A relegação social dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção do Porto
Oriental: um caso extremado de desigualdade social
Maria Cidália Queiroz – FEP e ISSSP
Marielle Christine Gros - ISSSP
Tomando por referência relevantes contributos provenientes da sociologia,
sabemos que a inclusão social decorre da posse de uma pluralidade de recursos,
designadamente dos domínios económico, social e simbólico. Para se estar
socialmente incluído não basta ter acesso a rendimentos compatíveis com a satisfação
das necessidades, que na nossa sociedade são consideradas fundamentais, mas,
igualmente, dispor de oportunidades de participar em redes de relacionamento que
tornem possível a interacção com indivíduos socialmente heterogéneos. Ou seja, é
fundamental evitar que os indivíduos sejam banidos para sociabilidades restritas ao
grupo de iguais. Não menos importante para a inclusão é a partilha de normas e
valores colectivos, sendo que o reconhecimento, respeito e valorização que podemos
obter da sociedade, no seu conjunto, dependem da nossa conformidade com tais
valores. Não faltam teorizações que demonstram quanto a hierarquização social está
associada aos mecanismos e processos de categorização, não sendo raros, como
demonstrou Goffman, os casos de estigmatização que precipitam os indivíduos em
autênticas “carreiras de marginalidade”.
A partir da observação das privações económicas, relacionais e simbólicas
que se impõem aos beneficiários do RSI cujos programas de inserção foram
elaborados e acompanhados pela Qualificar para Incluir em 2009, concluímos que a
forma de exclusão que predominantemente os atinge é a relegação social, entendida
como fenómeno colectivo de aprisionamento em territórios urbanos segregados que,
por acentuarem a escassez de oportunidades que caracteriza os seus trajectos de
vida, definem o seu lugar na sociedade em termos essencialmente negativos.
Dimensão económica da in(ex)clusão
A análise da situação económica do 849 beneficiários do RSI enquadrados
pela QpI, dos quais, 503 em idade activa e 346 com idades iguais ou inferiores a 16
anos, revela que, na sua esmagadora maioria, se encontram em situação de fraca
integração no plano económico.
O seu rendimento médio per capita bruto é da ordem dos 183 €, um valor
fortemente distanciado dos montantes apurados como definidores do limiar da pobreza
em Portugal. Registe-se que em 2007, eram, no nosso país, considerados pobres os
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indivíduos cujo rendimento mensal se situava nos 495,9 € mensais, valor este
referente a 60% do rendimento equivalente médio.
Se considerarmos o rendimento médio per capita após a retirada das despesas
fixas, envolvidas no pagamento de renda de casa, água, luz, gás, transportes e
infantário, chegamos à conclusão de que os beneficiários referidos dispõem de um
quantitativo da ordem dos 94,93€ mensais. Do nosso total de 849 beneficiários, 12,1%
(106) dispõem de um rendimento que não vai além dos 70 € mensais para suprir as
restantes despesas; 12,3% (103) não dispõe de mais que 50 €, enquanto que 4,6%
(39) permanecem numa situação de absoluta insolvência após o pagamento das
referidas despesas fixas, havendo casos em que nem estas podem ser satisfeitas com
os rendimentos provenientes do RSI. Prosseguindo na nossa análise fina dos
rendimentos dos beneficiários em causa, podemos, ainda, dizer que 17,2% (146)
dispõem de 122 € mensais para satisfazer as necessidades não incluídas nas acima
referidas despesas fixas; que 11,2% só conta com 139€; que 6,4% (55) possui 160€;
que 2,8% (24) chega aos 175 €; que 7% (59) atinge os 200€; que 1,7% (15) alcança
300 €.
Sabendo-se que a pretensão de definir o limiar abaixo do qual um indivíduo ou
uma família podem ser considerados como pobres é tarefa recheada de armadilhas,
podemos, sem comprometer a objectividade, dizer que, em termos de consumo, as
famílias que acompanhamos se afastam visivelmente do sistema de valores da
sociedade em que vivemos. À luz dos valores das “sociedades de consumo”, as
condições de existência dos “nossos” beneficiários do RSI são percepcionadas como
anormalidade, pois não está ao seu alcance satisfazer necessidades consideradas
fundamentais nessas mesmas sociedades. À luz do modelo dominante que se impõe e
que influencia as necessidades dos cidadãos, em geral, os beneficiários a que nos
referimos confrontam-se com uma fortíssima restrição de satisfazer o seu desejo de
sentido social. Como muito pertinentemente têm assinalado importantes analistas do
fenómeno “consumo”, o que procuramos através da posse de objectos e da
participação em certas actividades é, acima de tudo, obter sinais de reconhecimento
(identificação) e de diferenciação. É essa necessidade de identificação e de
reconhecimento que permite compreender, por exemplo, a grande importância que
atribuem, particularmente os mais jovens, aos consumos que se aproximam dos
padrões socialmente mais apreciados. Muitas vezes tido como irracional, o facto de os
jovens serem fortemente atraídos pelas “marcas” mais prestigiadas, o que os leva a
não sentirem necessidade de um qualquer vestuário quente, de quaisquer sapatos, de
qualquer telemóvel, etc., não representa mais do que o desejo de conformidade com
os padrões de vida normativos na sociedade em que vivem. Um consumo menor ou
diferente daquele que é percepcionado e vivido como a situação normal constitui um
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critério forte, não somente para a designação da pobreza, mas, também, para que os
próprios se sintam como protagonistas dessa condição, não raro a percepcionando
como resultado de uma incapacidade pessoal.
