www.ssoar.info Subjetividade e tecnologia Goergen, Pedro Veröffentlichungsversion / Published Version Zeitschriftenartikel / journal article Empfohlene Zitierung / Suggested Citation: Goergen, Pedro: Subjetividade e tecnologia. In: ETD - Educação Temática Digital 5 (2003), 1, pp. 99-105. URN: http:// nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-104154 Nutzungsbedingungen: Dieser Text wird unter einer Free Digital Peer Publishing Licence zur Verfügung gestellt. Nähere Auskünfte zu den DiPP-Lizenzen finden Sie hier: http://www.dipp.nrw.de/lizenzen/dppl/service/dppl/ Terms of use: This document is made available under a Free Digital Peer Publishing Licence. For more Information see: http://www.dipp.nrw.de/lizenzen/dppl/service/dppl/ COMUNICAÇÃO SUBJETIVIDADE E TECNOLOGIA Pedro Goergen Quando falamos em ciência & proteção contra os perigos, o tecnologia, pensamos em produtos e entendimento dos fenômenos naturais, eventos contemporâneos. Pensamos em enfim, máquinas, computadores, performance, conhecimentos em precisão, velocidade. Pensamos em natureza. Arendt destaca o esforço para coisas que potencializam a ação humana aliviar o trabalho fatigante, reduzir o e que facilitam a vida. Esquecemos que suor do rosto e tornar a vida mais ciência & tecnologia é um projeto muito agradável. a produção para e uso dos o domínio da antigo do homem que tem sua origem na necessidade e vontade de ampliação de Adorno e Horkheimer falam, neste sua capacidade física. Esta vontade está sentido, da vontade do homem de tornar- presente se senhor da terra e descrevem este nas comunidades humanas desde os tempos mais remotos e, na processo como verdade, nasceu junto com a cultura. Os emancipação do ser humano. Em termos chineses, egípcios, gregos e os índios da americanos mostraram isso nos mais expressão desta longa caminhada foram diferentes domínios do conhecimento e os mitos, transmitidos oralmente de da ação como a filosófica, a matemática, geração em geração pelos gregos antigos a engenharia, a arquitetura e a astrologia. e magistralmente sistematizados por cultura o processo ocidental, a de primeira Homero na Ilíada e na Odisséia. Os Max Horkheimer e Theodor Adorno na deuses eram figuras que por suas ações e Dialética do Esclarecimento e Hanah sentimentos forneciam a origem, a Arendt explicação e o sentido das coisas, bem na Condição Humana descreveram muito bem este uso da como razão humanos. pelo homem para o dos medos e sentimentos equacionamento dos seus problemas, a © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. 99 COMUNICAÇÃO Alguns séculos mais tarde, insatisfeitos Depois da conquista dos gregos pelos com as explicações míticas, certos Macedônios na Batalha de Queronéia, do físicos e matemáticos procuraram novas posterior domínio dos romanos, bem explicações, agora baseadas apenas na como do seu declínio e da ascensão do razão humana e dispensando o auxílio cristianismo e da Igreja católica como dos deuses. Nascia a filosofia, uma nova grande força espiritual e política da forma de conhecimento, do qual os Idade Média, veio o Renascimento e o filósofos eram os amigos e mestres. Os Humanismo. pré-socráticos elegiam certas substâncias representam o prenúncio de uma nova básicas como a água, o fogo, o ar etc. era: a Modernidade. Nesta, após o longo que consideravam ser a base de toda a período teológico medieval, o homem se realidade reconscientiza e a partir das quais Estes de movimentos suas capacidades acreditavam poder explicar tudo. Platão racionais e, a partir desta nova fé, se condena os deuses, por serem feitos à coloca o imenso desafio de desvendar os imagem e semelhança dos homens e, por segredos da natureza como forma de isso mesmo, serem igualmente plenos de domínio e uso. Ciência é o domínio defeitos. Mentirosos e falsos, dizia. Para teórico ele, a realidade sensível é, de fato, um aproveitamento reflexo de uma outra realidade superior, conhecimento. Substitui-se, portanto, a a das