: ARTIGO Co-construção do conhecimento matemático no jardim de infância – contagens no quotidiano Diana Brandão . Educadora de infância ([email protected]) Raquel Almeida . Educadora de infância ([email protected]) João Sampaio Maia . in ED - Centro de Investigação & Inovação em Educação ([email protected]) Contexto A situação que apresentamos ocorreu numa Instituição Privada de Solidariedade Social (IPSS), no concelho do Porto, com um grupo de 27 crianças de 4 anos e a nossa finalidade é evidenciar uma situação onde se conseguiu aliar o interesse espontâneo de uma das crianças na contagem das restantes presentes para o almoço com a posterior atividade orientada de pôr as mesas. O seu objetivo prende-se com o desenvolvimento de competências de correspondência termo a termo, classificação e seriação, e tem como protagonistas três das crianças presentes, as responsáveis, naquele dia, pelas três mesas destinadas àquele grupo existentes no refeitório. Conscientes de que é a intencionalidade do educador que sustenta todo o processo educativo, acreditamos que, tal como defendem Maia, Menino e Alves (2006), a forma como os educadores abordam os conteúdos matemáticos neste nível de educação é tão importante quanto estes. Consideramos também que o processo educativo assenta numa aprendizagem pela ação, permitindo à criança a construção de conhecimento, sendo esta “um sujeito ativo na sua própria aprendizagem” (Maia, Menino & Alves, 2006, p. 293). Deste modo, com base em observações de situações de jogo espontâneo ou de atividades orientadas, verificámos que, por vezes, as crianças revelavam iniciativa para realizar contagens sem que tal lhes fosse solicitado. Assim, e talvez por isso, a correspondência termo a termo destacava-se como uma das competências mais desenvolvidas no grupo. No entanto, pelo contrário, a classificação de objetos, de acordo com uma ou mais propriedades e a noção de número cardinal careciam de desenvolvimento por parte das crianças do grupo. 1. Todos os nomes próprios são referidos através das iniciais, para preservação da privacidade dos intervenientes. 21 Cadernos de Educação de Infância n.º 97 Set/Dez 12 Contar as crianças Tudo começou quando L. F1. (4 anos e 7 meses) iniciou a contagem das crianças presentes para o almoço, autonomamente, em situação de reunião de grande grupo. Esta criança evidencia, por norma, alguma dificuldade na realização deste tipo de tarefas, mas nesta situação estabeleceu corretamente a correspondência termo a termo até ao numeral “dez”, tendo, no entanto, a necessidade de tocar em cada elemento do grupo à medida que proferia o respetivo numeral. Nesta fase, a criança concretizou a relação biunívoca entre o gesto e o objeto, bem como a relação entre o gesto e o numeral (Castro & Rodrigues, 2008; Maia, 2008), mostrando ser capaz de ordenar numericamente os elementos fisicamente seriados pela posição de cada elemento na “roda” em que estavam dispostos. Contudo, na continuação da contagem e dado que L. F. não conhecia a ordem/sequência dos numerais seguintes, foi necessária orientação do adulto e auxílio do restante grupo de crianças, tendo sido obtido, como cardinal, um total de vinte crianças. Após esta contagem, sugerimos que duas outras crianças, a L. B. e o G., ambas de 4 anos e 9 meses, se juntassem à L. F. com o intuito de cada uma ficar encarregada de pôr uma das mesas, o que permitiria comparar estados de desenvolvimento entre elas em relação ao tema em causa. De notar que o adulto sugeriu a ida ao refeitório para pôr as mesas apenas por esta atividade não ser praticada diariamente. Pôr as mesas Assim, já no espaço do refeitório, questionámos a L. F., a L. B. e o G. acerca de quantos meninos foram contados para o almoço e, consequentemente, de quantos pratos necessitaríamos no total. Neste momento, o G. respondeu “muitos!”, mostrando que o cardinal obtido anteriormente não havia sido memorizado, concluindo-se que a realização do registo escrito da contagem (que não foi Fig.1 – G. a contar os pratos. feito) poderia ter sido pertinente. Embora conscientes de que a construção do sentido de número, nomeadamente no seu início, é suportada pela representação oral, “competência fundamental no desenvolvimento matemático das crianças” (Castro & Rodrigues, 2008, p. 33), consideramos que esta deve ser alargada à representação escrita, na medida em que a mesma se afigura como um importante meio de desenvolvimento e explicitação de pensamento lógico (Pierrard, 2002). Porém, as rotinas do grupo de crianças encontravam-se limitadas ao raciocínio e ao uso da linguagem oral, não se operacionalizando a perspe- : ARTIGO Fig. 2 – L.F. a contar as facas. tiva de Maia e Menino (1996), que defendem que “a construção da necessária relação entre os diferentes conceitos numéricos (…) [deve ser] complementada com a construção e a aprendizagem das respetivas representações [escritas]” (p. 3). Assim, verificando-se dificuldades a nível do registo escrito, inclusive em atividades