ESCOLARIZAÇÃO E TRABALHO: POLÍTICAS PÚBLICAS DO ESTADO BRASILEIRO PARA A ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS.1 Jiani Fernando Langaro2 RESUMO: Discutiremos neste trabalho as políticas públicas do Estado brasileiro para a alfabetização de adultos, levando em consideração o papel desempenhado por essas políticas junto à sociedade brasileira. Concebemos os programas de escolarização de adultos não como algo neutro, um mero instrumental para que os indivíduos alfabetizados possam dominar a leitura e a escrita. Trabalharemos com a concepção de que a escolarização é sempre produzida por alguém ou algum grupo social e vincula-se aos interesses e ao projeto de sociedade de quem a produziu. Nos casos que são objetos deste estudo trabalharemos com programas elaborados pelo Estado, os quais associamse aos interesses dos poderes político e econômico. A partir disso, analisaremos, historicamente, como este quadro manifestou-se nas políticas públicas para a escolarização de adultos no Brasil, as quais buscaram transformar a sociedade segundo os interesses dos grupos dominantes e detentores do aparelho de Estado, nos diferentes momentos da história brasileira. PALAVRAS-CHAVE: escolarização de adultos; trabalho; políticas públicas. INTRODUÇÃO: Após o final da ditadura militar existente em nosso país de 1964 a 1985, a escola passou por um processo de mudança. Tal fato colaborou para a elaboração de novas propostas para a educação. Por outro lado, em nível mundial a instituição escolar também passou a ser repensada. Apesar disso, ainda persiste entre professores e acadêmicos de cursos de licenciatura, a percepção da escolarização como algo neutro. Neste artigo, discutiremos a inserção social da escolarização e a forma como esta se relaciona com o poder político e econômico. Como objeto de estudo elegemos a escolarização de adultos, a fim de analisar como as políticas públicas do 1 Estudo financiado pelo PIBIC/UNIOESTE/PRPPG, orientado pela Profª. Drª. Geni Rosa Duarte. Discente do Curso de História da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Cândido Rondon e bolsista do PIBIC/UNIOESTE/PRPPG. Endereço: Rua Rio Grande do Norte, nº. 1604 – Apto. 03, Centro, Município de Marechal Cândido Rondon – PR. CEP: 85960-000. Telefone: (45) 9965-2557. E-mail: [email protected]. 2 Estado brasileiro historicamente vincularam os programas de escolarização de adultos e propósitos extra-escolares. Trabalharemos, ainda, com propostas de ruptura desta ordem, como as de Paulo Freire, as quais também se manifestaram na história brasileira embora não tenham chegado a se instituicionalizar em nível federal. OBJETIVOS: Com este estudo, pretendemos analisar a inserção sócio-histórica das iniciativas do Estado Brasileiro para a escolarização de adultos. Buscamos com isto demonstrar que a escola não é apenas um local para o desenvolvimento intelectual, mas que está relacionada com os interesses dos organizadores de tais iniciativas. A partir disso, trabalharemos com as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro para a escolarização de adultos objetivando discutir sua relação com os interesses dos grupos estabelecido no poder e as formas empregadas para que esses intuitos se concretizassem. Objetivamos, ainda, discutir a existência de projetos alternativos, como o de Paulo Freire, os quais buscaram romper com os interesses do Estado. METODOLOGIA: Este estudo é parte integrante do projeto “Escolarização, trabalho e vida urbana em Marechal Cândido Rondon”. Trata-se de um projeto de pesquisa vinculado aos estudos de história social, no qual trabalhamos com a inserção social da escolarização de adultos em uma perspectiva histórica. Este trabalho, por sua vez, é o resultado de parte do levantamento bibliográfico que vem sendo realizado para tal projeto. Servirão como fundamentação teórica para essa discussão os trabalhos de E. P. Thompson e Mariano Fernández Enguita. RESULTADOS: Segundo E. P. Thompson, em “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo industrial” (1998), na gênese do capitalismo industrial a burguesia elaborou uma nova concepção de tempo, segundo o qual deveria ser aproveitado ao máximo para a produção industrial. Até