que acompanha o adulto em toda a sua existência. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 80 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Em “O menino que carregava água na peneira”, Barros trata do fazer poético, do ser poético, tem função, portanto, metalinguístico, o qual mostra a matéria-prima para o texto que são o que denomina: despropósitos. O título, “O menino que carregava água na peneira”, apresentase como uma construção típica de Barros, através do senso do inusitado, do impossível, do caráter lúdico, do maravilhoso, representa as possibilidades do contato com a poesia. O título explora uma expressão popular, em regiões rurais, em que significa: “fazer algo muito difícil”. A linguagem utilizada pelo narrador aproxima-se do falar simples, desta forma, percebe-se uma aproximação com seu leitor-ideal. O texto se inicia com o narrador dizendo que a história que pretende contar é a história de um livro sobre águas e meninos. Cabe lembrar aqui que muitos dos poemas de Barros tratam das mesmas figuras ou temas. O narrador conclui: “Tenho um livro sobre águas e meninos./ Gostei mais de um menino que carregava água na peneira”. (BARROS, 1999, s/p). A opção do narrador pela história do “menino que carregava água na peneira” insinua as possibilidades das relações entre ambos, pois esta água, especificamente, não é a da utilidade de ordem nenhuma, ela não se bebe, não rega plantas, não se banha, somente é carregada na peneira pelo menino. Este narrador aparece como um sujeito em junção com um objeto, isto é, de posse de um objeto: um livro; e é marcado também pelas seguintes modalizações: é um sujeito dotado de querer (possui o livro) e saber (ler livros). Por isso, se reconhece como qualificado para apreciar o livro, reconhece o valor do livro e, neste sentido, afirma: “Gostei mais…”. Além dessas marcas, o narrador não possui outras, como gênero e/ou idade, então, qualquer pessoa pode se colocar ao lado dele, sem nenhum tipo de restrição que determine a perspectiva a partir da qual a leitura deva ser feita. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 81 A narrativa possui dois personagens: o menino e sua mãe. Esta é apresentada como uma personagem cheia de ternura e carinho para com o filho. A mãe é uma personagem importante na narrativa, pois ela compreende as atitudes poéticas do filho, o mundo de sonho e imaginação no qual o menino está mergulhado e até tenta interpretar as atitudes do filho, comunica um saber, com imagens metafóricas, reafirmando e apoiando, desta forma, as aventuras imaginativas do menino: A mãe disse que carregar água na peneira/ Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos./ A mãe disse que era o mesmo que/catar espinhos na água/O mesmo que criar peixes no bolso (BARROS, 1999, s/p). Esta rica composição de metáforas explode em várias imagens que muitas vezes não são tão claras ao leitor e, desta forma, exige do leitor um desprendimentos das regras. A personagem mãe, a partir da primeira variante: carregar água na peneira, vai apresentar outras variantes da mesma relação estabelecida entre menino+água+ peneira: 1- Roubar um vento e sair correndo; 2- Catar espinhos na água; 3- Criar peixes no bolso. Pode-se concluir, a partir da estrutura semântico-sintática das três variantes, que o mesmo sujeito humano, infantil, é o sujeito do fazer: ele rouba e leva, ele cata, ele cria. E o objeto desses fazeres (ações) são: vento, água, peixe, neste caso, elementos de um mesmo paradigma, ou seja, a natureza. O menino através das ações de “[...]roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. [...] criar peixes no R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 82 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 bolso”, mostra uma relação de afeto, de conjunção afetiva: dele com os irmãos, dele com os peixes. Mas, também pode-se perceber as incompatibilidades das relações criadas, pois são elementos incompatíveis que não podem compor esse tipo de combinação: 1- Água - conteúdo líquido + peneira - continente vazado; 2- Vento - objeto não apreensível + mãos que apreendem mostrar (visível) + vento (não vísivel) 3- Espinhos – concreto, apreensível + água - não apreensível; 4- Peixes – animal aquático + bolso - continente humano. Durante a narrativa, a mãe, que é um sujeito do enunciado, do enredo, é substituída, no discurso pelo próprio narrador, agora é ele que define: “O menino era ligado em despropósitos/ Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos” (BARROS, 1999, s/p). O próprio narrador interpreta as comparações da mãe, de forma abstrata e sintética, e afirma serem despropósitos. Esta característica do fazer do menino: despropósitos, está sempre presente na obra poética de Barros, a prática do nonsense do poético. Assim, o narrador delega à mãe a função de interpretar o fazer do filho, atividade que ela traduz em termos genéricos, manifestando as linhas isotópicas delimitadores da performance infantil: “A mãe reparou que o menino/gostava mais do vazio/do que cheio. Falava que os vazios são maiores/ e até infinitos” (BARROS, 1999, s/p). A respeito do vazio Ricardo Rodrigues (2006, p.75) afirma que “O vazio tão apreciado pelo poeta pantaneiro surgirá como possibilidade de manifestar a liberdade poética em todo seu mistério e desmesura”. O menino veria, então, inúmeras possibilidades no vazio, pois o vazio é um espaço infinito, sugere possibilidade, espera de preenchimento. “Com o tempo aquele menino/que era cismado e esquisito/ Porque gostava de carregar água na peneira/Com o tempo descobriu que escrever seria/o mesmo que carregar água na peneira” (BARROS, 1999, s/p). O tempo demonstra o R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 83 amadurecimento do menino, que com o passar do tempo percebe que as brincadeiras podem ser feitas com as palavras. Desta forma, sozinho, sem a interferência da mãe, descobre o poder da palavra, que pode expressar-se através delas, o que antes era só produto da sua imaginação. Torna-se o doador do saber, neste sentido, o doador externo (mãe) dá lugar ao doador interno (o menino) que faz a maior descoberta, dentro do mesmo paradigma: carregar água na peneira é igual a escrever. Outra invariante de Barros: as brincadeiras do menino se assemelham ao fazer poético do adulto. O menino, ao perceber o poder que sua capacidade inventiva lhe dá, toma consciência da liberdade que suas brincadeiras pode lhe proporcionar. Desta forma, este menino representa um modificador da realidade que o cerca, usa sua liberdade para ser o que deseja, descobre através da literatura, da ficção possibilidades para viver vidas alheias ou travestir-se em outras pessoas: No escrever o menino viu/que era capaz de ser/noviça, monge ou mendigo/ao mesmo tempo/O menino aprendeu a usar as palavras./ Viu que podia fazer peraltagens com as palavras./E começou a fazer peraltagens./Foi capaz de interromper o voo de um pássaro/botando ponto no final da frase./Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. (BARROS, 1999, s/p). O termo peraltagens é geralmente utilizado por adultos para nomear as coisas que a criança faz. Segundo Ferreira (1986), o termo peralta é utilizado para adjetivar um menino travesso. No texto as peraltagens do menino estão relacionadas à mistura do verbal com o não verbal: o menino consegue interromper o voo do pássaro que é um elemento não-verbal com o ponto final. Percebe-se a intensa relação no campo semântico dos verbos: escrever e inventar, pois ambos remetem à ideia de representar, encenar, contar, imaginar. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 84 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 A mãe reaparece, retoma a sua função inicial: é ela que é capaz de parar para reparar e, mergulhada no universo inventivo do menino, ela classifica: ser poeta é fazer isso, dando-lhe conselhos cheios de lirismo: O menino fazia prodígios./Até fez uma pedra dar flor!/A mãe reparava o menino com ternura./A mãe falou:/Meu filho você vai ser poeta./ Você vai carregar água na peneira a vida toda./ Você vai encher os/ vazios com as suas peraltagens/E algumas pessoas/vão te amar por seus despropósitos. “(BARROS, 1999, s/p). Barros gradativamente vai relacionando as peraltagens do menino com a poesia. Esta relação se mostra presente, principalmente, nas frases metalinguísticas, à medida que o menino vai tomando consciência de seu destino e da persistência de suas peraltagens. As peraltagens do menino, em modificar o que está instituído, o conhecido, o usual, são nomeadas, classificadas como “prodígios”. “O menino que carregava água na peneira” representa a poesia como uma criação que não tem nenhuma finalidade objetiva, ou seja, como algo que não possui valor mensurável. Através dos “despropósitos” e das “peraltagens” do menino mostra que a lógica se encontra fora do que é rotineiro e previsível. Mara Maia (2008, p.84) afirma que as construções das frases que forma a estrutura do texto se repetem, criando um reforço, reiterando o ato de ler e de escrever, ratificando o fazer poético, como se ilustra abaixo: 1-“A MÃE DISSE QUE carregar água na peneira [...]” 2-“A MÃE DISSE QUE era o mesmo que catar [...]” 3-“A MÃE REPAROU QUE o menino gostava [...]” 4-“A MÃE REPARAVA o menino com ternura.” 5-“A MÃE FALOU: Meu filho [...]”; R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 85 6-“O MENINO ERA ligado em despropósitos.” 7-“O MENINO VIU QUE ERA capaz de ser [...].”; 8-“O MENINO APRENDEU a usar as palavras.”; 9-“O MENINO FAZIA prodígios.”; 10-“[...] UM MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA.” 11-“PORQUE GOSTAVA DE CARREGAR ÁGUA NA PENEIRA “[...] ESCREVER SERIA O MESMO QUE CARREGAR ÁGUA NA PENEIRA “VOCÊ VAI CARREGAR ÁGUA NA PENEIRA [...]” (BARROS, 1999) A habilidade poética do menino é aceita de forma gradual durante a narrativa, por ser “cismado e esquisito” e por ser “ligado em despropósitos”, primeiramente o menino descobre a importância de “escrever”, na sequência aprende “a usar as palavras” e finalmente a mãe conclui, vaticinando: “Meu filho você vai ser poeta”. Ou seja, ser poeta é inato, um ser extra-ordinário que o leva a manipular as palavras de forma não-comum. Analisemos, agora, “A menina avoada” que é um texto homônimo a uma poesia que Barros escreveu para sua filha Martha, e que faz parte da obra Compêndio para uso dos pássaros3 (1961). Em “A menina avoada”, Barros utiliza recursos líricos como também elementos da narrativa, tais como enredo, personagens, espaço e tempo, enfeixados pela disposição gráfica da prosa. A história focaliza dois irmãos, um menino e uma menina, e também cita mais dois personagens, o pai e a namorada imaginária do menino, mas não participam diretamente da ação. A narração fica a cargo de menina, já adulta. A menina-narradora, logo nos primeiros versos já se apresenta e direciona o lá e então, o tempo e o espaço: “Foi na fazenda de R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 86 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 meu pai antigamente./ E os atores:” Eu teria dois anos; meu irmão, nove.” (BARROS, 1999, s/p). O tempo do enredo é o tempo da infância da menina, num espaço físico delimitado, a fazenda do pai. Segundo Ferreira (1986, p.147), avoada significa: que anda com a cabeça no ar, distraído, atrapalhão. É um termo popular para indicar pessoa distraída. A etimologia da palavra distrair: dis- traer: puxar para o outro lado, ou seja, o termo coloca já de início a oposição semântica: distraída versus atento, o que no texto irá significar: o que anda no caminho de todo mundo verso o que anda por desvios. Em relação ao título, Mirian Garcia (2006) afirma que o adjetivo “avoada” possui dupla semântica: remete tanto ao sentido conotativo da palavra, a ideia de distraída, como à conotação de aéreo, de exercício pleno da sua imaginação. Assim, a menina relembra suas viagens e aventuras imaginárias na fazenda do seu pai. Tem-se aí o tema do retorno, fundamental na vida humana, como esclarece Bachelard (1993, p. 262): Este signo do retorno marca infinitos devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre o grande ritmo da vida humana, ritmo que atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do sonho. Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente de intima fidelidade. Neste sentido, percebe-se que são dois motivos implicados mutuamente ao representar a infância “que de certa maneira representa um mergulho do ser em si mesmo”, segundo Marinei Almeida (2009, p.53): o da viagem e o do retorno com que “se lança (r) por ‘ermos e errâncias’ numa busca constante de si e do outro” (ALMEIDA, 2009, p.53). A mesma estudiosa aponta, ainda, outro tema que comparece com “pertinência e insistência” no conjunto de obras de Barros: a R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 87 memória, “essa memória é constante revisitada e reinventanda. [...] E a memória funciona como um instrumento indispensável para empreender as mais diversas viagens” (ALMEIDA, 2009, p.54). No texto em pauta, estão presentes os três temas: viagem, memória e retorno. O retorno à fazendo do pai, quando tinha apenas dois anos, a memória das brincadeiras que aconteciam na fazenda e as viagens, tanto a viagem física, de um lado ao outro do quintal, como a viagem imaginária, viagem até a cidade. Para Bachelard (1988) a infância está ligada ao princípio de vida, à possibilidade de recomeço. Como também para Barros, que está relacionada ao retorno a origem, ao reencontro com o universo infantil, retorno ao passado através da memória da viagem imaginária na infância e o retorno a sua terra natal. De acordo com Bachelard (1988) a infância está ligada ao princípio de vida, à possibilidade de recomeço. Da mesma forma, a infância, para Barros, está relacionada à origem, e, neste sentido, se eleva à dimensão mítica. E na mesma dimensão, ao lado da imagem da criança como retorno à origem, em sua poesia outros símbolos comparecem associados ao retorno, como a terra, a água e os animais. Em “A menina avoada” a narradora relembra o passado, quando era uma menina, de apenas dois anos. Bachelard (1988) afirma que nas lembranças de crianças é difícil distinguir imaginação e memória, pois as imagens amadas podem surgir como lembranças, tornando-se um devaneio. A menina relembra experiências com elementos do seu próprio cotidiano, aparece como uma contadora de estórias, e no primeiro verso já determina o espaço e o tempo: “Foi na fazenda de meu pai antigamente.” (BARROS, 1999, s/nº). Tudo girava em torno da imaginação e das reminiscências infantis. É isso que confirma Bachelard (1993, p.29): “Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que me é necessário para me colocar R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 88 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 numa situação de onirismo, para me colocar no bojo de um devaneio em que vou repousar no meu passado”. Para Bachelard é nas lembranças que devemos encontrar o núcleo da infância que permanece no centro da psique humana, que unem mais intimamente a imaginação e a memória, onde o ser da infância liga o real ao imaginário: A memória é um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos nossos devaneios de criança solitária (BACHELARD, 1988, p. 94). Em seguida, após a localização lá-então, a menina se apresenta e apresenta o outro personagem, seu irmão: “Eu teria dois anos; meu irmão, nove.” (BARROS, 1999, s/p). A menina e seu irmão não são nomeados, isso permite que o leitor use sua imaginação para personalizá-la ou até mesmo se colocar no lugar dos personagens, “entrando” na história. Ela descreve como aconteciam suas brincadeiras, o irmão mais velho fabricava os brinquedos, era o artesão, o inventor: “Meu irmão pregava no caixote duas rodas de lata de goiabada./A gente ia viajar.” (BARROS, 1999, s/p), produtos, cujas imperfeições a narradora traduz personificando os brinquedos: “As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote: Uma olhava para outra.” (BARROS, 1999, s/p). Um caixote e duas latas de goiabadas, objetos pobres, descartáveis, que fazem parte do cotidiano de crianças simples, mas que a menina, como muitas outras crianças, em suas brincadeiras simples, se transformam por um mergulho no universo da imaginação e da inventividade. As crianças não reproduzem ou transformam simplesmente as obras dos adultos, como afirma Walter Benjamin: [...] crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 89 Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhados em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande (BENJAMIN, 2002, p.58). Esta personificação do brinquedo estabelecida, através do lúdico e da imaginação, proporciona instrumentos para elaborar o real, estabelecendo o reino da invenção, do “como se”. Danielle Almeida (2006) afirma que a capacidade da criança de escolher e adaptar diferentes objetos, restos desprezados pelos adultos como “inúteis” e “inadaptados”, com a finalidade de utilizálos em suas brincadeiras, segue como representação de sua fantasia e de sua auto-expressão. Segundo Benjamin, [...] nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais casto em relação aos materiais do que crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras (BENJAMIN, 2002, p.92). “Imitava estar viajando./Meu irmão puxava o caixote/Por uma corda de embira/Mas o carro era diz-que puxado por dois bois.” (BARROS, 1999, s/p). A narradora tem consciência da natureza de inventadas, uso do verbo “imitava”, demonstra um juízo de valor da pessoa que vivenciou a brincadeira e tempos depois reflete sobre aquele ato, associando-o a uma imitação, a expressão “diz-que” confirma o mundo imaginário. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 90 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 A linguagem utilizada pelos personagens aproxima-se do mundo cotidiano, da vida rural, tornando o texto mais próximo da fala cotidiana, as crianças nomeiam os bois, a menina os comandava: “Eu comandava os bois: - Puxa Maravilha!/ - Puxa Redomão!/ Meu irmão falava que eu tomasse cuidado porque Redomão era coiceiro.” (BARROS, 1999, s/p). Na mesma linha, a expressão da narração se faz pela metáfora: “As cigarras derretiam a tarde com seus cantos” (BARROS, 1999, s/p), em que a tarde se torna tão concreta que possa sofrer a ação das cigarras: dissolve-se/ desmancha-se, numa percepção mesclada de sentidos, sensorial. Mesmo a brincadeira terminando com a morte dos bois, afogados no rio, a menina se salva do afogamento, pois o rio era inventado: “No caminho, antes a gente precisava/De atravessar um rio inventado/Na travessia o carro afundou/E os bois morreram afogados./ Eu não morri porque o rio era inventado” (BARROS, 1999, s/p). O quintal pode ser visto enquanto espaço físico, mas também como representação do paraíso e da memória. Na obra estudada, é por excelência o espaço da representação do universo e suas dimensões, imaginárias e lúdicas; “Sempre a gente só chegava ao fim do quintal.” (BARROS, 1999, s/p). A viagem acaba no fundo do quintal, o que tem sentido, pois de acordo com Thalita Melloto (2002) todo sonho infantil acaba ao defrontar-se com a divisa do quintal, com a limitação humana. O menino, diferente da irmã, esta em outra fase da infância, aqui é encarnado um tema recorrente em Barros: a puberdade, indiciada por marcas de erotização: “E meu irmão nunca via a namorada dele - / Que diz-que dava febre em seu corpo.” (BARROS, 1999, s/p). Fora do espaço imaginário não há a concretização da presença feminina. Esta imaginação erotizada é marca do início de uma nova fase da infância, da “travessia” para a adolescência. Em “A menina avoada”, Manoel de Barros afirma a concepção da infância como um momento único, valorizando as peculiaridades e virtudes deste momento. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 91 Para Manoel, a infância é lugar privilegiado de reencontro do homem pósmoderno consigo mesmo, o homem que se encontra diante de valores enfraquecidos como conseqüência da opressão de uma economia flexível, da instantaneidade da informação e da linguagem unívoca dos meios de comunicação de massa. Por isso, teima em ser poeta, aquele que não produz mercadoria de valor, não é remunerado, considerado até “demente” e diz: “Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos” (Barros, 2003, s/p.). Trabalho de poeta que tem um compromisso social: não é só o menino que ele foi que pretende reencontrar, mas a infância coletiva. Um reencontro que nos torne apanhadores de desperdícios para que, junto com a voz do poeta, nossas vozes assumam um formato de canto, tal como a da criança que imagina, inventa e transgride (SCOTTON, 2004, p.10). Para Bachelard (1993, p. 17) “a arte é então uma reduplicação da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono.” Essa é uma das características principais da obra de Barros, impedindo que se caia no automatismo da vida, na superficialidade dos sentidos. Assim, “A menina avoada” funciona como um passaporte para a imaginação e, neste sentido, o leitor pode reviver e revitalizar suas imagens e sensações, provocando todos os sentidos: [...] as lembranças pessoais, claras e freqüentemente expressas, nunca hão de explicar completamente por que os devaneios que nos reportam à infância têm tal atrativo, tal valor de alma. A razão desse valor que resiste às experiências da vida é que a infância permanece em nós como um princípio de vida profunda, de vida sempre relacionada à possibilidade de recomeçar (BACHELARD, 1988, p. 119). O universo infantil representado pelo irmão, o retorno à fazenda do pai, lugar acolhedor, as representações do espaço e as relações com a escrita memorialista merece destaque no poema. A mistura das cores, cheiros e sabores da infância, fundidos na memória, na tentativa de uma recuperação de um tempo sem racionalização. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 92 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Em “A menina avoada” curiosamente não aparece a personagem mãe, que faz a leitura abstrata em “O menino que carregava água na peneira”, mas pode-se dizer que ela está substituída pela menina crescida, que agora sabe, não precisa da mãe para transmitir esse saber. O pai aparece ainda que muito indiretamente: ele é o dono da fazenda, e com esse papel pode-se dizer que ele representa o princípio de realidade, como nos outros textos do livro. “Exercícios de ser criança” apresenta vários exemplos do que é ser poeta no cotidiano, ou seja, ser poeta exige movimento: inventar, imaginar, ações que permeiam todas os textos. Em “O menino que carregava água na peneira” o ato de peneirar, o movimento, é fundamental para a transposição do real para o imaginário. Em “A menina avoada” suas ideias “avoadas”, soltas, sem fronteiras, sugerem a ação de voar com a imaginação, neste sentido, Barros propõe uma viagem ao mundo imaginário, através de objetos de descarte: pássaros, peneiras, peixes, caixotes e latas de goiabadas. Esta obra chama atenção pela ilustração que acaba quase ganhando vida própria. Aliás, as ilustrações nas obras do escritor são sempre primorosas. Mas neste se destacam, as ilustrações são bordados feitos por uma família mineira, a mãe Antônia Zulma Diniz e as irmãs Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont sobre os desenhos do irmão Demóstenes. Percebe-se uma intensa relação entre os bordados e o texto, pois o bordar e o escrever são trabalhos manuais, que exigem sensibilidade, imaginação e criatividade. A ilustração no livro infantil tem, portanto, a função de produzir sentido, provocando um diálogo com o leitor, conduzindoo a interagir com a palavra. Assim, ela é vista em confluência com a linguagem verbal, ampliando as possibilidades semânticas. Em uma obra com ilustrações em bordados esta relação é muito mais significativa, pois existe a leitura de dois artistas: o ilustrador e a bordadeira. Ou seja, aqui há três camadas de ilustração: a do desenho, que é uma primeira leitura, interpretação do texto verbal, em uma linguagem própria; a do bordado que é uma leitura R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 93 dessa primeira leitura; e a impressão do bordado no livro, em que há a distribuição pelas páginas, escolha do material gráfico (tipo de papel, etc) e combinação com o texto verbal. A partir do conjunto do livro: enredo, linguagem, imagens, personagens e o leitor, este leitor consegue entrar no espaço imaginário do texto literário, para se tornar parte dele. Barros consegue, com sua linguagem poética, fazer com que o leitor infantil experimente estas imagens, recriando a realidade e redirecionando a vida e os sonhos, imaginação e fantasia. O livro em questão, mesmo tendo como público alvo o leitor infantil, é um objeto simbólico que possui possibilidades de subjetivação tanto para a criança como para o adulto, ou seja, as palavras de Barros atravessam as fronteiras de idades. Portanto, Barros atinge o objetivo da literatura para criança, assim como para adulto, que é buscar um novo espaço de liberdade, imaginação e reinvenção da vida, fugindo do aprisionamento de uma forma. Liberdade e imaginação são as palavras inspiradoras da literatura infantil/juvenil. Referências ALMEIDA, Danielle Barbosa Lins de. Sobre Brinquedos e Infância: Aspectos da Experiência e da Cultura do Brincar. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 95, p. 541-551, maio/ago. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/es/v27n95/a11v2795.pdf> Acesso em 03 de março de 2011. ALMEIDA, Marinei. Olhar para as “pré-coisas” do mundo em livro de précoisas. In: MACHADO, Madalena; MAQUÊA, Vera (orgs.) Dos labirintos e das águas: entre barros e dickes. 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N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 MÍNIMOS INSTANTES EM JOÃO CABRAL E STELLA LEONARDOS MINIMUM INSTANTS IN JOÃO CABRAL AND STELLA LEONARDOS Irene Severina Rezende (UNEMAT)1 RESUMO: Este estudo estabelece reflexões sobre o poema “Tecendo a Manhã”, de João Cabral de Melo Neto, e “Amanhecência”, de Stella Leonardos, na medida em que os poemas se aproximam pela exploração temática. Serviram como embasamento teórico os estudiosos Terry Eagleton, Gaston Bachelard, Roland Barthes, Benjamin Abdala Junior, entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Tecendo a manhã; Amanhecência; Cooperação; Metalinguagem. 1 Mestra e doutora em Estudos Literários de Literatura Comparada, pela Universidade de São Paulo (USP). Professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT), junto ao Instituto de Linguagem, Campus de Tangará da Serra, MT, CEP -78.300.000, Brasil. e-mail: [email protected] R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 97 ABSTRACT: This study provides reflections on the poem “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, and “Amanhecência” de Stella Leonardos, insofar as the poems by holding thematic approach. Served as the theoretical foundation scholars Terry Eagleton, Gaston Bachelard, Roland Barthes, Benjamin Junior Abdala, Junior and others. KEYWORDS: Weaving the morning; Amanhecência; Cooperation; Metalanguage. I A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. Manoel de Barros João Cabral de Melo Neto, chamado pela crítica de “poetaarquiteto”, “poeta-engenheiro” ou “o arquiteto das palavras”, construiu, ao longo de sua vida literária, uma poesia que os críticos chamaram de dura, séria, comprometida e árdua. Por possuir uma sensibilidade aguçada, conseguiu elaborar seus versos com precisão, sem se esquecer do lirismo necessário aos bons poemas. Do mesmo modo que procurou extrair do cotidiano as formas mais duras, procurou também levar ao extremo a construção de seus textos, de onde excluía tudo o que sobrava e, sobretudo, procurou evitar as marcas sentimentais dos poetas românticos que o antecederam. Dessa forma o poeta escreveu uma poesia que se valia das vivências mais penosas do ser humano e, nesse sentido, procurou atingir a pureza da abstração e da criação, o que revelou toda a riqueza de sua linguagem poética. Esta dureza da linguagem e o enxugamento dos versos estão acentuados em João Cabral de Melo Neto, segundo Alfredo Bosi (2012, p. 471), porque o convívio com a meseta castelhana “dos homens de pão escasso” e com a poesia ibérica medieval, a um tempo severa e picaresca, acentuou em Cabral a R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 98 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivência nordestina. Ou porque, como afirmou o crítico João Alexandre Barbosa (1975, p. 95), o engenheiro proposto por João Cabral tem mais de arquiteto do que de pedreiro, pois ele não é aquele que realiza por acumulação – pedra sobre pedra – mas aquele que, no branco do papel, traça a figura de um espaço que, por si mesmo, ganha faculdade de nomeação. O que equivale a dizer que o escrever é uma tarefa mais árdua que o serviço de um pedreiro que tem a tarefa de colocar pedra sobre pedra, ou ainda que, na escala hierárquica, o arquiteto está acima do pedreiro, já que este último realiza o trabalho por acumulação e aquele não, como o escritor que precisa enxergar o branco do papel e traçar a escrita. Ainda que a perseguir o rigor criativo, João Cabral de Melo Neto registra em seus textos uma vivência que não é apenas a do homem do norte, mas que pode representar o cotidiano de todos os brasileiros, que compõem com ele o cenário da dor, da miséria e da fome, mostrado pela literatura, como já fizeram Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, e muitos outros. Segundo Massaud Moisés (2001, p. 316-317), ao estrear, em 1942, João Cabral de Melo Neto não só cortava as amarras com o Modernismo de 22/30, embora continuasse preso à lição de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros, também se integrava no vasto agrupamento de poetas surgidos com a II Guerra Mundial. Por outro lado, Pedra do sono, (sua obra de estreia), encerrava, a partir do título, as matrizes de sua visão do mundo e da obra que construiria até os últimos livros, e segundo o crítico, como não raro, a coletânea de estreia continha, em germe, todas as outras, tornando-as o desdobramento das suas latências e evidências. Feitas estas observações, voltemos ao poema “Tecendo a manhã”, publicado na obra A educação pela pedra (1962-1965), e pode ser encontrado em Obras Completas à página 345. Este texto, já muito estudado e louvado no Brasil, segundo Abdala Júnior e Campedelli, (1982, p.85), é um poema fundamental para a definição da poética R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 99 de João Cabral, porque a “tecedura” do poema obedece a um rigor estrutural que associa simultaneamente o sentido coletivo de sua construção e a solidariedade das ações humanas. A primeira estrofe do poema está composta por dez versos e a segunda por seis, nas quais o poeta apresenta o nascer do dia como um projeto comum, surgido da colaboração de muitos galos que, cantando sucessivamente, formam uma teia que ao fim se tornará tenda. O poeta escolhe, no primeiro conjunto de versos, por lançar mão do enjambement, e da elipse, cuja função estilística é a de proporcionar rapidez e concisão aos acontecimentos. E ao mesmo tempo em que reduz o plano da expressão amplia o plano do conteúdo, pois deixa o poema aberto à complementação por parte do leitor. Dessa forma, esse recurso estilístico funciona como o elemento capaz de mostrar a rapidez com que a luz deve ser passada de “galo em galo”, de “canto em canto”, numa cooperação mútua, até que a claridade concretize a manhã e até que esta se faça dia, para que ela, desde “uma teia tênue se vá tecendo entre todos”, até que se torne tenda, como podemos observar a seguir: Tecendo a manhã 1- Um galo sozinho não tece uma manhã: 2- Ele precisará sempre de outros galos. 