O TRATAMENTO PRONOMINAL DE 2ª PESSOA E AS FORMAS
ALTERNANTES OBLÍQUAS: ANALISANDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
EM CARTAS PESSOAIS DOS SÉCULOS XIX-XX
Camila Duarte de Souza (UFRJ/PIBIC-CNPq)
[email protected]
Thiago Laurentino de Oliveira (UFRJ/IC Balcão-CNPq)
[email protected]
Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ/CNPq/FAPERJ)
[email protected]
1
– Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir os desdobramentos ocasionados pela
inserção de você no português brasileiro (doravante, PB), explorando a relação
gramatical oblíqua, a fim de ressaltar: como se dá a variação tu x você nessa posição
durante as primeiras décadas do século XX (período de consolidação do uso de você) e
que fatores extralinguísticos estariam consolidando esses usos. No âmbito das tradições
discursivas, pretendemos discutir qual seria a contribuição gênero “carta pessoal” para o
fenômeno em análise, na tentativa de identificar se os empregos tratamentais analisados
estariam relacionados à norma da época ou à tradição do texto (cf. Kabatek, 2006;
Lopes, a sair). Utilizamos como material de análise uma amostra oriunda do Corpus
Compartilhado Diacrônico, composto por cartas pessoais escritas no Rio de Janeiro em
fins do século XIX e na primeira metade do século XX, que integram o Projeto
“Retratos da mudança no sistema pronominal: edição diplomático-interpretativa em facsímile
de
cartas
cariocas
(séculos
XVIII-XX),
disponíveis
em
<http://www.letras.ufrj.br/laborhistorico>. Analisamos os dados tomando por base os
princípios fundamentais da sociolinguística laboviana (Labov, 1994).
A entrada da forma de tratamento você no quadro dos pronomes pessoais do PB
desencadeou um rearranjo no uso das estratégias de segunda pessoa do singular, com
consequências morfossintáticas na estrutura das sentenças, além de modificações no
plano discursivo. Estudos anteriores vêm demonstrando, no entanto, que esta inserção –
fruto de um longo processo de gramaticalização – não se deu na mesma medida e da
mesma forma nas diferentes posições da sentença. As posições de complemento
acusativo/objeto direto (OD) e dativo/objeto indireto (OI), ao que tudo indica, são mais
resistentes à entrada de você, conservando formas relacionadas ao pronome primitivo tu,
realizado majoritariamente por meio da forma clítica te. As posições de sujeito e
oblíquo têm se mostrado como contextos mais favorecedores à entrada da nova forma
gramaticalizada você. No caso das posições oblíquas, alguns fatores podem justificar tal
facilitação à forma [+inovadora]: o fato de não ser uma relação central (como o OD e o
OI) e a inexistência de um clítico específico. Além de aspectos estruturais, levaremos
em conta as hipóteses de Company (2006, p. 500) para a história do espanhol. Ao
discutir a manifestação semântica referencial do objeto indireto, a autora afirma que as
formas de 1ª e 2ª pessoas “ocupam de maneira natural uma posição mais alta que a 3ª
pessoa” e constituem mais frequentemente o centro de interesse e atenção discursiva. A
autora defende ainda que o caráter humano do objeto indireto leva à aproximação dessa
categoria a do nominativo que também é prototipicamente animado. Ambos exibem
traços de topicalidade, além de serem entidades com propriedades volitivas e de
agentividade, diferentemente do objeto direto que costuma ter mais comumente o traço
inanimado. Embora Company (2006, p. 508) esteja se referindo ao objeto indireto
dativo e não aos oblíquos, essa discussão nos interessa, em particular, pelo fato de nossa
análise estar centrada nos complementos de segunda pessoa que, como assinalado, tem
alta proeminência discursiva e são [+humanos].