então, os trabalhadores possuíam outros hábitos de trabalho. Eram comuns interrupções na jornada, desde que se produzisse a quantidade estabelecida de mercadorias. As transformações ocorridas no sistema econômico com a maquinofatura colaboraram para que o tempo passasse a ser considerado como algo a ser explorado ao máximo. A produção em série era importante e buscava-se produzir ao máximo para se comercializar o quanto fosse possível. Para atender a esses objetivos passou-se a explorar os trabalhadores com maior intensidade. Conseqüentemente era preciso transformar os hábitos e a cultura dos mesmos. Interrupções nas jornadas de trabalho, tal como vinham ocorrendo, não poderiam mais ser toleradas. A fim de disciplinar os trabalhadores elaboram-se novas normas para serem aplicadas ao trabalho industrial. Essa disciplina, contudo, foi para além dos muros das fábricas, e outras instituições como a escola, aponta Thompson, foram utilizadas pela burguesia. Buscavase com isso inculcar nas crianças a nova concepção de tempo, a qual ia de encontro com a disciplina de trabalho industrial. Thompson aponta que nas escolas uma das principais manifestações da disciplina se dava por meio da exigência de pontualidade. Conforme cita o autor: “Escrevendo de Newcastle em 1786, o rev. Willian Turner recomendava as escolas de Raikes como ‘um espetáculo de ordem e regularidade’, e citava um fabricante de cânhamo e linho de Gloucester que teria afirmado que as escolas haviam produzido uma mudança extraordinária (...)” (THOMPSON, 1998, p. 293). Dessa forma, a escola contemporânea acabou sendo transformada em uma instituição cujo objetivo passou a ser disciplinar os seus freqüentadores para o trabalho industrial. Num sentido semelhante, Mariano Fernández Enguita, em A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo (1989) reforça a concepção da escola enquanto uma instituição disciplinadora. Para o autor a escola atua como intermediária entre a família e o trabalho industrial. Cita o autor: “A escola é a primeira instituição a que se incorporam as crianças, descontando a família, a que ocupa o período que medeia entre a exclusividade desta e o trabalho e, de qualquer forma, a escolarização representa seu primeiro contato com uma instituição formal e/ou burocrática, com uma organização. Por conseguinte, é nela onde crianças e jovens fazem a primeira experiência de trato regular com estranhos, do trato com outras pessoas fora dos laços de parentesco ou da comunidade imediata”(ENGUITA, 1989, p. 158). A atuação da escola, nesse sentido, torna-se importante na medida em que é uma instituição burocratizada, a qual reproduz os ideal de trabalho na fábrica: relações hierarquizadas e burocratizadas, sem maiores vínculos afetivos, diferentemente da instituição familiar. O autor destaca, então, que a estrutura do funcionamento escolar, as regras e normas que regem sua disciplina interna e os demais códigos subjacentes ao cotidiano escolar reproduzem a disciplina do trabalho industrial visando preparar os futuros trabalhadores. Um dos principais problemas apontados pelo autor para esse modelo de escola é que a mesma se torna disfuncional para os grupos sociais que estão ligados a formas autônomas de trabalho. Segundo o autor, outro grande caráter da escola é o papel meritocrático que desempenha, uma vez que justifica as posições sociais dos diferentes indivíduos segundo seu grau de escolaridade (Enguita, 1989, p. 192). Na maioria dos casos as possibilidades de ascensão social que a escola deveria proporcionar acabam não se concretizando. Assim, a escola acaba se tornando um instrumento que atua no sentido de legitimar a ordem estabelecida. Apesar desses dois autores citados terem trabalhado a escolarização de crianças e adolescentes, são em bases semelhantes que consideramos estar assentada a escolarização de adultos, com o intuito de também disciplinar tais trabalhadores. Análise interessante nesse sentido é a de Julio Barreiro em Educación popular y proceso de concientización (1974). Este autor discute que a escola, no sistema capitalista, atua no sentido de reproduzir a visão de mundo da classe dominante e busca perpetuar o sistema vigente. Destaca o