idéias, da qual o mundo das cultura teocêntrica e metafísica por uma experiências sensíveis não é mais que cultura secular e antropocêntrica. das leis, tecnologia prático o desse sombra. Aristóteles, talvez o mais influente filósofo de todos os tempos, Esta nova forma de pensar concretizou- abandona o idealismo platônico e funda se através de pensadores como Roger o pensamento científico, cujas bases são Bacon (1214-1294) que, separando a a lógica e a metafísica. O pensamento se teologia das ciências profanas, colocou rege por leis da lógica, e a metafísica os três pilares mestres destas últimas: a diferencia entre matéria e forma de cuja experiência, o confluência emerge a matéria. matemática. Seguiram-se experimento e a Copérnico (1473-1543) com sua revolução da imagem do mundo do geocentrismo para © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. 100 COMUNICAÇÃO o heliocentrismo; Francis Bacon, (1561- progresso. Esta fórmula – conhecimento 1626) é empirista inglês, que abriu igual a progresso – tornou-se caminho para a moderna ciência da emblemática de uma grande narrativa natureza e conferiu um sentido utilitário através da qual a humanidade passaria de ao conhecimento; René Descartes (1596- um estágio menos desenvolvido para um 1650) que reafirmou e sistematizou a mais desenvolvido. O progresso coloca- crença como se como o novo telos da história a ser dos alcançado pela razão em substituição à no mecanismo poder de da razão desvendamento segredos da natureza que, qual máquina, salvação eterna atingível apenas pela fé. se movimenta segundo uma lógica imperturbável de leis cujo conhecimento Agora, o passado afigura-se como desvendaria todos os seus segredos; superstição e ignorância. Hegel (1770- Immanuel Kant (1724-1804) acrescentou 1831) dizia que vivemos um novo tempo com seu criticismo o reconhecimento cujo das possibilidades e dos limites da razão. encontram-se na Revolução Francesa. O marco homem, e simbologia finalmente, maiores sentia-se no Assim constitui-se o grande projeto caminho do progresso, começava a moderno cuja característica central é entrever a possibilidade de tornar-se precisamente a confiança ilimitada na senhor da história. De ninguém mais razão. Segundo Kant, a humanidade vive senão dele dependeria esta conquista na menoridade por culpa própria, ou desde seja, porque não saber usar a própria esperança, tudo era promessa, tudo era razão. Para alcançar a maioridade basta luz. Não por acaso este período passou a aprender a usá-la. Portanto: “Sapere ser conhecido como Iluminismo. sempre desejada. Tudo era aude”. Este é o imperativo dos novos Ser senhor é ser dominador e tempos que está na origem da ciência & livre. A Modernidade busca instaurar a tecnologia. do inédita união entre razão e liberdade. A conhecimento trará tempos melhores, razão torna-se a nova força pela qual o aliviará sofrimentos, homem pode intervir não só no mundo melhorará as condições de vida. Enfim, natural, mas também no mundo social. o conhecimento representa garantia de Além de ser um atributo do ser as A dores conquista e © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. 101 COMUNICAÇÃO individual, a razão é alçada à capacidade comunidade, de povo de Deus e a de ocupação de seu lugar pela idéia de sujeito-espécie de promover a emancipação do homem através da individualidade ciência e da tecnologia. esforço de emancipação tem como No entanto, sob a empolgação dos fundamento o indivíduo e seus direitos, enormes sucessos, sobretudo materiais, tornando-se a ‘subjetividade’ o preceito paulatinamente o conceito de razão foi fundamental sofrendo um processo de estreitamento e Lembremos Descartes (1596-1650) com redução à sua dimensão científica nos seu ‘cogito ergo sum’: a certeza última termos do cartesianos, ou seja, e subjetividade. da conhecimento O Modernidade. fica reduzida à verdadeiramente racionais passaram a interioridade subjetiva do indivíduo. O ser apenas os conhecimentos exatos e sujeito