A fim de resolver tais questões, nos valemos de algumas hipóteses. O emprego
do pronome você no interior de sintagmas preposicionados em relações oblíquas de 2ª
pessoa do singular seria favorecido por esta não ser uma relação central e, portanto, com
baixo grau de integração ao núcleo predicador da sentença. A forma gramaticalizada
você se implementou no sistema pronominal em contextos de maior motivação
discursivo-pragmática como é o caso do sujeito e complemento oblíquo, marcando
ainda contraste e/ou individuação. Acreditamos, inclusive, que o tipo de construção
epistolar é determinante no que tange ao emprego da relação gramatical relacionada ao
sistema de TU ou de VOCÊ.
2
- Corpus analisado
Utilizamos neste trabalho um corpus constituído por cartas particulares escritas
entre os anos de 1936 e 19371 por um casal de noivos residentes no Rio de Janeiro. O
noivo, Jayme de Oliveira Saraiva, residia no subúrbio carioca de Ramos e trabalhava no
centro da cidade da antiga capital federal. A noiva, Maria Ribeiro da Costa, morava em
Petrópolis e era mãe solteira de uma menina. Através da leitura das cartas, pôde-se
traçar uma pequena biografia do casal. Ambos moravam com seus pais, no entanto, a
mãe de Jayme não gostava de Maria e, por isso, eles não podiam se ver com frequência.
Secretamente, encontravam-se na Igreja da Penha, aos domingos (Maria era muito
religiosa) ou na Rua Uruguaiana, perto do trabalho de Jayme. Maria e Jayme tinham um
comportamento linguístico ligeiramente distinto em termos do maior ou menor domínio
de modelos de escrita e em relação às escolhas tratamentais. Inserido no mercado de
trabalho, Jayme apresentava uma produção escrita reveladora de uma cultura mediana e
seu discurso amoroso era repleto de frases feitas e de um lirismo típico das cartas de
amor. Maria era mãe solteira e não trabalhava. Apesar de ser alfabetizada, havia fortes
traços de oralidade na sua produção escrita o que revelava pouco contato com os meios
de educação formal da sua época. Nas imagens a seguir estão reproduzidas duas versões
de uma mesma carta escrita por Maria: à esquerda, está o rascunho e à direita, a versão
final da carta:
1
A intenção inicial era a de analisarmos as formas oblíquas em cartas pessoais dos séculos XIX e XX, tal
qual está no título. Entretanto, como os dados de oblíquos nas missivas do século XIX foram irrisórios,
resolvemos nos ater apenas às cartas do início do século XX quando efetivamente o sistema de tratamento
começa a sofrer mudanças mais significativas.
Na reescritura da carta, mesmo alterando algumas formas, notamos que a
missivista apresentava traços de oralidade em sua produção escrita, principalmente pela
ausência de sinais de pontuação. Na comparação das duas versões, verificamos que ela
inseriu dois parágrafos, modificou a grafia da palavra “preguntou” para “perguntou”,
além de alterar a sentença “que elle falou com elle” para “que eles falarão”. A incerteza
de Maria quanto aos modelos de escrita se evidencia na repetição em seu texto de frases
do tipo: “não repares esta carta qui eu não sei escrever” ou “não repares nesta carta nei
nos eros”.
3
- Objeto de estudo
Encontramos em português as relações gramaticais acusativas, dativas e
oblíquas. As primeiras são necessariamente complementos verbais, enquanto as
oblíquas complementam não só verbos, como também nomes e adjetivos. Intitulamos
como acusativo o que a Gramática Tradicional (GT) nomeia de objeto direto. O dativo,
por sua vez, é o complemento que apresenta preposição, chamado tradicionalmente de
objeto indireto. Tendo em vista que os oblíquos também são encabeçados por
preposições, qual seria a distinção entre este e o dativo?
A primeira grande diferença reside no fato de que os dativos podem ser
cliticizados, porém os oblíquos não podem. No caso dos dativos, podemos observar a
variação entre te~ a/para você~Ø~lhe (enviei-te a carta ~ enviei a carta a você ~
enviei-lhe a carta); os oblíquos só podem ser realizados como um sintagma
preposicionado, sendo agramatical o uso do clítico (sonhei com você - *te sonhei).