autor que em relação à escolarização de adultos o controle do Estado geralmente é maior, uma vez que produz resultados mais rápidos do que a escolarização de crianças e adolescentes. Barreiro discute que para se transformar a escola, é necessário que sua organização não vise apenas atender a indivíduos, mas classes sociais. A educação popular proposta por Julio Barreiro é algo produzido pela classe trabalhadora, de forma que esteja comprometida com suas lutas, atuando junto aos canais de expressão dessa classe. Tendo em vista isto, podemos perceber que os projetos e, principalmente, as políticas públicas de Estado para a escolarização de adultos não são algo neutro. Todo projeto educacional possui princípios e compromissos com os interesses e intenções de quem os projetou. Na história brasileira, podemos perceber que as políticas públicas do Estado para a escolarização de adultos têm se manifestado no sentido de preparar as camadas populares para as transformações no mundo do trabalho e para os projetos de sociedade elaborados pelo grupo estabelecido no poder. Conforme aponta Celso de Rui Beisiegel em Estado e educação popular: um estudo sobre a educação de adultos (1974), no período do Estado Novo foi elaborado um projeto e foram alocados recursos para a realização de um programa de escolarização de adultos, o qual, afirma o autor, foi o primeiro a ser realizado em nível nacional. Tal programa começou a ser colocado em prática a partir de 1947. O autor aponta a existência de um grande vínculo desse projeto com as intenções do Estado no período. Dessa forma, a escolarização teria como objetivo preparar as camadas populares brasileiras para o regime de trabalho moderno, o qual, desde a Era Vargas se pretendia implementar no país. Para atingir tal intento o foram utilizados variados recursos, entre eles o livro didático, o qual vinculava ideais como os de amor à pátria, organização comunitária e informações sobre novas tecnologias para o trabalho. Dentro de uma perspectiva tecnologia-progresso, tais informações buscavam “atualizar” os conhecimentos profissionais dos trabalhadores e integrá-los aos ideais do regime. O autor aponta como outro objetivo a homogeneização da cultura brasileira, a fim de fosse instituída uma nacionalidade para a população do país. Aponta, ainda, que se qualitativamente os resultados da campanha não foram satisfatórios, quantitativamente pode-se dizer que sim. Além disso, o autor aponta que em muitas localidades onde foram instaladas escolas para adultos inexistiam aquelas para crianças. Despertou-se uma consciência de valorização para com a educação, ocorrendo reivindicações de escolas nesses lugares. A partir dos anos 1950 outro projeto foi implementado, a “Campanha de Educação Rural”. Tratou-se de outra política em nível nacional, porém, voltada para as populações camponesas. Iraíde de Marques Freitas Barreiro em Educação rural capitalista: A contradição entre a educação modernizadora e a educação de classe popular na Campanha Nacional de Educação Rural (1989), aponta que essa campanha possuía como objetivo transformar a cultura das populações camponesas. Destaca que os diretores da campanha possuíam uma visão extremamente pejorativa sobre o camponês e seus hábitos, conforme podemos perceber na seguinte passagem: “(...) cabe discorrer, nesse quadro, sobre a questão de com foi tratado o problema da saúde entre os camponeses pela Campanha Nacional. Na sua concepção, os hábitos de vida do camponês são todos determinantes de doença. Como vimos o lazer desorganizado tornava o camponês triste, conduzindo-o à insanidade mental; a casa mal construída, mal dividida, conduzia-o à promiscuidade geradora de doenças; os tabus alimentares e o pouco uso dos talheres determinava a verminose; (...)” (BARREIRO, 1989, p. 257). Como podemos perceber, os hábitos e a vida camponesa eram vistos como um problema de tal forma que parecia ser necessário uma ação rápida, a fim de “salvar” o campo. A partir disso, a campanha elegia para si essa missão. Para tanto, durante a formação dos professores era muito frisada a missão que os mesmos possuíam em transformar os “maus” hábitos camponeses. Chamava-se muito a atenção para que não