EXPERTISE Eduardo Antônio Salomão Condé BRICS Uma relação "Apesar de todas as dificuldades que o Brasil vem enfrentando para se afirmar como país desenvolvido, é inegável que ele tem se revelado um caso surpreendente de sucesso no cenário econômico internacional". A constatação é do professor Eduardo Antônio Salomão Condé, doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que nos revela, nesta entrevista, esta e outras análises a respeito do Brasil no âmbito dos Brics. Por Livia Marques professor Eduardo Antônio Salomão Condé, integrante do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), lembra que na década de 1990 falavase muito a respeito do fim do Estado Nação e sobre a incapacidade dos países de desenvolverem políticas econômicas próprias. O que ocorreu, logo no início dos anos 2000 foi o contrário disso: os países emergentes acabaram ganhando destaque no cenário internacional exatamente pelo conjunto de políticas internas que adotaram. Índia, Brasil, China e Coreia do Sul enfrentaram crises nos últimos vinte anos, mas, para Condé, uma das lições extraídas dessas fases difíceis foi que todos eles adquiriram instrumentos de política econômica e permaneceram com capacidade para manejá-los. “Portanto, não era verdade afirmar que o Estado Nação estava em absoluta decadência, muito menos que os países tinham incapacidade de desenvolver políticas econômicas próprias”, relembra o professor. Ele acredita que um dos motivos que contribuíram para a maior afirmação dos países emergentes na cena mundial foi que eles passaram a ser interlocutores dos chamados países centrais, tornando-se muito mais ativos do que no passado. “Essa participação cada vez mais crescente dos países emergentes se dá com relação à importância que esses mercados vêm recebendo por meio, por exemplo, dos indicadores de importação, pela crescente influência de países como a China, que conta com um dos maiores PIBs do mundo”, afirma. Vários desses países têm tido uma trajetória de sucesso do ponto de vista industrial, das exportações, e, em alguns casos, de desenvolvimento científico e tecnológico. Isso tem aumentado e de alguma maneira desconcentrado uma parte do poder econômico internacional. Essa dispersão ainda é bastante embrionária, mas o desta- O RUMOS - 14 – Março/Abril 2012 Eduardo Garcia/UFJF em análise que que Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – países que integram o Brics – vêm tendo como o centro de um novo foco de poder é um processo que ainda está em desenvolvimento. “Não é que eles não tenham mudado o perfil dentro da discussão global, na verdade eles continuam sendo atores importantes como já o eram há alguns anos. O fato é que eles têm tido um papel mais preponderante na participação no cenário internacional do que tiveram no passado”, acrescenta Eduardo Condé. “Ainda é muito cedo para se dizer que estamos realmente mudando a governança global”. Condé, que atua no programa de pós-graduação – mestrado e doutorado – da UFJF, explica que a cooperação entre o Brics é estratégica do ponto de vista da política externa, pois entre os próprios membros do grupo há certas divergências. “A maneira como a China trata os mercados com os quais se relaciona, inclusive o Brasil, por conta da sua inundação de exportações, causando a subvalorização da moeda chinesa e as repercussões disso nas demais economias”, exemplifica. Relação com os outros membros – Condé alerta que não é simples imaginar o Brics como um bloco operando todo na mesma direção e unido pelos mesmos interesses. “Creio que todos têm uma vontade política clara, e até de cooperação internacional mais intensa, para que as suas agendas e os seus interesses possam ser apresentados de forma mais geral. Mas não se pode esquecer que, como o ‘diabo’ mora nos detalhes, é sempre nas questões mais pontuais, mais dramáticas para as balanças de exportações, por exemplo, que as divergências aparecem, particularmente com a China”, ressalta. É muito difícil imaginar que os países que compõem o Brics podem alterar dramaticamente o cenário internacional. O professor acredita que a influência da governança mundial ainda é hegemonicamente dos países centrais e ressalta que essa situação vai continuar por muito tempo. No âmbito do bloco, quem mais tem influência internacional, naturalmente, é a China, seja pelo tamanho da sua economia, seja pela absoluta e total força que esse predicado representa, por exemplo, para as exportações chinesas no mercado norte-americano. RUMOS - 15 – Março/Abril 2012 EXPERTISE Eduardo Antônio Salomão Condé Segundo Condé, a grande cooperação prática re à economia. Entretanto, é óbvio que em algum momento que existe entre os integrantes do Brics é na articuestas questões começam a se misturar”, afirma Condé. lação de defesa de interesses no que tange à forma O ingresso para o bloco de um país como a África do Sul, como as relações comerciais e de competição entre por exemplo – o S dos Brics –, significa, para Eduardo Condé, os países-membros estão estabelecidas na montaum avanço importante para o continente africano, que passa a gem do cenário internacional. “O Brasil sempre ter representação