3- De um que apanhe esse grito que ele 4- E o lance a outro; de um outro galo 5- Que apanhe o grito que um galo antes 6- E o lance a outro; e de outros galos 7- Que com muitos outros galos se cruzem 8- Os fios de sol de seus gritos de galo, 9- Para que a manhã, desde uma teia tênue, 10- Se vá tecendo, entre todos os galos. 11- E se encorpando em tela, entre todos, 12- Se erguendo tenda, onde entrem todos, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 100 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 13- Se entretendendo para todos, no toldo 14- (a manhã) que plana livre de armação. 15- A manhã, toldo de um tecido tão aéreo 16- Que, tecido, se eleva por si; luz balão. (MELO, 1986, p.19) Percebemos que, ao final da primeira estrofe, a leitura ganha velocidade à medida que sofre menos cortes quando está a se aproximar do seu final. O jogo dinâmico de ações entre todos sugere que se ilumine não apenas a manhã, ou o amanhã, mas também a todos nós, seres humanos, para que possamos despertar para “nossos amanheceres”, enquanto seres que vivem em grupos, organizados dentro de uma sociedade; e que, em conjunto, possamos alcançar o grande objetivo de nos humanizarmos cada vez mais, e entendermos a importância da linguagem poética nesse processo de humanização que está sendo deixado de lado, nesse mundo moderno da era da tecnologia. A repetição dos verbos “apanhar” e “lançar”, ainda na primeira estrofe, (apanhe e lance), no presente do indicativo, dá a ideia de continuidade e de conjunto, o que significa que tudo o que é produzido resulta da participação comum; uma única pessoa, uma só ideia, um só pensamento são incapazes de acompanhar o mundo na vertiginosa aceleração do tempo da máquina. A partir do terceiro verso os verbos aparecem separados por ponto e vírgula, indicando que a ausência do ponto final sugere a continuidade do ato da criação, que tanto pode ser do ato de escrever um texto, quanto do trabalho do ser humano, representado pela “mais valia”, que deixa, no produto final, as marcas, mas não os benefícios de quem o produziu. Tal como a manhã, que surge do cruzamento de todos os “fios de sol de seus gritos de galo” e do esforço em cooperação de todos os responsáveis pelo surgimento da manhã, que se “erguendo tenda, onde entrem todos”, deve representar a sociedade que deveria abrigar todas as classes sociais e ter todos os direitos dos cidadãos resguardados. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 101 Já na segunda estrofe, a partir do décimo segundo verso, o ritmo acontece de maneira diferente, pois na medida em que a leitura caminha, o leitor se depara com os verbos no gerúndio (encorpando, erguendo, entretendendo), o que diminui o ritmo do poema, para simular o ato contínuo da criação, presente no próprio título: “Tecendo a manhã”; até que se chegue à proximidade em que se concluirá a tarefa diária. O fazer literário, aparecendo como um trabalho de projeção lúdica, numa lucidez de sentido rigoroso seguindo a construção das estruturas do poema, indica que a teia já se transformou em tecido, para explodir em produto acabado, que seria a própria manhã libertária com sua: “luz balão!” (luz / verdade / liberdade / balão), ou a poesia já pronta, escrita, e impressa, transformada, por fim, em texto; um texto que se faz através de um “entrelaçamento perpétuo”, um “tecer”, que depende das mãos de quem executa esse cuidadoso trabalho, como podemos observar, nas palavras de Roland Barthes (1987, p.82): Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha). (os grifos são do autor). Se o poema fosse escrito sem as elipses, seu plano de expressão estaria ampliado, porém não exigiria um leitor que participasse da decodificação do mesmo, que seria esse sujeito a se desfazer no texto, no dizer de Barthes: “De um que apanhe esse grito que ele / E o lance a outro”. A elipse da palavra galo, que é quem confere ação ao texto, leva o leitor a questionar sobre quem seria esse “um”. Pois R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 102 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 bem, se “um galo, sozinho não tece uma manhã”, afirmação que lembra o provérbio: “uma andorinha só não faz verão”, (VILLAÇA, 2010, p. 150), e que vem confirmada logo após com os versos “ele precisará sempre de outros galos, que apanhe, que lance esse grito”, não haverá problema algum em identificar o sujeito da ação, como sendo aquele outro que é consciente da necessidade do fazer comunitário, construído a partir da ideia gerativa que o texto nos apresenta, como apontou Barthes. Nos últimos versos, que estão em consonância com todo o poema, a ação indicada em seu aspecto pelo infinitivo do verbo – tecer - já se completou uma vez que já se transformou em “tecido”, ou seja, já foram tecidos, tanto a manhã quanto o texto. Nessa dupla possibilidade de leitura: texto e manhã, se encontra uma das riquezas do poema de João Cabral: o tecer o amanhecer, cuja leitura é ambígua, podendo remeter a dois sentidos: primeiramente temos como apontamento o nascer do sol que nos traz o dia; e depois temos a criação de um texto, que ao final está “tecido e se eleva por si mesmo”, já que a palavra “tecido” aparece duas vezes: a primeira como substantivo e a outra como o particípio do verbo tecer, que se desdobra em “teia, tela, tenda, toldo, entender, tender”. Alcides Villaça (2010, p. 150) tece um comentário sobre esse poema e diz que ele pode ser lido como história da construção e adensamento de uma metáfora luz-balão, cujo desgarramento aéreo só é permitido depois de se tramarem todos os “fios” que lhe dão a consistência poética e didática. E o crítico recomenda que o poeta não deixou de fazer equivaler à artesania da matéria verbal, onde costurou obsessivas aliterações, a concepção mágica e propiciatória dos cantos dos galos, por sua vez uma tradução do provérbio popular: “uma andorinha só não faz verão”. Para Benjamin Abdala Junior (1982, p. 100), a feitura de um poema depende dos valores do poeta. Mas é o próprio crítico quem questiona: “como então construir um poema objetivo, se a escolha R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 103 é individual?” Com relação a João Cabral, o estudioso afirma que a solução alcançada pelo poeta foi a de enfatizar os dados da realidade, através da contenção da subjetividade poética. Ao invés de uma visão sentimental, onde a emoção do poeta obscurece os fatos que procura apresentar, Cabral preferiu, segundo Benjamin Abdala Junior, a representação desses fatos, imitando a configuração que eles têm na realidade. Assim a subjetividade permanece, pois o poema depende da atividade individual, mas ela é circunscrita, e também delimitada, por esses dados objetivos. Ainda de acordo com Abdala Júnior e Campedelli, (1982, p. 100), apaga-se o “eu” pessoal do poeta em favor do conhecimento objetivo da realidade; ou ainda: “[...] deforma a realidade aparente para destacar suas linhas estruturais básicas, como numa perspectiva cubista de um Picasso.” Realmente a realidade cotidiana é colocada nesse poema sem que a visão sentimental ou a emoção obscureçam os fatos apresentados, pois o galo, anunciador da manhã, está ali representando o cotidiano do sertão, sem que a clareza da construção poética seja prejudicada pelo sentimentalismo, como bem lembraram os estudiosos ao se referirem à maneira como João Cabral construía seus poemas. Alcides Villaça (2010, p.149) lembra que a precisão da linguagem de Cabral é conforme a valores éticos básicos, que lhe dão a propriedade expansiva ao mesmo tempo em que determinam seus limites. É uma ética de afirmação do elementar sobre o compósito, do limpo sobre o sujo, do analítico sobre o sintético, do ordenado dobre o caótico, do deduzido sobre o especulado. Para Villaça, são projetadas e disseminadas como autênticos valores, estas e outras categorias que regem um modo próprio de percepção, combinação e fixação dos elementos. Criam uma espécie de traduzibilidade (sic) geral entre eles, fazendo aproximar-se, por exemplo, uma paisagem pernambucana de uma paisagem andaluza, dado o termo comum da rudeza ou da esterilidade – termo que funciona também como padrão estético. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 104 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 II Stella Leonardos da Silva Lima Cabassa, autora que selecionamos para estudar juntamente com Cabral, nasceu no Rio de Janeiro em 1923, e publicou, em 1941, seu primeiro livro de poemas, Passos na areia. Sua obra não é tão estudada entre nós quanto a de Cabral, embora esta autora tenha publicado 70 obras, entre elas, peças teatrais, ensaios e textos infantis, além de ter recebido diversos prêmios literários, sendo um deles o prêmio Olavo Bilac de poesia pelo livro Poesia em 3 tempos. Massaud Moisés, em sua obra História da Literatura Brasileira, (2001, p.312), limita-se a enumerar as obras de Stella Leonardos e dizer que a poeta, além do romance, o teatro e a literatura infantil, tem cultivado o lirismo de temas perenes, como o amor e a morte, e temas históricos, e que ela num lirismo depurado, reflexivo, com notas de melancolia (“inquirições de ser e morte”; “lições de minha própria angústia”), veicula sentimentos de sóbria religiosidade ou de amor, por vezes em sonetos de timbre lusitanizante ou de tonalidade cotidiana e social. Gilfrancisco Santos (2012, p. 01) diz que Stella Leonardos ainda hoje continua a merecer a distinção da crítica pelo apuro formal, pela temática variada e, sobretudo pela variedade de gêneros, pois ela é poeta, teatróloga, romancista, ensaísta, tradutora e professora. Segundo o estudioso, sua poesia percorre um campo de cultura e evocação no melhor sentido ceciliano de restaurar o arcaico, renovando o instante de cada poema e que a busca pela poesia das coisas mínimas está presente em seus versos, e mesmo sem ser intencional, ela acresceu o descortino do cotidiano, manejando a dicção de tom alto, nobre e celebratório herdado pelos mestres modernistas. Quem também comenta a obra de Stella Leonardos, mais precisamente a obra Amanhecência, publicado em 1974, é Fábio Lucas (1974, p.93). Este estudioso pondera que essa obra pode ser lida R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 105 como poesia e como história da poesia, porque o que “a autora faz é momentaneizar a herança, desde os primórdios até a contemporaneidade”. Em seguida o próprio estudioso explica a afirmação, mostrando que o livro da escritora se subdivide em duas partes, sendo uma delas um “Códice Ancestral” e a outra um “Reamanhecer”. E continua a dizer que cada texto, cada exemplar da atividade lúdico-poética, de Stella Leonardos, é constituído por uma epígrafe e um poema-derivado, em que o grau de subordinação varia: ora a epígrafe é fonte do fluxo verbal, subjacente, ora é consequência. O poema de Stella Leonardos que selecionamos para estudar junto com o de Cabral, é o que dá nome à obra, ou seja: Amanhecência, publicado à página 23 dessa obra. A escolha se deve ao fato de que nele podemos visualizar essa subordinação, de que trata Fabio Lucas, ao poema de João Cabral de Melo Neto, “Tecendo a manhã”, numa intertextualidade temática, do primeiro com o segundo texto. Fábio Lucas lembra que: Amanhecência ilustra à perfeição o fenômeno da intertextualidade, como o tem explorado Julia Kristeva. As epígrafes, precedentes doutros textos anteriores, ganham nova significação ao transcreverem no discurso novo, produzindo uma nova instância lírica que se aproveita duma tensão especial, presente/passado, além de trazer ao discurso recente uma expansão semântica conexa com a trans-missão do saber. Por isso Amanhecência é também uma pedagogia, ensina o que foi e o que é poesia no painel inter-textual. (os grifos são do autor). E em se tratando de ver um texto no outro, lembramos também de Barthes (1987, p. 49): Lendo um texto referido por Stendhal (mas que não é dele), encontro nele Proust por um minúsculo pormenor. O Bispo de Lescars designa a sobrinha de seu vigário-geral por uma série de apóstrofes preciosas R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 106 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 [...] que suscitam em mim as fórmulas de duas mensageiras do Grande Hotel de Balbec, Marie Geneste e Céleste Albaret, ao narrador [...] Alhures, mas da mesma maneira, em Flaubert, são as macieiras normandas em flor que leio a partir de Proust. Saboreio o reino das fórmulas, a inversão das origens, a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior. [...] E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer este texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida. (grifamos). Embora o texto de Stella Leonardos esteja escrito em dois quartetos e dois tercetos, fazendo lembrar a forma fixa dos sonetos, o que o distingue é a disposição visual no espaço do papel. O poema não é construído dentro da rigidez do soneto clássico, mas ele é apresentado sob uma forma que também lhe confere sentido. Nesse caso, a forma em questão, a de uma asa, graficamente toma a direção de um processo, que metaforicamente se dirige a algum lugar no “vôo acima de tudo” para algum destino incerto, “nas asas das cantigas”, dos pássaros e/ou da própria poesia, “alando acordes”, como também acontece no poema de Cabral, pois aquele, no dizer de Barthes, seria “o texto anterior que gerou o texto ulterior”, como podemos conferir olhando para todo o texto de Stella Leonardos: Amanhecência ALGO PEÇO? Ou me pertence? Contudo a tudo pertenço -às águas, árvores, astros e acima de tudo às asas das cantigas que amanheçam. Vai, meu coração de pássaro, Sofrendo por lá num “tremolo”. Talvez tuas penas caiam R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 107 Nas cordas manhãs de essência E acordem pássaros trêmulos No coração de outras penas. Quem sabe se alando acordes E cantos amanhecência Embora este texto se organize em torno da imagem material da asa, projeção intencional da autora, e passe, dessa forma, a ser o núcleo gerador de outras imagens, ele não deixa de remeter ao texto de Cabral, porque o conteúdo temático, dos dois poemas, possui características comuns que estão intimamente ligadas pela intertextualidade implícita. Para Ingedore Vilhaça Koch (2008, p. 30): Nos casos da intertextualidade implícita, o produtor do texto, espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer, estará prejudicada a construção de sentido. [...] Tem-se a intertextualidade implícita quando se introduz, no próprio texto, intertexto alheio, sem qualquer menção explícita da fonte [...].(grifamos). De acordo com Tania Franco Carvalhal (1986, p. 53, 54) “Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor”. O poema “Amanhecência” é uma forma visual criada pela linguagem e ordenada na página, como se a partir de um desenho feito também por uma “arquiteta”, lançasse metaforicamente, como já dissemos, o pensamento para o voo, para o longe, para o coração de outras pessoas, que escreverão certamente, textos posteriores, já que estão lançados os acordes chamativos para o lirismo inerente a todo texto poético, como vimos também no texto de Cabral. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 108 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 O título desse poema, por si só, simboliza luz e essência: amanhecência, pois sugere combinatórias que promovem abertura a vários sentidos, e resulta, a nosso ver, em ideias de prolongamentos, num pensamento que reflete o desejo de um modo de continuação de um trabalho, de uma missão: a missão da poeta que deve lançar acordes (sons-versos) que “acordem-despertem”, no outro, o amanhecer de sua essência em poesia. E “Quem sabe se alando acordes e cantos” a poeta consiga afetar o estado anímico do outro e acordar nele um canto novo, já que é essa a missão de todos os poetas, os responsáveis por despertar condições para o surgimento de novas poesias, novas ideias, novas atitudes, numa ação solidária, como a dos galos em “Tecendo a manhã”, que criam, recriam, constroem e transformam o instante, na ordenação das ações. O poema, em primeira pessoa, normalmente se volta para o próprio sujeito, para si mesmo, para as confissões / confusões do eu. Mas já no primeiro verso, numa pergunta que estaria dirigida ao leitor, essa voz questiona: “ALGO PEÇO? Ou me pertence?” Indagação que assume uma dúvida: o de questionar o valor da existência. E, em resposta, é o próprio sujeito lírico quem afirma pertencer a todas as coisas, às águas, árvores, astros e, sobretudo, “às asas das cantigas que amanheçam”. BACHELARD (2000, p. 53) afirma que: Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espetáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular, que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito. Se pensarmos que os dois poetas devanearam no momento da criação, sonhando alturas, como diria Hilda Hilst (o cotidiano do poeta é sonhar alturas), podemos pensar que isso se deveu ao R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 109 fato de que aos poetas não basta existir simplesmente, pois eles vão além, na esperança de que possam “acordar” novos sentidos para a vida. Os dois textos se inserem num mesmo momento histórico e são marcados pelas condições desse momento; ainda, as condições de produção textual imprimem neles características muito próximas, como a do despertar para algo mais além do sentido social. Embora não desprezemos a ideia de que cada texto, do ponto de vista de seus mecanismos internos, é uma realidade única, não podemos igualmente desprezar a proximidade dos sentidos contidos nos textos, pois como afirmou Terry Eagleton (2003, p. 141): “O significado do texto não é apenas uma questão interna. Ele também é inerente à relação do texto com sistemas de significação mais amplos com outros textos, códigos e normas na literatura e na sociedade como um todo”. Enquanto alguns poetas privilegiam os elementos fônicos, outros organizam as figuras pelo princípio da similaridade; há ainda os que exploram as possibilidades temporais, ou optam por temas já trabalhados, como vimos acontecer com os dois poemas selecionados. Roland Barthes (2000, p. 48) observa que: [...] quando a poética questiona radicalmente a Natureza, (da linguagem) só pelo efeito de sua estrutura, sem recorrer ao conteúdo do discurso e sem deter no patamar de uma ideologia, já não há mais escrita, há apenas estilos, através dos quais o homem se volta completamente e enfrenta o mundo objetivo sem passar por nenhuma das figuras da História ou da sociabilidade. Os dois poetas, além de se preocuparem com a linguagem, também se importam com o conteúdo. São relativamente rigorosos quanto à forma e, mesmo assim, não deixam de apresentar uma temática centrada na ideologia por meio da qual apresentam R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 110 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 proposições que negam a individualidade e afirmam a coletividade, pois como afirma novamente Terry Eagleton (2003, p. 30): “A literatura, no sentido que herdamos da palavra, é uma ideologia. Ela guarda as relações mais estreitas com questões de poder social”. Os dois escritores trabalham com o aspecto metapoético, para a criação literária; esta depende da cooperação de autores e textos, que incentivam o aparecimento de outros autores e outros textos, já que os poetas, como os galos, reunidos em orquestra, executam em conjunto os seus cantos que abrem o dia e as mentes. Embora a ideia central desse desejo seja a poesia, os poemas levam o leitor a refletir sobre o próprio fazer poético, sem que caia no vazio de uma linguagem que se preocupe apenas com o estilo. Na imagem da manhã, encontra-se condensada a ideia de que os dois poetas assumiram o direito e o dever de interpretar o mundo, em laborioso tema sobre cidadania. Imprimiram nesses poemas uma profunda preocupação social, lembrando ao leitor da roda-viva inacabada que é seu existir, desvelando, no fazer e refazer de cada dia, a sensação do eterno devir. E como diria o próprio Cabral (1998, p. 66.): “durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados”, e as palavras do seu poema ficam assim a contribuir para um fim superior: a criação entre todos de uma nova manhã para todos, onde se iluminem todos e onde entrem todos; o desejo da criação de uma ordem social mais justa, como desejava também Stella Leonardos, segundo as palavras da poeta, em sua página do Orkut: “Alguém pode ser feliz vendo tanta gente injustiçada e desvalida no mundo? Literatura talvez ajude, se solidária”. Para encerrar, lembramos Eagleton (2003, p. 190) que afirma: “cada palavra, frase ou segmento é um trabalho feito sobre outros escritos que antecederam ou cercaram a obra individual”, ou ainda, “Não existe nada como originalidade literária, nada como a primeira obra literária: toda literatura é intertextual” (EAGLETON, 2003, p. 190); ao que o próprio João Cabral de Melo Neto (1994, p. 724) poderia acrescentar: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 111 Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra, nem mesmo àquelas que em determinado momento ele mesmo criou, nem a sintonizar seu poema a nenhuma sensibilidade diversa da sua. O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma expressão original. Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele é comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado diverso de todos. Expressões originais, escritas originais, que poderão surgir dos temas abordados por velhos autores, mas que mantenham a singularidade criativa de cada poeta. Referências ABDALA, Benjamin Junior; CAMPEDELLI, Samira. Literatura Comentada: João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Abril Educação, 1982. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987. BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma. Uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975. CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura, uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983. HILST, Hilda. Cadernos de Literatura brasileira. 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N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 113 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 114 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 GABRIEL ZAID: INGENIERÍA LUMINOSA GABRIEL ZAID: LUMINOUS ENGINEERING Minerva Margarita Villarreal (UANL)1 RESUMEN: La poesía de Gabriel Zaid favorece el acceso a un estado de gracia en el lector a través de la posibilidad de transfiguración que ofrece. Se produce una imantación de los sentidos al penetrar en el universo palpable que logra configurar desde la fisura, en la enfática manera de exponer las contradicciones, caídas y resquebrajamientos de la realidad. Su voz es dialógica. Gabriel Zaid es tan certero como los mejores poetas de los siglos de oro: tradición que lo acompaña y que Zaid enriquece. La clave de su poesía es el extrañamiento ante la vida cotidiana que sacude por medio de la ironía o de la perplejidad; una de sus osadías es que, desprovisto de pudor, señala nuestra humanidad por los detalles que nos 1 Docente da Facultad de Filosofía y Letras (FFyL), Universidad Autónoma de Nuevo León, Monterrey, México. [email protected] R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 115 constituyen y nos avergüenzan. En su búsqueda de la verdad poética reelabora lúdicamente la estructura de sus poemas, la variación es una de sus constantes, en la que, como lectores, nos ha hecho cómplices. Con su último libro Zaid construye una memoria de la ingeniería personal de su obra: la nitidez se logra más por vía de la inteligencia y del trabajo acucioso que de la iluminación. El lenguaje se autorregula desde su propia crítica. PALABRAS CLAVE: Epigrama. Intención dialógica. Realidad asible. Transfiguración. Ironía. Reelaboración de los poemas. ABSTRACT: Gabriel Zaid’s poetry provides the reader access to a state of grace through the transfiguration which it offers. A magnification of the senses is induced upon penetrating the palpable universe, which achieves configuration from the deepest level in its emphatic manner of expressing the contradictions, failures and flirtings of real life. His voice is dialogue. Gabriel Zaid is as well-informed as the best poets of the Golden Age; it’s a tradition which goes along with Zaid’s poetry and one which he enriches. The key to his poetry is the longings of daily life, which he treats with irony or perplexity; one of his audacities is that, void of modesty, he points to our humanity for the complexities of which we are comprised, and which embarrass us. In his search for poetically-perceived truth, he playfully structures his poems, change of stance always present, which makes the readers, themselves, accomplices. In his latest book, Zaid constructs a recollection of the personal engineering of his work: clarity is best achieved through intelligence and meticulous work, which illuminates him or her. The language rules itself as its own self-critic. KEYWORDS: Epigram. Dialogue. Reality within grasp. Transfiguration. Irony. Rewriting of poems. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 116 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Quiero la libertad, y la más alta libertad del silencio en el olvido ¡y es el aire del mundo el que me falta! Gabriel Zaid Gabriel Zaid es un poeta que ubica su registro esencialmente en el terreno del poema breve, del soneto (con su innovación del soneto en prosa) y del epigrama de filiación latina —agudo en ironía y eléctrico en sarcasmo. Y, reconocido por el desvelamiento de la realidad, participa del ingenio en varias celebraciones: 1.Logra asir la materia vana y apetente: cuerpos, animales, objetos y circunstancias: el automóvil con sus velocidades y accidentes; la pasta de dientes y la sonrisa fabricada; el diccionario y la piscina; ninfas que son muchachas que se quedan pensando; o cifras de la noche o de la madrugada que desnudan el amor y lo dejan expuesto. 2.Abre la puerta a la dimensión divina en el plano de la trivialidad. Hay dioses rectores en la poética de Zaid: el sol, por ejemplo, como herencia de Alfonso Reyes y de Monterrey, su propia ciudad de origen, donde abrasa varios meses del año; el fuego, como hálito del Dios bíblico que representa éxtasis e infinitud o es huella viva de la primera invención; las nubes, que en su registro son estrellas que se desvanecen, antes ninfas de la lluvia, nacidas de Poseidón y Tetis; o la misma Circe, por cuyo amor festeja su naufragio. Zaid reivindica a estas deidades para contrarrestar los efectos de otro Dios: el tiempo, que se presenta, a contrapunto del poema, como artífice de la interrupción de la eternidad. Así cobran fuerza los espejos que la capturan, porque la eternidad en esta poética es sinónimo de la belleza, de los manantiales y ríos, de los árboles, y es la manifestación del amor. 3.A través de la síntesis, del carácter luminoso de la brevedad de sus poemas, su obra resplandece y hechiza. Nos congracia. La música de su versificación envuelve como ondas de agua después R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 117 de haber lanzado al fondo la piedra. Logra comunicar el resplandor del sol en el océano, en el desierto y en el tráfico como si la contemplación nos viera pertenecerle. Hacia donde no vamos, va Zaid, y en este camino se produce el hallazgo. 