aderissem à cultura camponesa, a qual deveriam transformar. Os professores eram, também, preparados para serem líderes locais e deveriam buscar, junto aos demais técnicos enviados pela campanha, levar aos camponeses, além da escolarização, novas formas de lazer, higiene e organização da vida social. Para além da visão negativa sobre a vida do camponês, a autora aponta que a campanha concebia os indivíduos organizados apenas em função da comunidade, ignorando as estratificações por meio de classes sociais. De tal forma, aponta a autora, o programa governamental buscava, por meio da escolarização, anular os conflitos sociais existentes no campo. Tais práticas, segundo Barreiro, podem ter prejudicado a organização das Ligas Camponesas, as quais lutavam por reforma agrária no período. A autora destaca que a visão negativa lançada pela campanha sobre o campo estava alicerçada no ideal de se introjetar no camponês uma visão negativa sobre si, na qual a zona rural seria considerada o local do “atraso” e a cidade o local do “progresso”. Cabia, então, como alternativa para o camponês assemelhar-se ao citadino, buscando “atualizar-se” por meio das novas tecnologias desenvolvidas no período para o campo. Assim, a campanha atuou de forma a preparar o camponês para novas formas de trabalho que haviam sido elaboradas para o meio rural nos anos 1950. Portanto, atuou na esfera dos ideais da “modernização conservadora” do campo, empreendida pelo governo de Juscelino Kubitschek, durante os anos 1950. Porém, é necessário ressaltar que tal processo não ocorreu sem resistências. A autora destaca muitas delas, indicando que inclusive, muitas vezes os grupos camponeses aceitavam algumas práticas da campanha para usufruírem de certos benefícios, mas sempre que podiam procuravam utilizá-los (os benefícios) segundo os seus próprios interesses, mesmo que divergissem dos ideais da campanha. A década de 1960 pode ser, pois, considerada como um período de grandes transformações. Essa década divide uma fase em que o Estado brasileiro projetou políticas para a escolarização das camadas trabalhadoras com o objetivo de prepará-las para as transformações no campo do trabalho de uma fase posterior, em que a escolarização passa a se preocupar fundamentalmente em preparar os indivíduos para a vida urbana. Se por um lado possuímos na década de 1940 um projeto que visava integrar e disciplinar os trabalhadores urbanos a uma nova dinâmica de trabalho: industrial e capitalista; e na década de 1950 um programa com vistas a integrar o meio rural às formas capitalistas de trabalho; tal fato não se repetirá nas décadas seguintes. As transformações no universo do trabalho passam a seguir uma regularidade. Não se trata mais de um período em que é necessário disciplinar um grande contingente de trabalhadores para novas formas de trabalho. Não faltam mais “braços” para o capital, o número de trabalhadores aptos já não é mais decisivo para o sucesso de qualquer política industrializante. Ao mesmo tempo, o país passa por um grande processo de urbanização, no qual diariamente chegam às grandes cidades inúmeros migrantes, muitos deles analfabetos e expulsos do campo pela concentração fundiária. Esse período de divisão também é marcado por uma proposta de ruptura, a de Paulo Freire. Segundo Gilberta Martino Januzzi em Confronto Pedagógico: Paulo Freire e Mobral (1979), as propostas de Paulo Freire não se ascentavam no ideal de formação dos trabalhadores para a atuação no sistema capitalista. Ao contrário, Freire buscava junto ao processo de alfabetização conscientizar seus alunos sobre seus papéis como agentes históricos. Todo o processo educacional tinha como base a realidade do aluno e o objetivo principal era colaborar para que o indivíduo pudesse se alfabetizar e, ao mesmo tempo, analisasse a sociedade na qual estava inserido. Não se tratava de uma proposta reprodutivista, mas sim de crítica ao sistema vigente. O início da década de 1960 é marcado com a proposta de institucionalização do método de Paulo Freire como o oficial, em nível federal, para a escolarização de adultos no país (GÓES, 1991, pp. 66-7). Com o golpe de Estado de 1964 as propostas inspiradas em Freire foram