espontâneas, pareceu-nos que este fator constituiu um constrangimento à realização da atividade orientada em causa. Após o referido primeiro diálogo acerca do número de pratos necessários, o adulto optou por relembrar o número de crianças para o almoço, questionando de seguida: “Então se temos vinte meninos, de quantos pratos precisamos?”, obtendo a resposta “vinte!”, dada pelo G. Não comendo todos os vinte na mesma mesa, cada menino ficou responsável por ir buscar e contar (ver figura 1) seis ou sete pratos, dispondo-os adequadamente pelo espaço da sua mesa. Este número, resultante da divisão do número de crianças presentes pela quantidade de mesas, foi definido pelos adultos, visto que na faixa etária em causa este tipo de operação ainda não e passível de ser realizado pelas crianças. No decorrer deste processo, o adulto estimulou o diálogo entre todos, incentivando a explicitação oral do raciocínio, através de questões como: “De quantos pratos precisamos para esta mesa?”, “Já tens todos?”, “Então quantos te faltam?”, entre outras. 22 Cadernos de Educação de Infância n.º 97 Set/Dez 12 Deste momento de diálogo, consideramos pertinente destacar o raciocínio de uma das crianças, o G., que, precisando de sete pratos e tendo apenas quatro, disse: “Ainda faltam muitos.” O adulto acrescentou então dois pratos e voltou a questionar a criança, a qual lhe respondeu: “Não chegam, falta um.” Observou-se, portanto, a presença de capacidade operacional, uma vez que se pode considerar que foram efetuados cálculos elementares. Com efeito, nestas faixas etárias mais baixas ocorre com alguma frequência a realização de cálculos, ainda que seja elementar o conhecimento da sequência numérica, pois “as crianças modelam os problemas recorrendo a materiais concretos (…) e efetuam contagens um a um” (Castro & Rodrigues, 2008, p. 29). Esta estratégia de questionamento perdurou durante as contagens de talheres e copos. Ao longo destas, pôde verificar-se, por parte da L. B. e do G., a concretização de correspondência termo a termo entre o numeral e o gesto e entre o gesto e o objeto (pratos, copos, talheres), sendo igualmente capazes de responder adequadamente a questões relacionadas com o cardinal dos vários conjuntos – por exemplo, correspondência entre cardinal de crianças por mesa e o cardinal dos utensílios necessários para cada mesa. Já a L. F., a criança que contou quem estava presente para o almoço, não realizou a tarefa do mesmo modo, na medida em que a obtenção do número de talheres necessários resultou de sucessivas tentativas, as quais ocorreram sempre por defeito e nunca por excesso; ou seja, na contagem dos talheres, a criança, precisando de seis, retirou apenas duas colheres, tendo de regressar à gaveta, de onde retirou mais quatro, perfazendo as seis necessárias. O mesmo foi observado na contagem das facas (ver figura 2), em que, num primeiro momento, retirou quatro e, após ser questionada pelo adulto no sentido de saber se estas eram suficientes, retirou outras duas, perfazendo novamente o total necessário. Como se pôde constatar, a L. F. obteve sempre o cardinal do conjunto de talheres correspondente ao cardinal de pratos na mesa à segunda tentativa, o que nos fez levantar uma questão à qual não conseguimos responder: esta situação traduzirá o desenvolvimento da capacidade operacional da criança ou, tendo em conta as necessidades evidenciadas pela L. F., terá sido um mero acaso? Segundo a perspetiva de Gelman e Gallistel (1978), a contagem, no período pré-operatório, é orientada por cinco princípios inatos, os quais, embora compreendidos pelas crianças, geram muitas vezes conflitos, quando da tentativa, por parte das mesmas, de os pôr em prática. Esta situação de conflito tornou-se evidente, no que respeita ao princípio da cardinalidade, no momento em que a L. F., não apresentando qualquer objetivo cardinal, respondeu, sucessivamente, com a contagem dos objetos – “um, dois, três, quatro, cinco, seis” – à questão “Quantos copos puseste?” Isto é, a L. F. revelou dificuldade em “fazer a transição para a contagem-cardinal do último numeral dito na contagem dos objetos para o significado cardinal que esta palavra tem ao referir-se a quantos objetos são ao todo” (Maia, 2008, p. 68). Aliás, num primeiro momento da contagem, a L. F. começou por revelar dificuldade na sua realização, devido à ordem dos objetos, uma vez que, sendo a mesa redonda, os copos se encontravam dispostos em círculo. Ora, como é sabido, a “disposição circular confunde as crianças, uma vez que a maioria não consegue utilizar estratégias que lhes permitam identificar onde se inicia e onde termina a contagem” (Castro & Rodrigues, 2008, p. 18). Porém, este desafio foi ultrapassado com ajuda do G., que a alertou para o facto de já ter repetido objetos na sua contagem, indicando o copo por onde esta tinha iniciado (ver figura 3). Em oposição ao supracitado, a L. B. revelou a compreensão não só de número ordinal e cardinal, como o G., mas ainda de um conceito