4.Con esta contemplación activa del paisaje enmarca en él situaciones específicas: los elementos que orientan la vida: “y los vientos te empujan, las olas te conducen” (ZAID, 1964, p. 14); carreteras donde un auto se ensarta como nave equivocada; ríos para que Narciso prosiga su causa; embotellamientos de autos en las avenidas; y la inexistencia misma de los taxis. Este último anhelo de conseguir un taxi en la ausencia de taxis reemplaza la urgencia del Dios que se ausenta hasta manifestarse extrañamente bajo el conjuro interno de la música de la palabra. 5.Versos precisos y preciosos, campanillas de luz que inesperadamente se pronuncian y traen el viento, traen una gacela, un poeta que pregunta al lector: ¿En qué momento pasa de la página al limbo, creyendo aún leer, el que dormita? La corza en tierra salta para ser perseguida hasta el fondo del mar por el delfín, que nada y se anonada, que se sumerge y vuelve para decirte no sé qué. (ZAID, 1995, p.109). A través de la utilización de la segunda persona del singular, Gabriel Zaid invoca al otro; busca al par, a la pareja, al lector, con una intención especular y dialógica, arraigada en un principio religioso que tanto abreva del cristianismo, como de los antiguos griegos. Desde sus primeros poemas se desplaza una sabiduría que fusiona estética, razón y espiritualidad. “Acata la hermosura”, que inicia su Seguimiento, de 1964, es casi una tesis mística: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 118 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Acata la hermosura y ríndete, corazón duro. Acata la verdad y endurécete contra la marea. O suéltate, quizá, como el Espíritu fiel sobre las aguas. (ZAID, 1964, p. 13). Su poesía es incitadora, exalta la creación con imágenes que se desprenden nítidamente de la misma naturaleza, como en “Nacimiento de Venus”: Así surges del agua, blanquísima, y tus largos cabellos son del mar todavía, y los vientos te empujan, las olas te conducen […] (ZAID, 1964, p. 14). Pero va más allá. Contemplamos a Botticelli al tiempo que después, en “La ofrenda”, penetramos en los parajes del Cantar de los cantares: Mi amada es una tierra agradecida. […] Cargada está de dádivas, pródiga y en sazón. (ZAID, 1964, p. 18). Este trato dialógico, que comienza aludiendo a la amada, propicia el cuestionamiento a través de una sustanciosa discusión R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 119 con Dios generada por medio de correlaciones inquietantes. La poesía se convierte aquí en el medio que acerca la eternidad — vínculo y certeza de Dios — con nosotros, los lectores: ¿Y qué se hará la senda que te iba dejando, migas de mí, poemas, pistas para encontrarnos? (ZAID, 1964, p. 24). Este poema paradójicamente se titula “Templo”. ¿No es la hostia una migaja de Dios? ¿No nos está acercando Zaid al acto de la comunión, con la participación del cuerpo divino en la palabra? Así concluye su “Nocturno abandonado”: Y sin embargo existes, comunión, y nos mueves en íntimas palabras que entretejen el mundo. (ZAID, 1964, p. 26). No se trata, como señala Octavio Paz (1977, p. 46), de un poeta religioso y metafísico y — por eso mismo — de un poeta del amor, en cuyos poemas “opera de nuevo como una potencia transfiguradora de la realidad. Esa transfiguración no es cambio ni transformación sino desvelamiento, desnudamiento: la realidad se presenta tal cual”. El comentario de Paz, si se observa con atención, es lúcido, pero contradictorio. No es que la realidad se presente tal cual, es que la poesía de Zaid nos permite asirla porque abre una puerta o más, y el aire de la realidad sale de su vacío para llenarnos. Sale de estar cautivo en esa gruta donde no leemos, donde no podemos ver, para que lo R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 120 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 podamos respirar. En el soneto en prosa que acabo de citar: “Despedida”, el diálogo se multiplica y, así, desde las voces que lo acompañan — la Fábula de Polifemo y Galatea de don Luis de Góngora y el Cántico espiritual de San Juan de la Cruz con su “no sé qué que quedan balbuciendo” (CRUZ, san Juan de la, 1979, p. 365) — Zaid, más que un poeta religioso y metafísico, crece como un poeta que exige el mundo; como Sor Juana “y solamente lo que toco veo” (CRUZ, 1976, p. 463) —: precisa ver para ser: Claustro Entre vivir y pensar, la puerta a medio cerrar. Ver es ser de par en par. (ZAID, 1964, p. 39). Reclama la presencia y la figura no sólo del amado en la recia simbolización de los taxis, sino de las voces de los propios poetas que han otorgado gloria a nuestro lenguaje y han configurado una tradición que Zaid enriquece y, en la aparente delgadez de su poesía, ensancha. No es que aquí una transfiguración genere un desvelamiento y una desnudez, sino que de la posibilidad de asir en el poema las piedras de la realidad, sus caídas y resquebrajamientos, Zaid configura un universo palpable. Así ocurre la revelación y de ahí sigue — pensemos en su Seguimiento — la transfiguración en el lector, entendida ésta como un tránsito hacia un estado de gracia que el poema favorece, una transformación en nuestra naturaleza. Ya sabemos por Einstein que la fuerza de gravedad es una ilusión; Gabriel Zaid en sus poemas vuelve asible la realidad, la hace gravitar e, incluso, y esto hay que subrayarlo, como Quevedo, no conoce el pudor para exhibir sus ángulos más íntimos. Las necesidades fisiológicas: orinar, defecar; desnudar a la amada desde sus flatulencias, o autorreferirse como un niño que requiere ser R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 121 rescatado por su madre al padecer un desfiguro, en plena adultez, en una relación sexual. He hablado de Gabriel Zaid como un poeta de ingenio, porque en su obra hay una exactitud matemática para atreverse con la realidad, ponerse al tú por tú con ella, tomarla, fustigarla y, así, participárnosla. Pero nos la hace ver y entramos en ella no porque la esté retratando sino porque la configura desde sus obsesiones, con sus preocupaciones y homenajes, en sus reiteraciones y, particularmente, como cito en la estrofa del epígrafe, por sus contradicciones. Por eso me atrevo a decir que Gabriel Zaid es un poeta de la realidad, tan certero y puntilloso como los mejores poetas de los siglos de oro, a quienes sigue para este propósito. De esta manera podemos penetrarla, estar en ella como generalmente sucede que no estamos. La realidad no se presenta tal cual, es el poema el que nos abre a su acceso y, si nos sometemos a su gracia, nos transfigura. Casi siempre, en la poesía de Gabriel Zaid la clave es el extrañamiento, se produzca éste por medio de la ironía o de la perplejidad ante la vida cotidiana. Esa chispa despiadada de desproveer de pudor y señalar a la humanidad por los detalles que nos constituyen y nos avergüenzan es una de sus osadías; un incisivo método de arriesgar en la denuncia de la falla. Y la humanidad crece cuando sus faltas se evidencian, porque desnudos, en la proximidad más íntima, caen las etiquetas y las máscaras. Crecemos al descubrirnos y nos descubrimos al encontrarnos. El amor, en los poemas de Zaid, se produce por el encontronazo con esa desnudez que nos deja expuestos. Es un hallazgo que posibilita la emergencia del ser como realización única, no por la metafísica sino por el contacto físico con el otro, porque se es en la relación y en el encuentro. La desnudez es el despojo de toda cubierta, de todo accesorio. Y el lector de estos poemas se involucra despojándose, dejando que R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 122 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 el mar y sus criaturas lo conduzcan al paraíso o que la desesperación lo pierda en la ausencia de taxis. Es en tal sentido que esta obra pronuncia su causa, adentrándonos en un diálogo a voces con la poesía en general; pienso en los poemas finales de Cuestionario, de 1976, como “Transformaciones”, donde el autor parte de Ernesto Cardenal, sigue con José Emilio Pacheco, para terminar con un epigrama personal que cierra el discurso con el que principia. Si hablo de celebraciones del ingenio en su obra es porque redimensiona el poema original; de hecho, en “Desperté,” al término de Reloj de sol, de 1995, hay una ceñida bibliografía final por medio de la que Zaid descubre sus fuentes y ofrece su método de creación, que imita y sustituye, como las clásicas lecciones de la Poética de Aristóteles. Así otorga a sus lectores un estado de gracia: un vuelo, un rapto. Porque hubo un propósito: el poema diálogo, el poema que desde Cuestionario exige al lector una crítica, una reedificación, una propuesta desde la estadística, un cambio. Poemas como vehículos de arrobamiento y transportación. Algunos nos lanzan a un espacio ajeno a este mundo, pues nos introducen en sus terrenos secretos, lugares en movimiento que parecen haber estado escondidos, porque no son espacios, sino la infinitud en el tiempo que pasa, como esta primera estrofa de “Reloj de sol”: Hora extraña. No es el fin del mundo sino el atardecer. (ZAID, 1995, p. 92). Zaid tiene poemas que nos devuelven a esa realidad desnuda de la cual habla Octavio Paz. Pensemos en su clásico “Teofanías”: el elemento taxis metaforiza desde la presencia de Dios, hasta cualquier objeto en el que usualmente desviamos nuestra búsqueda hacia el afuera. En el exterior no hay taxis, no hay dioses; el camino es único, personal, se realiza solo, y hay que hacerlo hacia adentro. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 123 La poesía nos regresa a una realidad más rica, a una realidad cargada, potenciada por la luz entrañable. Y aunque “la ciencia ha demostrado que los taxis no existen”, seguiremos implorando su aparición. Tan urgente es encontrar un taxi como que Dios se manifieste en la esfera doméstica, en la sed de los días. Desde este arrojo, Zaid se convierte en un poeta visionario. Su concisión implica técnica y matemática: la luz brota de la razón. La sensación de despojo allí es más bien producto de la acción inteligente, medible, de asociación y juego. El humor es la fuerza más pronunciada de su obra. Más incluso que el amor. Aunque, si volvemos los ojos al poeta brasileño Oswald de Andrade, el amor reverbera entre el humor y el deseo. Pero la poética de Zaid es razonada y pide pruebas, se sostiene por una inteligencia que, en términos del poema, indaga nombres para bautizar lo dado; y el lirismo, esa fuerza alada cuya razón viene del corazón, de la concreción aritmética del verso como unidad de ritmo comprobable desde la sístole y la diástole, irradia bajo una nueva perspectiva, nominando lo increíble, pues quién hubiera anticipado al pequeño Larousse como hálito de inspiración. Una muestra de ello es la “Fábula de Narciso y Ariadna” —publicada por primera vez en 1958 en el número 18 de la revista Katharsis—, uno de sus primeros poemas, que, parodiando las dedicatorias a los nobles mecenas usadas por los poetas renacentistas y barrocos, particularmente las Soledades, de don Luis de Góngora, aquí se obsequia al Pequeño Larousse Ilustrado. Desde entonces, desde la dedicatoria y la primera estrofa, el humor filtra su irreverencia ante, quizá, el poema más transgresor y el más audaz de toda la lírica española. Dice el poema de Góngora: Era del año la estación florida en que el mentido robador de Europa —media luna las armas de su frente, y el Sol todos los rayos de su pelo—, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 124 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 luciente honor del cielo, en campos de zafiro pace estrellas; cuando el que ministrar podía la copa a Júpiter mejor que el garzón de Ida, —náufrago y desdeñado, sobre ausente— lagrimosas de amor dulces querellas da al mar; que condolido, fue a las ondas, fue al viento al mísero gemido, segundo de Arión dulce instrumento. (GÓNGORA, 1944, p. 41). Dice el poema de Zaid: Eran ya de la fiebre las finales páginas que presienten su derrota, cuando da el diccionario horizontales decepciones filosas y alborota una impaciencia comunicativa de kilogramo en peso de misiva. (ZAID, 1995, p. 14). Si en su primera versión la “Fábula de Narciso y Ariadna” sorprende por su dominio de lenguaje e ironía, ya depurada, en la edición de Reloj de sol —que elimina una estrofa de acotaciones—, no deja de ser, más que una emulación al clásico poema, un indicio de la tradición en la que se inscribe y busca recrear nuestro autor, bajo la perspectiva de contraste que generan el juego y la irreverencia. Así pasa necesariamente de los clásicos latinos al filtro de los siglos de oro, especialmente Góngora y Quevedo, enfatizando sus raíces. Aquí la tradición fructifica revirtiendo la propuesta estética en torno al objeto cantado. Las imágenes presentan elementos radicalmente opuestos a los ponderados por los poetas renacentistas, a partir de una vuelta fársica a sus constantes. Veamos estos versos R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 125 de Zaid en “Elogio de lo mismo”, de nuevo honrando la poética de don Luis, quien se detuvo y encomió semejante inquietud: ¡Oh, mismo inabarcable! Danos siempre lo mismo. (ZAID, 1976, p. 244). El temor a la vaguedad y a la imprecisión se cifra en líneas cautelosas, versos donde se mide lo que tiene que decirse, lo que debe decirse. Sacarle filo a un verso puede llegar a romperlo, y de haber iniciado en la acuidad de un concepto, el resultado, a falta de imágenes, suele producir una poesía de fácil sustancia, donde finalmente habla el poeta y no es la poesía la que se expresa. Pero pulir un verso puede también ayudar a afinar el poema. Gabriel Zaid balancea estas dos posibilidades de la construcción poética preocupado por la búsqueda de la perfección formal. Depurar de un libro a otro, de un poema a ese mismo poema, eliminar, limpiar, modificar el título. En su recuento último: Reloj de sol, publicado el mismo año, 1995, tanto en México como en España, llega a no ponerse de acuerdo en su versión definitiva de un poema, expuesto antes en distintas variaciones: Nacimiento de Venus Así surges del agua, clarísima, y tus largos cabellos son del mar todavía, y los vientos te empujan, las olas te conducen como el amanecer, por olas, serenísima. Así llegas de pronto, como el amanecer, y renace, en la playa, el misterio del día. (ZAID, 1995, p. 32). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 126 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 La edición española muestra el segundo verso como cuando apareció este poema por vez primera, citado antes en este ensayo. En vez de clarísima dice blanquísima. El resto del poema queda igual en ambas publicaciones, con las enmiendas realizadas por el autor a lo largo de su tiempo creativo. Si nos remontamos a esa primera aparición en Seguimiento, el poema ha sufrido la modificación de los últimos dos versos, cosa que venía calibrándose en Cuestionario, y no para bien del poema. Repito la primera versión: Así surges del agua, blanquísima, y tus largos cabellos son del mar todavía, y los vientos te empujan, las olas te conducen, como el amanecer, por olas, serenísima. Así llegas helada como el amanecer. Así la dicha abriga como un manto. (ZAID, 1964, P. 14). Al margen de hacer un espacio antes de estos dos últimos versos en las posteriores ediciones, Zaid hizo un cambio definitivo en este dístico: […] Así llegas de pronto, como el amanecer, y renace, en la playa, el misterio del día. (ZAID, 1995, p. 32). Es poco afortunado despersonalizar el objeto, la muchacha que llega y trae la dicha con el frío sacudimiento del amor, por una vaguedad que difumina poetizando: “el misterio del día”. En general, en la mayoría de las modificaciones de Zaid — cabe destacar que en Reloj de sol regresa a varios títulos originales — el poema termina siendo más poema. Hay, de hecho, un ejemplo crucial, donde la depuración produjo un dístico, una de sus formas predilectas, bellísimo. Veamos cómo aparece en el poema “Instantáneas”: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 127 El agua se hace pájaros contra la piedra azul. Olas de tiempo terco. Rocas de cielo empedernido. Muerte en alas triunfales. (ZAID, 1976, p. 243). Ahora leamos la versión revisada en Reloj de sol, en la que se produjo el hallazgo: Arrecifes El agua se hace pájaros contra la piedra azul. (ZAID, 1995, p. 41). Esta vía a la perfección está marcada por el mecanismo lúdico de reelaborar poemas, con novedades en cuanto a su estructura, de un libro a otro. Las variaciones son una constante del camino de su búsqueda, a donde nos ha invitado y convocado Gabriel Zaid, donde nos ha hecho cómplices, como lectores, en la caza de la verdad poética. Pero, ¿se llega a una verdad poética, o es el camino de esta construcción el que se impone como la verdad poética de Gabriel Zaid, que busca ante todo la edificación y el diálogo? Cuando la idea se impone a lo lírico y al despliegue de las emociones, la poesía puede errar porque la fuente del misterio queda subordinada al predominio de una obsesión formal. Zaid construye con su último libro una memoria de la ingeniería personal de su obra. La nitidez se logra más por vía de la inteligencia y del trabajo acucioso que de la iluminación; del perfil definido de la palabra y de su carga semántica que de la profusión de sensaciones desde la palabra misma. Si partimos de la modernidad en la poesía, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 128 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 el lenguaje no sólo opera como sujeto en sí, sino que se autorregula desde su propia crítica. Cuestionario fue un título certero para testimoniar por un lado la duda permanente en el autor y por otro la búsqueda conversacional. Al reunir así sus libros y repetir poemas, con todo y los cambios que éstos van sufriendo, así como añadir una tablilla donde hace partícipe al lector del juego poético, Gabriel Zaid engalana su imaginación, su afición por la ingeniería, su pasión por investigar. Obliga al lector a revisar los cambios, a detenerse en algo que creyó haber leído antes, pero ¿igual? o ¿bajo qué alteraciones? Finalmente le concede la gracia del extrañamiento para que ejercite la duda como el propio poeta. Además, logra, lo cual podemos observar como resultado en Reloj de sol, que dicho cuestionario sea contestado y reformulados los poemas por los lectores amigos. En su búsqueda formal delimita el canto como si aprisionara las palabras. Su poema “Otoño” parece resolver en dos versos su lamento: […] Lloro por este jardín que murió de geometría. (ZAID, 1976, p. 37). La ironía, como recurso, es depurada: espina. Su preocupación mayor va cargándose hacia el testimonio social. La impotencia hacia el poder oficial, la automarginación y la puntillosa crítica contra el estado de cosas superan en sátira al poema íntimo amoroso, que en su obra tiende a buscar el equilibrio. Y, aunque utilice símbolos que tienen que ver con la castración y el narcisismo: las tijeras y el espejo, su compromiso con el amor no permite un nosotros degradado por la rutina o la agresividad, como sucede con este poema que se repite en Cuestionario sin ninguna variante: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 129 Sombra Las alas para qué, si son errantes. Los ojos para qué, si son esquivos. Para qué me acompañas, si para envenenarte me envenenas. (ZAID, 1976, p. 78). Si tomáramos este poema como lección vital, muchos de nuestros problemas se resolverían. Ése es otro sello de la poesía de Zaid: su sentido práctico frente a la complejidad. En sus poemas sociales la lucha es religiosamente abierta. La ciudad es vista desde la ciencia y la tecnología, mas trascendiendo esta especie de envoltura impuesta. El poeta se ciñe, en tanto ciudadano del mundo, o sea, de la metrópoli, a las limitaciones de la época, que vuelve a los taxis una alegoría de la imposible manifestación de la divinidad, o, si se quiere, del amor: Teofanías No busques más, no hay taxis. Piensas que va a llegar, avanzas, retrocedes, te angustias, desesperas. Acéptalo por fin: no hay taxis. Y ¿quién ha visto un taxi? Los arqueólogos han desenterrado R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 130 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 gente que murió buscando taxis, mas no taxis. Dicen que Elías, una vez, tomó un taxi, mas no volvió para contarlo. Prometeo quiso asaltar un taxi. Sigue en un sanatorio. Los analistas curan la obsesión por el taxi, no la ausencia de taxis. Los revolucionarios hacen colectivos de lujo, pero la gente quiere taxis. Me pondría de rodillas si apareciera un taxi. Pero la ciencia ha demostrado que los taxis no existen. (ZAID, 1995, p. 90). Gabriel Zaid celebra la realidad con poemas cuya música penetra aguda o bajo repiques de suaves percusiones. Con este ritmo y una ética crítica se arriesga en conceptos —tiempo, libertad, silencio, olvido, eternidad, etcétera—, en ocasiones, con pocas posibilidades de vida material a través de una imagen, lo cual empobrece la circunstancia del poema. En este sentido es una poesía que obliga a pensar porque busca el desciframiento. Pero como producto acabado, redondo y que agujere, como una piedra límpida y cierta, algunos brillan en contundencia y golpean. Entre la brevedad del epigrama y el haiku, nuestro autor logra poemas redondos. Zaid abreva en Catulo y Marcial. En Quevedo, Góngora y Lope de Vega. También en la poesía oriental, tanto china y japonesa R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 131 como hindú. El poema “Teofanías” guarda una estrecha simetría con “A Roma sepultada en sus ruinas”, de Quevedo, sobre todo al comienzo. He aquí el poema de Francisco de Quevedo: Buscas en Roma a Roma, ¡oh, peregrino!, y en Roma misma a Roma no la hallas: cadáver son las que ostentó murallas, y tumba de sí propio el Aventino. (QUEVEDO, 1985, p. 67). Gabriel Zaid establece en buena cantidad de sus poemas un lazo con la cotidianidad a través de la enunciación de objetos y personajes como volkswagens (hoy animales casi extintos), bicicletas, pastas de dientes, estrellas de cine; es decir, elementos y símbolos de la ciudad y la cultura que lo rodean. Abunda la zoología, símil para radiografiar la vasta y compleja naturaleza humana, o para adentrarse en ella: Selva Me gusta acariciarte el hipopótamo. Husmear lo que apenas perdices. Acechar tu bostezo furibundo. Disparar al vuelo de tu aullido. Me gusta darte el dedo a morder, la percha de tus periquillos. Verte, mona, desnuda, meditar, de la cola, del árbol de la vida. La pantera feliz ronronea después del suculento pleistoceno. Me gusta la gratitud en los ojos de la victoria. (ZAID, 1995, p. 73). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 132 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Gusta de la reelaboración de los versos y de una permanente lectura crítica del entorno. Pero no sólo de pensamiento crítico vive el hombre. Y mucho menos el poeta, que puede encontrar, en el ojo mismo del huracán de la razón, la sinrazón que llama, la sinrazón que obliga, la sinrazón que anuncia. La poesía de Gabriel Zaid se pone a sí misma en duda. ¿No es éste un paso definitivo hacia la grandeza? Referencias CRUZ, san Juan de la. Cántico espiritual: Poesías. Asesoría literaria: Nicasio Salvador Miguel; Santos Sanz Villanueva. Ediciones, estudio y notas: Cristóbal Cuevas García. Madrid: Alhambra, 1979. 371 p. CRUZ, sor Juana Inés de la. Poesías completas. Recopilación y prólogo de Ermilo Abreu Gómez. 2. ed. México: Botas, 1948. 583 p. GÓNGORA, Luis de. Soledades. Prólogo de E. González Lanuza. Buenos Aires: Estrada, 1944. 181 p. (Colección Clásicos Castellanos, 3). KATHARSIS. Monterrey, n. 18, marzo 1958. PAZ, Octavio. Respuestas a Cuestionario —y algo más. Vuelta, México, Amigos del Arte A. C., v.1, n.4, p.43-46, marzo 1977. QUEVEDO, Francisco de. Antología poética. Prólogo y selección de Jorge Luis Borges. 2. ed. Madrid: Alianza, 1985. 143 p. (El Libro de Bolsillo. Sección Clásicos, 873). ZAID, Gabriel. Cuestionario: Poemas 1951-1976. 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N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 A MULHER E O ESPELHO EM PADRE ANTÔNIO VIEIRA – RELAÇÕES DE CONTINGUIDADE DIALÉTICA NO SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO THE WOMAN AND MIRROR IN PRIEST ANTONIO VIEIRA – AFFILIATIONS OF DIALECTIC ADJACENCY IN SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO Paulo Geovane e Silva (Universidade de Coimbra)1 RESUMO: Padre Antônio Vieira (1608-1697), grande orador e pregador português, produziu sermões que, devido às fortes 1 Mestre em Literatura Brasileira e Comparada pela Universidade de Coimbra e doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa - Investigação e Ensino pela mesma universidade. Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Áreas: Literatura brasileira, literaturas africanas de língua portuguesa, literatura comparada, estudos de gênero e estudos culturais. email: [email protected] R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 135 dimensões literárias e ideológicas que lhes são peculiares, despertam a atenção de muitos leitores e estudiosos da literatura de expressão portuguesa ainda nos dias de hoje. Dentre as muitas perspectivas que permitem ver a obra vieirina, uma das que tem tomado grande projeção nos atuais estudos literários é aquela que parte dos estudos de gênero, a fim de que seja possível perceber qual é o local que o sexo feminino ocupa na mundividência de Vieira. Nesse sentido, este artigo se propôs a analisar, também pelo viés dos estudos de gênero, a maneira como o jesuíta aborda o feminino, tendo como corpus de análise o Sermão do demônio mudo, produzido em 1651 e pregado para freiras num convento de Odivelas, Portugal. Para além de compreender melhor a presença da mulher na abordagem de Padre Antônio Vieira, tenciona-se também analisar em que medida essa figura é útil ao discurso e à estratégia argumentativa do jesuíta português. PALAVRAS-CHAVE: Padre Antônio Vieira. Mulher. Sermão. Identidade. ABSTRACT: Padre Antônio Vieira (1608-1697), a great Portuguese orator and preacher, has produced lectures which had called out the attention of many readers and Portuguese literature scholars until the present day because of the strong literary and ideological dimensions that are peculiar to him. Amongst the many perspectives under which it is possible to see the Vieirian work, one that has great projection in the current literary studies is the one that starts from the gender studies, so as to make it possible to understand the space dedicated to the female gender in Vieira’s worldview. In this sense, this paper intends to analyze – also under the gender studies, the way a Jesuit approaches the feminine, using as the analytical corpus the “Sermão do demônio mudo”, written in 1651 and preached to the nuns in a convent in Odivelas, Portugal. Besides better understanding the presence of the woman in Padre Antônio Vieira’s approach, it is also intended to analyze to what extent this figure is useful to the Portuguese Jesuit’s discourse and the argumentative strategy. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 136 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 KEYWORDS: Padre Antônio Vieira. Woman. Lecture. Identity Introdução [...] vê as atrizes, que não menos cuidadosas, ali mesmo se ajustam, e preparam; e que algumas apesar do tempo, e a milagres do artifício, cuidam que reparam em brevíssimos instantes, a ruína que fizeram muitos anos, semelhantes às serpentes quando se renovam, mas não tão felices; tôdas em um espelho portátil estudam amor, desdém, severidade, contentamentos, lágrimas; tudo aprendem no cristal, mestre mudo, e fiel, e que mudamente ensina a propriedade, o ar, a graça; mas que importa, o ar é vão, a graça é enganosa, e a propriedade é falsa; o representar é mentir. (Matias Aires, 1966) Da literatura às artes visuais, o espelho é um objeto recorrente, cujo valor simbólico abarca um sem número de desdobramentos semânticos, muitos dos quais antípodas entre si, a depender da manifestação artística na qual se encontra figurado o espelho. Nesse sentido, a singular presença que esse objeto tão quotidiano marca nas manifestações estéticas merece muita atenção, pois, sobretudo na literatura, o espelho carrega em si uma vida própria, uma função pessoal e uma importante dimensão axiológica com relação à arte literária e os seus efeitos de sentido: dos casos mais flagrantes, é de se lembrar a história d’A Branca de neve e os sete anões, conto de fadas no qual o espelho, que tinha uma voz própria, estava personificado como um ente maligno e misterioso, conivente com a antagonista da história; em Alice no país das maravilhas, era o espelho o meio pelo qual a pequena Alice fora levada para um de seus mundos mágicos; por último, o mais clássico exemplar da figuração do espelho – Narciso. Envolvido pela própria beleza contemplada num espelho d’água, Narciso é consumido pela admiração da própria face, e cai num lago, onde morre afogado, transformando-se numa flor aquática homônima ao personagem. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 137 Contudo, e a partir de uma analogia mais estreita e específica, uma das representações mais comuns é aquela que associa o espelho à vaidade e, consequentemente, à mulher, conforme retrata a epígrafe acima, retirada da obra Reflexões sobre a vaidade dos homens, assinada por Matias Aires. Na figura da atriz que se prepara para encenar, Aires critica o uso do espelho como uma promoção da vaidade e da mentira, já que, para além dos palcos, a mulher também representa diante do espelho. Como é possível notar tanto pela força simbólica do espelho quanto pela epígrafe, vê-se aqui que, em algumas produções literárias específicas, o espelho é o meio pelo qual um determinado discurso reforça a ideia de que a vaidade é um atributo feminino que, diga-se de passagem, associa à mulher uma imagem altamente pejorativa e banalizante. Tal representação será o foco de análise deste trabalho, no qual tenciona-se analisar O sermão do demônio mudo, de Padre Antônio Vieira, em cujo discurso o jesuíta aborda a temática do espelho com relação à vaidade. Pregado para freiras num convento de Odivelas em 1651, este sermão é um dos grandes exemplares que fazem ver a relação de Antônio Vieira com as mulheres ou, mais propriamente, com o universo feminino. O espelho, a mulher e o barroco – relações de contiguidade A arte barroca, muito marcada pela presença da mulher (nua ou vestida), tem sobretudo na pintura exemplos muito convincentes de que há, no discurso autoral, a denúncia de uma relação muito intrínseca, quase que essencial, entre a mulher e o espelho. Exemplo muito contundente do que aqui se diz é o Vênus olhando-se ao espelho, um óleo sobre tela assinado por Diego Velásquez, pintor espanhol que viveu entre o século XVI e XVII: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 138 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Completamente nua diante do espelho erguido por seu filho Cupido, Vênus já não aparece em uma áurea divina, mas é retratada num ambiente intimista que supõe e, simultaneamente, denuncia o quotidiano da mulher: olhar-se ao espelho, contemplar-se, admirarse, tal como fizera Narciso. O mesmo fizeram Paolo Veronese (15281588) e Ticiano Vecellio (1473/90-1576), pintores italianos que, respectivamente, assinam os seguintes quadros: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 139 Muitos outros exemplos poderiam ser aqui elencados para demonstrar que há uma forte (e pejorativa) associação entre o sexo feminino e o espelho, de modo que o segundo objeto seja visto como algo intrínseco à realidade e quotidiano do primeiro. Na sua relação com a pintura barroca, a literatura desse estilo epocal também faz ver traços dessa relação, e quem, à sua peculiar maneira, chama a atenção para este fato é Padre Antônio Vieira, jesuíta português que, por caloroso amor à igreja e à vocação, entregou-se piamente à vida religiosa, tendo falecido no Brasil em 1697. Contudo, e antes ainda de adentrar no referido sermão, é preciso compreender melhor a mundividência de Vieira, sobretudo no que diz respeito à figura da mulher e à medida pela qual a estética barroca influencia a percepção de mundo e a cosmovisão vieirinas. Não há como compreender os sermões de Vieira sem uma noção atentada da literatura bíblica, não somente por se tratar de um orador católico que vinca todo seu discurso numa ideologia bíblico-cristã, mas sim – e muito mais – porque o Barroco foi um período estético completamente atravessado por essa literatura e, em sua maioria, pode ser compreendido apenas através dela. A pintura, a literatura e as artes plásticas do Barroco são todas elas repletas de referências bíblicas, e, apesar de óbvio, vale ressaltar que a Bíblia funciona como uma espécie de livro revelador do estilo Barroco na medida em que foi uma grande fonte de inspiração para os artistas daquela época. Nesse sentido, a questão que aqui poderia ser levantada é: como e com qual finalidade a mulher é evocada no discurso de Padre Antônio Vieira? Por tudo o que já se sabe a respeito da potencialidade retórica desse jesuíta, bem como pela sua desenvoltura estético-literária circunscrita no barroco, o como fazse importante porque permite perceber, em termos de forma, as estratégias literárias de figuração da mulher; consequentemente, a finalidade da evocação do sujeito feminino encontra sua importância não apenas enquanto resultante do como, mas também enquanto um modo de perceber o que é meio e o que é fim no discurso de R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 140 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Vieira, e em qual desses dois momentos a mulher e a sua mundividência se encaixam – ou não. Dada essa instrínseca relação entre os sermões de Vieira e a Bíblia, nada mais natural do que encontrar, em seus escritos e ditos, um considerável número de mulheres cujas histórias estão primeiramente narradas em textos bíblicos. De Eva a Maria, grande parte das personagens femininas da Bíblia já figuraram na obra parenética de Vieira, como afirmam José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas a respeito da “importância paradigmática de outras personagens como Sara, Agar, Tamar, Jael, Ester, Lia, Rebeca, Micol, Dalila, Rute, Noemi, Abigail, Betsabé, Judite, Jetzabel, a Rainha de Sabá, Dina, Raquel…” (1998, p. 43). Em A mulher no discurso inventivo de Vieira2, Franco e Cabanas dão um horizonte amplíssimo a respeito da maneira pela qual a mulher é abordada nos sermões do jesuíta, demonstrando que “as menções ao universo feminino servem, via de regra, como estratégia para ilustrar reflexões moralizantes” (1998, 40). Além disso, esses investigadores consideram ainda que os sermões de Padre Antônio Vieira permitem perceber o contexto sócio-ideológico no qual estavam situadas as mulheres contemporâneas ao jesuíta: Vieira opera uma verdadeira ‘domesticação’ da mulher, confinando-a aos limites estreitos da casa, enquanto ao homem dá como princípio natural o espaço exterior da mobilidade. Todavia, não retira à mulher capacidade pedagógica, pois dentro do seu lar pode exercitar e desenvolver o seu papel de mestra espiritual da humanidade, transmitindo a fé e orientando a vida do homem para a salvação (CABANAS; FRANCO, 1998, p. 66). De fato, o homem tinha, naquela época, uma liberdade maior do que a da mulher – enquanto ele dominava o espaço público, ela ficava relegada ao espaço privado, mas não deixava de exercer nesse locus restrito a sua missão de promotora dos valores cristãos e da vida. Mesmo dando essa espécie de autonomia à mulher, os papeis R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 141 sociais definidos pelo gênero têm força no discurso de Vieira, e é através da evocação desses papéis que a mulher perde sua plasticidade e sua movência na voz do jesuíta. Mesmo dando à mulher uma função legítima, o orador não tenciona elevar a imagem da mulher muito para além do que a sua cultura permitia, motivo pelo qual a mulher parece não ser objeto de discussão em Vieira. Se, como afirma Eugênio D’Ors, o estilo “Barroco está secretamente animado pela nostalgia do Paraíso Perdido” (1990, p. 27), a mulher parece ser, a partir do que afirmam Franco e Cabanas (1998), um dos argumentos que buscam convencer a assembleia a acreditar e a buscar esse Paraíso, cujo processo de busca e alcance obviamente se dará através das condutas morais existentes na Bíblia e atualizadas na boca de Padre Antônio Vieira. Partido, portanto, do pressuposto de que, em Padre Antônio Vieira, a mulher é argumento, a presença do feminino nesse discurso pode agora ser vista não como fim, mas como meio, ainda que a temática do sermão vieirino contemple as figuras benévolas de mulher, como é o caso de Maria e os textos que gravitam em torno de algum título mariano específico, como, por exemplo, o Sermão de Nossa Senhora do Ó. A partir do que até aqui foi dito, é tempo de partir para uma leitura atenta do Sermão do demônio mudo, enunciação na qual Antônio Vieira estabelece uma forte ligação entre as figuras demônio e da mulher através da dialética do espelho, demonstrando como o primeiro influencia no segundo através do terceiro. Essa relação da mulher com uma força demoníaca é, obviamente, fruto da já gasta relação de conivência entre Eva e a serpente, também tão recorrente nos sermões de Vieira. A dialética do espelho no Sermão do demônio mudo Pregado no convento de Odivelas no ano de 1651, o Sermão do demônio mudo, como o próprio nome parece sugerir, retrata dois R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 142 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 tipos de manifestação demoníaca: a do demônio que “vem bramindo, vem como inimigo declarado” e a do demônio mudo, que “vem como inimigo oculto” (VIEIRA, 1651). Após discorrer sobre essas duas formas de presença demoníaca – a que é perceptível e a que não é –, Vieira conta uma breve história ocorrida em Itália, onde um diretor espiritual, visitando as freiras em um determinado convento, propunha às religiosas que se desvinculassem e abrissem mão de tudo o quanto podia desviá-las de uma vivência espiritual reta e totalizante, a fim de que as portas da alma se abrissem para uma entrega mais perfeita a Deus. Cada freira retirou de sua cela o que podia, deixando apenas o estritamente básico para a vida religiosa. Entretanto, houve uma religiosa que se dispôs a abrir mão de tudo, menos do espelho, objeto que muito prezava em sua cela. A partir de então, Antônio Vieira começa a desenvolver uma argumentação em torno da relação da mulher com o espelho, demonstrando que esse objeto cristalino nada mais é do que uma inconsteste manifestação do demônio mudo, aquele que fica à espreita e que ataca quando menos se espera, e cujo poder de silêncio pode incitar a mulher ao pecado da idolatria e à perdição. Como é comum no discurso de Vieira, a origem da palavra/objeto: primeiramente, o jesuíta faz um apanhado histórico da origem do espelho, demonstrando que, no princípio, esse objeto se originara da própria natureza: na sua primeira origem já tinha sido o espelho obra da natureza, e do soberano autor dela. As estrelas são espelhos do sol; os rios são espelhos das árvores; uma fonte, que não devera, foi o espelho fatal de Narciso (VIEIRA, 1651). Entretanto, e mesmo sendo o espelho um objeto da criação divina, Vieira acha justo compará-lo ao demônio, porque, segundo o padre, ambos são criações de Deus: “O demônio primeiro foi anjo, e depois demônio; o espelho primeiro foi instrumento do R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 143 conhecimento próprio, e depois do amor próprio, que é a raíz de todos os vícios” (VIEIRA, 1651), de modo que, sob o ponto de vista do orador, “não há duas coisas que Deus criasse mais parecidas e semelhantes que o demônio e o espelho.” (VIEIRA, 1651). Depois de uma breve discussão sobre o caráter paradoxal do espelho, Vieira chega ao fulcro de sua discussão – a vaidade. Neste ponto do sermão, ele afirma que o espelho concorre com “uma testemunha também falsa e muda, que é a formosura” (VIEIRA, 1651), momento a partir do qual o jesuíta defende a veneração da face divina e a consequente negação da face e formosura humanas, a fim de que a vaidade não corrompa o homem. A partir daqui, a figura da mulher é crucial, porque, tendo em vista sobretudo a assembleia ouvinte – composta por freiras –, Vieira começa por evocar a ideia de mulher enquanto sujeito suscetível de envaidecimento e, por consequência, de pecado, o que consiste num risco para todas as mulheres, mas sobretudo para aquelas que, por vocação e opção, decidiram seguir a vida religiosa. Vieira chega mesmo a questionar tal atitude por parte de uma religiosa, colocando em causa a sua identidade feminina diante dos seus compromissos com Deus: “É possível que uma mulher virgem consagrada a Deus, e desposada com o Filho de Deus, há de estar tão casada com o espelho? É ela mulher? É ela filha de Eva?” (VIEIRA, 1651). Eva é, como de costume, retomada como o símbolo da mulher-culpada, cuja imagem será, como também é de costume, anulada pela atitude soberana de Maria. Para além da imagem da mulher associada ao matrimônio, que vem de encontro à concepção de mulher que era contemporânea a Vieira, o sermão faz ver ainda uma outra manifestação do universo feminino: a posteridade de Eva como uma linhagem feminina: ao falar do apetite da vaidade que não tocou a companheira de Adão, cuja mulher não soube o que era um espelho, Vieira fala do “apetite que herdaram da mesma Eva as suas filhas” (VIEIRA, 1651). Justificando tanto o apetite quanto a filiação, o jesuíta afirma: “E por isso há tantas no mundo – e fora do mundo – que gastam as R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 144 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 horas e perdem os dias inteiros em se estar vendo, revendo e contemplando no espelho, como se não tiveram nem esperaram outra glória.” (VIEIRA, 1651). De acordo com o jesuíta, toda essa vaidade – inscrita num espaço que ele próprio define como mundus muliebris – corrompe a alma feminina, e, a contraexemplo, ele refere, dentre tantas, Blesila, uma viúva romana que, após uma vida inteira dedicada a se contemplar ao espelho, foi tocada por Deus e, convertendo-se, resolveu seguir a vida religiosa. Após um passeio pela dialética do espelho, Vieira transporta o seu discurso para outra noção de contemplação que, basicamente, consiste no espelhamento: da vaidade – consequência do ver-se e contemplar-se ao espelho –, as mulheres que escutavam o jesuíta foram, através do seu discurso, convidadas à contemplação de Deus no “espelho da oração elevada” (VIEIRA, 1651), de modo que, eliminando-se a si mesmas, não mais se veriam naquele espelho mudo e demoníaco, mas sim noutro mais sublime, cuja imagem ali contemplada não seria a sua própria figura de mulher, senão a de Deus, ou, como o jesuíta apontará mais adiante, a de Maria, referencial de mulher para todo e qualquer discurso católico. Do espelho ao espelhamento, o padre jesuíta segue com a sua profusão de argumentos que tencionam retirar das ouvientes toda e qualquer possibilidade de envaidecimento. A idolatria da mulher para com a própria face deveria, portanto, dar lugar à adoração e benevolência para aqueles que realmente eram dignos de receber tais obséquios – Deus e Maria, a “Virgem das virgens” (VIEIRA, 1651). Na visão de Padre Antônio Vieira, somente conseguiriam renunciar tal tentação as “religiosas de ânimo varonil”, cujo adjetivo faz ver, obviamente, uma tendência não misógina, mas pelo menos sexista no discurso do jesuíta: a mulher só consegue ser suficientemente corajosa quando tomada por uma atitude masculina – varonil – e, aqui, pode-se perceber o modo como a mulher é vista no discurso de Vieira. Em virtude do homem, ela é obviamente um sexo mais frágil e dependente. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 145 Reiterando a ideia de espelhamento, e já ao fim de tão longa e minuciosa exposição, Vieira ordena: Tende sempre, ó virgens, diante dos olhos a imagem da Virgem Maria, a qual, como em espelho, resplandece o verdadeiro retrato da castidade, e de toda a virtude. Este é o exemplo a que deveis compor todas as vossas ações, porque nele, como mestra da perfeição,vos mostrará e ensinará a mesma Virgem das virgens o que deveis emendar, o que deveis fugir, e o que deveis imitar. (VIEIRA, 1651). Ainda nesse sentido, o jesuíta pede que as freiras preservem a formosura da alma, e não a da aparência, para que assim possam ser mais dignas do matrimônio com Cristo, ao qual se dispuseram e pelo qual devem zelar (cf. VIEIRA, 1651). Ao explicitar os sofismas que advêm do espelho, e em meio a um sem fim de exemplos, Vieira retoma as figuras de muitas mulheres – umas que, como Blesila, abandonaram a idolatria da face em nome da vida religiosa e de um outro espelhamento; e outras que, não conseguindo renunciar ao mundus muliebris, são uma espécie de contraexemplo do que é ser mulher e religiosa na época e na visão cristã e ideológica de Vieira. Vale a pena ressaltar aqui que, apesar de o discurso de Vieira valorizar o belo em tudo o que há, a mulher não encontra propriamente um lugar nesse tudo: nela, o belo é valorizado não na aparência e na face, mas nas atitudes, o que também é determinado por uma sociedade patriarcal que espera da mulher atitudes belas, condizentes com regras e expectativas sociais vincadas na cultura cristã católica. Se a mulher não é valorizada pelo que é, mas pelo que faz (ou não), o sermão de Vieira também parece seguir essa linha de abordagem: em O sermão do demônio mudo, a mulher não é foco da discussão em nem um momento sequer, mas é evocada tão somente como parâmetro de argumentação sobre o que é ideal ou não em uma religiosa e, por isso, como estratégia de persuasão, de modo R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 146 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 que todas as figuras femininas que aparecem nesse discurso servem apenas como meio, como já referido anteriormente, e não como fim. – a mulher é um argumento para que Antônio Vieira faça com que as religiosas, enquanto mulheres acusadas por, a partir de Eva, fazerem existir e persistir a vaidade, repensem a sua identidade a partir de um condicionalismo ideológico ainda maior. Como também referido, não se trata de misoginia, mas sim de uma espécie de sexismo envolvido e disfarçado por uma digna justificação: a magnificência da vida religiosa. Consideração final Considerar a dimensão societal do sermonário de Vieira é importante porque, ao falar sobre a presença da mulher num discurso cristão e católico do século XVII, é preciso considerar também que, naquele tempo, um conjunto de vetores sociais influenciavam a mentalidade do tempo, bem como construíam na mundividência feminina uma outra ideia de identidade e discursividade pertinentes à mulher, tal como ocorre sempre e atualmente. É de ressaltar o fato de que tanto o espelho quanto a mulher são elementos dialéticos no discurso de Vieira, o que permite perceber, no ponto de vista do jesuíta, uma ideia de intrínseca relação entre a vaidade – alegorizada no espelho – e a mulher, praticamente alegorizada em figuras femininas ideais ou não. Se Padre Antônio Vieira compara o espelho com o demônio, ele também parece estabelecer uma relação de proximidade entre o espelho e a mulher, quase que substituindo-a pela figura do demônio e, por isso, demonizando-a também por ser tão vinculada ao objeto de apreciação da formosura e idolatria da própria face. A par de toda a ideologia de Padre Antônio Vieira, não é possível deixar de apontar que, no discurso desse jesuíta, tão pensado e relido na atualidade, a mulher é conduzida não apenas à negação R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 147 da própria beleza e peculiaridades, mas também a não se enxergar enquanto mulher, isto é, a ignorar sua identidade feminina perante a sociedade, já que, em vez de espelhar-se em si mesma, a mulher é impelida a espelhar-se em um outrem ideal aos olhos da Igreja. Notese que, para além de Deus, este outrem também é uma mulher. Contudo, trata-se de uma mulher que é eleita pela fé católica como modelo ideal, e não como símbolo da diversidade que se circunscreve no gênero feminino. Obviamente, o discurso vieirino, ainda que articulado com admirável perícia e sabedoria, está vincado num tempo em que a mulher, se não lutava tanto por uma emancipação identitária, ao menos conformava-se com o que lhe era socialemente imposto, de modo até a conseguir viver bem com alguns condicionamentos sociais, e o discurso de Padre Antônio Vieira compõe de maneira significativa esse mosaico ideológico pelo qual andou o pensamento barroco. Referências CABANAS, M. I. M. e FRANCO, J. E. Padre Antônio Vieira e as mulheres: o mito barroco do universo feminino. Porto: Campo das Letras, 2008. ORS, Eugênio d’. O barroco. Trad. Luís Alves da Costa. Lisboa: Veja, 1990. VIEIRA, Antônio de. Sermão do demónio mudo. 1651. (disponível em: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01920.html. Consultado em: 17 de dezembro de 2012). Nota 2 In Padre Antônio Vieira e as Mulheres: o mito barroco do universo feminino. Porto, 2008: p. 39-53. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 148 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 REFLEXÕES SOBRE NOVAS TECNOLOGIAS E EDUCAÇÃO THOUGHTS ABOUT NEW TECHNOLOGIES AND EDUCATION Alexandre Vilas Boas da Silva (UEL/UNOPAR)1 RESUMO: A história do homem é marcada pela invenção de aparatos tecnológicos que o auxiliam em suas tarefas, potencializando habilidades e, normalmente, facilitando a vida. A criação e aperfeiçoamento dos recentes recursos das tecnologias da informação e comunicação (TIC), nas últimas décadas, trouxeram mudanças significativas no modus vivendi, a partir da popularização de ferramentas de informática. Tais ferramentas, que não se restringem somente aos computadores pessoais, invadiram diversos segmentos da vida do homem, fazendo parte de áreas distintas como a comunicação, o entretenimento, a 1 Doutorando em Letras – Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Londrina.Caixa Postal 10.011. CEP 86057-970. Londrina – Paraná – Brasil. Docente na Universidade Norte do Paraná (UNOPAR/EaD), Avenida Paris, 675– Jardim Piza, CEP86041-120–Londrina– Paraná – Brasil. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 149 medicina, a produção de alimentos, os transportes, a educação, dentre outras. O objetivo deste artigo é realizar reflexões acerca da recente utilização pedagógica dos recursos de novas tecnologias, a partir de reflexões de Umberto Eco e Pierre Lévy – dois pensadores que problematizam, de forma seminal, questões pertinentes ao tema e ainda atuais. PALAVRAS-CHAVE: educação; informática; novas tecnologias da informação e comunicação. ABSTRACT: The human’s history is well-marked by the invention of technological devices, that help mankind in his tasks, enhancing skills and usual lymaking life easier. The creation and improvement of the latest features of information and communication technology (ICT) in recent decades, have brought significant changes in the modus vivendi from the popularization of computer devices. These tools, which are not restricted only to personal computers, invaded various sectors of human life, being part of different are as such as communication, entertainment, medicine, food production, transport, education, etcetera. The aim of this work is to think about the latest pedagogical use of resources for new technologies, starting from reflections by Umberto Eco and Pierre Lévy - two thinkers who face the subjec tat its beginning, but still current. KEYWORDS: Education; computers; new information and communication technology. Introdução A história do homem é marcada pela invenção de aparatos tecnológicos que o auxiliam em suas tarefas, potencializando habilidades e, normalmente, facilitando a vida. A criação e aperfeiçoamento dos recentes recursos das tecnologias da informação e comunicação (TIC), nas últimas décadas, trouxeram R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 150 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 mudanças significativas no modus vivendi, a partir da popularização de ferramentas de informática. Tais ferramentas, que não se restringem somente aos computadores pessoais, invadiram diversos segmentos da vida do homem, fazendo parte de áreas distintas como a comunicação, o entretenimento, a medicina, a produção de alimentos, os transportes, a educação, dentre outras. Considerando tal contexto, o objetivo deste artigo é realizar reflexões acerca da recente utilização pedagógica dos recursos de novas tecnologias, a partir de considerações de Umberto Eco e Pierre Lévy – dois pensadores que problematizam, de forma seminal, questões pertinentes ao tema. Vale lembrar que as discussões de ambos, apesar de datadas de mais de uma década, continuam pertinentes em muitos aspectos, como veremos a seguir. Partimos também do pressuposto de que as instituições educacionais – independente de pertencerem à iniciativa pública ou privada – estão, ano após ano, incorporando mais equipamentos de informática, aplicativos e recursos da rede mundial de computadores, a World Wide Web (www), com finalidades pedagógicas. Por este motivo, julga-se pertinente realizar discussão acerca do tema. Parece algo natural que a incorporação de recursos tecnológicos exija de seus envolvidos o desenvolvimento de habilidades e o domínio mínimo de algumas técnicas, que vão desde a operação básica de aparelhos – até então estranhos a atividades educacionais – à adequação de propostas pedagógicas, para uma incorporação significativa destes recursos na educação. Naturalmente, tal incorporação no processo educacional não implica, necessariamente, em melhora qualitativa dos processos de ensino e aprendizagem. Contudo, parece indiscutível a melhoria em alguns aspectos como a ampliação das possibilidades de pesquisa e de trocas de informações entre pessoas fisicamente distantes; bem como a otimização da organização e processamento de dados complexos, agora realizados por autômatos, de forma muito mais rápida. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 151 Estas potencialidades aparentam ser evidentemente vantajosas, havendo certo consenso acerca da necessidade de uso de tais aparelhos com propósitos educacionais, embora alguns críticos possam, com propriedade, apontar aspectos negativos, como o embotamento de habilidades cognitivas das pessoas como a memória, a capacidade de concentração ou a faculdade de realizar cálculos mentais. Contudo, não há confluência no que diz respeito àefetiva utilização destes recursos, talvez por ainda não termos o distanciamento histórico necessário para mensurar os impactos que suas diferentes utilizações produzirão na formação escolar das novas gerações. Recursos tecnológicos na educação: uma metáfora e algumas expectativas Para ilustrar o contexto de dissensão sobre o uso de novos recursos tecnológicos na educação, retomo passagem do conto “A Biblioteca de Babel”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, que parece servir de metáfora para esta situação. No início do conto, encontramos a descrição de uma biblioteca aparentemente infinita, que deslumbra e também assombra seus habitantes – os bibliotecários: Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. (BORGES, 1972, p. 89) A euforia inicial dos homens diante da biblioteca – supostamente um repositório total, que abrigaria todo o conhecimento possível – é posteriormente suplantada por um sentimento de impossibilidade de compreensão, ainda que parcial, dessa totalidade2. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 152 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 De forma semelhante, a possibilidade de uso dos recursos de informática e de interconectividade de computadores através da internet, para propósitos educacionais, parece tomar semelhante rumo: a “extravagante felicidade”toma conta de alguns entusiastas, que veem nas TIC uma forma moderna e redentora da educação. Obviamente a simples adoção de novas ferramentas tecnológicas está longe de resolver os profundos problemas dos sistemas de ensino do nosso país. Mesmo assim é interessante observar como se difundeo marketing em torno da aquisição de equipamentos de informática por instituições educacionais, sejam as privadas que oferecem tablets e conteúdosdigitaiscomo diferencial na apresentação dos materiais dos cursos, ou nas instituições públicas, nas quais os microcomputadores e demais recursos de informática são mencionados como investimento em educação, veículos responsáveis pela modernização e melhoria do ensino. Podemos observar que os termos que se referem a estes aparatos habitualmente são revestidos de um caráter positivo, de atualização, dinamismo e eficiência3. No entanto, parece óbvio que apenas a aquisição destes equipamentos não garante progressão qualitativa nos processos educacionais, uma vez que a utilização pedagogicamente proveitosa depende de uma série de fatores, que incluem a formação dos docentes, para a conquista de familiaridade e segurança no uso destes recursos. No entanto, tal discussão, que já ocorre a pelo menos uma década, parece ainda não fazer parte dos cursos de formação de professores ou dos programas de capacitação docente em várias das instituições de ensino do país ou adotadas de forma sistematizadas como políticas educacionais, para atendimento de todos os profissionais da educação básica à superior4. Umberto Eco: o lugar da inovação diante da tradição A conferência de Umberto Eco, intitulada “Da Internet a Gutenberg”, proferida em 1996, mantém-se atual e válida em R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 153 diversos aspectos, como, por exemplo, na menção da dificuldade natural de aceitação das novas invenções por parte dos seres humanos. Podemos ainda ressaltar no texto diversos pontos que podem ser relacionados às práticas pedagógicas, a começar pela nota, do Prof. Dr. João Bosco Alves, à tradução de Conferência. O Professor observa, na época da publicação do texto em português: “a resistência, ainda remanescente no Brasil, do uso ostensivo de modernos aparatos tecnológicos em áreas nitidamente carentes (como é o caso da educação)” 5 . E continua suas ponderações demonstrando esperança na educação a distância (EaD), acentuada pelo uso da internet, para reverter de tal precarização educacional: Ora, o Brasil (um país do terceiro mundo ou, se preferirem, em desenvolvimento), de dimensões continentais, está beirando os 200 milhões de habitantes com, pelo menos, a metade dessa população constituida[sic] de analfabetos funcionais, ou seja, pessoas que não conseguem interpretar textos condignamente. Essa perversa e excludente realidade foi construída pelo modelo educacional ainda vigente no país. E, pela primeira vez em 500 anos, temos a real possibilidade de atacar o problema de frente. O uso da educação a distância, hoje turbinada com o auxílio da Internet, é um recurso relativamente barato que pode auxiliar de fato nessa tarefa, e que o país não pode se dar ao luxo de subestimar. Muito menos de não utilizá-lo. (ECO, 1996. s.p.) Ainda que tenham sido incrementados os índices educacionais brasileiros na última década, bem como o orçamento destinado à educação 6 , os resultados gerais de avaliações de desempenho de estudantes ainda podem ser melhorados, como discutiremos adiante. Em sua conferência, Umberto Eco relata o receio, natural, mantido em gerações que presenciaram grandes avanços tecnológicos: o medo de que novos inventos tecnológicos possam destruir algo caro e útil à humanidade. Cita, como exemplos, o R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 154 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 episódio da invenção da escrita, extraído do diálogoFedro, de Platão, e também a criação do livro impresso, mencionando um episódio de O Corcunda de Notre-Dame, de Vítor Hugo. O autor demonstra como tal receio é inócuo e que nem sempre os avanços tecnológicos culminam em melhora – seria antes uma mudança de “linguagem”, como ocorreu com a substituição das imagens nas catedrais pela instrução escrita. O autor ainda relativiza a progressão qualitativa das produções e demonstra como isso não traz relação direta com o suporte que as abrigam. Podemos notar isso no argumento (bem humorado) do autor ao tecer um elogio às imagens das catedrais medievais em detrimento das imagens das TV: Na Idade Média, a comunicação visual era, para as massas, mais importante que a escrita. [...] As catedrais eram as TVs daqueles tempos, e a diferença para as nossas TVs era que os diretores da TV medieval liam bons livros, tinham um pouco de imaginação, e trabalhavam para o benefício do público. (ECO, 1996. s.p.) Na conferência, Eco pondera sobre as mudanças tecnológicas, realizando uma defesa do suporte impresso e elenca algumas vantagens deste em relação suporte digital, mais especificamente aos hipertextos do final do século XX. O autor, no entanto, não despreza as potencialidades de tal suporte,em quea tela do computador seria uma espécie de livro ideal, com capacidade de buscar informações de forma muito mais ágil e eficaz, o que é plausível. No entanto, Eco defende a superioridade do documento impresso para a leitura cuidadosa, minuciosa7. Menciona, como exemplo disso, o hábito de se imprimir manuais para operar um programa de computador. Certamente, para as novas gerações, intituladas nativas digitais8, isso já não seja problema, uma vez que os suportes de leitura se aprimoraram, per mitindo maior mobilidade, conforto e ergonomia de leitura do que a realizada nos monitores de tubos de raios catódicos. Atualmente, é R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 155 possívelinclusive adicionar, com facilidade, anotações em um leitor digital portátil, de tela sensível ao toque. Outra questão importante para a discussão de uso de novas tecnologias na educação é também mencionada por Umberto Eco em sua conferência: a natureza do processo de leitura se modifica com o hipertexto? Para o autor parece não haver nenhuma mudança importante, somente uma mudança de suporte que abriga as informações9. Neste ponto da discussão, Eco enumera várias iniciativas da modernidade em que teríamos obras tradicionais que possuem características atribuídas ao hipertexto como inovações. Refuta, por exemplo, a “abertura” do hipertexto em oposição à suposta linearidade dos textos impressos, mencionando casos de livros que poderiam ter seus capítulos (ou páginas) lidos aleatoriamente, ou mesmo a junção de versos ou palavras desordenadas para compor poemas. Defende ainda que mesmo um texto linear e “fechado” poderia gerar diversas interpretações – mas naturalmente não”qualquer”interpretação. Deste modo, o hipertexto, assim como o texto “tradicional”, seria também um sistema fechado, finito, limitado. Em suma, aparentemente para Eco o hipertexto era algo já existente antes mesmo da popularização dos computadores, no entanto sem descartar uma potencialidade dos novos aparatos tecnológicos e do hipertexto: Estamos caminhando para uma sociedade mais liberada na qual a livre criatividade co-existirá com a interpretação textual. Gosto disso. Mas não deveremos dizer que substituímos uma coisa velha por outra nova. Temos as duas, graças a Deus. Assistir TV nada tem a ver com assistir um filme. Um dispositivo hipertextual que nos permita inventar novos textos nada tem a ver com nossa habilidade de interpretar textos préexistentes. (ECO, 1996. s.p.) A conclusão do autor na conferência aplica-se perfeitamente às atuais discussões da utilização dos recursos tecnológicos digitais na educação, uma vez que a chegada de novos recursos não torna, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 156 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 necessariamente, obsoletos os velhos, como foi o caso da fotografia e da pintura: o antigo influencia o novo e vice-versa. De forma ponderada, Ecotambém nos chama a atenção para alguns problemas decorrentes da”modernização”, como a solidão e o excesso de informação, aliado uma inabilidade para escolher e discriminar. Para lidar com estes problemas, seria necessário desenvolvernovas formas de ensinar e aprender “uma nova forma de competência crítica, uma arte por enquanto desconhecida de seleção e dizimação de informação, em suma, um novo bom senso. Precisamos de um novo tipo de treinamento educacional” (ECO, 1996. s.p.). Deste modo, seríamos capazes de diferenciar de forma competente uma informação confiável de outranão confiável, um dado pertinente de outro irrelevante. Logo, cabe a nós, que vivenciamos este processo de mudanças, pensarmos em alternativas válidas para lidar apropriadamente com tais questões, o que decerto é um grande desafio para as atuais e novas gerações de educadores. Certamente, as novas ferramentas tecnológicas podem propiciar maior interatividade com conteúdos de diversas mídias, facilitar a comunicação entre pessoas distantes, facilitar a busca, o processamento e a organização de dados, além de incluir, a cada ano com mais intensidade, acesso a atrativas mídias audiovisuais, familiares aos aprendizes das novas gerações, como mencionado anteriormente. No Brasil, percebemos os esforços governamentais para implementar programas de informatização em estabelecimentos de ensino. Algumas vezes, isso é feito sem que existam projetos consistentes de infraestrutura, para os laboratórios, e de conectividade com a internet, o que pode limitar a efetiva utilização destes equipamentos. Os investimentos vêm aumentado ano após ano, como comprovam dados disponíveis no Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle (SIMEC)10, do Ministério da Educação (MEC), o que, no entanto, ainda não representa uma modificação significativa nos índices qualitativos da educação no país, como demonstram os fracos resultados recentes do Brasil em R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 157 avaliações de organizações, como é o caso do exame do Programme for International Student Assessment (PISA)11. Mesmo questionando a parcialidade e o real alcance destes métodos avaliativos, o panorama atual é preocupante: os resultados demonstramníveis insuficientes de proficiência de leitura. Nesse contexto, espera-se que os recursos de informática e conectividade possam promover melhora sensível nos índices educacionais do país, quem sabe a médio prazo. Talvez o próprio processo de incorporação efetiva de tais recursos exija ainda mais tempo para que progressos sejam notados, até mesmo para que haja tempo hábil para formação e capacitação dos educadores, para uma consequente incorporação dos recursos às práticas educacionais, de forma consistente. Pierre Lévy: cibercultura e a nova relação com o saber Outro estudioso que trata das mudanças propiciadas pelas novas tecnologias ainda no final do século XX é Pierre Lévy. Em seu livro intitulado Cibercultura, o autor dedica o décimo capítulo, “A Nova Relação com o Saber”, a uma reflexão acerca do espaço propiciado pelas recentes tecnologias de informação e comunicação, relacionadas à construção de saberes. Neste texto, Lévy deixa transparecer uma perspectiva predominantemente positiva diante das possibilidades de uso dos recursos multimidiáticos, o que o torna uma espécie de guia, para os entusiastas das novas tecnologias. Em sua obra, Lévy mencionaalgumas modificações sensíveis na relação dos homens com o saber, ainda no final do século XX, com o advento da chamada cibercultura. Uma das constatações feitas seria a modificação na velocidade de surgimento e de renovação de saberes: “pela primeira vez na história da humanidade, a maioria das competências adquiridas por uma pessoa no início de seu percurso profissional estarão obsoletas no fim de sua carreira” (LÉVY, 1999, p. 157). Tal constatação soa verossímil diante da R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 158 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 crescente popularização de equipamentos de informática, que a cada anoampliam sua portabilidade, bem como a capacidade de processamento, transmissão e armazenamento de dados. Um segundo aspecto que atesta a nova relação com o saber, observado pelo autor, relaciona-se à nova natureza do que se entende por trabalho: atividade, cada vez mais, ligada às habilidades de “aprender, transmitir saberes e produzir conhecimentos” (LÉVY, 1999, p. 157). A terceira e última modificação sensível mencionada pelo autor é a cognitiva, uma vez que as tecnologias no ciberespaço hipoteticamente transformam nossa concepção tradicional de memória, imaginação, percepção e raciocínio. Esse novo contexto traria algumas vantagens, como, por exemplo, as novas formas de acesso à informação. Esse parece ser um dado inconteste, uma vez que a disseminação de conteúdos é claramente facilitada pelas conexões entre máquinas na rede mundial de computadores. Se pensarmos na limitação de acesso (físico) a acervos documentais, realmente a disponibilização de arquivos digitais consegue vencer barreiras geográficas, permitindo socialização no acesso a informações diversas. Outra vantagem mencionada pelo autor seria a possibilidade de exploração de novos estilos de raciocínio e de conhecimento, a exemplo das simulações. Notamos, recentemente, em diversas áreas do conhecimento, a incorporação de simulações virtuais como método de desenvolvimento de habilidades cognitivas. Enquadramse nesta categoria, por exemplo, os chamados serious games, que objetivam desenvolver habilidades para além do entretenimento, ou mesmo os simuladores virtuais, que podem servir como uma etapa de treinamentopara operação de máquinas em atividades profissionaisespecializadas. Para Lévy, a utilização de tecnologias intelectuais possibilita a objetivação dos conhecimentos, no sentido de transformá-los em documentos digitais, sendo facilmente compartilhadas entre pessoas, tornando possível o incremento da inteligência coletiva humana. Tal R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 159 posicionamento do autor corrobora seu aspecto afirmativo e otimista, ressaltado anteriormente. Tal suposição parte da hipótese de que os seres humanos buscam sempre uma utilização positiva e ponderada das tecnologias (em sentido lato) e, portanto, ideal. Com esta mudança de paradigma, sugerida por Lévy, menciona-se, como desdobramento, a necessidade de se “construir novos modelos do espaço dos conhecimentos” (LÉVY, 1999, p. 158), em que seria preciso encontrar um novo estilo de pedagogia, que trabalhasse com uma reformulação dos modos de ensinar e aprender, misturando aprendizagem personalizada e coletiva em rede – da qual faz parte a educação a distância. Tais modificações certamente trariam mudanças no próprio papel do professor, que, segundo o autor, passa de “fornecedor direto de conhecimentos” (LÉVY, 1999, p. 158) a figurar como uma espécie de mediador no processo educacional, mostrando caminhos e modos de selecionar informações e produzir conhecimentos, uma vez que o acesso às ferramentas de pesquisa é facilitado no ambiente do ciberespaço. Neste caso, os conhecimentos hierarquizados, em forma de pirâmide, com diferentes níveis de gradação, dariam lugar a uma forma de organização mais fluida, aberta e não linear – consolidando aquilo que seria uma das características básicas do hipertexto: a multiplicidade de nós que, potencialmente, liga-se a diversos outros pontos. Aqui Lévy faz uma comparação da página impressa com uma página da web, buscando demonstrar como esta parece ser mais vantajosa que aquela, por ser mais “aberta” – possibilitando, com isso, uma espécie de unidade de fluxo – com a capacidade de se conectar a outros documentos hospedados em outras partes do planeta. Notamos aqui uma discordância com as ideias abordadas anteriormente na conferência de Umberto Eco. A World Wide Web, citada pelo autor como um dos principais eixos de desenvolvimento do ciberespaço, continua sendo local de uma cultura ainda por se consolidar. Certamente, nesse “oceano de informação” (LÉVY, 1999, p. 160), um dos grandes desafios R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 160 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 de seus usuários é conseguir “filtrar” informações pertinentes, papel esse que os educadores necessitam assumir diante da cibercultura, na tentativa de fazer com que seus usuários consigam discernir fontes plausíveis de outras não confiáveis. Tal habilidade seletiva estaria relacionada a uma espécie de “letramento digital”, ou o que Umberto Eco, menciona em sua conferência como alteração do próprio conceito de alfabetização: “Hoje o conceito de alfabetização compreende várias mídias. Uma boa política de alfabetização considera as possibilidades dessas mídias todas. A preocupação educacional deve ser estendida ao conjunto das mídias.” (ECO, 1996. s.p.). Obviamente, tal tarefa não é simples de ser realizada, pois os usuários podem criar, modificar e replicar informações com muita facilidade, sem a necessidade da chancela de instituições especializadas: a solidez e a materialidade dos textos se desfazem diante da volatilidade do “oceano” informacional virtual. Isso que pode parecer uma democratização de acesso e criação de conteúdos pode também gerar perda de referência, pela grande quantidade de informação, que não implica em obtenção de conhecimento. Pierre Lévy, diante da suposta nova forma de organização informacional, faz recomendações diante desse “dilúvio de informações”, dentre as quais encontramos a sugestão de que: Devemos portanto nos acostumar com essa profusão e desordem. A não ser em caso de catástrofe natural, nenhuma grande reordenação, nenhuma autoridade central nos levará de volta à terra firme nem às paisagens estáveis e bem demarcadas anteriores à inundação. (LÉVY, 1999, p. 160-161) É interessante notar como as imagens ligadas à liquidez das informações no ciberespaço são empregadas reiteradamente ao longo de todo o texto de Lévy: aqui a metáfora da água é usada para demonstrar a fluidez das informações em ambientes virtuais. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 161 Diante da “inundação de informação contemporânea” (LÉVY, 1999, p. 160), o autor novamente toma um posicionamento otimista em relação ao ciberespaço, buscando sugerir formas de adaptação às mudanças inexoravelmente instauradas. Assim sendo, considera, mais uma vez, os novos aspectos comunicacionais positivos, ao realizar a negação da pretensa “frieza” e isolamento dos sujeitos ao realizarem a leitura no ciberespaço. O autor considera a leitura do texto em tela algo muito semelhante à leitura em papel, ainda que isso tenda a se modificar. No entanto, como observa Lévy, dificilmente ouvimos críticas à atividade de leitura realizada em papel, diferentemente da leitura hipertextual, que poderia supostamente gerar dispersão(por conta da multiplicidade de nós, próprios da estrutura hipertextual) ou por limitações técnicas na própria relação do leitor com o suporte dos textos (por exemplo, a portabilidade e a possibilidade de realizar anotações seriam, há alguns anos, exclusividades dos livros impressos). Notamos que atualmente várias editoras ampliam investimentos no crescente nicho de comércio de livros digitais (os e-books), uma vez que os aparelhos portáteis que permitem leitura de livros digitais estão se tornando economicamente mais acessíveis e funcionais. Estaríamos, portanto, diante de uma nova revolução nas formas de organização do conhecimento humano, que passou pelas etapas da difusão por meio da oralidade, da escrita manual e, posteriormente, da escrita impressa. Outro ponto de destaque mencionado pelo autor diz respeito à impossibilidade de abarcar todos os conhecimentos no ambiente do ciberespaço, discussão que é aprofundada no capítulo “O Universal sem totalidade: essência da cibercultura”, do mesmo livro em questão. Os conhecimentos organizados e totalizáveis, dos saberes bem delimitados e organizados –a exemplo do revolucionário trabalho de Diderot e d’Alembert em formatoenciclopédico “fechado” – dariam lugar contemporaneamente a uma forma de organização do conhecimento R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 162 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 que passa “definitivamente para o lado do intotalizável, do indominável” (LÉVY, 1999, p.161). Deste modo, não haveria mais pretensão de verdades absolutas: os conhecimentos tornar-se-iam mais maleáveis, e provisórios, organizados de forma muito mais aberta: “uma miríade de pequenas totalidades, diferentes, abertas e provisórias, secretadas por filtragem ativa, perpetuamente reconstruídas, pelos coletivos inteligentes que se cruzam” (LÉVY, 1999, p. 161). Aqui temos novamente uma visão bastante otimista do ciberespaço, em que os usuários são capazes de colaborar ativa e criticamente na construção de saberes. Paralelamente a essa possível renovação nos métodos de organização de informações e saberes, o autor do texto menciona “a frivolidade do esquema da substituição” de uma tecnologia por outra. E exemplifica falando da função cumprida pelo telefone, que não impediu as pessoas de se encontrarem fisicamente, uma vez que o mesmo é utilizado, inclusive, para marcar encontros. E distende o raciocínio para os novos meios de comunicação, como o correio eletrônico, que se trataria apenas de mais uma ferramenta, um meio de comunicação. Tal discussão também se aproxima daquele antigo e recorrente receio da raça humana, mencionado por Umberto Eco, de que o novo substituiria (e “mataria”) o velho: Mais de um milênio depois Victor Hugo, em O Corcunda de NotreDame, mostrou-nos um padre, Claude Frollo, apontando seu dedo primeiro para um livro e, então, para as torres e as imagens dessa amada catedral, dizendo “ceci tuera cela”, isso matará aquilo. (O livro matará a catedral, alfabeto matará imagens). (ECO, 1996. s.p.) O argumento de Lévy, que parece plausível, trata o texto lido em tela de um computador ainda como texto, uma vez que ocorre (pelo menos por enquanto) somente uma mudança no suporte de difusão. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 163 Nesse contexto, o autor menciona uma possível modificação na “ecologia cognitiva” (LÉVY, 1999, p. 162) das pessoas, justamente por conta dessa mudança na maneira de se produzir conhecimentos. E cita o exemplo da memória artificial (externa) que historicamente substitui técnicas tradicionais de memorização (internas), próprias de sociedades ágrafas. Estaríamos, portanto, diante de uma possível tecnologia que mudaria as estruturas cognitivas das pessoas, por propor novas formas de encarar os dados culturais. Deste modo, a própria educação colocaria o atributo da memorização em um plano secundário, uma vez que os repositórios de conteúdos em rede funcionariam como uma espécie de memória externa ancilar. Partindo dessas discussões, Pierre Lévy trata, por fim,da simulação como nova forma de conhecimento propiciada pela cibercultura e que ocupa lugar central na mesma, por sua pretensa capacidade de ampliar a imaginação individual das pessoas, propiciando um “aumento da inteligência coletiva” (LÉVY, 1999, p. 165). No entanto, o autor também menciona, neste processo de maturação do ciberespaço, o possível sentimento de desorientação, que precisa ser contornado a partir do desenvolvimento desta mesma inteligência coletiva, que trata da “utilização otimizada e a criação de sinergia entre as competências, as imaginações e as energias intelectuais” (LÉVY, 1999, p. 167), igualmente de responsabilidade dos atuais sistemas educacionais. Deste modo, o autor encerra a discussão com recomendações para que as políticas educacionais considerem as modificações propiciadas pela interconexão de computadores do planeta, o que ainda permanece como um desafio em nossos tempos, mesmo depois de mais de uma década de sua publicação. A questão que permanece é como pensar no uso das novas tecnologias como ferramentas que possibilitem não apenas facilitar o acesso a repositórios de conteúdos, mas que permitam realizar abordagens diferenciadas das mesmas, concretizando o R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 164 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 aumento da inteligência coletiva, almejado por Lévy. Não nos cabe, portanto, a simples defesa ou condenação das novas mídias na atualidade, mas sim a tarefa de trazer à discussão o papel de sua utilização educacional consciente, crítica e eficiente: o que ainda precisamos construir. Referências BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Abril, 1972. ECO, Umberto. Da Internet a Gutenberg. 1996. Disponível em: http:// www.inf.ufsc.br/~jbosco/ InternetPort.html. (Trad. João Bosco da Mota Alves). Acesso em 17 ago. 2013. LÉVY, Pierre. A nova relação com o saber. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 157-167. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem understanding media. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2011. VIRGIL, Johnny. A Biblioteca de Babel: uma metáfora para a sociedade da informação. DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação. Rio de Janeiro v.8. n.4. ago. 07. Disponível em: http://www.dgz.org.br/ago07/ F_I_art.htm. Acesso em 22 jul. 2013. MORAN, Jose Manuel. Os novos espaços de atuação do educador com as tecnologias. 2004. Disponível em: http://www.eca.usp.br/moran/ espacos.htm. Acesso em 26 ago. 2013. Notas 2 O artigo de Johnny Virgil, “A Biblioteca de Babel: uma metáfora para a sociedade da informação” faz um paralelo da sociedade da informação e o realismo fantástico presente no conto de Borges.Disponível em: http://www.dgz.org.br/ago07/F_I_art.htm. Acesso em 22 jul. 2013. 3 O Projeto de aquisição e distribuição de tablets, pelo Ministério da Educação / FNDE é exemplar neste caso: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view= article&id=17479. Acesso em 15 jan. 2013. 4 O artigo do Professor José Manuel Moran, “Os novos espaços de atuação do professor com as R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 165 tecnologias”, atesta contexto muito semelhante ao descrito no início deste artigo, em que se coloca o desafio de integrar o uso da internet e das novas tecnologias para finalidades pedagógicas. 5 Disponível em: http://www.inf.ufsc.br/~jbosco/ InternetPort.html. Acesso em 17 ago. 2013. 6 Conforme informações do Ministério da Educação disponíveis em: portal.mec.gov.br/ index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=13844&Itemid=. Acesso em 26 ago. 2013. 7 Porém, o autor declarou, em entrevista no ano de 2011, ter adquirido um iPad e apreciado algumas vantagens do aparelho em relação aos livros impressos. Disponível em: http:// revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2011/12/umberto-eco-o-excesso-de-informacaoprovoca-amnesia.html. Acesso em 22 jul. 2013. 8 Marc Prensky, que consagrou o conceito de nativo digital, aponta para uma renovação não apenas nas ferramentas tecnológicas, mas também nos métodos de aquisição de conhecimento. 9 Já para Marshall McLuhan “‘o meio é a mensagem’, porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas” (McLuhan, 2011, p. 23). 10 Informações disponíveis na página do Painel de Controle do MEC. Disponível em:http:// painel.mec.gov.br/painel/detalhamentoIndicador/detalhes/pais/acaid/20. Acesso em 20jul. 2013. 11 Disponível em: http://www.oecd.org/pisa. Em outra avaliação, realizada pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU), o Brasil ficou em penúltimo lugar, entre 40 países avaliados. Cf. notícia disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/ 121127_educacao_ranking_eiu_jp.shtml. Acesso em: 20 jul. 2013. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 166 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 A IDADE LÍRICA1 (TRÊS MOVIMENTOS) THE LYRIC AGE (THREE MOVIMENTS) José Javier Villarreal (UANL-MX)2 Tradução: Tieko Yamaguchi Miyazaki Por uma nova anunciação O roçar apenas, simplesmente a pena sobre a realidade do mundo. A pena última do arcanjo que, em seu voo detido, revela uma anunciação, descobre um arquipélago: a física do milagre. Talvez a leitura do “segredo manifesto”, de que falava Goethe. 1 Videoconferência proferida para o Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da UNEMAT, Câmpus de Tangará da Serra, Mato Grosso, em 14-junho-2013. Ela faz parte de um texto maior que leva o mesmo título: The lyric age (three moviments). 2 Poeta, professor da Faculdade de Filosofia y Letras (FFyL), da Universidade Autónoma de Nuevo León (UANL), Monterrey, México. [email protected]. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 THE LYRIC AGE (THREE MOVIMENTS) 167 A rápida e transmutada presença do paraíso na ordem cotidiana. Imagens que demandam a continuidade do ato poético na dinâmica construtora que exige. O acontecer do poema é um ponto de fuga, uma realidade que procura – imediatismo memorioso – a expressão que a delate e nomeie, o ângulo epifânico do instante que mal ocorre e já se foi. Para Junichiro Tanizaki “ o belo não é uma substância em si mas somente um desenho de sombras, um jogo de claro-escuro produzido pela justaposição de diferentes substâncias.” Dante, no final do Canto XXIV do Purgatório, confessa: “E senti´dir”. E este “senti dizer” não chega a ser ouvido na física do aparente. Seu eco prolonga uma sonoridade pelos recintos do intelecto, da razão imaginativa que vê, cheira, degusta, toca e ouve as coisas que são verdadeiras dentro da alma. Nunca, fora desta. O texto está a serviço da própria transfiguração do relato. Acede-se a uma ordem, a um universo de cuidada harmonia. O poema inclina sua balança. Mais que apresentar pode optar por um encômio em que a sugestão e a evocação fundem seus territórios, reinos revestidos por uma auréola em que o mistério se nos apresenta por meio de uma lógica que emana de sua própria natureza. Esta revelação delimita e propõe seu próprio espaço, sua natural geografia. Borges, em sua sapiência, chegou a dizer que não passava um dia em que não estivéssemos, pelo menos, um instante no paraíso. E é verdade. Mas o paraíso, sendo deste mundo, enfrenta e resiste ao curso implume, não imaginativo, desapaixonado, a que temos reduzido a nossa realidade. Todo milagre, por fugaz que seja, nos evoca um cenário. Este paraíso, produto do milagre cotidiano, dá temperatura e cor à realidade, detém-na, torna-a visível, outorga-lhe uma expressão: a poetiza. Esta aproximação a que obriga a experiência poética tem como princípio básico – nas palavras de san Juan – romper “as teias deste doce encontro”, efetivar a comunhão como natureza dada. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 168 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 A necessidade de habitar o paraíso torna-se imperiosa. Não basta a invocação, não basta vê-lo. É necessário ocupá-lo, percorrê-lo, viver nele. As potências da vontade criadora não só provocam na criança imaginar que brinca que é um cavaleiro enfrentando um descomunal gigante, mas também no seu canto lúdico, em seu ver com os olhos fechados, o eucalipto do quintal sofre uma metamorfose que resulta num desproporcionado inimigo. Que a espada rústica, cujo fim é puramente ornamental, não possua a limitação de instigar borregos, mas ostente o fio justiceiro de Colada ou Tizona. Ou seja, a criança não imagina brincar, habita seu próprio jogo. O quintal se tornou um bosque onde espreita o perigo e a glória. Tanto assim é que, quando a mãe o chama para o banho, ele não só não consegue ouvi-la como já é um habitante do crepúsculo. “Os antigos” – explica José Lezama Lima – “resgatavam a luz do crepúsculo da luz do sol. Eis aí a atração do crepúsculo para o rio criador, e também para o passeio.” E que passeio mais revelador que o empreendido por Francisco de Aldana em sua Fábula de Featonte, no século XVI. Aldana, como Dante, Garcilaso e, depois, Góngora, também quer habitar seu próprio jogo, seu próprio paraíso recobrado, seu quintal. Como já antes o haviam feito Teócrito, Longo e Virgílio. O poeta nos confessa ao princípio de seu canto: Triste pienso cantar de ti, Featonte, y hago un duro ejemplo de mí mismo, pues el tuyo y el mío fue un mismo ejemplo, una misma caída, un mismo daño. ¿Quieres, Featonte, ver si es como digo? Tú, por querer subir tanto el deseo, del cuarto cielo a la primera madre veniste a dar, y entre mil turbias ondas paraste al fin lleno de fuego ardiente; yo, por querer subir el deseo tanto, de la más alta cumbre de mi suerte vine a parar, lleno de ardiente fuego, en las corrientes ondas de mis ojos, tal que ya me desea la madre antigua. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 169 Esta capacidade de ver, sofrer, fruir a realidade, a partir do assombro sempre apaixonado, é parte fundamental da criança. Estágio este – a inocência - que a criança comparte com o bemaventurado. O jogo transfigura não somente a realidade e seu tempo, como lhes confere plurais significados. Cada jogo, como cada visão, não se repete. Cada tarde – espaço temporal do prodígio – única. A nostalgia do perdido, o aguilhão do desejo se completam, se preenchem diante do milagre realizado. Essa tarde já é nossa, esse lugar deixou de ser um lugar para converter-se n’o lugar’. De alguma ou de outra maneira todo poeta é um exilado. Um sozinho que luta diante do adverso para fundar seu reino perdido. Um perdido de seu lugar que ao sublimá-lo o amplia e o enobrece. José Saramago, em seu Ensaio sobre a cegueira, esclarece que os olhos são somente um instrumento de que se serve o cérebro para ver. Também nos fala de uma cegueira sumamente particular que consiste no não reconhecimento da realidade pelo cérebro. Isto é, o instrumento – os olhos – está em condições perfeitas para cumprir sua função; entretanto, o cérebro perdeu sua memória óptica e não pode reconhecer - ver - a realidade que o circunda. Por outro lado, T.S. Eliot, falando de Dante, nos diz que o homem foi perdendo sua capacidade visionária para conformar-se, tão somente, com o mais evidente, e não sempre mais próximo. É como se o homem tivesse perdido um sentido e o cérebro não reconhecesse o ritmo último das coisas e dos seres. Assim se poderia entender “o segredo manifesto”, assim se poderia compreender a capacidade visionária do poeta, do profeta, do herói – como sonhou Carlyle. Aquele que, sim, pode revelar e revelar-nos sua realidade mais certa. A visão vai de mãos dadas com a apreensão do milagre, e o milagre sempre nos dará sua porção de paraíso. Borges, como em tudo, tinha razão. Há que recobrar essa memória visionária e fazer valerem as habilidades imaginativas que jazem dormidas em nosso cérebro. Há que atrever-se a contemplar dentro da alma, arriscar na empresa de recobrar o paraíso aqui na terra. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 170 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 O exercício lúdico é uma atividade em que as chamas da paixão não só iluminam o entorno percebido, como o transformam. A paixão aguça esse outro sentido com o qual abarcamos a realidade desejada ou padecida. Assim, do ver uma realidade passamos a contemplá-la. Thomas Carlyle, antes já citado, apontava que a linguagem – a fala – transpassada pela paixão se tornava canto. A realidade cantada pelo poeta, como a realidade transmutada pelo sentido lúdico da criança, como a visão sofrida pelo místico assinalam a transfiguração, desvelam “o segredo manifesto”, de Goethe, as capacidades fundantes da criança e os arcanos revelados da fé. Essa outra realidade que se tornou alheia, precisamente, pela cegueira, pela falta de memória, pelo desconhecimento em que nos movemos tateantes e inseguros e que, desgraçadamente, se tornou costume, uma condição empobrecida de nosso estar no mundo. Daí a necessidade urgente do arcanjo, de seu voo detido, da transubstanciação a que obriga o visionar a realidade a partir dos próprios fogos da paixão. Ou seja, de uma nova e permanente anunciação. O poema e seu leitor Thomas Stearns Eliot, em seu ensaio “A mente moderna”, escreveu: “O que o poeta experimenta não é a poesia, mas o material poético. Escrever um poema é uma ‘experiência’ original, a leitura desse poema pelo autor ou outra pessoa é coisa distinta.” Para o poeta é fundamental desenvolver sua “perícia” para detectar e entesourar os materiais que lhe permitam, dado momento, abrigar a possibilidade de elaborar um poema. Esses materiais em si mesmos não são poemas nem a poesia. São apenas a matéria prima de algo que, no final das contas, pode chegar a constituir um poema, uma expressão. O poema, como fenômeno estético logrado, contém e, ao mesmo tempo, ultrapassa tais elementos. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 171 Tais materiais são processados por meio da composição durante o trabalho criativo, e esta os transforma em tal grau que os torna, fora da constelação expressiva que o poema estabelece, não somente irreconhecíveis mas ainda carentes de todo possível significado. Esses materiais poéticos obedecem a uma sensibilidade receptora, a um conhecimento moral, ético e estético rigoroso que o poeta vai desenvolvendo. Às vezes, com sua época; às vezes, de costas para ela. A época não só se manifesta através de um estilo, de um gosto reconhecível e abordável por uma comunidade, como impõe, também, a lente através da qual deverão ser percebidos e, portanto, apreciados os materiais poéticos que a realidade oferece. Temos, por conseguinte, um gosto poético determinado e temas que lhe são afins. Estamos aqui no plano da fantasia, do “bonito”, do inofensivo; daquilo que nos libera de todo compromisso. O sentimento parece ser genuíno; entretanto, carece de expressão, já que esta foi imposta, aprendida. O sufocamento da expressão de uma sensibilidade não pode ser maior nem mais sutil por parte de uma ideologia censória emanada das diferentes balizas de poder. Assim, pois, toda atividade artística que escape desse gosto ou estilo é, em si mesma, um ato de resistência diante da rotina que tem por objeto negar a paixão e reprimir a imaginação pela sua imperiosa carga tanto geradora como transgressora. Alcançamos, obviamente, nesse ato de resistência, o plano da paixão, da imaginação, do compromisso. “O amor por algo consiste na compreensão de suas perfeições”, diz Pound que diz Spinoza. O fenômeno estético não se conforma com pouco, exige a beleza, aposta mais na compreensão do que no mero entendimento. Dylan Thomas, numa conversa, advertiu: “Seja o que for, a poesia nunca estriba na forma comum de falar. Baseia-se na maneira insólita de dizer as coisas.” Esta “maneira insólita de dizer as coisas” revela uma relação amorosa, um enamorar-se dos objetos nomeados. Nesse R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 172 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 sentido todo poema é um ato de amor. Um ato de amor da linguagem pelas coisas, já que ao nomeá-las – de maneira insólita – as distingue do acontecimento anônimo, lhes outorga um valor insuspeitado para o uso cotidiano. Poderíamos conceber, portanto, o poema – afirmou Paz – como uma erotização da realidade através da língua que a canta. Por meio da obra artística não só conseguimos expressar uma emoção, como ao formulá-la revisitamos a realidade nomeando e apropriando-nos daquilo que até esse momento não só carecia de nome, como diria Eliot, como também de existência, como postulava Lezama. Por meio do padecimento – estado cognitivo a que a paixão obriga – a realidade se revela e, ante tal epifania, o compromisso do homem – consigo mesmo e com a realidade – é irreversível e impostergável. Portanto, essa “maneira insólita de dizer as coisas”, a que alude Dylan Thomas, se converte na maneira insólita de viver as coisas, de vivermos entre as coisas. A experiência de escrever um poema – lembra-nos Harold Bloom – pressupõe uma má interpretação, primeiro, de outro poema, e, segundo - diria eu - da realidade. É um fingimento porque implica outorgar expressão a algo que não a tem. É então um tornar insólito, um estranhamento, uma mise-en-scène, uma representação. Logo, uma presentificação. O assunto ou os assuntos que puderam motivar a sensação poética, que, sem serem poemas, deram início ao tempo ou processo do poema, ficaram neste transmutados, irreconhecíveis, falseados para toda mente, inclusive a do próprio autor que – agora – se converteu em leitor. Ao não nos confundirmos com o poeta, que é o sujeito que constrói o texto e que deixa de sê-lo quando o conclui, o leitor se dilui na voz, ou vozes que suportam o cantado. O deslocamento do leitor é o movimento do próprio poema. Sua respiração será regulada y ritmada pela própria musicalidade que o verso imponha. Thomas Carlyle sustenta que o canto é a linguagem traspassada pela paixão. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 173 A paixão desata os diques da imaginação, e a imaginação transfigura a realidade a partir do apaixonamento. Temos então uma realidade revisitada, refundada, compreendida. Compreensão que comporta um compromisso com o mais próximo; ou seja, conosco mesmos. Xavier Villaurrutia, em “Noturno da estátua”, nos presentifica, de uma maneira singularmente didática, esta condição, bastante dinâmica, do leitor: Correr hacia la estatua y encontrar sólo el grito, querer tocar el grito y sólo hallar el eco, querer asir el eco y encontrar sólo el muro y correr hacia el muro y tocar un espejo. Entretanto, a imagem que nos devolve o espelho está longe de ser um reflexo puramente ideológico. Não obedece à idéia que possamos ter de nós mesmos, obedece aos componentes emocionais e sentimentais que nos conformam. A leitura de um poema será “a maneira insólita” de nos vermos, de visionarmos por meio do continente passional que nos conforma. ¡Oh cristalina fuente, Si en esos tus semblantes plateados Formases de repente los ojos deseados Que tengo en mis entrañas dibuxados! Confessa san Juan de la Cruz, situando-nos em um estágio de comunhão a partir da leitura que fazemos de nós mesmos ao ler o poema. Há um reconhecimento que se ativa por meio do que se poderia denominar memória lírica, que desperta diante da provocação que o poema suscita no leitor. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 174 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Esse botim ou memória lírica a partir da qual os lugares se tornam histórias – como diria Lope - determinou aos homens uma posição diante do mundo, diante da vida. A cotidianidade foi surpreendida pelo milagre, pelo êxtase que permite a contemplação do instante. Contemplação que é possível graças ao arroubo, à própria aplicação cuidadosa de quem contempla. Ao visionar a realidade – o homem – deixa de vê-la para padecê-la; funde-se a ela. O visionário, ao nos dar notícia do milagre, tensiona o tom do poeta. O poeta se coloca assim na órbita do sagrado. Isto, em todo tempo, mas de forma premente no nosso século, reveste a definição, volitiva e geradora, de um verdadeiro ato político, mas de um ato político como se compreendeu e se transmitiu ao longo do Antigo Testamento; como uma revelação de um caráter coletivo, nacional. O exílio a don Alfredo Garcia Vicente Pode parecer que, de uma ou outra forma, o poeta sempre é um tipo de exilado com relação a uma maioria que o rodeia, mas não o atinge e menos o compreende. A própria situação de exílio é complexa. Há os que se exilam sem sair, não somente do perímetro que chamamos pátria, mas da própria cidade em que nasceu. Foi o caso do checo Jaroslav Seifert ou do cubano José Lezama Lima. Há outros expulsos violentamente, sem outra alternativa, com risco de sua própria integridade física. Foi o caso de Ovídio, no século primeiro de nossa Era; ou de Garcilaso, a princípios do século XVI, em pleno Renascimento espanhol. Os dois poetas haviam perdido as graças do imperador. O primeiro, de César Augusto; o segundo, de Carlos V. Há também aqueles que se exilam de sua própria língua, de sua própria tradição. Como poderia ser o caso do peruano César R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 175 Moro ou do espanhol Juan Larrea que decidem, em certo momento e levados por uma urgência expressiva, abandonar o espanhol e cultivar o francês – como foi o caso desses dois poetas – como língua para o seu trabalho poético. Não esqueçamos aqueles que abandonam por vontade própria seu espaço nacional. Penso em Murilo Mendes que deixa o Brasil para radicar na Itália e morrer em Portugal; ou em T.S.Eliot que abandona sua St.Louis natal, nos Estados Unidos, para mudar-se, de maneira permanente, para a cidade de Londres, assumindo – inclusive – a nacionalidade britânica. Há os extremos, aqueles que se exilam até de si mesmos, como poderia ser o caso de Hölderlin, a princípios do século XX. Não nos esqueçamos daqueles outros que se vêem exilados pelos críticos da história literária nacional, para serem logo não só readmitidos como canonizados pela academia do turno. Pensemos em William Shakespeare, para a língua inglesa, e em Luís de Góngora, para a espanhola. Tanto Shakespeare como Góngora serão esquecidos e, obviamente, menosprezados em sua valia estética. O romantismo de Víctor Hugo reavaliará o primeiro, e a modernidade de Mallarmé, o segundo. O exílio, então, pareceria ser uma condição sine qua non do poeta. Nada mais longe da realidade. Alargando mais ainda a cartografia, não já do que entendemos mas do que conseguimos compreender com o termo exílio, poderíamos acarinhar o longo e sinuoso corpo de uma serpente bicéfala que suporta, inexoravelmente, duas cabeças que correm para a mesma direção: a da distância e a do tempo. Por um lado, a intempérie e a distância em que se situa o exilado obedecendo ao seu deslocamento, tanto físico como psicológico, em direção ao centro ou em direção à periferia, com relação a um continente que deixou, precisamente, de contê-lo e agasalhá-lo. A distância do exilado, sua lonjura, não é somente de caráter geográfico e cultural, mas também psicológico, sentimental. Tal distância lhe permitirá uma perspectiva de estranhamento com relação à realidade contemplada. Realidade que estará conformada tanto pela nostalgia de um paraíso como pelo assombro diante de um presente cotidiano R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 176 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 que resiste a ele, que lhe é alheio no seu entendimento. Por outro lado, mas pertencendo ao mesmo corpo, mencionamos o tempo do exilado. Um ontem que o assalta constantemente e condiciona a percepção de um presente que, poucas vezes, consegue oferecer-se como um espaço seguro. Já que a realidade do presente será sempre alcançada pela idealização do passado ou pela interrupção, nunca ressarcida, que emana desse passado. Será um tipo de pentimento em que o apagado, o interrompido, isto é, o passado, aquilo que se viveu no primeiro traço na tela, transmutará e modificará o presente: aquilo que está vivendo, pintando na tela, ao aparecer subrepticiamente no novo quadro: Cuando tiempo y distancia Engañan los recuerdos, ¿Quién lo ignora?, es amargo Volver. Porque interpuesto Algo está entre los ojos Y la imagen primera, Mudando duramente Amor en extrañeza. Luis Cernuda nos confirma neste fragmento de seu poema “Hacia la tierra”, de seu livro Como quien espera el alba (1941-1944). Texto onde já se infiltra, de maneira categórica, a experiência do exílio. O poeta, porque é dele que estamos falando, refunde sua experiência e condição de exilado em seu projeto criativo, em sua ingovernável poiesis. Sabemos de seu exílio pela crônica histórica. Sabemos de seu exílio, somente através de sua obra. Octavio Paz, em um de seus livros imprescindíveis: Cuadrivio, ao referir-se ao poeta português Fernando Pessoa, escreveu: “Os poetas no têm biografia. Sua obra é sua biografia.” A frase é todo um achado da reflexão, da inteligência crítica de seu autor. Penso em três artistas da poesia do R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 177 século XX. Ezra Pound, Herman Broch e Jorge Guillén. As três experimentaram o exílio. Os três se viram expostos a diferentes circunstâncias vitais. O primeiro, foi declarado traidor da pátria – como que Dante no século XIV- pelo governo de seu país e confinado num sanatório mental em Washington, em que escreveu “Os cantares de Pisa”, parte nuclear de sua obra Os cantares. Elizabeth Bishop escreveu um melindroso e belo poema sobre isso. O segundo, foi detido y preso pela Gestapo quando – à semelhança de san Juan de la Cruz nas celas da inquisição – concebe a gênese de seu poema narrativo A morte de Virgilio. O terceiro, na Guerra civil espanhola, logo abandona sua cátedra na universidade de Sevilha, e se estabelece nos Estados Unidos. Isto não interrompe, absolutamente, a sua produção em marcha: Cântico, que, desde 1928, irrompia na lírica de língua espanhola. Pound, quase quinze anos depois e uma vez tendo “alta”, volta para a Itália; à Itália dos poetas toscanos do século XIII. Broch não regressa mais para a Alemanha, morre em New Haven sonhando os últimos dias de Virgilio. Jorge Guillén, ao final de sua vida, regressa, depois de uma longa ausência, à Espanha para receber as homenagens mais elevadas e merecidas pela sua luminosa e transparente obra. O que esses autores têm em comum – para mim como leitor – não reside somente no fato anedótico de que tenham sofrido desterro, perseguição e cárcere; mas na capacidade criativa que manifestaram para dar-lhe, ao referido acontecimento, expressão artística; ou bem, para entesourar essa experiência – por intensa que ela tenha sido – como material poético para a edificação de um objeto estético que denominamos poema. Mas aqui convém pontuar o seguinte para evitar equívocos ou interpretações equivocadas. Se o poeta – nas palavras de Paz, que viveu longas temporadas fora do México – não tem biografia mas obra, seu projeto de obra será seu projeto de vida como afirmou Pierre Reverdy – outro que sentiu a urgência impostergável do recolhimento e optou por viver em solidão consigo mesmo, como faria no século XVI frei Luis de León. Paz também escreveu que somos o que fazemos e não o que pensamos que somos. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 178 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Entretanto, o exílio, a partir desse concerto que são as Epístolas do Ponto, de Ovídio, foi-se convertendo em tema literário. E como tema está vazio, precisamente, porque carece da presentificação, porque o silêncio não se rompeu, porque o indizível não se pronunciou, porque o inexistente não se manifestou, porque a linguagem ainda não se enamorou do universo que está para ser nomeado. Ou seja, é somente um tema literário, uma casca gorada, calcificada por todos os tópicos, frases feitas e fórmulas que se foram cunhando ao longo de seu repertório. Uma espécie de crosta conformada – como toda crosta – por células mortas que nos impedem de chegar à medula, à palpitação viva que todo poema é. E nos situa, pelo contrário, em uma horizontalidade de índole superficial, onde cabem todas as boas intenções, em que o poema é reduzido a um meio que, em geral, obedece a uma emoção cujo caráter fácil se esgota, precisamente, no tema – no vazio – e não na presentificação que encarnará o raio do vertical. É inegável que o poema somente pode estar a serviço de si mesmo. A arte não é amoral, é terrivelmente moral. Sua moral descansa na congruência de sua natureza subversiva, em sua força liberadora, no Eros que todo poema destila através da linguagem. Nesse encantamento que nos isola e nos distancia, que nos exila – aparentemente – permitindo-nos a distância e o estranhamento necessários que o estado poético exige. Daí a frase, de Harald Bloom, de que todo poema sincero está condenado a ser um mau poema, se confirma, já que não se estabelece nem o distanciamento nem o estranhamento que a imagem poética exige. Ao contrário, a proximidade e a sincera objetividade da emoção fazem com que o poema se desconjunte e deixe de sê-lo para converter-se em um panfleto que obedece a uma moral de valores alheia ao poema. Estamos falando de uma literatura ideológica em que o tema é o embasamento que sustém e outorga valor ao texto. Estamos, pois, ante uma literatura do exílio, diante do compromisso imediato, mas não urgente que obedece ao tempo e à distância da expressão poética. Há que diferenciar muito bem R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 179 duas situações que com freqüência se confundem. O imediatismo da encenação e a urgência da presentificação. Por um lado, a encenação – no poema – fica só na descrição ou no retrato de uma realidade imediata (o exílio, a perda) que dispara, mas não sustenta o poema. Por outro lado, está a presentificação que não busca nem a descrição nem o retrato de uma realidade imediata, mas a consumação de uma realidade sentimental, apaixonada, que conforme o poema, que seja o poema em sua absoluta resolução. O tema, qualquer que ele seja, nunca foi finalidade de poema algum; ao contrário, a presentificação, que é e faz o poema, e sempre problematiza e se opõe ao repertório circundante, invariavelmente tem condicionado e fixado seu próprio tema. Por outra parte, o exilado, também, se converteu em uma personagem literária, tendo seu máximo representante na figura de Ulisses da Odisseia homérica. Ao descrever isso penso em dois filhos que se opõem e resistem e, ao mesmo tempo, continuam o modelo homérico: Dante o viajante, na Comédia; e Leopold Bloom no Ulisses, de Joyce. Isto leva a colocar-me o seguinte. Temos poetas que viveram no exílio, não importa a causa, cujas obras se iniciaram em casa – para dizê-lo de alguma forma – e foram continuadas e concluídas fora dela. Obras em que a experiência anedótica se converteu em material poético – não em poesia – que propiciou a consolidação plena e autônoma do poema como objeto estético, redimensionando assim o ato mesmo da criação. Já que cada poema é em si um acontecimento único que não se pode repetir, que põe à prova todas as capacidades do autor, sejam estas de natureza emocional ou intelectual, mas sempre asseguradas pelo pressuposto da paixão. E não somente do autor, mas também de sua língua, em uma memória viva e explosiva que Joseph Brodsky qualificava com o nome de Musa. É aqui que volto aos meus exemplos: Os Cantares, de Ezra Pound, A morte de Virgílio, de Hermann Broch e Cântico, de Jorge Guillén. Como não computar nessa paupérrima enumeração de obras máximas realizadas no e contra o exílio A realidade e o desejo, de Luis Cernuda; com certeza um dos livros chave da lírica do século R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 180 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 XX, e não se diga da poesia em língua espanhola. Poemas em que a acumulação do vivido – e por vivido entendo tudo, absolutamente tudo, tanto social como íntimo, tanto sonhado com os olhos fechados como imaginado em vigília – encontra sua justa e alta expressão na consumação que é o poema (contenção e corpo da poesia): sinal inequívoco, este último – a poesia – de nossa humanidade. Nada mais distante do exílio estóico, que reclama o mundo como pátria, que a expressão poética com seu tremendo realismo e seu amoroso apego ao particular. Já que o canto – lembremos – é linguagem atingida pela paixão. A paixão, então, nos obriga à imaginação. A imaginação nos leva à contemplação. A contemplação problematiza, em sua agudeza e tremenda clareza, a realidade contemplada com os sentidos da alma. É então que tomamos consciência de nosso estar no mundo. Pode parecer, paradoxalmente, que os exilados são os outros e não o que canta. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 181 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 182 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 OS JOGOS COMO UMA DISCIPLINA HUMANÍSTICA1 GAMES AS HUMANISTIC DISCIPLINE Tamer Thabet (BrockUniversity-Canadá)2 Tradução: Helvio Moraes Talvez sejamos, de fato, as testemunhas – ou os artesãos – de certa morte, a morte da arte de narrar, da qual decorre a morte da narrativa em todas as suas formas... Talvez seja necessário, apesar de tudo... continuarmos a acreditar que novas formas de narrativa, que ainda não estamos aptos a identificar, já estejam em processo de nascimento... Pois não temos ideia do que poderia ser uma tal cultura, na qual não se soubesse mais o significado de narrar. (Paul Ricoeurapud Fleishmanvii) 1 Palestra proferida no Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra, em 2013. 2 Doutor em Literatura pela Universidade de Antuérpia, Bélgica. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 183 Enquanto as histórias nos fazem experimentar mundos possíveis e impossíveis, fazemos delas o objeto – e, talvez, a vítima – de nossas interpretações pessoais. Reais ou ficcionais, as histórias são, talvez, o mais humano de todos os produtos; somos a única espécie que conta histórias. Temos lido, assistido e ouvido histórias e, agora, podemos jogá-las. Os video games podem nos fazer viver histórias de forma virtual. Esta palestra é sobre o que significa jogar a história, e sobre o que acontece quando você – pessoalmente -é arrastado para este mundo. A outra questão concernente a este trabalho diz respeito à crítica: o que significa, neste momento, a crítica, uma vez que nos acostumamos a contar e a perceber nossas histórias de forma interativa, dentro de um mundo virtual e computadorizado. Não somente aqueles que jogam deveriam se preocupar em dar respostas a estas questões, mas também os que pensam, contam, escrevem, desenham, projetam e educam no campo dos video games.No que segue, a ficção de video game é apresentada como uma experiência psicológica personificada, um processo de produção de sentidos que permite ao jogador redescobrir seu próprio tema de identidade. A estrutura narrativa do jogo 1.1 –Relacionar taxomicamente os video games a outras formas ficcionais. Neste ponto, podemos determinar que os video games podem ser dispostos em meio às narrativas representacionais. 1.2 – Explicar a divisão habitual dos textos narrativos em três níveis. 2 – Falemos agora sobre a Narração nos jogos: 2.1 – Narrador e voz: o narrador é um agente narrativo metafórico e antropomorfizado detectado por marcadores de voz no texto. A função do narrador é contar a história. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 184 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 2.2 – A narração ao longo do jogo: nos video games, a performance do jogador cumpre as funções do narrador. 2.3 – Expressão não verbal: nos jogos, a comunicação narrativa é amplamente não verbal. 2.4. – O narrador cinemático: seção que nos permite estabelecer diferentes conceitos do narrador em filmes e, assim, identificar sua relevância para as narrativas de video game. 2.5 – O narrador impessoal: a teoria de Burgoyne sobre o narrador fílmico nos ajuda a desenvolver o conceito de narração de jogos, além de perceber a inter-relação entre as duas agências narrativas em jogos: o jogador e o Dispositivo de Composição do Jogo. 2.6 – O Jogador-Narrador: O jogador de uma história de video game (co)narra através de sua performance no jogo, que consiste em um número de ações que cumprem a função da narração de forma não verbal, o que significa que as ações do jogador têm um grande impacto sobre como a história é contada, além de serem essenciais tanto à apresentação quanto à criação do discurso. Por um lado, as ações e reações do jogador indicam sua personalidade e projetam uma forma de “expressão subjetiva”, que substitui o conceito de “voz” nas narrativas impressas. Por outro, o controle da câmera, por parte do jogador, é uma função narrativa no sentido cinemático: ele determina o que é apresentado e o que é deixado de fora, além do que é focado e do que é ignorado. 2.7 – O Dispositivo de Composição do Jogo: este é o termo que proponho para a outra agência narrativa nos jogos e que se contrapõe à narração do jogador. O jogador não é o único narrador numa história de video game; o sistema do jogo também narrapor meio de uma agência narrativa mais complexa, que é dominante e, em muitos casos, mais poderosa do que a narração do jogador, uma vez que lhe estabelece limites. 2.8 – A situação narrativa nos jogos: a narração em tempo presente nos jogos cria narrativas simultâneas. Tal situação narrativa R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 185 é caracterizada por um colapso da distância entre o narrador e o focalizador. 3. Quem observa na história de video game? Focalização: 3.1 – O Jogador-focalizador: O jogador de jogos em primeira pessoa personifica o protagonista, adota seu nome, vê através de seus olhos e adquire suas habilidades. No entanto, não sabemos muito sobre a personalidade do protagonista, uma vez que ela se desvanece em relação a (e se confunde com) a própria personalidade do jogador. É o jogador que se torna, de fato, a personagem observável. 