proibidas, entre elas as iniciativas oficiais de Estados e Municípios. Durante o regime militar, em substituição às propostas anteriores, foi lançado o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Esse consistiu em mais um programa de alfabetização em nível nacional. Seu objetivo maior não era o de preparar a população brasileira para novas formas de trabalho ou novas formas de produção que o Estado pretendia engendrar. Podemos perceber, através da obra anteriormente citada de Gilberta Martino Januzzi a heterogeneidade de intenções presentes no programa do MOBRAL. Essas iam desde uma maior produtividade para o trabalho até a geração de um maior público consumidor para os produtos culturais. A autora aponta que um dos ideais mais presentes no MOBRAL era o de desenvolver uma idéia de promoção individual na sociedade. Dessa forma, buscava-se propagar a idéia de que a sociedade não precisava de transformações, cabendo aos diferentes indivíduos ajustarem-se a ela. Podemos perceber, então, que o MOBRAL não possuía um caráter crítico frente à sociedade. Como sendo produto de um regime autoritário atuava em sintonia com o mesmo. Contudo, é importante frisar que nesse momento o MOBRAL não estava atuando com a finalidade específica de preparar para o trabalho. O mesmo passa a ser parte integrante do novo universo urbano. Vemos isso claramente quando a autora citada acima destaca um dos objetivos expressados pela organização do MOBRAL em relação à escolarização: “- gera demanda dos meios de comunicação de massa, cuja expressão econômica não se pode negar;” (JANUZZI, 1979, p. 58) Podemos notar, então, que o MOBRAL se insere em um novo contexto. A citação acima pode nos dar a dimensão da realidade sobre a qual o MOBRAL atuava: uma sociedade urbanizada, na qual os indivíduos sem alfabetização já possuíam contato com o universo da escrita e da leitura. No artigo “Cidade e Imagem: Constituição de Espaços Públicos” (DUARTE ett al, 1994), pensando no processo de alfabetização numa década posterior (1990) os autores discutem a imagem projetada por migrantes nordestinos sobre a cidade de São Paulo, em sua terra natal e o confronto com a imagem real, percebida ao chegarem na cidade. Nesse artigo podemos perceber o destaque dado por uma das pessoas consultadas, ao fato da alfabetização ser imposta pelo meio urbano. É importante, ainda, termos em vista que o MOBRAL, como projeto do regime militar, em sua origem parte da intenção de suprir uma demanda existente na sociedade brasileira, como aponta Januzzi. Segundo a autora, devido a ausência do Estado na área de alfabetização de adultos durante os primeiros anos do regime militar, diversas iniciativas autônomas foram implementadas. A autora aponta, inclusive, que o MOBRAL teria sido uma resposta a essas iniciativas autônomas, dentro dos interesses do Estado Brasileiro em controlar essa área da educação. Januzzi aponta, ainda, que mesmo após ter sido iniciado o programa de alfabetização do MOBRAL essas iniciativas autônomas não desapareceram. Então, para melhor combatê-las foram implementadas reformas no MOBRAL, as quais consistiam em oferecer aos seus freqüentadores a oportunidade de cursarem níveis superiores de ensino após serem alfabetizados. Assim, o Estado deixa de atuar na escolarização de adultos por meio de campanhas de alfabetização, passando para uma ação supletiva. Tal ato passa a igualar, no plano legal, os indivíduos alfabetizados tanto pelo MOBRAL como pela rede de ensino regular, possibilitando a todos os escolarizados prosseguirem seus estudos em séries posteriores. É importante, também, ter em mente a afirmação de Julio Barreiro, de que nos anos 1970, iniciativas inspiradas em Paulo Freire existiam em toda a América Latina (BARREIRO, 1974, p. 43). Para o período atual, dentro de um contexto de redemocratização (ainda em curso) do Estado brasileiro, as políticas públicas para a escolarização de adultos foram reelaboradas. O Parecer CEB sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) (s/d), destaca que a partir da Constituição de 1988 ocorreram transformações em nível legal na escolarização de adultos. Uma das mudanças ocorridas foi a eliminação da diferenciação entre ensino regular