Consideramos aqui objeto indireto (dativo) o constituinte que é tipicamente um
argumento interno de verbos de dois lugares do tipo (S V OI) ou ditransitivos (S V OD
OI) com papel semântico de alvo, fonte ou beneficiário com traço [+animado] (Duarte
2003: 289, Berlinck 1996). Os exemplos a seguir ilustram algumas formas de
complemento dativo:
(1) “Um afetuoso abraço para os teus, um beijinho para a Hilda, e para voce minha
santa que mandarei?” [Carta 06-JM-28-09-1936]
(2) “Eu acho que no planeta terrestre não existe aparelho capaz de medir a extensão de
meu amor, este amor que só a ti dedico e que tanto faz-me sofrer”. [Carta 21-JM-22-031937]
(3) “nem fui na pensão só para escrever-te pedindo noticias, pois é a nossa única via de
comunicação” [Carta 05-JM-26-09-1936]
(4) “Na ultima carta já te disse que vou para a linha de Tiro, no proximo mez, vou ser
palhaço. [Carta 05-JM-26-09-1936]
Diferentemente das formas pronominais dativas, as formas oblíquas são sempre
tônicas e regidas por preposição, mas não estabelecem, como afirma Duarte (2003:
294), relações gramaticais centrais. Estamos considerando aqui como oblíquos, os
argumentos obrigatórios que fazem parte da estrutura argumental dos verbos e os
opcionais (adjuntos), como exemplificado em (5) e (6), respectivamente:
(5) “Não posso durmir vivo só pensando em ti e no nosso amor que tantas lagrimas tem
nos custado” [Carta 12-JM-24-01-1937]
(6) “porque irei roubar se for preciso, porque fiquei limpo, e se sobrar troco guarda-o
para ti. [Carta 02-JM-22-09-1936]
Cabe ainda ressaltar que a relação gramatical oblíqua não possui
necessariamente o traço [+animado], não tem papel semântico de beneficiário, alvo ou
fonte de uma ação e nela também não há restrições quanto às preposições do sintagma
preposicional (SP) (de, em, por, com, a, para, sem). O complemento dativo, porém, só
admite as preposições a/para em estruturas de SP.
Em trabalho anterior, com base em cartas de pessoas ilustres e não-ilustres
produzidas em fins do século XIX e início do XX, Lopes e Cavalcante (2011)
observaram a correlação entre o tratamento utilizado na posição de sujeito e o emprego
das diferentes estratégias de dativo. As autoras verificaram que nas cartas em que tu
ocorria como único tratamento na posição de sujeito, houve a supremacia do dativo te.
Quando o predomínio de você-sujeito começou a se fixar a partir das décadas de 191020, ocorreu um equilíbrio entre as formas variantes de dativo (te~lhe~a/para
você~∅~a/para ti) com destaque para o zero. Nas cartas mistas (você/tu), o dativo te e o
zero foram as estratégias preferidas nas missivas analisadas. No que se refere aos
complementos oblíquos o comportamento foi distinto. As autoras identificaram
predomínio das estratégias em que o pronome tônico você se fazia presente no sintagma
preposicionado, principalmente nas cartas com variação tu e você na posição de sujeito.
Em função desses resultados, que nos serviram como hipóteses para este trabalho,
resolvemos analisar mais detidamente o comportamento dos oblíquos nesse conjunto de
cartas de amor produzidas em fins da década de 30 quando o emprego de você se tornou
mais produtivo na posição de sujeito segundo Duarte (1995).