seguros, segundo os padrões da lógica instituinte de uma nova realidade em matemática. o substituição à antiga visão mágica e conceito de ciência foi sendo reduzido metafísica. Sobre estas novas bases, cada vez mais ao tipo de conhecimentos adensa-se o projeto de que ciência & auferidos pela ciências naturais e exatas, tecnologia levariam o homem a um novo particularmente aqueles com perspectiva patamar de emancipação e liberdade. de Em aplicação outros prática, termos, ou cognoscente assume poder seja conhecimentos com possibilidade de Mas nem tudo é luz nessa utopia aplicação tecnológica. A racionalidade designada científica que, iluminismo. Muito cedo, pensadores associado à dimensão da utilidade, como Nietzsche, Heidegger, Foucault, agrega Bataille, Lyotard, Horkheimer, Adorno, torna-se poder ao o padrão conhecimento. O muitos esclarecimento outros, ou conceito de salvação ou, como se dirá dentre fizeram-lhe agora, de emancipação passa a referir-se severas críticas. O principal alvo dessas apenas à dimensão secular e material. críticas é o conceito de progresso, suposto fundamental de todo o projeto Um outro aspecto que caracteriza a moderno. Kant deixara muito clara a sua passagem da Idade Média para a convicção de que, se soubessemos usar a Moderna é o abandono da idéia de nossa razão, estaríamos, enquanto © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. 102 COMUNICAÇÃO indivíduos e enquanto sociedade, mais alto desenvolvimento caminhando para um mundo melhor. científico/tecnológico Kant não contara com a drástica redução humanidade com um grau não menos do conceito de razão. O filósofo alemão elevado de miséria, fome, desemprego, ainda tinha em mente um conceito amplo de poluição e destruição ambiental. “A e integral de razão que envolvia tanto o terra totalmente esclarecida resplandece aspecto sob o signo de uma calamidade triunfal”. do conhecimento alcançado pela aspecto Também Walter Benjamin nos legou, na estético/expressivo. forma de uma alegoria, o mesmo alerta. Neste sentido, as três críticas de Kant Ao descrever uma pintura de Paul Klee (Crítica da Razão pura, Crítica da razão que representa um anjo estilizado, diz prática e Crítica do juízo) devem ser que este anjo parece o anjo da história lidas em conjunto. O que ocorreu de fato sobre o qual sopra uma brisa que se foi uma leitura unilateral que privilegiou aninha em suas asas abertas que já não o lado cognitivo nos termos que referi se podem fechar empurrando-o para trás, acima. O homem moderno jogou todas enquanto seus olhos esbugalhados de as suas cartas na ciência & tecnologia, espanto vêem as ruínas que sobre ruínas convencido de que era este o caminho se amontoam aos seus pés. Este vento seguro do progresso. Os críticos que que empurra o anjo da história de costas mencionei tentam mostrar precisamente para o futuro, assim Benjamin, é o que que esta esperança não se realizou. O chamamos de progresso. teórico/científico prático/moral e quanto o argumento não é outro senão a descrição da trágica realidade do mundo em que No céu da esperança de liberdade e vivemos com a pergunta aos que autonomia, anunciada na modernidade, colocaram toda sua esperança na razão pairam escuras nuvens de uma nova instrumental se este é o progresso que servidão: não só a natureza tornou-se um haviam imaginado. objeto de manipulação, exploração e destruição, mas o próprio ser humano Adorno e Horkheimer descrevem de não escapou às ambições da razão forma lapidar esta paradoxal realidade instrumental, agora dominado, também de hoje em que convivem, lado a lado, o ele, como objeto de manipulação e © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. 