e supletivo do texto da Carta Magna. O Parecer ainda expõe a proposta que visa ser o sistema de educação permanente e afirma chocar-se com a estrutura do sistema escolar voltado para crianças e adolescentes, a qual denomina de “arcaica”, por associar idade e séries escolares. Assim como o MOBRAL as políticas públicas para a escolarização de adultos do Brasil, no período atual, não trabalham mais por meio de campanhas de alfabetização. No lugar das mesmas, criou-se um outro modelo de escola, a qual visa uma ação supletiva e fornece aos seus alunos uma igualdade legal perante os indivíduos que cursaram o ensino regular. Porém, é interessante perceber que apesar das inovações, a proposta atual para a escolarização de adultos permanece vinculada estreitamente aos interesses do Estado e do poder econômico. Destacamos que tal política se vincula com a conjuntura social do país e as orientações políticas do Estado. A proposta atual vai de encontro ao objetivo de preparar a população em geral não somente para o exercício do trabalho, mas para as necessidades cotidianas de alfabetização que surgem na vida urbana, de certo modo semelhante aos propósitos expressos do MOBRAL. Se tais intenções não estão contidas de maneira clara no programa atual, é importante notarmos que o conhecimento adquirido pelo aluno nessa modalidade de ensino pode ser empregado em seu dia-a-dia. Trata-se, também, de uma resposta do Estado frente às necessidades de escolarização sentidas pela população. Na conjuntura atual não faltam trabalhadores especializados; ao contrário, a partir da década de 1990 cresce, a cada dia, o número de desempregados no país. Logo, a escolarização acaba para atuar no sentido de formar um “exército de reserva”, o qual pode atender aos critérios de escolarização exigidos pelo capital. Contudo, é preciso notar que a escolarização é apresentada pelo Parecer como um meio, que por si somente, pode superar as desigualdades sociais do Brasil. Tal fato pode se percebido na seguinte passagem: “A eqüidade é a forma pela qual se distribuem os bens sociais de modo a garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade. Neste sentido, os desfavorecidos frente ao acesso e permanência na escola devem receber proporcionalmente maiores oportunidades que os outros. Por esta função, o indivíduo que teve sustada sua formação, qualquer que tenha sido a razão, busca restabelecer sua trajetória escolar de modo a readquirir um ponto igualitário no jogo da sociedade.” (MEC/CEB, s/d, p. 5) Mais adiante o documento destaca: “A educação, como uma chave indispensável para a ‘sociedade do conhecimento’, vai se impondo cada vez mais nestes tempos de grandes mudanças e inovações nos processos produtivos. Ela possibilita ao indivíduo jovem e adulto retomar seu potencial, desenvolver suas habilidades, confirmar potências adquiridas na educação extra – escolar e na própria vida, possibilitar um nível técnico e profissional mais qualificado.” (MEC/CEB, s/d, p. 5) Como o documento demonstra, entre as intenções do programa estão a promoção social a partir do plano individual. Tal idéia demonstra a crença em uma sociedade na qual os bens sociais estão ao alcance de todos, cabendo aos indivíduos desenvolverem (individualmente) suas capacidades para obtê-los. Nesse sentido, a escolarização é apresentada como o meio fundamental para o acesso aos benefícios sociais. O documento denuncia que o analfabetismo é fruto da negação de um direito ao indivíduo, quando este era criança ou adolescente. Porém, por outro lado, associa promoção social com escolarização. Distanciando-nos dessa posição, entendemos que a distribuição de renda e a hierarquia social existente em nosso país é fruto de um modelo econômico e social adotado e perpetuado por nossa sociedade, cujos problemas nem sempre podem ser resolvidas apenas por meio de iniciativas individuais ou por meio do simples ato de se escolarizar. Também é importante notar que tais idéias, acabam por culpabilizar o próprio indivíduo pelo seu fracasso social, buscando eximir de culpa a estrutura social. Tal idéia vai de encontro com a crítica formulada por Enguita: “Ao prometer mobilidade social através de um mecanismo formalmente