internacional, inclusive do ponto de vista teve uma importante parceria comercial com os econômico, além de aumentar aquilo que na linguagem interEUA e com a União Europeia. De repente, estanacional é chamado de diálogo Sul-Sul. mos percebendo que é possível estabelecer novos padrões de cooperação com outros países”, avalia Banco comum e política tributária – Na última cúpula dos o professor. Brics, realizada em Nova Délhi, os ministros da Fazenda dos Ele entende que a China se tornou um grande países pertencentes ao grupo discutiram a possibilidade de interlocutor comercial e, criação de um banco para os países em além disso, as parcerias estradesenvolvimento, a exemplo do Banco tégicas firmadas na área de Mundial. Para o professor Condé, essa é tecnologia com países como uma excelente ideia, politicamente justia Índia, e a cooperação que é possível ficável, mas extremamente difícil de ser fazer com a Rússia, em termos de petróefetivada, uma vez que ela depende de A articulação entre leo e tecnologia espacial, são exemplos inúmeros aspectos e do estabelecimento os integrantes do de como a participação do Brasil no de diversos parâmetros, como, por exemBrics é uma Brics pode ser vantajosa. “Esse sistema plo, decidir qual será o peso de cada país faz com que encontremos parceiros cooperação nessa nova instituição. “Não acredito ser interlocutores em situação internacional possível a criação de um banco dessa favorável de mais semelhante a nossa, com menos natureza no curto prazo, pois existem trocas, permitindo representatividade nas organizações vários riscos institucionais e operacionais construir um novo multilaterais, como na Organização das que precisam ser considerados. A grande Nações Unidas (ONU), com exceção da dificuldade de se criar um banco único é conjunto de China, uma vez que ela já faz parte do seu saber qual o seu real objetivo, além dos influências sobre Conselho de Segurança”, afirma Condé. ideais e dos desejos de cada membro o cenário E acrescenta que é óbvio que tudo isso participante”, considera Condé, lemem algum momento vai se transformar brando que a iniciativa certamente influinternacional. num problema, porque a China é um enciaria a política monetária mundial. líder quase que natural de todo esse A opinião do professor tem como processo. “Eu não sei até que ponto os base a recente história de unificação outros países estão dispostos a acompanhar a China nas suas monetária da Comunidade Europeia. “Quando a Europa estratégias internacionais. Em algum momento vamos ser tomou a decisão de criar uma moeda única, os anos que se desafiados a enfrentar questões, por exemplo, de política levaram para se chegar a um acordo sobre essa decisão foi tão externa”, afirma Eduardo Condé, que desde 2006 é diretor do grande e o custo tão elevado, que quando o euro começou a Instituto de Ciências Humanas da UFJF. circular, apenas alguns países haviam aderido. Só algum tempo A articulação entre os integrantes do Brics é uma cooperadepois é que a moeda foi adotada de forma mais abrangente”, ção favorável de trocas, permitindo construir um novo conjunexplica. to de influências sobre o cenário internacional. “Eu não sei, por Outro desafio seria lidar com a dualidade: cooperação e exemplo, se é possível que, nos próximos anos, países como concorrência. Criar um banco comum significa estabelecer Brasil, Rússia, Índia, China, ou até a África do Sul possam estamaior proximidade política, entretanto, os países do Brics belecer alianças do ponto de vista de defesa, ou em termos de guardam diferenças em termos de desenvolvimento e incentiprodução de ciência e tecnologia, o que seria um salto de qualivo aos mercados internos. “Lidamos com economias como a dade do ponto de vista estratégico para todos”, avalia o profesChina e a Índia, com as quais temos um nível de cooperação sor, entendendo que há interesse mútuo na chamada “cooperaque vem aumentando ao longo do tempo. Entretanto, eles ção prática” – o esforço maior para se construir uma agenda também são nossos concorrentes diretos nessa dinâmica do comum que desafie o centro de poder global e tente reequilimercado internacional”, analisa Condé. brar a balança de interesses sobre essas novas bases. Uma solução para minimizar essa possibilidade de conflito Condé afirma que o Brasil tem uma excelente relação com é a alteração na política industrial. Tal medida foi adotada todos os outros membros do Brics, mas isso não significa, recentemente pelo governo brasileiro, que lançou um pacote de necessariamente, que estejamos avançando em direção a um incentivo à indústria, inclusive com a desoneração da folha de novo bloco de poder mundial. “Os integrantes do Brics estão pagamentos. Para o professor, essa é uma antiga discussão que transitando numa área relativamente tênue entre alianças permanece nos debates quando se fala de industrialização no econômicas, geopolíticas e de cooperação internacional. A país. “A folha onerosa sempre foi vista como um obstáculo ao mais visível e a mais divulgada é justamente aquela que se refecrescimento, porque inclui não só impostos e contribuições, RUMOS - 16 – Março/Abril 2012 mas uma