4 – Análise dos resultados
Antes de apresentar os resultados referentes aos oblíquos, daremos um panorama
geral do emprego tratamental na posição de sujeito nas cartas do casal. O intuito é
verificar se há correlação entre o tratamento usado na posição de sujeito e o
complemento oblíquo empregado. A tabela 1 apresenta os resultados por missivista,
tendo em vista o uso exclusivo de tu nas cartas ou o emprego variável de tu e você:
Tabela 1: Tratamento pronominal na posição de sujeito adotado
pelos remetentes
Jayme
Maria
TOTAL
Tu-exclusivo
11/32
34,4%
0/0
11/63
17,5%
Tu~Você
21/32
65,6%
31/31
100%
52/63
82,5%
TOTAL
32/63
50,7%
31/63
49,3%
63
100%
Como pode ser visto na tabela 1, Jayme e Maria não se tratam sempre da mesma
maneira em suas cartas de amor. Na produção escrita de Maria, observamos que a
coexistência de tu e você na mesma missiva era preponderante na posição de sujeito, ao
passo que Jayme, embora também apresentasse variação entre tu e você na mesma carta
(65, 6%), utilizava em certas cartas o pronome tu (preenchido ou não) como tratamento
exclusivo na posição de sujeito em 34,4% dos dados. Vejamos alguns exemplos:
(7) “Minha querido espero que tú acredites no meu amor tanto quanto eu desejo, pois
mais ninguem neste mundo interessa-me a não ser voce: Voce é quem mostrou-me o
verdadeiro amor! Você e quem ensinou-me a amar amando-me.” [10-JM-29-01-1937]
(8) “O teu tio Eduardo perguntou au Migeu se você tinha brincado com migo no
carnaval” [18-MJ-16-02-1937]
(9) “eu não te escreve mais este semana por que não adianta tu so deves a receber esta
na quinta feira ou na sesta feira.” [18-MJ-16-02-1937]
Propomos aqui que tal comportamento pode interferir na escolha da estratégia a
ser empregada como oblíquo, como veremos na tabela 2 a seguir:
Tabela 2: Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias
utilizadas como complemento oblíquo
Te
TOTAL
Prep. + ti
Para + você
Prep. + você
TOTAL
0
2
8
0
1
11
0%
18,2%
72,7%
0%
9,1%
17,5%
1
8
15
1
27
52
1,9%
15,4%
28,8%
1,9%
51,9%
82,5%
1
10
23
1
28
63
1,6%
15,9%
36,5%
1,6%
44,4%
100%
Sujeito Tu
Sujeito
Tu~Você
Contigo
Na tabela 2, percebemos que nas cartas em que se empregava exclusivamente a
forma tu na posição de sujeito (cartas de Jayme), prevaleceu como oblíquo a preposição
seguida por ti, com 72,7% (três dados com a preposição em, dois dados com de, e um de
sem, por e para). Nas cartas em que havia variação entre tu e você na posição de sujeito,
houve maior diversidade de empregos oblíquos predominando preposição + você
(51,6%), seguida preposição + ti com 28,8%. Como ainda era um sistema instável em
transição, o falante-escrevente não se mostrava seguro quanto à forma a ser empregada
como ilustram os exemplos a seguir:
(10) “porque em ti reside a creatura que me dá toda a alegria” [Carta 09-JM-01-101936]
(11) “De ti é que espero toda a minha alegria de viver” [Carta 13-JM-29-01-1937]
(12) “eu sonhei com voce anoite de Domingo para segunda feira foi um sonho muito
bonito.” [Carta 16-MJ-22-02-1937]
Nos gráficos a seguir temos o comportamento individual de cada missivista:
Gráfico 1: Estratégias oblíquas nas cartas de Jaime
Gráfico 2: Estratégias oblíquas nas cartas de Maria
.
Maria
Jaime
9,4%
3,2% 9,7%
3,2%
3,2%
21,9%
Te
68,8%
Contigo
Prep.+ti
Prep.+você
Contigo
Prep.+ti
80,6%
Para você
Prep.+você
Os percentuais de uso evidenciados nos gráficos são bastante elucidativos
quanto à diferença de comportamento entre os missivistas. Jayme empregava
majoritariamente preposição+ti em quase 70% dos dados, como exemplificado em (13),
ao passo que Maria optava pela estratégia preposição+você em 80% das ocorrências
como em (14):
(13) “só me beijas mesmo só no retrato, quando estas comigo tens vergonha, como se eu
fosse um desconhecido teu, ou então algum monstro que me fosse aproveitar de ti, não
sejas tolinha.” [Carta 10-JM-05-10-1936]
(14) “eu não me esqueso de voce um segundo” [13-MJ-26-01-1937]
Ao analisarmos a representação gráfica das estratégias oblíquas empregadas
pelo Jayme, percebemos que 90% delas estão vinculadas ao pronome [+conservador] tu.
