A Educação Moral: dialogando com Bertrand Russell e os PCN Bruno Olivatto* A educação moral tem sido tema recorrente de discussão entre educadores de todo o mundo, em todos os tempos. A atenção dispensada a ela não decorre de algum modismo teórico, mas da preocupação dos homens com a sua própria conduta, seja no plano individual ou social. Essa preocupação tem se acentuado com a desestabilização dos valores tradicionais, que serviam de orientação para a relação dos homens com a natureza e dos homens entre si. O único consenso desse permanente debate parece ser a responsabilidade que as escolas e os professores devem reafirmar como formadores de caráter. Enquanto vivermos numa época de transição, de mudança e de crise, será oportuno discutir a respeito da formação de valores e procedimentos morais e serão sempre bem-vindos propostas e argumentos que possam ajudar a iluminar a nossa caminhada para um futuro mais humano, mais justo e mais fraterno. No contexto escolar, o tema obteve ampla visibilidade a partir da discussão dos temas transversais, dentre os quais se inclui a Ética, contidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), um documento atualmente recomendado e legitimado pelo Ministério da Educação do Brasil como expressão de um ideal da sociedade brasileira para a educação integral dos jovens de todo o país. Assim, pretende-se neste artigo apresentar a proposta de educação moral defendida pelo filósofo Bertrand Russell e estabelecer um diálogo entre suas idéias e as proposições dos PCN no campo da Ética. Esta sistematização, embora limitada e expressa num ar ligeiro de texto, configura-se como possibilidade rica do ponto de vista analítico ao abordar a questão filosófica da ética na educação bem como o reconhecimento de Russell como autor potencialmente relevante para a educação, mas pouco lembrado nos círculos acadêmicos, assim como uma oportunidade de revisitar os PCN, agora em companhia de um interlocutor de idéias originais. Apesar de Russell não ser conhecido como teórico da pedagogia, a educação se constituiu como preocupação constante ao longo da sua obra. Vale ressaltar que Russell não construiu um sistema de idéias no campo pedagógico e sim teceu considerações esparsas sobre diversos temas educacionais. Trazer um autor do porte intelectual de Bertrand Russell para somar no debate em torno da questão da moralidade é, sobretudo, aproveitar seus escritos a serviço de um projeto de sociedade melhor, o que se condiciona, necessariamente, a um trabalho competente da escola que possibilite reflexões críticas das morais estabelecidas. Este artigo pode ser encarado, também, como um convite às idéias desse filósofo. A eleição dos PCN, para o Ensino Fundamental e sua proposta de educação moral, impôs-se como referencial mais adequado no estabelecimento deste diálogo na medida que eles representam o paradigma governamental de orientação e subsídio à organização do currículo da Educação Básica no Brasil, especificamente o seu capítulo sobre ética, contido no volume dos Temas Transversais. * Pedagogo e Coordenador de Projetos de Formação Continuada de Professores da Educação Básica do Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica (CEAP). [email protected] Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71) 1 A Educação Moral... - Bruno Olivatto Vale ressaltar que, ao apresentar e discutir a proposta de educação moral de Russell, não será pretensão do texto tratar a questão da multiplicidade e complexidade do tema ética, tampouco dos PCN na sua totalidade, ainda que ambos sejam elementos parcialmente analisados neste estudo. Algumas palavras sobre Bertrand Russell Bertrand Arthur William Russell nasce aos 10 de maio de 1872 em Trellek, País de Gales. Escritor de abrangente capacidade, em seus 98 anos de vida publicou mais de 40 livros a respeito de temas variados, como filosofia, política, religião, história, ética e ciência. As suas obras mais significativas centram-se em preocupações lógicas, epistemológicas e metafísicas. Apaixonado pela matemática, revolucionou a lógica, substituindo a linguagem da tradição aristotélica pela linguagem precisa dos números. Mas é entre 1910 e 1913, beirando os 40 anos, juntamente com Alfred North Whitehead, que publica a sua principal obra, Principia Mathematica, ganhando a admiração de grandes nomes da ciência universal. É reconhecido internacionalmente pela publicação da História da Filosofia Ocidental, considerada também como obra de relevante impacto nos meios intelectuais. Em 1950, aos 78 anos de idade, recebe o maior prêmio da sua vida, o Nobel de Literatura. Pertenceu à corrente da Filosofia Analítica na modalidade