RPCV (2005) 100 (555-556) 185-188 2 % 6 ) 3 4 ! 0 / 2 4 5 ' 5 % 3 ! $% #).#)!36%4%2).¸2)!3 Influência da microflora de cura na ocorrência de Listeria spp. em queijos tradicionais Influence of the ripening microflora of traditional cheeses on the occurrence of Listeria spp. Maria Manuela Guerra1,2* e Fernando M. de Almeida Bernardo2 Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Av. Condes de Barcelona, 2765-470 Estoril, Portugal 2 Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Técnica de Lisboa. CIISA, Av. da Universidade Técnica, Polo Universitário da Ajuda, 1300-477 Lisboa, Portugal 1 Resumo: A maturação do queijo consiste num conjunto complexo de processos bioquímicos, no qual a microflora específica desempenha um papel importante. As bactérias lácticas e os Enterococcus produzem vários compostos bactericidas que inibem parte da microflora indesejável sendo alguns também responsáveis pelas características organolépticas dos queijos. Em 54 queijos tradicionais alentejanos, onde se havia pesquisado a presença de Listeria spp., efectuaram-se contagens da flora láctica e de Enterococcus, com o objectivo de verificar a existência de alguma influência entre os tipos e teores de microflora de cura e a ocorrência de Listeria spp. naqueles produtos. Verificou-se que os teores médios de flora láctica e de Enterococcus se situava entre 6,9 e 8,6 Log10 UFC/g e entre 5,9 e 7,6 Log10 UFC/g, respectivamente. Os teores médios mais elevados de flora láctica ocorreram em queijos fabricados com leite cru e em meia cura enquanto que os teores médios mais elevados de Enterococcus foram observados nos queijos fabricados com leite cru e curados. As amostras contaminadas por Listeria spp. apresentaram simultaneamente elevados teores de flora láctica e de Enterococcus, o que parece indicar que esta microflora não influenciou a colonização de Listeria spp. nos queijos em estudo. Palavras chave: Enterococcus, Flora Láctica, Listeria spp., L. monocytogenes, Queijos. Summary: Cheese ripening corresponds to a complex biochemical process where specific microflora plays an important role. Lactic acid bacteria and Enterococcus produce several bactericidal compounds that inhibit spoilage microflora and that may also be responsible for the organoleptic characteristics of the cheeses. Lactic acid bacteria and Enterococcus countings were performed in 54 traditional cheeses previously studied for the presence of Listeria spp., in order to assess the influence of the ripening microflora on the occurrence of Listeria spp. in those products. Lactic acid bacteria and Enterococcus average countings ranged from 6,9 to 8,6 Log10 CFU/g and from 5,9 to 7,6 Log10 CFU/g, respectively. The higher levels of lactic acid bacteria were obtained from half ripened cheeses produced with raw milk whereas for the Enterococcus the higher countings were registered for the completely ripened cheeses produced with raw * Correspondência: email: [email protected]; telf: + 351 21 0040779; Fax: + 351 21 0040719 milk. The samples contaminated with Listeria spp. also registered high levels of lactic acid bacteria and Enterococcus, which may indicate a Listeria colonisation independent from the ripening microflora of the studied cheeses. Key words: Cheeses, Enterococcus, Lactic acid bacteria, Listeria spp., L. monocytogenes. Introdução Com bastante frequência, as bactérias do género Listeria estabelecem relações bióticas com os outros elementos constituintes das microfloras dos alimentos. Os mecanismos das relações antagónicas que se estabelecem entre microrganismos colonizadores nos alimentos têm um enorme significado tecnológico e em Saúde Pública, evitando, muitas vezes, os perigos decorrentes da presença de microrganismos patogénicos (Mossel e Garcia, 1984). As bactérias produtoras de ácido láctico, produzem vários compostos bactericidas durante a maturação dos alimentos, como os ácidos orgânicos que fazem baixar o pH, o peróxido de hidrogénio e as bacteriocinas. São alguns destes compostos responsáveis pelas características organolépticas e que inibem também alguns germes da microflora indesejável (Raccach et al., 1979; Abdel-Bar e Harris, 1984; Piard e Desmazeaud, 1991; Abdalla, et al., 1993b; Héchard et al., 1993; Nettles e Barefoot, 1993). Há muito que se reconhece que a maturação