103 COMUNICAÇÃO emancipadora moderno da salvação pela ciência e transforma-se em razão instrumental tecnologia, ameaçam sucumbir ante a que, instrumentalização e unilateralização do exploração. A razão servindo-se dos mesmos mecanismos da ciência e tecnologia, não humano. se detém ante o próprio homem, particularmente forte no contexto da objetalizazando-o e mercantilizando-o. globalização em que a subjetividade, Esta objetalização do ser humano o individualidade e identidade tornam-se, ameaça mais e mais, permeáveis a imposições em sua liberdade e Esta ameaça por interesses torna-se subjetividade, o domina e o conduz a comandadas técnico- uma nova servidão. sistêmicos que pouco têm a ver com os interesses genuinamente humanos. As Utilidade e eficiência, como já disse estratégias dos interesses instrumentais acima, perpassam toda a cultura globalizada e tornam-se os mandamentos maiores da nova racionalidade. A forma ameaçam uniformizar de racionalidade que passa a ser multidimensionalidade da subjetividade considerada certa e segura, separa-se e humana que é muito mais ampla que sua distancia-se daquelas outras dimensões face da razão que abrangem as decisões esquecendo ou relegando a um plano práticas (ético-morais) e as estéticas que secundário o lado ético e estético do requerem a explicação e a consistência humano. operacional e a instrumental, interior dos sistemas de valor para a fundamentação dos atos de decisão. A Ciência racionalidade suas mantêm funcionando uma máquina que prerrogativas de utilidade, eficiência, se torna autônoma e substitui o próprio segurança, mais ser humano. O pensamento transforma- interesse se em processo matemático que resulta mercadológico) ocupa e reduz o espaço no técnico que, por sua vez, coisifica o humano. sujeito, suprime a consciência e dilui a técnica (com previsibilidade recentemente, de e, e tecnologia alimentam e subjetividade. Lembro novamente uma A subjetividade e a individualidade, duas passagem de Adorno: “O das grandes prerrogativas do projeto integralmente capturado pela civilização © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. eu 104 COMUNICAÇÃO reduz-se a um elemento dessa individuação/subjetivação novas formas para inumanidade, à qual, desde o início, a gerações, humanidade escapar. contribuir para a formação de um ser Concretiza-se, assim, o mais antigo humano integral, autônomo e reflexivo. medo, o medo da perda do próprio Este, poderíamos dizer, é um dos nome”. grandes procurou encontre das dilemas e desafios da atualidade: formar um ser humano São estas idéias pessimistas, contrárias à crítico e negador (da realidade que o ciência e tecnologia? Longe disso! São quer anular) ou formar um indivíduo apenas alertas necessários e urgentes adaptado, a-crítico e afirmador. Formar contra o encantamento pela ciência e um ser humano interpelador, capaz não tecnologia como um novo mito, como só de absorver as influências, mas de um novo deus, capaz de resolver todos colocá-las numa tela reflexiva que lhe os problemas humanos e realizar todos permita avaliá-las, rejeitá-las ou integrá- os seus anseios. Alertas contra o las seletiva e conscientemente. Sujeitos ‘rebanhamento’ e isolamento dos seres interpeladores são sujeitos autônomos, humanos que os torna desprovidos de capazes de resistir ao sistema, negar a sentido aos ideologia dominante que se infiltra por problemas do humano, incapazes de todos os poros e condiciona os próprios construir utopias sociais. Alertas contra a sentidos. Sem este ideal nos rendemos, absolutização da razão instrumental, abrimos mão de nós mesmos como seres calculista, operacional e utilitarista que capazes transforma o ser humano em mercadoria. biografia e conduzir nossa história. A interior, subjetividade insensíveis é o núcleo de escrever nossa própria da autonomia, da reflexão, da avaliação e julgamento que é preciso ser preservado PEDRO GOERGEN Professor Titular de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP se não quisermos sacrificar no altar da ciência & tecnologia o próprio homem. Aceito para publicação em: 30/11/2003 É preciso que a educação, entendida como o processo de socialização e © ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.5, n.1, p.99-105, dez. 2003 – ISSN: 1517-2539. 105