Empirismo Lógico, da qual foi também fundador, que propunha que a finalidade da filosofia não deveria ser a formulação de novas proposições sobre a realidade, mas tornar claras e comprovadas as proposições já existentes. Aos dois de fevereiro de 1970, com 98 anos, despede-se da vida em Penrhyn-deudracth, País de Gales, sendo considerado um dos maiores expoentes da filosofia contemporânea. A sua concepção de Educação Moral Antes mesmo de apreciar as especulações acerca da educação moral para Russell, é necessário compreender que esta se constrói a 2 partir do conjunto de objetivos que se deseja atingir com ela, ou seja, é imperioso reconhecer uma íntima relação entre a moral defendida pelo autor e os fins, para ele, da educação. (...) deveríamos, na educação, visar à repleção da mente com conhecimentos de direta utilidade prática, ou tentar fornecer aos alunos dotes intelectuais que tenham valor em si mesmos ?! (...) por outro lado, ser capaz de apreciar o Hamlet não tem muita utilidade na vida prática, mas dá a um homem qualquer coisa mental de que ele sentiria falta e que o torna, de algum modo, um ser humano melhor. É esta espécie de conhecimento preferida pelos homens que sustenta não ser a utilidade o fim único da educação (Da Educação, p.12). Assim, valores como a bondade, a solidariedade, a obediência, a coragem, o saber, a honestidade e a retidão – somente para citar alguns – devem ser compreendidos como virtudes desejáveis relativas e não-consensuais, diretamente relacionadas às mais diversas pretensões dos sistemas educacionais existentes. Vale lembrar, então, que esses fins serão construídos, sobretudo, fundamentados nas múltiplas expressões da tradição cultural de cada povo e seu contexto histórico. Tal afirmação não descarta, contudo, a possibilidade da existência de interseções entre as mais diversas concepções de educação moral, ainda que vivamos num mundo plural em que não há mais consensos plenos em torno daquilo que devemos seguir como parâmetro rígido de ideal moral. A tarefa da educação moral é aprender a lidar com as incertezas. Isso supõe a superação da relação educativa tradicional, caracterizada pela transmissão de certezas aos alunos, e a adoção de uma nova perspectiva reflexivo/comunicativa. Trata-se de sensibilizar os alunos para a questão da moralidade, introduzi-los no debate dos temas mais importantes que envolvem o ser humano e a sociedade na contemporaneidade, buscando contribuir para a formação de uma subjetividade a partir da qual cada pessoa possa fazer as suas leituras e tomar as suas decisões (Pedro Goergen, 2001). Russell defende a excelência humana como a finalidade maior da educação. A partir dessa premissa, lança quatro características virtuosas que necessariamente precisam coexistir e que seriam Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71) A Educação Moral... - Bruno Olivatto a base indispensável à formação de um caráter ideal: a vitalidade, a coragem, a sensibilidade e a inteligência. Contudo, limitar-se-á esta análise às suas duas últimas características por serem estas as que melhor possibilitam o diálogo aqui proposto. Sensibilidade Aqui, Russell inicia esclarecendo que é indispensável distinguir o que está considerando um valor dentro da análise da sensibilidade. Esta, do ponto de vista amplo e teórico, pode ser definida como uma multiplicidade de estímulos que despertam emoções no indivíduo. Mas assim considerando-a, ela não seria necessariamente boa. Para que a sensibilidade seja boa, é necessário que a reação emotiva seja adequada, não bastando apenas a intensidade. E o que seria uma reação emotiva boa? Aquela que se aproxima da simpatia, sobretudo que se manifesta mesmo a distância, sem a necessidade de se ter o objeto ou quadro situacional diante dos olhos. A esse fenômeno dá-se o nome de simpatia abstrata. Russell valoriza essa virtude por conta dela se aproximar da inteligência. Toda vez que a leitura de um determinado romance ou fria estatística remeta a um quadro situacional de calamidade e possa produzir a sensação de sofrimento, de dor etc, aí manifestou-se a mais gloriosa evidência de sensibilidade. A sua constatação é de que a simpatia, na maior parte das pessoas, não costuma ser despertada por estímulos abstratos apenas. Inteligência No discorrer dessa qualidade, Russell inicia lamentando o que a Igreja fez com este valor na medida que, para defender seus dogmas, ideologicamente, preconizou, por séculos, a virtuosidade como bem desejável ao homem. Enquanto persistir essa atitude, será impossível fazer os homens compreenderem que a inteligência produz mais bem do que uma convencional ‘virtude’ (Da Educação, p. 61). Quando