do queijo consiste num conjunto complexo de processos bioquímicos, no qual a microflora específica desempenha um papel importante. As espécies implicadas na maturação de alimentos (queijos) pertencem ao género Lactococcus, Streptococcus, Pediococcus, Leuconostoc e Lactobacillus. Na maturação intervêm ainda propionobacterias e leveduras. Por outro lado, as características da ordenha praticadas nas ovelhas e cabras, fazem prever uma elevada contaminação fecal, quer nos leites quer 185 Gerra, M.M. e Bernardo, F.M.A. RPCV (2005) 100 (555-556) 185-188 nos queijos a que deram origem, para além da flora láctica habitual. As bactérias lácticas e os Enterococcus produzem vários compostos responsáveis pelas características organolépticas dos queijos e ao mesmo tempo inibem parte dos germes da microflora indesejável. Em queijos tradicionais alentejanos, onde se pesquisou a presença de Listeria spp. (Guerra e Bernardo, 1999), efectuaram-se contagens da flora láctica e de Enterococcus, com o objectivo de verificar a existência de alguma influência entre os tipos de microflora de cura e a ocorrência de Listeria spp. naqueles produtos. Material e métodos A partir da suspensão-mãe em água Peptonada Tamponada de 54 amostras de queijos tradicionais alentejanos, efectuaram-se diluições decimais e semeou-se, por incorporação, em duplicado, 1 ml de cada uma delas em gelose de diferenciação e contagem de Lactobacilli e Streptococci no iogurte (L-S modificada) (NP1864/87), em gelose de Man Rogosa e Sharpe (MRS) (Oxoid CM361) e em gelose Canamicina Esculina Azida Agar (CEAA) (Oxoid CM591 + SR92) para a contagem das floras láctica e enterocócica, respectivamente. As geloses foram incubadas a 37ºC durante 2448 horas, sendo as culturas em L-S em microaerofilia (Gas Generating Kit Oxoid BR 38). Após a incubação procedeu-se à contagem de colónias características. Na gelose L-S foram consideradas características as colónias lenticulares, pequenas com 0,1 a 0,2 mm de diâmetro redondas ou ovais, de bordos regulares, brancas com centro vermelho, envolvidas por uma zona clara (Streptococcus lácticos) e colónias grandes com 1 mm de diâmetro, rizóides, de bordos irregulares, vermelhas escuras, envolvidas por uma zona turva esbranquiçada (Lactobacilllus) (NP 1864/87). Na gelose de MRS contaram-se as colónias de 0,5 a 1 mm de diâmetro, redondas, lisas ou rugosas, brancas ou incolores brilhantes (Oxoid, 1990). No meio de CEAA contaram-se as colónias redondas com 1 a 2 mm de diâmetro, brancas ou acinzentadas, envolvidas por um halo negro de pelo menos 1 cm (Enterococcus) (Oxoid, 1990). Resultados Verificou-se que os teores médios de flora láctica e de Enterococcus dos queijos tradicionais produzidos no Alentejo se situava entre 6,9 e 8,6 Log10 UFC/g e entre 5,9 e 7,6 Log10 UFC/g, respectivamente. Os teores médios mais elevados de flora láctica ocorreram em queijos fabricados com leite cru e em meia cura enquanto que os teores médios mais elevados de enterococos foram observados nos queijos fabricados com leite cru e curados (Quadro 1). As amostras contaminadas por Listeria spp. (Guerra e Bernardo, 1999) apresentaram simultaneamente elevados teores de flora láctica e Enterococcus (Quadro 2). Nos queijos em meia cura, fabricados com leite cru de ovelha e vaca, onde se efectuaram contagens e que se apresentaram contaminados por Listeria spp. [T4 (q1), T4 (q2), T4 (q5), T4 (q8)], os teores de flora láctica e de Enterococcus eram > 8 Log10 UFC/g e entre 5,3 e 7,8 Log10 UFC/g, respectivamente. Nos queijos em meia cura fabricados com leite pasteurizado de ovelha e vaca, registaram-se teores > 7,9 Log10 UFC/g de flora láctica e > 6,8 Log10 UFC/g de Enterococcus, exceptuando três queijos com 3,3 Log10 UFC/g, 5,6 Log10 UFC/g, e 5,7 Log10 UFC/g. Os queijos curados fabricados com leite cru de ovelha e contaminados por Listeria spp., apresentaram teores de flora láctica > 7,4 Log10 UFC/g e > 6,0 Log10 UFC/g de Enterococcus. Inclusivamente, alguns queijos contaminados por Listeria spp. apresentaram os teores mais elevados destas duas floras, como é o caso de 2 amostras de queijo em meia cura, fabricados com leite cru de ovelha e vaca, [T4 (q1) e T4 (q2)], de um queijo em meia cura fabricado com leite pasteurizado de ovelha e vaca, [T5 (q12)] e de um queijo curado fabricado com leite