A participação dos indivíduos na vida económica depende também da inserção
no mundo do trabalho, que se reveste de uma importância particular, não só por
proporcionar os rendimentos que permitem o consumo, mas, também, por dela
decorrer a possibilidade de adquirir uma verdadeira identidade social. Nas sociedades
industriais e pós industriais, o trabalho tem um poder de definição muito mais forte do
que qualquer outro tipo de pertença, constituindo a única porta de entrada no sistema
social e sendo o principal fornecedor de lugares na sociedade.
Ora, a vida profissional dos beneficiários do RSI com quem trabalhamos é, na
sua esmagadora maioria, marcada pela inexistência de qualificações profissionais e
escolares, assim como pela inexistência de motivação para viver o trabalho como uma
actividade em que vale a pena investir.
Dos 503 beneficiários em idade activa acima mencionados, 69% estão
actualmente no desemprego, sendo que dos restantes, somente 15,3% (77
beneficiários) detêm um emprego precário com baixa remuneração.
De registar que dos beneficiários que permanecem ligados ao mercado de
trabalho (77), 24,7% (19) auferem um salário mensal entre os 100 e os 200€, que
18,2% (14) dispõem de um salário entre 200 e 300€, que os salários do intervalo 400 –
500€ representam 41,6% (32) dos referidos beneficiários e que apenas dois chegam
respectivamente aos 650 e 850€1.
Face às normas sociais vigentes na sociedade, a sua imagem é atingida de
negatividade, quanto mais não seja porque a sua relação com o trabalho é o inverso
de uma situação considerada normal. Numa sociedade em que o trabalho toma um
lugar central na definição dos indivíduos e a sua falta tende a ser apercebida como
uma anomalia, como resultado de uma falha, designadamente incompetência,
preguiça, má vontade, compreende-se que a não participação na produção de bens
ocasiona uma forma de exclusão simbólica que, por sua vez, leva à perda da utilidade
social e à marginalização da produção social. Além de se haverem tornado pessoas
privadas de trabalho e de recursos, estes beneficiários acabaram por perder as suas
forças, a confiança em si, a sua identidade.
Sendo inequívoco que o desemprego é hoje considerado como a melhor
solução para gerir as incertezas económicas, melhorar a produtividade e o rendimento
das empresas, não restam dúvidas de que este se deve a uma disfunção estrutural do
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São apenas 5 os beneficiários que recebem vencimentos compreendidos, respectivamente, entre os 300 e
400 € mensais e entre os 500 e 600 €/mês.
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sistema económico. Não obstante essa evidência da inevitabilidade do fenómeno da
exclusão pelo desemprego, nem assim, a situação dos indivíduos sem trabalho deixa
de ser vista como anormal e de remeter a sua responsabilidade para o indivíduo. Num
contexto de forte desequilíbrio entre a oferta e a procura de postos de trabalho, a
concorrência crescente pelo acesso ao emprego é um jogo em que apenas os
melhores podem resistir, um jogo em que os eliminados não conseguem escapar ao
julgamento de que são piores do que os outros.
A ausência de qualificação profissional é a característica mais notória da vida
profissional dos beneficiários em causa, dela decorrendo não só as baixas
remunerações, insuficientes para fazer face a necessidades básicas, mas, igualmente,
a precariedade do emprego, tanto mais que a sua inserção ocorre privilegiadamente
no chamado mercado de emprego secundário, em que prevalecem as pequenas
empresas com formas de organização tradicionais e a produção de baixo valor
acrescentado. Acederam, pois, a uma categoria de empregos que não providenciam
os rendimentos necessários para fugir à miséria.
O desemprego de longa duração prevalece esmagadoramente no conjunto dos
beneficiários que acompanhamos com vista à contratualização de um projecto de
inserção. De registar que dos 426 indivíduos actualmente desligado do mundo do
trabalho, 25,1% nunca conheceu a situação de assalariamento, 24,4% estão
desempregados há mais de 7 anos, 5,16% há 6 anos, 8,2% há 5 anos, 8,2% há 4
anos. Com uma duração do período de desemprego entre 1 e 3 anos, encontram-se
27,6% dos beneficiários desempregados. Finalmente, a situação de desemprego há
menos de 1 ano reúne apenas 2,58% do referido total de desempregados.
Trata-se pois de indivíduos que deixaram de procurar emprego, seja por falta
de oportunidades de o encontrar, seja porque aqueles a que poderiam aceder
proporcionam salários tão baixos a ponto de ser economicamente mais racional
enveredar pelo recurso às prestações disponíveis no âmbito da protecção social. Além
da escassez de recursos, com que sempre se confrontaram, a sua imagem social e as
suas relações com os outros foram-se degradando ao longo da vida, abeirando a
desinserção social.