fala de inteligência, inclui não só o conhecimento do real como também a receptividade ao conhecimento. Os dois estariam, na realidade, estreitamente relacionados. Quanto mais um homem aprende, mais facilidade terá para aprender, sobretudo porque essa apreensão da realidade não adveio de um dogma. Já este somente poderá ser aprendido por força de revelação. Não há dúvida de que a palavra “inteligência”, quando propriamente definida, significa mais a aptidão para adquirir conhecimentos do que o conhecimento já adquirido; mas não creio que essa aptidão possa ser adquirida sem o exercício, mais do que a capacidade de um pianista, ou de um acrobata (Da Educação, p. 93). O cultivo da inteligência é, assim, um dos maiores propósitos da educação (p.28). Essa afirmação de Russell pode ser tachada de trivial. Contudo, a tradição escolar evidencia que ainda persiste no meio docente o mau hábito de inculcar nos alunos certos conceitos sacramentados como verdades, e isto revela o quão desatentos estão sendo os docentes ao deixarem passar preciosas oportunidades do exercício da inteligência. Uma grande porção dos males do mundo moderno deixaria de existir se pudéssemos remediar esse fato, isto é, se pudéssemos aumentar a capacidade para a simpatia abstrata. A ciência em muito acresceu o nosso poder de afetar a vida dos povos distantes, sem aumentar correspondentemente a nossa simpatia por eles (Da Educação, p. 38). O fundamento instintivo da vida intelectual é a curiosidade (p.26). Assim, a consagração de verdades tira a oportunidade e o encanto da descoberta, das experiências enriquecedoras surgidas durante este processo investigativo. Dessa forma, os questionamentos e as reflexões são mínimos, pois a nefasta autoridade já se prontificou a destruir o espírito curioso que haveria de ali nascer. Essa sensibilidade cognitiva deve ser incentivada às gerações como hábito salutar para a efetiva implementação de um novo projeto de humanidade, este mais sensível e distante das crueldades e horrores, ainda hoje disseminados. A partir de então, atém-se à defesa da curiosidade, sobretudo daquela que visa as idéias gerais em oposição àquela que privilegia aspectos particulares. A primeira caracterizar-se-ia como o mais alto nível de inteligência. Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71) 3 A Educação Moral... - Bruno Olivatto Para que a curiosidade dê frutos, ela deve estar associada a certa técnica de aquisição de conhecimentos. Exige hábitos de observação, fé nas possibilidades do conhecimento, paciência e habilidade (Da Educação, p. 41). Percebe-se, assim, que a possibilidade efetiva de potencialização desse valor condicionase a uma visão educacional ampla dos educadores, que fuja dos modelos convencionais da mera transmissão de conceitos e conteúdos. A capacidade inata da inteligência não é aqui o objeto de discussão trazido pelo autor, mas o seu vivo direcionamento para um uso pleno e ilimitado do ato de raciocinar. A partir desse mosaico bem argumentado por Russell acerca dos seus pilares da formação moral, o próprio autor admite que esse conjunto nos levaria a outro estágio de humanidade, diferente de tudo o que o mundo viu até então. Pouca gente seria infeliz. Atualmente, as principais causas da infelicidade são falta de saúde, pobreza e uma vida sexual insatisfeita. Tudo isso se tornará extremamente raro. A boa saúde pode tornar-se quase universal e mesmo a velhice pode ter o seu aparecimento retardado. Depois da Revolução Industrial, a pobreza é devida apenas à estupidez coletiva. A sensibilidade faria com que os homens desejassem abolir a pobreza; a inteligência mostrarlhes-ia o caminho; a coragem os levaria a se enveredar por ele. (...) a educação é a chave do mundo (Da Educação, pg. 45). Os Parâmetros Curriculares Nacionais procuram responder a uma demanda atual, embora se reconheça que as questões éticas coexistem com a própria existência humana, porém as respostas a estas questões não podem ser as mesmas porque as sociedades e os homens que a compõem passam por transformações ao longo dos tempos. O conjunto central dos valores definidos no documento – questão dos conteúdos – baseiase, sobretudo, no princípio de dignidade do ser humano, um dos fundamentos da Constituição Brasileira. Segundo esse valor, toda e qualquer pessoa, pelo fato de ser um ser humano, é digna e merecedora de respeito (p.102). O critério de eleição desses conteúdos leva em consideração, primordialmente, o princípio das diferenças entre os indivíduos (sejam elas a etnia, a cultura, a classe social, a religião, o grau de instrução etc); a possibilidade de serem trabalhados na escola; e a sua relevância tanto