cru de ovelha, [T2 (q2)] (Quadro 2). Quadro 1 - Teores médios de Flora Láctica e de Enterococcus spp. em queijos tradicionais do Alentejo (log10 UFC/g) Tipo de queijo Enterococcus spp. (CEAA) Log10 UFC/g queijo Flora Láctica (L-S) Log10 UFC/g queijo N Média (p) (dp) N Média (p) (dp) T1 --- --- --- --- 5 6,6 2,06 1,43 T2 5 6,9 1,24 1,11 8 7,6 0,52 0,72 T3 --- --- --- --- 3 6,2 0,69 0,83 T4 8 7,9 1,54 1,24 14 6,2 9,77 0,88 T5 7 7,9 0,22 0,47 11 6,7 1,94 1,39 T6 3 7,5 0,08 0,28 5 5,9 0,98 0,99 T6* 4 8,6 0,15 0,12 --- --- --- --- Legenda: T1: queijo de ovelha fabricado com leite cru, em meia cura; T2: queijo de ovelha fabricado com leite cru, curado; T3: queijo de cabra fabricado com leite cru, curado; T4: queijo de mistura fabricado com leite cru de ovelha e vaca, em meia cura; T5: queijo de mistura fabricado com leite pasteurizado de ovelha e vaca, em meia cura; T6: queijo de mistura fabricado com leite pasteurizado de ovelha e vaca, curado; T6* flora láctica determinada com gelose MRS; N: nº de amostras; (p): variância; (dp):desvio padrão; ---: Não determinado 186 Gerra, M.M. e Bernardo, F.M.A. RPCV (2005) 100 (555-556) 185-188 Quadro 2 - Correspondência entre os teores de flora láctica e enterocócica e a presença de Listeria spp. Tipos de Queijo e amostras (q) com Listeria spp. Espécies de Listeria Teor (log10 UFC/g queijo) em flora láctica Teor (log10 UFC/g queijo) em Enterococcus T2(q1) L. monocytogenes 7,8 6,7 T2(q2) L. monocytogenes 8,0 6,3 T2(q3) L. monocytogenes 7,9 6,3 T2(q4) L. monocytogenes 7,4 6,0 T4(q1) L. monocytogenes 8,7 5,9 T4(q2) L. monocytogenes 8,6 7,8 T4(q5) L. innocua --- 5,3 T4(q8) L. innocua --- 5,9 T5(q1) L. seeligeri 8,5 5,7 T5(q2) L. seeligeri 7,1 3,3 T5(q3) L. seeligeri 8,4 5,6 T5(q6) L. monocytogenes; L. seeligeri 7,6 7,1 T5(q7) L. ivanovii; L. grayi 7,9 7,7 T5(q8) L. seeligeri; L. ivanovii; L. innocua 7,9 7,5 T5(q10) L. seeligeri; L. innocua --- 7,7 T5(q11) L. monocytogenes; L. ivanovii --- 7,5 T5(q12) L. seeligeri; L. innocua --- 7,9 Teor médio 7,8 6,45 Variância (p) 0,24 1,44 Desvio padrão (dp) 0,49 1,20 Legenda: T2: queijo de ovelha fabricado com leite cru, curado; T4: queijo de mistura, fabricado com leite cru de ovelha e vaca, em meia cura; T5: queijo de mistura fabricado com leite pasteurizado de ovelha e vaca, em meia cura Discussão As bactérias lácticas, homo e heterofermentadoras têm um papel fundamental a nível das indústrias de lacticínios, carnes, vegetais, pastelaria e de bebidas alcoólicas, onde são frequentemente utilizadas como “starters”. Sabe-se que, durante a maturação dos queijos, esta microflora desempenha um papel crucial, sobretudo pela formação das características organolépticas e também pela inibição do desenvolvimento de bactérias indesejáveis (Lenoir, 1985; Demarigny et al., 1996). As diferenças registadas nos teores médios de flora láctica e fecal dos queijos tradicionais, produzidos em várias zonas do Alentejo podem ser atribuídas às distintas tecnologias de fabrico, nomeadamente, o tipo de leite (mistura, ovelha e cabra), a utilização de leite termicamente tratado e ainda, o estado de maturação (meia cura / curados). Sabe-se que o número total de germes varia relativamente pouco ao longo da maturação mas, a proporção entre os diferentes grupos microbianos evolui. Determinadas espécies ou certos grupos bacterianos multiplicam-se activamente enquanto outras populações permanecem em número constante ou desaparecem pouco a pouco. Estas diferentes evoluções, ligadas às condições de desenvolvimento inerentes a cada grupo de microrganismos, dependem da composição do substrato (pH; Aw; nutrientes) e do ambiente (temperatura, composição da atmosfera) (Lenoir, 1988). Em Portugal, Freitas et al. (1995) ao caracterizarem o queijo Picante da Beira Baixa, verificaram uma evolução progressiva de flora láctica de 9 log10 no início a 7 log10 UFC/g no final da maturação. Estes valores incluem, no entanto, os teores de Enterococcus, os quais predominaram no final do período de maturação destes queijos (180 dias). Giraffa et al. (1997), numa revisão sobre o papel queijeiro dos Enterococcus referem que na microflora de vários queijos têm-se encontrado teores daqueles microrganismos entre 7 log10 e 8 log10 UFC/g. É possível distinguir duas categorias de queijos: queijos fabricados com leite cru com