acessível a todos, [a escolarização] desativa os conflitos potenciais em torno da distribuição da propriedade, da organização da produção, etc.” (ENGUITA, 1989, p. 234) Dentro da perspectiva apontada pelo Parecer, a escola acaba atuando como mais uma forma de dominação. Apresenta-se como justa e única possibilidade para a transformação das posições dos indivíduos na sociedade, podendo contribuir para a desarticulação de movimentos coletivos e de ruptura com o caráter excludente do sistema vigente no país. É marcante, também, o fato do documento não criticar as transformações sociais que vêem sendo implementadas no Brasil a partir das últimas décadas. Tais transformações, as quais sabemos que em muito foram incentivadas pelo Estado brasileiro desde o início da década de 1990, são naturalizadas. A “sociedade do conhecimento” é tratada como algo natural, cuja realização não se dá pela ação humana. Como podemos perceber, da mesma forma que nos programas anteriores a política atualmente em vigor para a escolarização de adultos no Brasil não trabalha de uma forma crítica. Naturaliza a sociedade na qual os indivíduos estão inseridos como se essa fosse a única possível e a qual devem se ajustar. Atua no sentido totalmente oposto ao ideal de uma escolarização que auxilie o aluno a analisar a realidade na qual está inserido e na elaboração de um projeto autônomo de sociedade. Podemos constatar que o modelo atual de escolarização de adultos ao invés de analisar busca reproduzir a sociedade existente. Possui como grande ideal apresentar uma possibilidade de ascensão social que muitas vezes não se concretiza. Dessa forma, a proposta atual para a escolarização de adultos impregna-se de um caráter ideológico e vincula-se aos interesses do sistema capitalista, tornando-se mais um de seus instrumentos de dominação. CONCLUSÕES: Podemos perceber ao longo deste estudo, como as políticas públicas para a escolarização de adultos no Brasil têm sido extremamente vinculadas aos ideais dos grupos detentores do poder político e econômico no país. Ao contrário de buscarem uma maior democratização da sociedade brasileira atuaram no sentido de colaborar com os processos de dominação. Tais fatos, contudo, não ocorreram sem resistências. Porém, mesmo no período atual, quando se propaga a idéia de uma nova escola, podemos perceber a existência de uma instituição escolar disciplinadora e reprodutora dos ideais dominantes. Para superar-se tal situação, acreditamos que seja necessária uma reestruturação das bases sobre as quais está assentado o sistema escolar. Acreditamos que para existir uma escola popular e democrática é necessário que ocorram transformações na sua própria estrutura organizacional. Uma escolarização comprometida com as causas populares somente pode existir quando produzida segundo os interesses dos próprios grupos sociais que visa atender. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARREIRO, Iraíde Marques de Freitas. Educação rural capitalista: A contradição entre a educação modernizadora e a educação de classe popular na Campanha Nacional de Educação Rural. Campinas: UNICAMP, 1989. (Dissertação de Mestrado). BARREIRO, Julio. Educación popular y proceso de concientización. Buenos Aires: Siglo Veintiuno ed., 1974. BEISIEGEL, Celso de Rui. Estado e educação popular: um estudo sobre a educação de adultos. São Paulo: Pioneira, 1974. DUARTE, Geni Rosa ett alli. “Cidade e imagem: constituição dos espaços públicos”. In: Boletim de Pesquisa n.º 4. Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. São Paulo, pp. 71-6, 1994. ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola: Educação e Trabalho no Capitalismo. Artes Médicas, 1989. GÓES, Moacyr de. De pé no chão também se aprende a ler, 1961-64: uma escola democrática. 2ª. ed. São Paulo: Cortez, 1991. JANNUZZI, Gilberta Martino. Confronto Pedagógico: Paulo Freire e Mobral. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. MEC/CEB. Parecer CEB sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos (EJA). Datiloscrito. s/d. THOMPSON, E. P. “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial”. In: Costumes em comum. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. pp. 267-304.