para o ensino das diversas áreas quanto para o convívio social. Tais conteúdos apresentam-se desmembrados em blocos, os quais correspondem a grandes eixos que estabelecem as bases de diversos conceitos, atitudes e valores complementares (p.102) e constituem-se em: Respeito mútuo, Justiça, Diálogo e Solidariedade. Respeito mútuo A Ética nos PCN A justificativa da Ética como tema necessário à prática pedagógica defende, sobretudo, a intencionalidade de ações que levem os alunos a uma reflexão sobre a sua conduta e a dos outros a partir de princípios morais. Assim sendo, os temas transversais não se configuram como disciplinas, mas como proposta de temas a serem tratados de forma subjacente a todo o universo disciplinar do cotidiano escolar. Os PCN entendem que o espaço escolar é uma instituição importantíssima na formação ética das novas gerações por este refletir a nossa sociedade através da expressão de valores e condutas influenciáveis no desenvolvimento das crianças. 4 O tema respeito é central na moralidade. Os PCN esclarecem que há várias possibilidades de associação a este valor. A primeira está ligada à idéia de submissão, de respeito construído a partir do medo, das potenciais retaliações advindas da não-subordinação. Uma outra associação comum se dá através da admiração ou veneração a determinadas pessoas. Em ambos os casos se percebe a expressão do respeito em caráter apenas unilateral, sem que a recíproca seja verdadeira ou necessária. É o poder quem, nestes casos, determina a construção dessa expressão desvirtuada, afastando-a da plena concepção do termo. Quando essa expressão revela condição recíproca vinculada à idéia de igualdade, Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71) A Educação Moral... - Bruno Olivatto evidencia-se, aí, uma situação de respeito mútuo, e não-associação com a submissão, ou com qualquer manifestação tendenciosa do uso do poder. Este estado de reciprocidade se instala quando do reconhecimento das diferenças e pela necessidade de sentir-se respeitado na sua singularidade. Justiça O conceito de justiça trazido pelos PCN imbrica-se claramente com o valor anteriormente apresentado: o respeito mútuo. Como devo agir perante os outros? e Como ser justo com os outros? são questionamentos que nos remetem à reflexão da existência de uma possível “conduta legal” que oriente o comportamento social. Tal “conduta legal” pode ser entendida como o conjunto de leis de uma nação e mais, obediência a elas. Contudo, o conceito de justiça vai muito além da dimensão legalista. A prova disso são, por exemplo, as múltiplas possibilidades interpretativas oferecidas a partir do texto legal com base nos critérios éticos. Daí decorre um exemplo primoroso da importância ética na construção e discussão acerca da justiça. Como esta estará sempre sujeita a reflexões teóricas pautadas em leis que não passam de normas estabelecidas socialmente, as leis devem ser questionadas à medida que palpitem reflexões que evidenciem indícios da necessidade de ampliar os seus critérios de igualdade e eqüidade. Diálogo Os PCN esclarecem, de imediato, que pretendem discutir o valor diálogo – característica essencialmente humana – numa perspectiva de bem possibilitador de entendimento entre os homens, logo potencial amenizador de conflitos e desigualdades. Não há dúvida de que um dos objetivos fundamentais da educação é fazer com que o aluno consiga participar do universo da comunicação humana, aprendendo por meio da escuta, da leitura, do olhar, as diversas mensagens (artísticas, científicas, políticas e outras) emitidas de diversas fontes; e fazer com que seja capaz de, por meio da fala, da escrita, da imagem, emitir suas próprias mensagens (p.109). O diálogo implica na capacidade de ouvir o outro e de se fazer ouvir. É também um valor que liga-se diretamente aos demais. A premissa do ouvir o outro é condição de respeito e elemento decisivo para a construção da justiça. Contudo, esse direito ao diálogo não pode ser usado de forma transgressora do seu real sentido para fins violentos de domínio e opressão contra o semelhante. Vivemos numa democracia, onde se tem o direito de expressar-se livremente. Na escola, como em outros locais de convívio social, presencia-se a necessidade de trabalhar com este valor a fim de tornar mais harmoniosa a convivência humana. Toda expressão plena do valor diálogo deve levar à democracia. Solidariedade A proposta de apresentação da solidariedade contida nos PCN prima pela associação deste valor à idéia de generosidade, da doação e ajuda desinteressada. Sua prática impõe consonância com os demais pilares aqui já mencionados, respeito mútuo, justiça e diálogo. A