ou sem a adição de “starters” e os queijos fabricados com leite pasteurizado com adição de “starters”. Nos primeiros queijos (normalmente de pasta mole e de pasta semi-mole) os Enterococcus presentes no leite podem multiplicar-se durante o processamento e a maturação e, dependendo da tecnologia, podem corresponder à microflora predominante do queijo. A presença nos fermentos lácteos é explicada pela sua resistência térmica. Aqueles fermentos são obtidos a partir de leites pasteurizados e incubados a 42º-44ºC durante 12 a 15 horas, ou seja, permitindo uma selecção natural de bactérias lácticas 187 Gerra, M.M. e Bernardo, F.M.A. resistentes ao calor e termofílicas. No segundo caso, normalmente queijos frescos ou de pasta mole, a presença de Enterococcus indesejáveis pode conduzir a problemas organolépticos atribuídos a más condições de higiene durante a produção do queijo. Os queijos produzidos na região do Alentejo que foram analisados podem inserir-se em ambas as categorias, embora não lhes sejam adicionados fermentos lácticos. A presença de Enterococcus nos queijos produzidos a partir de leite pasteurizado, pode dever-se às características de resistência térmica deste género de bactérias (termodúricas). Verificou-se no entanto que os teores de flora láctica e de Enterococcus não exerceram um efeito antagónico visível nos queijos contaminados por Listeria spp., em condições naturais. Não obstante, em ensaios in vitro foi reconhecida a capacidade inibitória de L. monocytogenes por parte de isolados recolhidos no presente estudo (Guerra e Bernardo, 2001) e que foi atribuída à produção de ácidos orgânicos e/ou à produção de peróxido de hidrogénio. Outros autores verificaram a inexistência de antagonismos entre a flora láctica e Listeria, como é o caso de Shaack e Marth (1988a,b) que demonstraram a sobrevivência de L. monocytogenes durante a fermentação de leite desnatado, na presença de Lactococcus cremoris e Lactococcus lactis e durante 12 dias no iogurte. De salientar, por outro lado, os trabalhos de Abdalla et al. (1993a,b) que determinaram a sobrevivência de L. monocytogenes em queijo branco picante, fabricado com a adição de bactérias lácticas e substâncias antimicrobianas, entre as quais, ácidos orgânicos e peróxido de hidrogénio. Estes autores verificaram que nenhuma das substâncias antimicrobianas inibiu o patogénico, mas em contrapartida, as culturas lácticas inibiram-no ao longo do processo de maturação do referido queijo. Acresce considerar que pelo facto de no presente estudo não se ter realizado uma avaliação ao longo do processo tecnológico de fabrico e maturação, os resultados poderem também reflectir o momento em que ocorreram as contaminações por Listeria. Isto é, poderem traduzir uma contaminação cruzada superficial, da distribuição, mais do que uma contaminação da produção, hipótese já formulada anteriormente (Guerra e Bernardo, 1999) e que tornaria ineficaz uma eventual actividade inibitória por parte das microfloras láctica e enterocócica. Os resultados deste trabalho revelam a existência de elevados teores de flora láctica e de enterococos nos queijos tradicionais produzidos em várias zonas do Alentejo, notando-se algumas diferenças atribuídas às distintas tecnologias de fabrico (tipo de leite e estado de maturação). A referida microflora não parece influenciar a colonização de Listeria spp., pelo menos nos queijos em estudo, uma vez que as amostras contaminadas apresentavam, simultaneamente, elevados teores daquelas floras, embora possam existir factores que tenham contribuído para essa observação, nomeadamente o momento das contaminações por Listeria spp. 188 RPCV (2005) 100 (555-556) 185-188 Bibliografia Abdalla, O.M., Christen, G.L. e Davidson, P.M. (1993a). ������ Chemical composition of and Listeria monocytogenes survival in white pickled cheese. Journal of Food Protection, 56, 841-846. Abdalla, O.M., Davidson, P.M. e Christen, G.L. (1993b). Survival of selected pathogenic bacteria in white pickled cheese made with lactic acid bacteria on antimicrobials. Journal of Food Protection, 56, 972-976. Abdel-Bar, N.M. e Harris, N.D. (1984). Inhibitory effect of Lactobacillus Bulgaricus on psychrotrophic bacteria in associative cultures and in refrigerated foods. 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