diferente dos anteriormente referidos: classificação. Esta realizou-se quando da escolha dos copos para a mesa, pois a L. B. optou por só colocar co- : ARTIGO pos vermelhos, tendo materializado a operação de classificação através da propriedade da cor (ver figura 4). Relativamente a esta questão, Henriques (2003, p. 111) refere que “analisar os objetos em termos de propriedades – cor, forma, características numéricas, etc. – constitui a base da lógica das classes”, pelo que nos parece que a L. B., ao realizar esta operação, demonstrou compreender a essência dessa lógica. Considerações finais A reflexão sobre as questões matemáticas em contexto de educação pré-escolar permite que se compreenda a importância da promoção da resolução de situações problemáticas, decorrentes das vivências diárias, estimulando-se, sempre que possível, o pensamento das crianças no sentido da procura de soluções, bem como a posterior explicitação oral do seu raciocínio. Nesta perspetiva e tendo em conta o tema abordado, pode afirmar-se que “os números devem, portanto, desempenhar um papel desafiante e com significado, sendo a criança estimulada e encorajada a compreender os aspetos numéricos do mundo em que vive e a discuti-los com os outros” (Castro & Rodrigues, 2008, p. 12). Do exemplo explorado ao longo do presente artigo pode concluir-se que duas das crianças, a L. B. e o G., mostraram ter desenvolvida a Fig. 3 – G. a ajudar L. F. na contagem dos copos. 23 Cadernos de Educação de Infância n.º 97 Set/Dez 12 noção de número ordinal e cardinal, sendo capazes de seriar. No caso da primeira verificou-se, inclusive, a classificação de conjuntos, e na segunda, a demonstração de competências de cálculo elementares. Contudo, a terceira criança, a L. F., apesar de compreender o conceito de número ordinal e ser capaz de seriar, revelou dificuldade no princípio da cardinalidade. Sabemos que as diferenças apresentadas se podem dever a questões de maturação das estruturas internas cognitivas, que se relacionam com a idade ou com experiências vividas. Todavia, parece-nos que o primeiro fator não é determinante, já que as idades destas três crianças diferem apenas em dois meses. Estas diferenças de ritmo desenvolvimental que as crianças em questão apresentam não só não foram um entrave ao desenrolar da situação como constituíram uma mais-valia no decorrer da atividade em causa, na medida em que a criança que demonstrou ter as competências matemáticas menos desenvolvidas, a L. F., foi ajudada pelas outras duas. Corroborando o mencionado, a literatura refere que “a interação entre crianças em momentos diferentes de desenvolvimento e com saberes diversos é facilitadora do desenvolvimento e da aprendizagem (…) [tornando-se por isso] importante o trabalho entre pares e em pequenos grupos, em que as crianças têm oportunidade de confrontar os seus pontos de vista e de colaborar na resolução de problemas ou dificuldades colocadas por uma tarefa comum” (Ministério da Educação, 1997, p. 35). Consideramos que teria sido relevante a concretização do registo escrito por parte das crianças, sucedendo à contagem oral e antecedendo a tarefa de pôr as mesas. No entanto, com base no conhecimento do grupo, não foi possível realizar a passagem da representação oral para a representação escrita, uma vez que esta última não se encontrava suficientemente desenvolvida para permitir atingir o objetivo pretendido. Importa, por fim, referir que neste “pôr as me- Fig. 4 – Classificação através da cor, pela L. B. sas”, atividade de cariz aparentemente simples, se encontram múltiplas oportunidades de construção de conhecimento por parte das crianças, devendo realçar-se “a importância do contexto no qual surgem os problemas e de como esse mesmo contexto pode facilitar o desenvolvimento de competências numéricas” (Castro & Rodrigues, 2008, p. 20). Referências bibliográficas Castro, J., & Rodrigues, M. (2008). Sentido de número e organização de dados – Textos de apoio para educadores de infância. Lisboa: Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular. Gelman, R., & Gallister, C. (1978). The child’s understanding of number. Cambridge, MA: Harvard University Press. Henriques, A. (2003). Aritmética ao alcance de todos. Lisboa: Instituto Piaget. Maia, J. (2008). Aprender... Matemática do jardim de infância à escola. Porto: Porto Editora. Maia, J., & Menino, M. (1996, 4.º trimestre). Construção de sequência numérica – um exemplo no jardim de infância. Educação e Matemática, 40, 6-7. Maia, J., Menino, C., & Alves, M. (2006). Construção/representação do conhecimento matemático no quotidiano do jardim de infância. In J. V. Aymerich & S. M. Vives (eds.), Matemáticas para el siglo XXI (pp. 293-301). Castelló (Espanha): Universitat Jaume I. Ministério da Educação (1997). Orientações curriculares para a educação pré-escolar. Lisboa: Departamento de Educação Básica. Pierrard, A. (2002). Faire des mathématiques à l’école maternelle. Grenoble: CRDP de l’Académie de Grenoble.