3.2 – A presença da personagem: o jogador em jogos de primeira pessoa ocupa o espaço do protagonista, vive a história ao invés do protagonista e, geralmente, torna-se o protagonista. Os Jogos como uma Disciplina Humanística Pessoalmente, considero o termo “game designer” um pouco artificial, além de não abranger por inteiro o fato de que um designer de jogos possa ser um artista, um contador de histórias, um animador e um empreendedor. Proponho que se use o termo “gamewright”3 para se referir aos futuros designers de jogos. Se a jornada do “gamewright” deve começar na sala de aula, os educadores em jogos precisam adotar uma pedagogia focada na ideia de inspirar a criatividade por meio das forças interdisciplinares das disciplinas humanísticas. A imaginação artística não se origina nem floresce no vácuo. Portanto, deveria ser estimulada no estudo da cultura, da arte, da literatura e da condição humana. A primeira coisa que um designer de jogos veterano aconselha é: “Você quer povoar sua mente com uma diversidade de ideias extraordinária e colorida, um grande carnaval de heterogeneidade conceitual. E como R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 186 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 você poderia cumprir essa tarefa? Simples: Leia. Aqui está o maior fracasso de nossos jovens designers” (Crawford, Game Design 99). Ele também ressalta que os melhores designers de jogos como Sid Meiere, Dan Bunten, Brian Moriarty, Gordon Walton, Greg Costikyan e Eric Goldberg são, todos, grandes leitores. O romance de AynRand, Atlas Shrugged (em português, A Revolta de Atlas), publicado em 1957, serviu de inspiração para BioShock4. O contexto histórico e ideológico do romance realizase numa representação surreal de muitas convenções artísticas reminiscentes de seu cenário, tais como o estilo ArtDeco e a evocativa perfor mance melodramática desempenhada por personagens que não jogam. Da mesma forma, Assassin’sCreed5 é inspirado em relatos históricos da irmandade médio-oriental Hashashin, entre os séculos VIII e XIV. É óbvio que o êxito na realização destes dois jogos não está meramente na programação magistral e na modelagem em 3D; os “gamewrights” de BioShock e de Assassin’sCreed foram inspirados pela história, pelas artes, pelos clássicos. Um dos cursos que ministro é sobre a ficção em jogos. Ao lado do típico trabalho em sala de aula e de discussões em seminários, esse curso conta com as “DesignFridays”, em que os alunos se dividem em times de designde jogos (“game design teams”), usando o quadro branco, marcadores, lápis, papel e laptopspara resolver problemas de design de jogos ou resolver problemas usando o design de jogos. O que, de fato, interessa nas “DesignFridays” é a imaginação artística como um processo usado para a concepção de jogos e que precisa ser provocado e continuamente aprimorado, até que a originalidade se torne evidente. Os exercícios de design atribuídos aos alunos baseiam-se na bibliografia discutida em sala anteriormente ao longo da semana, não apenas para colocar à prova a publicação acadêmica, mas também para encontrar inspiração no sentido de aprimorar ideias de jogos, de modo a não cair em clichés ou no gênero exploitation6. Exemplo de um exercício de designatribuído aos alunos é o R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 187 quadroPollice Verso (1872), de Jean-Léon Gérôme. Cada grupo é instado a usar a pintura para encontrar inspiração, analisar, desconstruir, problematizar e, finalmente, aplicar um certo valor inspirado pela obra no desenho de uma personagem, um cenário, um enredo ou uma técnica de jogo. Entender a ficção unicamente no sentido literal da palavra (por exemplo, irreal ou algo imaginado) consiste na desvalorização de uma das criações mais humanas. A ficção é um relato imaginário de eventos e personagens usados para capturar o estado de espírito humano, as relações, e expressa sérias ideias como a esperança, a perda, o amor, os complexos, etc. A ficção cinemática está ainda mais adiantada quanto a histórias, enredos imprevisíveis e caracterização vibrante e diversa, que representa o que é humano na mais ampla extensão de situações e cenários vividamente imaginados. Os “gamewrights” deveriam invejar o sucesso fílmico por trazer os méritos do intelectualismo. O modo de alcançar [tal sucesso] é através da imaginação inspirada, que deveria ser uma prioridade nos cursos sobre jogos. Um design de jogos inovador requer criatividade e imaginação, e nada disso pode vicejar sem a inspiração, daí a imersão nas artes, nos clássicos, nas literaturas. Em termos gerais, isso serve para enfatizar a necessidade de apoiar as forças humanísticas, acadêmicas e interdisciplinares, o que a indústria do jogo nos recomenda fazer nas universidades (Gouglas 48). Referências Crawford, Chris. Chris Crawford on Game Design. Indianapolis: New Riders. 2003, Print. Gouglas, Sean, Jason Della Rocca, Jennifer Jenson, Kevin Kee, Geoffrey Rockwell, Jonathan Schaeffer, Bart Simon and, Ron Wakkary. “Computer games andCanada’s digital economy: The role ofuniversities in promotinginnovation”. Reporttothe Social Science Humanities Research R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 188 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Council. Knowledge Synthesis Grantson Canada’s Digital Economy. 2010. AccessedonDecember 11, 2011. Web. <http://grand-nce.ca/ newsandmedia/news-container/2011/how-important-is-the-video-gameindustry-to-canada-extremely-important.-thats-why-you-should-read-thisreport> Notas 3 Termo de difícil tradução para o português, daí minha preferência por mantê-lo no original. Acredito que faça alusão a “playwright” (em português, dramaturgo). Nesse sentido, seria mesmo algo mais abrangente do que “aquele que projeta um jogo”, pois envolveria também qualidades literárias e artísticas, mais que as meramente técnicas (Nota do Tradutor). 4 Video game em primeira pessoa lançado em 2007 (N.T.). 5 Video game lançado em 2007 (N.T.) 6 O termo “gênero exploitation” é usado geralmente para classificar filmes de baixo orçamento e baixa qualidade estética, que justamente “exploram” determinados gêneros cinematográficos de maior apelo popular, cujos temas se relacionam à violência, ao sexo e ao romance; algo como “filme B” (N.T.). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 189 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 190 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 ENTRE A CRÍTICA E A POETISA: ENTREVISTA DE MARIA LÚCIA DAL FARRA BETWEEN THE POET AND CRITIC: INTERVIEW WITH MARIA LÚCIA DAL FARRA Concedida a Fabio Mario da Silva1 (USP/FAPESP) A Professora Doutora Maria Lúcia Dal Farra, com titularidade pela Universidade Federal de Sergipe e consultora Ad Hoc do CNPq, é um nome consolidado no ensino universitário no Brasil e um nome frequentemente citado em muitos trabalhos acadêmicos no exterior. Suas publicações tornaram-se referências em vários concursos de agregação e provas de acesso a cursos de pós-graduação, como, por exemplo, O Narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira (Ática, São Paulo, 1978) – leitura obrigatória na seleção para o mestrado na área de estudos literários na Universidade Estadual da 1 Pós-doutorando da USP como bolseiro da FAPESP. Investigador do CLEPUL e CEC da Universidade de Lisboa, pesquisador do CNPq. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 191 Paraíba, em 2012 – ou Trocando Olhares (Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1994) – obra obrigatória para as provas de agregação na Universidade de Paris, em 2002. Contudo, em 2012 foi revelada para o grande público uma outra faceta desta crítica que agora se afirma, definitivamente, como escritora, mais especificamente, como poetisa. Apesar de já ter publicado dois livros de poesia anteriormente – Livro de Auras (Iluminuras, São Paulo, 2002) e Livro de Possuídos (Iluminuras, São Paulo, 2002) – é em 2012 que Maria Lúcia Dal Farra ganha projeção nacional, e em todo o mundo lusófono, quando foi galardoada com o prémio Jabuti na categoria de melhor livro de poesia do ano, com a obra Alumbramentos (Iluminuras, São Paulo, 2012). Esta entrevista visa saber como Maria Lúcia Dal Farra crítica vê e se relaciona com sua face de poetisa, bem como compreender as diferenças fundamentais entre sua obra premiada e suas obras de estreia. Como a crítica e os leitores receberam suas duas primeiras obras em verso, Livro de Auras e Livro de Possuídos, e qual a diferença dessa recepção em relação à de Alumbramentos? - A única diferença é que desta vez cheguei até a levar bordoadas... coisa que nunca tinha me acontecido antes. Como a gente fica mais exposta quando recebe um prêmio divulgado e expressivo, as pessoas querem se manifestar, pra bem ou pra mal. Todavia, não desgosto de ser visada desse jeito, uma vez que só assim você pode ter verdadeiramente a dimensão de como se comunica com os seus leitores. O início do seu trabalho como poetisa coincide com o de crítica literária? Se sim, a que atribui essa coincidência; se acaso não, fale um pouco desse processo antagónico. - Não coincide no tempo. Como desde muito cedo leio sem parar, escrevo poesia desde pelo menos o início da minha adolescência. Fui estudar Letras para ver se compreendia o que se R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 192 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 passava comigo, mas ainda não me dei por satisfeita - o que é ótimo, porque não paro nunca. Também não acho que se trata de um processo antagônico, como você sugere. Crítica e produção literária se complementam, e uma não anda sem a outra; aliás, uma se ressente da ausência da outra. Cada vez que estudo um texto alheio fico entendendo melhor aquilo que produzo, aquilo que está nos arredores e no próprio âmago do que me debato para criar. Acho, apenas, que arrumei desde cedo uma maneira de ser absolutamente feliz. O segredo é sempre a gente se manter com disposição de entrar em diálogo com tudo o que encontra – é o que passei a vida ensinando para os meus alunos. Você nunca fica só, porque vive em grande e vivaz comunidade com todos os escritores à mão ou in absentia. Até que ponto a Maria Lúcia crítica se afasta, ou não, da Maria Lúcia poetisa, quando esta cria versos? Ou seja, até que ponto existe a preocupação com conceitos e estilos literários no momento da criação? E, se afastada nesse momento, virá, no entanto, mais cedo ou mais tarde, com a releitura de suas produções? - Penso que a escrita da poesia é o lugar aonde estou mais una na vida. Ali é um paraíso perdido que recupero quando nele me adentro então. Não sou mais só a professora ou a crítica ou a pianista ou a cantora ou a... sei lá mais o quê, pois que sou tantas. O meu leque de pessoas se fecha e ali descansa com toda a carga da inteireza, porque escrevo com absolutamente tudo o que sou, e inclusive com todos os dilaceramentos (que me juntam naquele momento), com todo o gozo e o sofrimento, com toda a ignorância e conhecimento, como se precisasse de mim toda para, em seguida, me despedaçar de novo, para recomeçar esse infindável processo que é o da vida, afinal. A questão que me põe acerca de conceitos e estilos ou coisas oriundas da teoria: certamente estão ali comigo, mas não as seleciono naquele momento como prioridade, simplesmente porque não existe, digamos assim, uma hierarquia que reja a criação, e visto que não domino isso. Elas me chegam, suponho, quando me são R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 193 necessárias para seguir por um ou por outros caminhos. E podem me dizer, como o Zé Régio não gosta que digam – “vem por aqui!”. Acontece que também posso acabar não indo por ali. Tudo é outra coisa e tudo é muito provisório e mutável e errático nessas situações, pois há interferências impensáveis e improváveis – assim como aquilo que o Pessoa chama de “o homem de Porlock”. Ou seja, uma intromissão externa fortuita e repentina que muda totalmente o rumo daquilo que você escrevia. Podemos encontrar nas suas obras várias alusões a outros escritores. Harold Bloom, em A angústia da influência, reescreve à luz das teorias Penfreudianas a história literária do complexo de Édipo; segundo Terry Eagleton, o que Bloom faz é demonstrar que “os poetas vivem preocupados à sombra de um poeta “forte” anterior a eles, como filhos oprimidos pelo pai, e qualquer poema pode ser lido como uma tentativa de escapar dessa “ansiedade da influência” pela remodelação sistemática de um poema “anterior”. Até que ponto esses escritores influenciaram e/ou ajudaram na composição da sua escrita poética? - Suponho que eu seja filha de inúmeros pais, a perder de vista. Ou numa versão pior: que eu sirva a vários senhores e senhoras, e com muito prazer! Mas não me sinto oprimida por eles, ao contrário, eles me deixam sentar no colo, me acolhem no seu regaço, me mimam, me falam ao ouvido. E nem quero me libertar deles, dessa “ansiedade de influência”: quero sofrê-la sempre. Esse é o lugar onde sou mais feliz, como se ainda permanecesse numa infância mítica e gozosa, porque estou sempre aprendendo e ouvindo palavras outras que me botam de uma nova maneira, que me reviram de registro. E é assim: a minha escrita nasce desse contato com a leitura deles. Tenho sempre algo a dizer a respeito do que eles me dizem, e é assim que começa essa infindável e dolorosa delícia que é escrever, e essa camaradagem entre nós, essa cumplicidade, que não leva em conta o tempo ou quaisquer outros tipos de contingência. Estamos todos juntos, laborando no mesmo. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 194 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Depois do prémio Jabuti tenciona se dedicar mais à criação artística, ou continuará empenhada na pesquisa académica? Podemos esperar futuras obras narrativas (contos, romances, novelas) ou você pretende continuar somente com a produção de versos? Seja qual for sua resposta, por favor explicite. - Sempre continuo empenhada na pesquisa, porque, como disse, não divorcio uma atividade da outra. Uma é a fome e a outra é a vontade de comer. Quando estou estudando o faço em meu próprio benefício, portanto. Sou sempre eu quem ganha primeiro. Não penso que serei capaz de escrever um romance, muito embora até quereria transformar a minha experiência de vida em alguma coisa do gênero – mas não ia me conformar em não ser uma Emily Brontë, por exemplo... Tenho muita vontade de escrever um livro de poemas em prosa. Ando matutando a respeito, mas não sei pra que lado vou. Como diz a Florbela, o pássaro está na muda por enquanto. O que Alumbramentos traz de contributo à literatura brasileira contemporânea? Ou seja, quais os aspetos singulares desta obra, em comparação com outras suas contemporâneas, que crê terem contribuído para ser galardoada com o prémio Jabuti? - Aí já é muita pretensão minha falar a respeito, e não sou nem um pouco presunçosa. O livro não passa de uma releitura (no meu diapasão) de muitos autores (cada capítulo indica um, não necessariamente de letras mas também das artes plásticas). Isso parece ambicioso, mas o leitor não tem necessariamente que conhecer a todos esses meus interlocutores porque (espero) cada poema deve falar por si só. Agora, essa história de ganhar prêmio não quer dizer muita coisa. Acho que é um acaso que esse livro tivesse sido galardoado. Fiz parte de vários e diversos júris de prêmios literários e não me iludo – há sempre arbitrariedades e no fundo é sempre um “jeu de dés”, um jogo de azar. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 195 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 196 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Cavalcanti, Hérlon. Xilogravuras do Mestre Dila. Uma Visão Poética do Nordeste. 2.ed. Caruaru: Edições Fafica, 2011. Fabio Mario da Silva1 (USP/FAPESP) Falar de xilogravura é relembrar a complexa relação entre poesia e pintura, ou mais precisamente, a famosa expressão horaciana “Ut pictura poesis”2 que tem gerado algumas incongruências na sua interpretação. Primeiro, por se entender que tal como a poesia é a pintura; ou, então, que esses dois campos artísticos estarão ligados (o que não deixa de ser verdade) como um mesmo tipo de composição. Mas de fato o que Horácio defende é que o modo como se observa e se admira uma obra pictórica deve ser o mesmo como para com o texto poético. Neste sentido, a relação da xilografia com os versos de cordel aponta, por um lado, para a harmonia com que estas duas formas de arte cooperaram ou se inspiraram efetivamente uma na outra; por outro, a maneira como o leitor/observador deve apreciálas, num mesmo patamar de qualidades artísticas. 1 Pós-doutorando da USP como bolseiro da FAPESP. Investigador do CLEPUL e CEC da Universidade de Lisboa, pesquisador do CNPq. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 197 Neste sentido, Hérlon Cavalcanti assume a responsabilidade, através da sua sensibilidade enquanto poeta, de dar visibilidade a um dos grandes vultos da cultura tradicional pernambucana: Mestre Dila (José Soares da Silva, Pirauá, 23 de setembro de 1937) que foi o precursor, ainda na década de sessenta do século XX, da técnica xilogravurista ao criar a chamada linogravura, que, como elucida Cavalcanti, é um processo que utiliza “lâminas de borracha vulcanizadas, numa alternativa que possibilitava substituir a madeira que era a matéria prima para a confecção das ilustrações das capas de cordéis” (CAVALCANTI, 2011, p.16). Num dos textos introdutórios, intitulado “Conversando sobre Xilogravura”, o estudioso esclarece a origem da xilogravura, técnica que nascera no Oriente, mais precisamente na atual China, há mais de um milênio e meio, através das impressões de orações budistas. Contudo, salientanos que na Europa, origem da tradição brasileira, tal técnica se desenvolveu durante o século XV, para ilustrar baralhos e imagens de santos (CAVALCANTI, 2011, p.22). A obra divide-se em duas partes, sendo a primeira composta por 75 xilogravuras sobre o cangaço (já que para o seu universo, Dila assume-se como cangaceiro) e a segunda parte por 115 ilustrações. Neste segunda parte deparamo-nos com várias temáticas, desde situações do cotidiano caruaruense (“A feira do troca-troca de Caruaru”, “Caruaru foi Caruara”, “O vendedor de cordéis da feira de Caruaru”, “Morro do Bom Jesus em Caruaru”); mitos, lendas e crendices fortemente marcados no nordeste brasileiro (“O cego Romero”, “O homem que virou bode”, “Macumba velha”, “A vaca Salomé”); assuntos jornalísticos de grande repercussão nacional e internacional (“O escândalo do mensalão”, “A morte de P. C. Farias e de sua namorada”, “Atentado terrorista e o nosso sofrimento”); temas humorísticos (“30 tipos de loiras. Pense numa bagaceira”, “Jacaré no seco anda”, “A língua da minha sogra”, “Combustível do Sertanejo”) e temas religiosos (“Jesus e São Pedro”, “Profecia de Padre Cícero”, “O ateu e o mendigo”, “Jesus e o diabo”). Tal organização das imagens revela o cuidado na disposição dos temas R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 198 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 e a apaixonante visão que Hérlon Cavalcanti, amigo e admirador do Mestre Dila, recolheu, em Pernambuco e na Paraíba, do material mais significativo e quase completo do trabalho desse artista que é considerado patrimônio vivo de Pernambuco. Nesta obra encontramos, além de vários estudos de Cavalcanti, pequenas introduções das Professoras Tânia Bazante e Mabel Cavalcanti, bem como um estudo sobre o cangaço de Daniel Silva, estudioso que atentamente salienta que, apesar da hostilidade da região seca do nordeste brasileiro, da vida nômada e do machismo, houve espaço e afirmação feminina através da figura emblemática da companheira de Lampião, Maria Bonita, que foi retratada diversas vezes por Dila (2001, p.25). Observemos a xilogravura: (2011, p.53) R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 199 Um dos traços relevantes nesta ilustração são os chapéus de cangaceiros (que lembram o formato do de Napoleão Bonaparte) que assumem a metade superior da composição, quase como coroas reais destacando como réis, “os do cangaço”, tão admirados por Dila. Uma outra predominante são as enormes estrelas nos chapéus, que lembram os metais nobres reluzentes das peças usadas pela alta nobreza e que possuem o significado de resplendor e riqueza. No entanto, note-se, no chapéu de Maria Bonita, diferentemente de Lampião, que além de uma estrela está um coração e uma lua. Tais símbolos representam características atribuídas historicamente às mulheres; o coração representa, cremos, uma ligação mais forte da mulher com os sentimentos afetivos e com a maternidade, já a lua é algo muito mais profundo e enraizado na nossa cultura (a ocidental), quase como uma imagem arquetípica do símbolo feminino. Recordemos que na pré-história predominava a adoração e o culto ao cosmo e à natureza; as fases lunares, porque associadas ao ciclo feminino, eram cultuadas como símbolo de fertilidade. A lua esteve também, durante séculos, associada ao poder maléfico, já que a noite é o habitat natural da primeira mulher segundo a tradição judaico-rabínica, Lilith – bruxa aterrorizadora de homens casados e comedora de crianças inocentes. Contudo, a lua também representa a abundância, em associação com a ideia de fertilidade, bem como a pureza, na imagem da ninfa e da virgem. Ou seja, Dila procura transferir da escrita de cordel as imagens que os objetos artísticos têm por referência, acabando por revelar algo mais profundo ligado à nossa mente primitiva, se assim analisarmos pela ótica da psicologia junguiana. Contudo, a xilogravura de Dila que mais se destaca nesta obra é, sem dúvida, a que representa “Camões e o Rei Mágico”: R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 200 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 (2011, p.174) Esta imagem é reveladora de detalhes de expressão e formas deveras complexas e detalhadas, seja pelas curvas e sombreados, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 201 seja pela harmonia da composição na qual a cobra se enrosca na árvore e ao mesmo tempo no homem. É evidente que tal imagem nos recorda a cobra tentadora do jardim do Éden, apesar da história em verso que esta imagem ilustra focar outros assuntos. Observe-se que apesar da rusticidade da técnica xilogravurista, Dila consegue criar formas de tal maneira nítidas, que mesmo por entre os dentes da cobra, a expressão do rosto do homem é visível. A composição vive da disposição das figuras que, ao enroscarem-se (a árvore na terra, a cobra na árvore e a cobra no homem) num mesmo plano, produzem significados conceituais e simbólicos que nos permitem identificar os efeitos de uma linguagem que consegue transmutar ilustração em palavras. Em suma, estes são pequenos exemplos de um trabalho artístico consistente e do compromisso com a literatura de cordel à qual Dila tanto se dedicou durante, praticamente, a sua vida inteira, como bem nos adita o autor: “Este homem de espírito forte enveredou pela poesia popular ainda muito cedo. Um mundo que o fascinava e no qual mergulhou de cabeça, vivendo da arte da literatura de cordel, abraçando o ideal de poeta, mas também de xilógrafo” (2011, p.16). Herlón Cavalcanti, neste sentido, tenta resgatar e dar visibilidade, de maneira didática, informativa e o mais completa possível, deste que é, com certeza, um dos grandes expoentes ainda vivo da cultura pernambucana. Nota 2 Frase contida na obra Arte Poética, que na verdade é uma carta (Epístola aos Pisões) com intenção de passar ensinamentos, o autor exemplifica-nos como atingir a perfeição de uma poesia: “Mas vós, ó estirpe de Pompílio, censurai todo o poema que não for aperfeiçoado com muito tempo e muita emenda e que, depois de retalhado dez vezes, não for castigado até ao cabo” (Horácio, p.97-99). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 202 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 ESPANCA, Florbela. Obras Completas de Florbela Espanca. Livro de “Soror Saudade” (organização, fixação crítica dos textos e notas de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva). Lisboa: Estampa: Lisboa, 2012. Anamarija Marinoviæ1 (Univ. de Lisboa- CLEPUL) Seguindo a ordem cronológica da publicação, o Livro de “Soror Saudade” de Florbela Espanca é a sua segunda obra em verso que revela ao mesmo tempo uma continuidade na linha de pensar, sentir e exprimir as suas inquietações, como também representa um determinado amadurecimento como escritora. De acordo com o mesmo modelo e estrutura adotados no primeiro volume das Obras Completas, especialistas renomeados são convidados a escreverem os estudos introdutórios, destacando-se entre eles a própria organizadora Cláudia Pazos Alonso, que esclareceu a “irmandade” espiritual entre Florbela e Camões, bem como alguns outros grandes vultos da literatura portuguesa com os que a autora dialoga criando 1 Doutoranda da Universidade de Lisboa- CLEPUL. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 203 a sua poesia. Por seu turno, Derivado dos Santos se debruça sobre o problema das experiências e procuras místicas na sua poética; já António Cândido Franco aproxima o leitor da temática da saudade e da especificidade da “saudade louca” que impregna os versos desta obra. Na perspetiva de Cláudia Pazos Alonso, a poesia de Florbela Espanca carateriza-se por um “sistema de máscaras” que variam entre a freira mística, enclausurada num convento, e a princesa encantada, outra vez encerrada e escondida no seu castelo. O fio condutor entre estas duas faces do “eu” poético de Florbela é a clausura, o que atribui aos seus versos uma forte nota lírica, intimista, introspetiva, filosófica e sempre virada para o interior, para as profundezas da alma e do coração. O que parece importante salientar é que tanto as imagens do convento como as da torre ou castelo aparentemente oferecem firmeza, constância e segurança ao sujeito lírico dos poemas, estando ao mesmo tempo feitas de materiais frágeis (de marfim, de névoa). Este contraste implica a noção da fugacidade e de pontos sólidos de referência aos quais a alma que procura estabilidade, plenitude e realização a todos os níveis se poderia agarrar. Com razão Derivaldo dos Santos afirma que este volume de poesia revela um mundo no domínio do modo conjuntivo, um “como se fosse” que paira entre a realidade e o sonho, entre a contradição daquilo que é e aquilo que se poderia ou deveria ser. Uma outra constante neste volume de poesia é a frequência das ocorrências do vocabulário do domínio da religiosidade cristã, o que não se pode interpretar como um reflexo da religiosidade pessoal e fortemente vivida de Florbela, porque, pelo que se sabe da sua vida, ela não era particularmente crente e muito menos praticante da religião católica. As cidades alentejanas onde nasceu, Vila Viçosa, e onde morou, Évora, são tradicionalmente berço da religiosidade cristã no sul de Portugal. Este imaginário e terminologia que impregnam os seus versos no Livro de “Soror Saudade” têm uma particularidade importante: do cristianismo, o seu “eu” lírico absorveu apenas as associações com a dor, o sofrimento, a penitência, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 204 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 o recolhimento, sem a grandeza da ideia da salvação, da ressurreição e da redenção de culpas e pecados. Esta poderia ser uma das razões pelas quais a sua saudade é “louca”, sublinhada várias vezes mediante o advérbio “doidamente”. Através da saudade, dum lembrar e esquecer constante, o sujeito poético procura o além, o absoluto e o infinito. É justamente por isso que António Cândido Franco afirma que: “A Saudade pela memória é irmã gémea da eternidade” (p.72) Outras duas máscaras que há que salientar no universo poético de Florbela, que se manifestam claramente neste livro são a mulher sensual que “bebe a Vida a longos tragos”, desfrutando do prazer e da volúpia das “horas rubras” e a poeta (a duas verdadeiras faces de Florbela?) que se contrapõem (e talvez contradizem) ao desejo de sofrer, estar isolada e mergulhada na solidão e no isolamento de um convento ou torre imaginada. Uma característica destas duas imagens notavelmente oposta às primeiras imagens é o desejo de se anunciar, revelar, de se expor, de estar em público, mostrando ao mundo a sua capacidade de amar, de ser amada, de procurar, de ser encontrada, aceite ou rejeitada, mas ser vista como ela é, na plenitude dos seus defeitos e virtudes humanas. Daí a significativa presença da visão, dos olhos e do olhar nos seus versos que compõem o Livro de “Soror Saudade”. Trata-se do olhar do Outro, neste caso do amado sobre ela e do olhar do sujeito lírico sobre o Outro. Neste jogo múltiplo de ver, olhar, observar, ser visto, esconde-se uma variedade de significados e interpretações de sentimentos e reações: frieza, desejo, desprezo, erotismo, idealização, desorientação, procura, ilusão, felicidade, transitoriedade de belos e plenos momentos na vida. Este olhar varia entre “os olhos frios como espadas”, “o olhar eterno” comparado com o repouso das folhas sobre os lagos, um olhar através da janela, da cela ou da torre, um olhar de olhos “límpidos, doces, languescentes”; olhar saudoso que cora os olhos do amado de horas passadas, ausências e saudades; o não-olhar (os olhos fechados para não verem os sofrimentos no mundo e a sedução satânica). Tudo isto revela a complexidade do mundo interior, por vezes impenetrável do sujeito lírico deste volume de poesias. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 205 Com todo o rigor científico e académico, com o aparato crítico bem desenvolvido e fundamentado, esta obra oferece mais uma leitura única e à sua maneira completa do sempre atual Livro de “Soror Saudade”, que inscreveu Florbela Espanca num patamar alto e privilegiado entre os e as grandes poetas portugueses e que a definiu como uma figura inevitável no cânone literário lusófono. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 206 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 ANTUNES, António Lobo. Quarto Livro de Crónicas. Alfragide: Dom Quixote, 2011 André Corrêa de Sá As crónicas de António Lobo Antunes possuem, cada vez mais, uma voz surpreendente para interagir com a realidade do tempo em que vivemos. São primariamente textos para a imprensa, que saem quinzenalmente na revista Visão. E a estratégia do autor é deliberada: se não deixa de ser legítimo que o autor as qualifique como textozitos para os leitores de fim-de-semana, que escreve de uma assentada na mesa da cozinha porque lhe faz jeito o dinheiro que a revista lhe paga, é tão legítimo afirmar que se impregnam, tanto no viço estilístico como nas entoações temáticas, do temperamento literário em que o autor dos romances se inscreve por inteiro. Não demora muito, aliás, a apercebermo-nos, em quase todas, de que as crónicas são indestrinçáveis desse universo romanesco. Universidade de Évora R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 207 Nas crónicas estamos simultaneamente perto do romances já publicados e dos romances que talvez venham a ser escritos. Isto em todos os quatro volumes já coligidos, compostos de núcleos temáticos mais ou menos identificados: há textos com registo manifestamente autobiográfico («O António a dar corda à esperança», por exemplo, falando da relação com o pai, ou «Variações sobre o silêncio»), outros em que a linha ficcional é dominante («Migalhas»), alguns de homenagem a pessoas concretas (como «Zé», dedicada a um camarada de guerra morto num acidente de viação), e, sobretudo neste volume, uma importante série de crónicas dedicadas à arte da escrita («Crónica para aqueles que vão escrever», «Eu, às vezes», «A melhor maneira é a única boa», «Onde o pobre escritor começa»). A maioria destas 79 crónicas começa com a ativação de fragmentos de memórias, episódios soltos, recorrências obsessivas, que com frequência estão ambiguamente colados à experiência pessoal do escritor. Tal como sucede na orquestração dos romances, é a memória que se mantém como o gás propulsor da narrativa. Mas primeiro existe o silêncio, e é esse, sobretudo, que importa ao autor decantar sobre a textura da realidade. O poder de observação de Lobo Antunes trata de exercitar, em duas páginas, uma implosão devidamente concentrada dessas tantas experiências de mundo que, em distintos graus de consciência, amontoamos, suspensas, no meio de um silêncio interior. As vozes ensurdecidas são amplificadas e delas se extraem tão belas sínteses do humano: daquilo que à primeira vista, é preciso que se refira, não passa de uma mescla comum, corroída, de trágico e grotesco. Talvez por isso me apeteça dizer que as crónicas, no contexto onde originalmente aparecem, se assemelhem à vertigem de um poço em que somos levados a cair de cabeça. Há uma espécie de densidade espumosa nos recortes de universos em que, por meio de injunções bruscas, somos posicionados. Falando com ele próprio, ou com alguém ausente, o narrador está naquele recanto momentâneo também a falar connosco. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 208 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 O tom é essencialmente o de uma conversa intimista, em voz baixa, que nos desarma antes de nos tocar por dentro. O seu ritmo, seriamente vinculativo, provoca uma tensão de rutura com o restante conteúdo da revista. Nem todos aceitam este protocolo. Eu abro a revista, primeiro que tudo, para ler a crónica. Mas, para isso, tal como nos romances, é necessário assumir um pacto de leitura, ou uma esfera específica de ressonância, para dizê-lo noutra fórmula. Há, portanto, uma condição comunicativa a que precisamos de aceder. O foco de Lobo Antunes está sem medo sobre aquilo que para muitos escritores é impronunciável: a imensa riqueza de qualquer pessoa. E uma das suas qualidades mais específicas é a de descobrir um núcleo de claridade em qualquer destes meios, constelações de cafezitos, restaurantezitos, de pequenos vigaristas, prostitutas, travestis, reformados miseráveis. Onde o que cintila é o desprezível, o detestável, o desgraçado. Olhemos, para apontar um só exemplo, a crónica «O grande Borges», em que o escritor, que não tem substância para além dos livros, se assimila a um velhote bêbado que vive perto do sítio onde escreve. Só assim, experimentando reflexos em espelhos inverosímeis, é que seremos capazes de encontrar, no meio das pequenas tragédias ensurdecidas, a inesgotável dignidade humana que o autor nos quer fazer experimentar. Claro, a esfera cénica é nitidamente antuniana. Quase tudo se passa no mesmo bairro, o da Estefânia, não um bairro, uma ilha, a partir da qual podemos reconstituir, em gestos mais empáticos, uma visão renovada sobre as pessoas do nosso país. Tal como nos romances, há uma opção discursiva que assume os esforços de diagnosticar a doença que impede as pessoas de serem felizes, de acordarem do universo amargurado em que vivem: «Por que carga de água vivemos tão mal? (p.89). A crónica que abre com a interrogação que acabei de transcrever será, nessa perspetiva, uma das mais exemplares que Quarto livro de crónicas nos oferece. Permite-nos, por si só, fixar um R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 209 dos sentidos de leitura que nos parece mais importante nesta coleção de textos. O título introduz-nos logo num forte halo sugestivo: «Crónica escrita pelo filho de Calamity Jane». Como começa num tom autobiográfico, e com o pretexto de contrariar a infelicidade resignada em que a maior parte das pessoas se deixa viver, o relato deriva pelo enaltecimento do submundo de prostituição e pequena criminalidade da zona daquela zona de Lisboa para, num desfecho inesperado, a voz do narrador assumir a vontade de uma realidade materna paralela àquela que foi a sua: «Desde criança que sonho ser filho de Calamity Jane» (p. 92). A confissão desse sonho produz-se em primeira mão na intenção de um riso leve, adequado ao registo cronístico tradicional e que é comum no estilo de Lobo Antunes e que, neste mesmo caso, sirva de remate para o traço sarcástico que espreita em permanência no elogio à arte governativa dos proxenetas. Que filho seria este? E por isso, escolher ser filho de tão indomável mulher é uma preferência a partir da qual posso experimentar uma outra ilação, extensível, numa corrente subterrânea, a um fundo tonal dominante nestes pequenos relatos. Num contexto de falta de afeto materno, a aventureira do velho oeste Calamity Jane seria a progenitora desejada. Mais do que uma peregrinação pelo tempo que passou, tratam estas crónicas, essencialmente, de uma peregrinação pelo espaço. Do mundo quer-se que seja uma expansão do útero materno. Não é senão o que nos confidencia na página 146, sempre em voz baixa: «devo ter sido muito feliz na barriga da minha mãe, por dentro da sua voz, do seu sangue». Num clima de ironia autorreflexiva, afirmar a possibilidade de renascer daquilo de onde se foi configura-nos, sem dúvida, o apelo a um horizonte onde a irredutibilidade do afeto permita manter sobre o mundo um polo de curiosidade infantil, sempre pronta a ser surpreendida por pequeníssimas coisas. Não estaríamos errados, nesta perspetiva, se assegurássemos que a atividade da escrita conflui num universo de apelos, como se diz na página 123: «E nisto, no lugar escuro onde fiquei, tu vens de repente e pegas-me na mão». R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 210 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Além do mais, é verdade que na voz adulta que suporta a narração de muitas destas crónicas desvendamos, sem dificuldades de maior, a criança de antigamente, ávida pelo afeto materno, como na «Crónica antiga que achei numa gaveta». Porque não são senão os passos desses indivíduos, procurando a voz da mãe, que se fazem subterraneamente ouvir numa camada profunda em todas as crónicas. Em contraponto à angústia da noite, anuncia-se nelas um repto de imperecibilidade, uma vontade de encontrar a claridade que nos faça continuar a resistir às angústias da vida, de que a crónica «Com tão pouca coisa se constrói o mundo» nos dá uma intuição para todo o livro: «começo a entender aquilo de que não tinha ideia, a habituar-me à esperança, à certeza» (p.22). Os heróis solitários não fazem parte destas cartografias humanas. Nisso, há uma orgânica comum a todos os textos. Aqueles que vivem sozinhos deixam-nos quase sempre a esperança de poder viver um futuro partilhado, em ressonância, nem que seja com o vizinho do segundo andar: um pouco velho de mais, e sem graça, mas também vive sozinho e talvez o colchão, aos dois, nos aceite melhor que a um sozinho, como se conta em «Adelaide». Num corpo e numa alma duramente fragilizados pela doença, há que repor os níveis anímicos a partir da célula da escrita. As crónicas também têm essa função, ou esse efeito. Como é típico da narração antuniana, o presente parece estar permanentemente em suspenso, em conflito com o passado obsessivo. A hipótese de viver feliz joga-se nesse confronto e, como numa guerra, a dignidade dos homens mede-se pela elegância com que aguentam o horror. Talvez por isso a pergunta fundamental se mantenha, como uma espuma, a filtrar das misérias uma voz em expetativa: «O que esperam, o que desejam ainda?» (p. 221). R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 211 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 212 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 FRANCO, Andréia. Terno de Reis, de Ricardo Ramos, e o herói problemático: a representação do sujeito num mundo em decadência. 2012. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Orientador: Aroldo José de Abreu Pinto. Pesquisa empreendida junto ao acervo de Ricardo Ramos – disponível na Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, câmpus de Alto Araguaia –, este trabalho consiste de um estudo crítico sobre a configuração do herói problemático nos contos “Terno de Reis”, “Viagem Noturna”, “Agreste”, “O Dia de Genuíno” e “História de Empregada”, selecionados entre as doze narrativas da obra Terno de Reis (1957). Para examinar a problemática do herói na moderna ficção brasileira, nos ancoramos inicialmente em Mário de Andrade (1974), José Paulo Paes (1999), Lukács (1965). Mais especificamente, buscamos analisar as narrativas à luz da crítica e da fundamentação teórica estudada, com a intenção de compreender as características que cercam o texto ficcional do escritor. Constatamos que o herói presente nos contos em análise pode ser ora o sujeito indefeso e fracassado – mergulhado no caos que é a vida em sociedade e preocupado com as coisas corriqueiras do dia-a-dia –, ora um sujeito que se recusa a ser um “pobre-diabo” R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 213 nessa sociedade que oprime e massacra a alma humana. Partimos do pressuposto de que a batalha do herói ricardiano inserido nesse mundo moderno é justamente pelo desvelamento da relação opressor-oprimido, instaurada pelo capitalismo. Não há acontecimentos grandiosos dentro dos textos analisados; pelo contrário, há o pormenor. O sujeito é uma vítima das circunstâncias a que é submetido. O herói, apesar de não se conformar com as normas e valores estabelecidos, também não se rebela contra o sistema. Enfim, os contos de Ricardo Ramos se mostram esteticamente elaborados justamente pelo que deixam entrever. Para completar o trabalho, buscamos, no acervo do escritor, textos críticos publicados em periódicos sobre a referida obra e pudemos observar que estes, com raras exceções, dão conta apenas de elementos da camada mais superficial das narrativas, não chegando a mencionar a questão do “herói problemático” levantada neste trabalho. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 214 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 SFOGIA, Leocir Antonio . Leite derramado aspectos da configuração estética da memória e do narrador. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. 2012. A presente dissertação resulta da investigação e análise estética do romance Leite derramado, de Chico Buarque de Holanda, das lembranças narradas, um emaranhado de flashbacks que se entrecruzam. Dela resulta a configuração da personagem Eulálio Montenegro d’Assumpção, narrador e protagonista, que se dá através de suas memórias e inserem a Historia do Brasil, Sociedade e Política e seus Costumes, como pano de fundo contrastivo. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 215 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 216 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 LUZ, Loraine Ferrari. No rastro da poaia: caminhos do romance-folhetim em Mato Grosso. 2012. Dissertação em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra.Orientador: Olga Maria Castrillon-Mendes. A pesquisa aqui apresentada revive os anos áureos de uma das mais importantes produções naturais para a economia do Estado de Mato Grosso, nas primeiras décadas do século XX: a poaia. Escolhendo a narrativa ficcional para recontar as histórias recriadas, tanto da oralidade, quanto as resultantes de pesquisas, Alfredo Marien debruça-se sobre singulares fatos e cenários do universo sóciocultural, centralizando uma personagem que denomino de sertanejopoaieiro, ou seja, o ator social “de fora” com uma visão até certo ponto estereotipada. Um franco-brasileiro em viagem pela história e pela geografia de um Brasil interior ainda pouco conhecido e no exercício estético da construção de imagens que resultam em quadros da natureza e do cotidiano do interior de Mato Grosso, Era um poaieiro (1944) é uma espécie de “novela romanceada” que tem a particularidade de revisitar espaços que configuram uma cartografia poética baseada nas experiências vivenciadas pelo escritor, buscando compreender uma realidade que desafia a imaginação pela própria complexidade de ser. Um espaço que recria tragédias sociais que R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 217 trazem no bojo esperanças e anseios de uma população fadada a ser esquecida no mapa, como de fato (ainda) o é, mas também o drama das relações de poder que desaguam nas angústias e desesperanças do homem brasileiro, num período histórico em que os projetos nacionais se preocupavam em criar e explorar riquezas, independentemente das consequências sociais e culturais da exploração a mão-de-obra nativa. Nessa busca pelo sertanejo matogrossense, Alfredo Marien plasma as relações do homem com o meio social e natural, abrindo-se para discussões de/sobre as tendências do regionalismo realista em detrimento das novas tendências estéticas em circulação. Naquele momento Era um poaieiro é editado em livro no ano de 1944 e em 1949, reaparece nos rodapés do jornal mato-grossense A Capital com características do romance folhetinesco. No entanto, rapidamente, o romance desaparece dos rodapés do jornal, restando apenas alguns fragmentos dele publicados. Aos moldes europeus, Marien aposta na Belle Époque como fonte de denúncia e estigmatização social. No percurso dessas linhas de força, minha análise busca respaldo teórico em bibliografia sobre o romance-folhetim, tanto no Brasil quanto nos países de onde originou, em teoria da narrativa regionalista e em pesquisas que se debruçam sobre os sentidos sociais e culturais da figura ímpar do sertanejo-poaieiro. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 218 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 MENEGUCI , Sebastiana Rodrigues da Cruz . Representações da guerra e o intelectual em Nós, os do Makulusu, de Luandino Vieira. 2012. Mestrado em Estudos Literários ( PPGEL) , Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Orientador: Vera Lúcia da Rocha Maquêa Esta Dissertação propõe discutir representações do intelectual em Nós, os do Makulusu, de Luandino Vieira, através da personagem Mais Velho, que sempre se posiciona de forma crítica a respeito da guerra e a consequência dos seus desdobramentos, buscando desmascarar as atrocidades do período colonial. O comportamento intelectual e filosófico dessa personagem contrasta com a ideologia de vida das demais personagens,principalmente do irmão alferes Maninho, que mesmo odiando a guerra se submete às atrocidades do regime salazarista, acirrando o antagonismo entre eles. O papel da protagonista, a sua forma peculiar de ser, de pensar e de se relacionar com as outras personagens e com a situação conflituosa da guerra nos dão algumas características de que se trata de um intelectual impulsionado a lutar pela independência de Luanda. Com sua escrita original, Luandino Vieira se utiliza da voz do narrador personagem para abordar experiências traumáticas desse período e as contradições da guerra. A história de vida de Luandino Vieira está intrinsecamente ligada à história da independência de Angola. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 219 Engajado no processo de libertação o autor sofre as conseqüências de sua luta sendo preso por duas vezes. Quando o salazarismo controlava qualquer manifestação nacionalista e rejeitava qualquer reivindicação de direito para o povo angolano, esse autor é um dos que se levantaram em favor da nação angolana livre. Através de sua escrita que transita entre o português e o kimbundo, valorizando muito a qualidade artística da sua obra, Luandino Vieira é uma das vozes ressonantes em relação ao poder do Portugal salazarista e suas formas arbitrárias de governo. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 220 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 RIBEIRO, Aparecida Cristina da Silva . Viagens, identidades e travessias: uma leitura comparada das obras Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum e O outro pé da sereia, de Mia Couto. 2012. Dissertação em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra, MTOrientação: Vera Lúcia da Rocha Maquêa Nesta pesquisa realizamos uma leitura comparativa de dois romances contemporâneos, que entendemos pertencer ao macrossistema literário da língua portuguesa, Relato de um certo Oriente, do escritor brasileiro Milton Hatoum e O outro pé da sereia, do escritor moçambicano Mia Couto. Como suporte teórico, utilizamos os conceitos sistema literário, de Antonio Candido, e macrossistema literário, desenvolvido por Benjamin Abdala Junior, que estuda as relações literárias e culturais entre os países de língua oficial portuguesa. Nosso estudo parte das relações que estabelecemos entre os temas identidades, viagens e travessias, que se entrecruzam nas narrativas como representação de constantes buscas de personagens deslocadas e fragmentadas, seres que vivenciam conflitos sociais e subjetivos na sociedade contemporânea. Os movimentos incessantes pela busca do que foi perdido resulta então da condição itinerante, uma condição que traduz os narradores e personagens dos romances estudados. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 221 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 222 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 RODRIGUES, Clarice Gomes Clarindo. Personagem feminina em cena: um estudo de O Primo Basílio, de Eça de Queirós. 2012. Dissertação em Estudos Literários (PPGEL), Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Orientador: Elisabeth Battista A pesquisa apresenta um estudo do romance O Primo Basílio (1878), de Eça de Queirós, e se insere no âmbito da Literatura e da Vida Social nos países de Língua Portuguesa. Tem como objetivo refletir sobre a constituição da personagem Luísa na representação do universo feminino, presente na sociedade burguesa da segunda metade do século XIX, em Portugal. A partir de reflexões em torno de elementos da estrutura da narrativa, especialmente do estudo da personagem, procura analisar a importância que a personagem Luísa desempenha na diegese e na representação literária, vindo a subsistir ao longo dos tempos. Assim, o norteamento teórico crítico tomou como elementos o contexto histórico, social e cultural, assim como a presença feminina no Realismo. Deste modo, a reflexão sobre a personagem de ficção, a revisitação dos mecanismos de caracterização das personagens foram fundamentais para a contraposição dos aspectos relativos à linearidade da personagem Luísa. Em relação à representação literária especificamente, a análise demonstrou que a construção da personagem feminina no romance R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 223 O Primo Basílio constituiu-se sob a base ideológica discursiva em voga nos discursos filosóficos presentes no contexto social de Eça de Queirós. Além disso, verificou-se como a personagem feminina interage nos espaços públicos e privados e como o seu percurso na cena literária foi capaz de impactar a sociedade da época. Em suma, considera-se que a personagem Luísa de Eça de Queirós contrapõese aos aspectos de linearidade na narrativa, constituindo-se como um importante canal de expressão do processo de transição de estilo literário e no modelo europeu de organização da vida social burguesa. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 224 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Os artigos podem ser redigidos, além de português, em espanhol, francês, italiano, inglês. Formatação: Em Word for Windows ou programa compatível, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço simples entre linhas e parágrafos, e espaço duplo entre partes do texto. Páginas configuradas no formato A4, sem enumeração, com 03 cm nas margens superior e esquerda e 02 cm nas margens inferior e direita. Extensão: 10 páginas no mínimo e 15, no máximo. Estrutura: Título em negrito e caixa alta, centralizado. Tradução em inglês. Imediatamente abaixo, alinhado à direita, nome completo do autor, seguido da sigla de sua IES. Em nota de rodapé: filiação científica - Departamento, Faculdade, Universidade, CEP, cidade, estado, país. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 225 Normas de apresentação dos originais Em Times New Roman e corpo 11: Resumo (máximo 200 palavras) e Palavras-chave (máximo 06) no idioma do artigo; Abstract e Keywords em inglês. – Citações: – No texto: entre aspas, sem destaque em itálico, seguidas, entre parênteses, pelo sobrenome do autor em caixa alta, ano de publicação e, quando necessário, da página (p.). “[...] moleques, mulatos/ vêm vêlos passar.” (FERREIRA, 1939, p. 65). Se o nome do autor estiver citado no texto, indicam-se entre parênteses a data e a página: “Segundo afirma Lotman (1991, p. 10).......” Acima de 03 linhas: destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, corpo 11, sem aspas. Entre parênteses, sobrenome do autor em caixa alta, ano, página. Notas de rodapé: reduzidas ao mínimo, enumeradas, no pé de página, corpo 10. Referências bibliográficas: Em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor e conforme a NBR 6023 da ABNT de 2006. – Livros e monografias: HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005. – Capítulos de livros: AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A. (Org.). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 317-26. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 226 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Normas de apresentação dos originais ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _____. Texto e contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 19-120. – Dissertações e teses: SILVA, I.A. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. 1994. Tese (Livre-docência) – Departamento de Linguística, Unesp, Araraquara/SP. – Artigos de periódicos: HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje de Ludwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos, Puebla, n.24, p.5-9, 2002. – Artigos em jornais: CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, diz estudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago.2009. Cotidiano, p.5. – Trabalhos em eventos: SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In: SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002. Mirassol. Anais... Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20. – Publicações On-Line SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10 mar.1999. Disponível em http://www.alerta.br. Acesso em 10 mar.1999. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 227 Normas de apresentação dos originais RULES FOR SUBMISSION OF ARTICLES TO ALERE MAGAZINE ISSN -1984-0055 (impressa) 2176-1841 (digital) Publication targeted to doctors and masters As for formatting Articles should be typed in Word for Windows or compatible program, Times New Roman font, size 12 (with the exception for quotes and notes for which should be applied sizes 11 and 10, respectively), simple space between lines and paragraphs, double space between parts of the text. The pages should be set up in A4 format, unnumbered, with 3 cm at the top and left margins and 2 cm in the bottom and right. As an extension, the article set the format above, should have 15 pages at most. Organization implies the following sequence: title (centered, in uppercase) author (left with a footnote indicating which binds University) abstract (with maximum of 200 words) keywords (up to 06 words), written in the language of the article; abstract and keywords (for English version of the Abstract and Keywords) Summaries, key words, in Portuguese and English, should be typed in Times New Roman, size 11. References (only mentioned studies into the text). Footnotes should be presented in foot of page, using Microsoft Word resources, in size 10, numbered following the order of appearance. On quotations inside text, of up to three lines (NBR 10520 of ABNT, 2006), the author should be cited in parentheses by last name, in capitals, separated by commas before date of publication (SOUZA, R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 228 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 Normas de apresentação dos originais 2005). If the author’s name is mentioned into the text, indicates only the date in parentheses: “Souza (2005) points out […]”. When necessary, the specification of page(s) should follow the date, separated by commas and preceded by p. (SOUZA, 2005, p. 145). The quotes from various works by the same author, published in the same year should be differentiated by small letters after the date without spacing (SOUZA, 2005a). When the work has two or three authors, all may be listed, separated by semicolons (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2005); when more than 3 authors, indicates the first followed by et al. (SOUZA et al., 2005). Direct quotations, with longer than three lines (NBR 10520 of ABNT, 2006), should be highlighted with a decrease of 4 cm from the left margin, in size 11 and unquoted. References at the end of the text should be arranged as recommended for ABNT NBR 6023 in 2006. We will give some basic indications here: should be arranged alphabetically by surname of the first author. - Books and monographs (AUTHOR, A. Title of the book. Edition number-ed., City: Publisher, number of pages p.). HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005. - Book chapters (AUTHOR, A. Title of the chapter. In: AUTHOR, A. book title. City: Publisher, Year. p. X-Y). AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A. (Org.) O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 317-26. ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _______. Texto e contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 19-120. - Thesis and dissertations (AUTHOR, A. - dissertations /thesis title: subtitle without italics. Number of leaves f. Year Dissertation / Thesis (Masters / PhD in Concentration Area) - Institute / Faculty, University, City, Year) SILVA, I.A. Figurações e metamorphose: o mito de Narciso. 1994 (Livre-docência). Departamento de Linguística, Unesp, Araraquara/ SP. R EVISTA ALERE - P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841 229 Normas de apresentação dos originais - Journal articles (AUTHOR, A. title of article. Journal name, City, vol. volume, n. paragraph, p. X-Y, Year). HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje de Ludwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos, Puebla, n.24, p.5-9, 2002. CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, diz estudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago. 2009. Cotidiano, p.5. - Work published in Annals of congress or similar (AUTHOR, A. title of work. in: NAME OF EVENT, edition ed., year. Anais ... City: Institution. p. X-Y). SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In: SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002. Mirassol. Anais...Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20. -Work published On-Line SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10 mar. 1999. Disponível em http://www.alerta.br.Acesso em 10 mar. 1999. The texts in the format above should be sent to the following email: [email protected] PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS-PPGEL UNEMAT - S ECRETARIA DE P ÓS-G RADUAÇÃO RODOVIA MT - 358, KM 07, JARDIM AEROPORTO, TANGARÁ CEP: 78300-000 R EVISTA ALERE - P ROGRAMA 230 DE PÓS -G RADUAÇÃO EM DA SERRA/MT ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841