rigor, se todos fossem solidários nesse sentido, talvez nem se precisasse pensar em justiça: cada um daria o melhor de si para os outros (p.110). A intenção de situar bem a compreensão acerca da solidariedade justifica-se na medida que procura distanciá-la da idéia de cumplicidade, pois nesse caso ela não tem nada de ético, ao contrário, é condenável por ocorrer em benefício próprio. A solidariedade é uma virtude de relevância para as relações interpessoais, sociais e políticas. Pode ser percebida, inclusive de modo sutil, quando do exercício da cidadania, lutando e defendendo constantemente o bem comum, o espaço e o direito de todos. Segundo os PCN, os rótulos, por exemplo, dados às pessoas a partir da sua conduta pessoal – boa ou ruim –, estão inteiramente ligados à concepção de moral internalizada por aquele que emite o juízo de valor. Isso revela, nas entrelinhas, toda a subjetividade e relatividade desse processo de assimilação e construção morais. Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71) 5 A Educação Moral... - Bruno Olivatto Os comportamentos que manifestam são reflexos da educação moral que receberam direta ou indiretamente na família, escola, no convívio com outras pessoas, na sociedade como um todo, revelando toda a complexidade do tema. Concluindo Antes de qualquer coisa, deve-se perceber que as idéias sobre educação moral defendidas por Bertrand Russell e a ética contida nos PCN revelam-se duas obras de natureza e finalidade distintas. Embora ambas tratem do mesmo tema, ou seja, educação moral, a primeira expressa as idéias de um filósofo que, como tal, buscava apenas a verdade, enquanto a segunda expressa e recomenda, como prática, concepções e valores morais consagrados, na civilização ocidental, como desejáveis. Russell centra a sua proposta de educação moral em torno do desenvolvimento intelectual do aluno. É a priorização do aspecto intelectual na formação moral. Tal primazia para com a questão da inteligência como indispensável à formação moral pode conferir a ele, inclusive, um certo grau de originalidade. Afinal, ele ousa colocar no centro a condição intelectual como te desejado. A ousadia de Russell não reside no fato, puro e simples, de ele considerar a inteligência como necessária à formação moral, mas, sim, em trazê-la para a seara da moral, compreendendoa como uma virtuosidade. Até porque, historicamente, há uma tradição milenar que diferencia vida moral da vida intelectual. Recuando na história da humanidade, poderíamos, inclusive, ir buscar na Paidéia – primeira teorização acerca da educação – a idéia de que educar não é apenas promover a socialização dos indivíduos, um ato meramente repetitivo, uma atitude pragmática, mas um vôo ao transcendente, uma busca constante pela excelência humana. E isso tem relação direta com a vida intelectual na medida que os sofistas compreendiam essa excelência como um virtuosismo da razão, expressa na arte da retórica, na virtude de convencer pelo argumento. Os PCN não se referem ao aspecto intelectual da inteligência como condição 6 necessária à formação moral do aluno, ou pelo menos não a colocam nesta seara, ainda que possamos inferir que, ao propor o documento, estejam favorecendo a melhoria da educação do nível básico, e, implicitamente, defendendo a propagação do exercício da inteligência entre os alunos. Os PCN centram sua defesa de construção moral em favor do respeito à diversidade cultural e na tolerância em relação ao outro, síntese dos quatro pilares que defendem. Uma clara aproximação com a proposta de Russell, entretanto, não aparece nos PCN do Ensino Fundamental, mas, sim, nos PCN do Ensino Médio, volume das Bases Legais, quando o documento conceitua como estética da sensibilidade a valorização da criatividade, inventividade, delicadeza, leveza, criação e beleza. Isso nos remete aos fins da educação onde, assim como Russell, os PCN admitem não ser o pragmatismo da utilidade prática o fim último do processo educativo. Um outro aspecto original trazido por Russell a partir, ainda, da sua priorização do intelecto, é a relação que estabelece entre inteligência e sensibilidade. A sensibilidade passa a manter vínculos diretos com a inteligência a partir do momento em que o conhecimento, construído pela apropriação e apreensão da realidade, é que fornece os elementos geradores de reações, ou seja, provocadores de algum tipo de indignação. É a capacidade de produzir – via exercício de abstração – reações mesmo a distância, sem a necessidade da experiência sensível. Assim, “russellianamente” especulando, talvez falte ao segmento dirigente do nosso país, sempre distante da realidade caótica de sofrimento