Como já dito anteriormente, sintagmas estruturados em prep.+ti correspondem a mais
da metade dos dados, seguidos da forma pronominal tônica oblíqua contigo, que
representa 21,9% da amostra do missivista. Vale ressaltar que o contigo é a única forma
pronominal existente que representa a relação de oblíquo no sistema de tu. Todas as
demais estratégias se realizam como sintagmas preposicionados (em ti, de ti, por ti etc).
No sistema de você, inexiste uma forma dessa natureza. Em (15) e (16) temos os dados
de contigo nas cartas de Jayme:
(15) “eu é que começo a ser atormentado pella saudade e sei que o mesmo acontece
contigo.” [Carta 11-JM-06-10-1936]
(16) “vou ver se não vou ao medico antes do carnaval, que é para poder passeiar
contigo, mas acho que será um pouco dificil” [Carta 12-JM-24-01-1937]
Os dois únicos dados de oblíquo relacionados a você que figuram nas cartas do
Jayme estão em destaque em (17) e (18). Em ambos, os oblíquos funcionam como
complementos dos verbos pensar e sonhar:
(17) “e eu então pensava só em voce o quanto tens sofrido por minha causa somente por
amar-me.” [17-JM-8-03-1937]
(18) “Minha flor sonhar com você é para mim um grande prazer” [21-JM-22-03-1937]
Ainda tecendo considerações acerca do nosso remetente masculino do corpus
analisado, constatamos que os dados de preposição +ti ocorrem em posição de foco,
encabeçando as orações e, principalmente, em estruturas clivadas, como vemos de (19)
a (21):
(19) “De ti minha adorada é que eu espero todo o meu ideal, possuindo-te considero-me
o homem mais feliz do mundo” [Carta 03-JM-23-09-1936]
(20) “Sinto que em ti é que esta toda a minha existencia, por isso quero-te muito para
poder viver eternamente, sempre em teus braços recebendo as caricias tuas, que tanto
me acalentam e me dão vida.” [16-JM-2-03-1937]
(21) “a ti é que depositei | toda a minha confiança, em ti é que vi que estava | preso o
meu futuro” [Carta 11-JM-06-10-1936]
Há duas possíveis razões para o significativo aparecimento dessas estruturas
nas cartas estudadas. A primeira delas seria o fato de que, por meio dessas estruturas
clivadas, o emissor visa a dar maior destaque, maior ênfase ao destinatário,
individualizando-o e reforçando sua importância para o sujeito remetente. Dessa forma,
é como se Jayme estivesse dizendo que é “em ti”, ou seja, em Maria – e somente nela –
que está toda a sua existência, motivo pelo qual escreve tantas cartas com frequência.
Nesses casos, como discutido em Company (2006, p. 500) para o espanhol,
trata-se de um contexto de alta proeminência discursiva, principalmente pelo fato de o
complemento oblíquo de 2ª pessoa ser eminentemente [+humano]. Nos dados
diacrônicos de Company (2006, p.511), a anteposição do OI em relação ao verbo deveuse à atenção discursiva típica do objeto indireto e a “questões temáticas e de estilo dos
diferentes textos que integram o corpus” analisado pela autora. A ordem não-marcada
no espanhol, como em português, é V-OI e o aumento de uso OI-V ocorreu
principalmente no gênero epistolar, em que o objeto indireto costuma ser o destinatário
da carta. Não só a anteposição da ordem de V-OI para OI-V, mas o emprego do objeto
indireto no início da oração seria motivado por ênfase discursiva. A autora mostra que a
anteposição de OI está associada “tanto a questões formais como semânticas,
pragmáticas e inclusive de gênero textual” (p. 513). Apesar de o comportamento das
duas línguas não ser exatamente o mesmo, principalmente em relação à corrente
duplicação do OI no espanhol, os comentários de Company (2006) nos ajudam a
compreender o emprego frequente dos oblíquos de segunda pessoa encabeçando as
orações nas cartas de Jayme.