quantidade enorme de custos com previdência e educação. A grande dificuldade é estabelecer o mínimo de consenso para realizar essa mudança. Uma coisa é discutir essa questão em países com características como a China, que tem uma violenta desoneração, ausência da garantia de direitos; a outra é discutir no Brasil, um país que tem os seus pesos e contrapesos, que tem atores políticos ativos que contestam medidas, grupos de interesse organizado, que tem um Congresso Nacional funcionando plenamente”, compara Condé. A conclusão é que não é simples realizar reformas profundas como a tributária no Brasil. O professor se pergunta como chegar a um consenso sobre que itens alterar na folha de paga- fármaco e o eletroeletrônico, recebessem estímulos. Já no segundo mandato do presidente e no governo Dilma Rousseff, essa preocupação setorial foi um pouco afastada e substituída por mecanismos de financiamento mais geral da pesquisa e da produção industrial. “O que parece haver no Brasil, hoje, são medidas isoladas que, se agrupadas, poderíamos até chamar de política industrial, uma vez que por um lado operam criando incentivos seletivos para a produção de ciência e tecnologia, de pesquisa e desenvolvimento na área industrial e, por outro lado, criam mecanismos que vão do financiamento à desoneração para os setores industriais”, afirma Condé, que faz uma comparação entre dois modelos de práti- mentos. “Fazer a reforma no Brasil é um gigantesco exercício de negociação. Como desonerar a folha? Reduzindo férias, mexendo no 13º salário, mudando a indenização por demissão? Essas são medidas aceitáveis? No Brasil tem sindicato, tem partidos... Quem estuda as reformas europeias sabe das dificuldades que a Europa tem para fazer qualquer tipo de mudança”, enfatiza o professor que fez a sua tese de doutorado sobre as reformas do Estado de Bem-Estar Social no velho continente. E ele acrescenta: “Não se faz de uma hora para a outra uma desoneração capaz de tornar o Brasil um gigante competitivo como a China, que possui um cenário institucional absolutamente diferente”. ca intervencionista de governo. Segundo ele, no passado, a política industrial era vista como uma interferência do Estado em mecanismos estritamente privados. Isso não foi uma exclusividade política do Brasil. “O que me parece é que hoje os Estados que lideram tanto o crescimento mundial quanto essa renovação de cenário operam com mecanismos reguladores. É o que acontece muito na Rússia, com a indústria de defesa e de petróleo; na China, com o estímulo do próprio governo ao desenvolvimento industrial e às parcerias industriais; e acontece no Brasil, com a política de financiamento e estímulos a determinados setores”. Condé observa que em todos os países que vêm ganhando destaque, é nítido que o Estado tem tido um papel fundamental na definição de prioridades e de políticas, com o objetivo de ter pelo menos uma orientação e uma preocupação com o desenvolvimento industrial. Para o professor, as medidas adotadas pelo governo brasileiro para proteger a indústria nacional, como inspecionar portos e aeroportos para verificar se as mercadorias que estão entrando no país estão de acordo com regras do Inmetro, não afetarão as relações do Brasil com outros países, principalmente a China. “Momentaneamente, teremos atritos no comércio internacional que poderão afetar um setor ou outro, mas sem comprometer a harmonia entre eles. Eu considero que as relações entre as nações devem estar muito acima desses valores”, afirma. A partir de tudo o que foi colocado, Condé acredita que o atual momento vivido pelo Brasil o credencia como uma das nações com destaque inconteste no mundo, a ponto de se posicionar de forma independente frente aos demais países no comércio exterior: “A verdade é que o Brasil tem atuado de forma surpreendente no cenário internacional, e digamos, obtido um certo sucesso econômico mundial mesmo com todas as dificuldades que enfrenta.” n Concorrência industrial – Condé não acredita que o país caminha para uma desindustrialização na velocidade que vem sendo preconizada por alguns autores. “Não é justo dizer que o governo brasileiro está contribuindo para desindustrializar o país. O que se tem feito é o contrário disso. O Estado tem desenvolvido políticas de investimento e, ao mesmo tempo, criado estruturas de financiamento para incentivar a produção industrial. O que no médio prazo pode dar alguns resultados”, enfatiza. Mais uma vez, o professor recorre à história para mostrar os diferentes processos de esvaziamento produtivo. “A desindustrialização foi uma discussão muito comum em alguns países como os EUA nos anos 1990. Naquela época, o recuo da indústria na economia americana foi significativo, fazendo com que muitas empresas migrassem para outros países como a China, a Índia, a Malásia e até para o Brasil.” Segundo o professor, o Brasil tem feito um esforço, desde o início dos anos 2000, para desenvolver um conjunto de medidas coerentes que pudessem incentivar o setor industrial. No primeiro governo Lula, houve uma grande preocupação em fazer com que determinados setores da economia, como o RUMOS - 17 – Março/Abril 2012