e indigência do povo, inteligência para alcançar esse nível sensorial abstrato. Dessa forma, nossos representantes parecem não conseguir sensibilizar-se com aquela parcela da sociedade que sub-vive. É necessário que esse grupo dirigente consiga ser tocado a distância. Curioso é que estas distâncias progressivamente se encurtam e este segmento insiste em manter-se desumano e indiferente. É no mínimo admirável o que fez o presidente Lula, no início do seu mandato, quando convocou parte do seu ministério a conhecer in loco o drama dos habitantes do semiárido, que convivem com a situação de seca por Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71) A Educação Moral... - Bruno Olivatto quase todo o ano. O recado pareceu claro: vejam pessoalmente com os próprios olhos e sensibilizem-se porque do gabinete, com arcondicionado, a miséria é apenas um frio dado estatístico. O fato é (...) quem, em face desses cenários dramáticos, não se indignar é inimigo da sua própria humanidade (Boff, 2003). A frase nos convida a ampliar a responsabilidade a todos aqueles que colaboram, através de sua indiferença, para perpetuação de tais cenários. Se há realmente relação entre sensibilidade e moral, é verdade que não poderá haver um estado global de sensibilizados para as condições desumanas vividas pela maioria desfavorecida enquanto não se expandir o desenvolvimento da inteligência. É como um ciclo fechado em si mesmo: pouco desenvolvimento intelectual que gera pouca capacidade de sensibilizar-se que gera a indiferença que leva à manutenção do estado de desigualdade, perpetuando, assim, o ciclo. Obviamente que há outros condicionantes para a reprodução deste círculo vicioso, contudo a análise visa se ater exclusivamente à relação sensibilidade/moral trazida por Russell. Outra evidência importante a ser comentada sobre as propostas apresentadas é o tom individual com que Russell e os PCN tratam a formação da moralidade. O primeiro, por exemplo, não explicita em momento algum a dimensão social como potencial influenciadora desse processo. Quanto aos PCN, estes se referem apenas à aceitação individual das diferenças culturais. Ao desconsiderarem, por exemplo, a dimensão socioeconômica ou, mais explicitamente, as desigualdades sociais, como um dos fatores responsáveis pela discriminação de culturas, perdem a oportunidade de esclarecer a não-superioridade de uma dada etnia e cultura sobre outra, já que a visão de cultura superior exerce forte influência na formação dos valores morais. A crise generalizada desses valores morais da sociedade contemporânea tem relação íntima, inclusive, com a crise da escola, por conta da perda de clareza da sua função social. Enquanto a escola continuar insistindo em não cumprir seu papel de fazer o aluno pensar e exercitar a sua capacidade infinita de aprender e de trocar saberes com o outro, perpassando, necessariamente, pelo domínio da escrita, da leitura e dos cálculos, muito distante estaremos do ideal moral proposto por Russell – quando exalta a inteligência – e reafirmado pelos PCN – quando reconhecem a escola como espaço de reflexão permanente sobre a moralidade, já que ali está encharcado de valores que se traduzem em princípios, ordens, regras e proibições. Diálogo entre propostas, nesse caso aqui entre Russell e os PCN, deve continuar a fim de que possamos cada vez mais agregar novas idéias e, assim, renovar o nosso paradigma de educação moral. O importante, mesmo, é mantê-lo em debate. Nunca existirá uma moral definitiva nem tampouco um conjunto ideal de normas que possa nos esterilizar do contágio da circunstancialidade e tornar-se fixo e útil a qualquer experiência subseqüente. É bom não perder de vista, contudo, após esse estudo, que a educação moral não serve para internalizar normas corretas, mas para aprender que as normas são necessárias como parâmetros de salvaguarda de princípios mínimos de convivência humana, como o respeito à vida, à dignidade do indivíduo, e para aprender a lidar com estes princípios em circunstâncias concretas. Referências Bibliográficas BOFF, Leonardo. Jornal A TARDE, Bahia. 13/12/ 03, p.02 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Apresentação dos Temas Transversais, Ética. Brasília, 1997. BRASIL. Secretaria de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1997. GOERGEN, P. Educação Moral: adestramento ou reflexão comunicativa? In: Educação e Sociedade. vol.22 no.76 Campinas Oct. 2001. RUSSELL, B. Educação e Ordem Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. RUSSELL, B. O Melhor de Bertrand Russell: silhuetas satíricas; seleção e introdução, Robert E. E. 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