É preciso considerar ainda que o nosso corpus é constituído por um subtipo
específico do gênero epistolar: as cartas de amor. Nesse subgênero o conteúdo temático
é centrado na relação amorosa entre o remetente e destinatário e por isso não há grande
diversidade temática interna: o amor, a paixão, a saudade, a importância do outro são
assuntos recursivamente presentes. Em geral, como afirma Barbosa (1979, apud
WATTHIER, 2010) costuma haver, nas cartas de amor, um leve toque de lirismo para
expressar o que se sente. Em termos estilísticos, as cartas de amor costumam ser
espontâneas e se caracterizam pela grande intimidade na expressão dos sentimentos
causados por uma paixão profunda recíproca ou não. Por estar centrada na relação, a
temática pode ser um tanto repetitiva e centrada no destinatário como ocorre nas cartas
de Jayme e Maria. Por essa razão, a anteposição do complemento oblíquo no início da
oração se fez tão presente. Além disso, frases feitas ligadas ao senso comum e ao
discurso amoroso são bastante comuns. No caso de Jayme, mais letrado que Maria,
notamos a repetição de estruturas próprias da linguagem poética e típicas do discurso
amoroso. De (22) a (25), por exemplo, destacamos nas cartas de Jayme o emprego da
mesma construção com o verbo esperar (de ti ... espero todo o meu ideal/amor). De
(26) a (29) ilustramos a reiteração de outra construção recorrente nas cartas de Jayme
com o verbo sonhar:
(22) “Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu
espero todo o meu ideal” [Carta 02-JM-22-09-1936]
(23) “De ti minha adorada é que eu espero todo o meu ideal, possuindo-te considerome o homem mais feliz do mundo” [Carta 03-JM-23-09-1936]
(24) “De ti minha flor eu espero o amor mais puro que existe no mundo” [Carta 03JM-23-09-1936]
(25) “De ti é que espero toda a minha alegria de viver” [Carta 13.JM-29-01-1937]
(26) “Minha flor sonhar com você é para mim um grande prazer”. [Carta 21-JM-22-031937]
(27) ‘recordo que estava sonhando contigo”. [Carta 21-JM-22-03-1937]
(28) “Minha querida quando sonho contigo não quizera mais acordar” [ Carta 21-JM22-03-1937]
(29) “Minha flor esta noite tive um sonho tão lindo contigo” [Carta 23-JM-6-04-1937]
No caso da produção de Maria, conforme citado anteriormente, houve
praticamente uma inversão de comportamento em relação às missivas escritas pelo
amado: enquanto o noivo optava visivelmente pelas formas relacionadas a tu,
apresentando menos 10% dos dados totais de formas relacionadas a você, a noiva
empregava preferencialmente a estratégias deste sistema [+inovador], do qual se
destacava o uso de construções preposição + você (80% da amostra de Maria
corresponde à essa estratégia):
(30) “eu fiquei lendo na estaçao na quele banco onde nois estivemos a sentados eu
estava lendo e as lagrimas caião na carta lenbrando-me do domingo a noite que eu
estava junto de voçe” [Carta 01-MJ-22-09-1936]
(31) “Meu filhinho eu tenho chorado muitos com saudades tuas eu não posso viver mais
sem voçe” [Carta 08-MJ-06-10-1936]
(32) “Eu hoje tive uma viaje muito triste so penssando em voce” [Carta 16-MJ-22-021937]
Em (33) há um caso raríssimo da forma clítica te. Tal aparecimento é, de fato,
digno de nota, principalmente porque a informante se revela mais favorável às formas
de você, como apontamos desde o início. O natural seria encontrarmos a forma de
sintagma preposicionado, tal como a própria missivista chega a utilizar em outra
epístola, reproduzido aqui em (34):
(33) “a única cousa que te pesso e para não se esqueçeres de min, por que eu nunca mais
te esquecerei so a morte.” [18-MJ-08-03-1937]
(34) “eu não me esqueso de voce um segundo” [13-MJ-26-01-1937]
Além disso, não é próprio da natureza dos oblíquos – sejam eles complementos
ou adjuntos – admitir cliticização, conforme expomos também no presente trabalho.
Este caso mereceria maior destaque se fosse recorrente em outras cartas; contudo, é um
aparecimento isolado, único e, não por acaso, ocorre com um verbo cuja regência é
relativamente flexível: esquecer-(se).
Outros dados relacionados a tu foram encontrados – vale lembrar que Maria
empregava tanto você como tu para se referir ao noivo. Apesar dos altos índices de
estratégias relacionadas a você, apresentava, ainda assim, estratégias relacionadas a tu:
contigo e de ti:
(35) “neta vai uma santinha que e Nossa Senhora da Penha para tu guardares com tigo e
não se esquesa de ir 3 vese a missa que tu prometeste” [07-MJ-05-10-1936]
(36) “Apesar deu onte estar com tigo duas veses não matei as saudades fiquei com
muito mais” [13-MJ-26-01-1937]
(37) “so eu penssar que estou tam longe de ti e que eu sofro ainda muito mais.” [13-MJ26-01-1937]
De toda a amostra da informante, foram encontrados três dados de contigo
(9,7%). O único caso de preposição + ti, exposto acima, corresponde a um
complemento do adjetivo “longe”.
5- Considerações Finais
Com a análise dos dados obtidos, podemos tecer algumas considerações acerca
do uso do complemento oblíquo de 2ª pessoa no início do século XX. De fato, tal
contexto sintático se mostrou favorável à entrada da forma [+ inovadora] você por não
ser uma relação central (como os objetos direto e indireto), apresentando, dessa forma,
baixo grau de integração ao núcleo predicador da sentença. Soma-se a isso, o fato de o
complemento oblíquo não possuir um clítico específico e ser um contexto de forte
atenção e ênfase discursiva principalmente no gênero carta pessoal.
Dos 63 dados de oblíquos presentes nas cartas pessoais do casal, 34 estavam
relacionados à forma tu e 29 a você. A maioria das formas relacionadas a tu estava
presente nos dados de Jayme, que era um missivista com uso exclusivo de tu na posição
de sujeito ou de variação tu x você. Ainda que o informante masculino não usasse
apenas o você nesta posição, já aparecia em suas cartas o uso de formas oblíquas
relacionadas a você. Maria apresentava um comportamento mais inovador, empregando
na mesma carta as duas formas (tu e você) com favorecimento para o emprego dessa
última.
No âmbito das tradições discursivas, o gênero “carta pessoal” também parece
ter contribuído para o fenômeno em análise, uma vez que verificamos a repetição de
fórmulas típicas do discurso amoroso. Nestas cartas de amor, há um forte grau de
intimidade, confiança e emocionalidade entre o remetente e o destinatário,
diferentemente, por exemplo, do que se pode perceber em um documento oficial. O
discurso amoroso evoca o emprego do tratamento mais íntimo tu, cuja adesão de Jayme
a tal tradição discursiva mostrou-se preponderante. Em algumas missivas do Jayme há,
inclusive, fragmentos excessivamente poéticos, repletos de um lirismo recorrente e até
piegas. Esse pode ser um indício de que o escrevente reproduzia em suas cartas trechos
extraídos de outros documentos, de textos literários amorosos, provavelmente,
interferindo, dessa forma, no aumento no uso da estratégia oblíqua relacionada à forma
mais antiga tu. Tal uso em suas cartas aparecia focalizado encabeçando as orações.
Maria indicia claramente o padrão linguístico vigente hoje no português brasileiro,
principalmente no Rio de Janeiro, em termos de um sistema pronominal de segunda
pessoa com formas de tu ao lado de você. A forma gramaticalizada ocorre
preferencialmente como pronome forte e não necessariamente focalizada.
6. Referências Bibliográficas
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The dative: descriptive studies, vol.1 Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins, 1996
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Mateus, Maria Helena Mira et al.: Gramática da língua portuguesa, 5ª ed, Lisboa,
Caminho. 275-320, 2003.
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Camila Duarte de Souza (UFRJ)