Na sua quase totalidade, os “nossos” desempregados nunca usufruíram de
subsídio de desemprego, precisamente em resultado da informalidade dos vínculos
laborais em que estiveram envolvidos. Também não lhes foi possível capitalizar
recursos que permitissem fazer face ao desemprego. Tão pouco lhes é possível
encontrar no grupo familiar os suportes capazes de compensar a carência de
rendimentos do trabalho. Dos 503 beneficiários em idade activa, 53,9% mudaram de
emprego entre 3 e sete vezes. Do ponto de vista das relações que supostamente é
possível estabelecer através da vida profissional, pode dizer-se que a rotação por
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numerosos postos de trabalho foi um obstáculo objectivo à realização de
aprendizagens profissionais relevantes, assim como restringiu severamente as
possibilidades de criarem relações estáveis a vários títulos indispensáveis para a
inserção social.
Dimensão social da in(ex)clusão
Se é legítimo considerar a integração na dimensão económica como uma
dimensão fundamental, a sua ausência não basta para definir e explicar as diversas
formas de exclusão. Na precisa medida em que a integração num tecido relacional
está longe de ser um recurso negligenciável para a inclusão social, muitos analistas
consideram importante retomar a tradição sociológica de Durkheim, designadamente a
sua análise das formas de solidariedade mecânica e orgânica. Desde logo, porque a
inscrição em redes de sociabilidade primária (familiar, de amigos, associativa)
preenche, muito em especial, a necessidade de os indivíduos construírem imagens
identificatórias, facultando-lhes a possibilidade de se representarem a si próprios no
seio do seu grupo, bem como de identificarem o seu lugar e papel na sociedade. Além
disso, essa pertença a grupos de sociabilidade primária não raro assegura a troca de
entre ajudas e de serviços de apoio que permitem contornar a dificuldade de os
adquirir no mercado. Em suma, o isolamento e o afastamento das redes de relações
sociais são factores de vulnerabilidade não só por representarem um enfraquecimento
das trocas, mas por acarretarem uma carência, ainda mais grave, que remete para a
ruptura dos grupos de pertença. Ruptura, esta, que, ao instalar a impossibilidade de
trocar ou negociar imagens identitárias, enfraquece progressivamente o sentimento de
pertença a um grupo restrito (família, bairro, profissão, etc.), bem como as fontes de
segurança e de valorização.
Mas é preciso ter em conta que, na sociedade em que vivemos, as relações
sociais podem, igualmente, ser tecidas por via da inscrição em laços sociais verticais
consagrados pelo contrato social entre o Estado e os cidadãos. Trata-se de um tipo de
solidariedade baseada na convicção de que o interesse individual se encontra
inevitavelmente ligado ao interesse colectivo com a correspondente exigência de os
cidadãos assumirem a responsabilidade de contribuir financeiramente para o sistema
de redistribuição, na convicção de que só assim se conseguirá preservar a sociedade
da fragmentação e da desordem. Indispensável para corrigir, controlar e bloquear os
fenómenos de deriva social ocasionados pelo encadeamento de problemas
económicos, de saúde, de habitação e psicológicos, esta forma de solidariedade
representa uma tentativa de preservar a ligação dos indivíduos à sociedade. Claro que
é fundamental não esquecer que o potencial de resolução das políticas accionadas
pelo Estado depende da sua orientação ideológica, mais liberal ou mais social, bem
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como das suas capacidades financeiras, sendo que, estas, por sua vez, são
indissociáveis da situação económica do país.
No nosso país, a dimensão quantitativa do fenómeno da pobreza é a evidência
empírica de que a integração dos indivíduos no tecido social se tem tornado mais
problemática, o que, certamente não deixará de contribuir para enfraquecer o
interesse colectivo. O Estado não pode, então, deixar de intervir sob pena de sério
enfraquecimento da coesão social e de uma explosão das tensões e conflitos sociais
disruptores.
Os beneficiários por nós acompanhados dispõem de escassas oportunidades
de participar em redes de solidariedade e, acima de tudo, não dispõem dos recursos
relacionais, culturais, intelectuais, ideológicos e simbólicos requeridos para tomar parte
numa acção colectiva susceptível de conduzir à conquista de uma melhoria das suas
condições de existência. Podemos dizer, sem arriscar muito, que à exclusão do
emprego se acumulou a exclusão do espaço de socialidade, designadamente do
grupo familiar, precipitando-os numa deriva social e psicológica que toma ainda mais
difícil a reinserção.
Os beneficiários que acompanhamos, com vista à contratualização e
implementação de um programa de inserção social, são protagonistas de histórias de
vida recheadas de privações quer no plano material, quer no plano psicológico. As
suas condições concretas de existência determinaram a estruturação interna de certas
reacções subjectivas que tendem a contribuir, de forma muito difícil de reverter, para a
manutenção da incapacidade de assegurar uma vida pelos próprios meios. São, na
sua esmagadora maioria, indivíduos que se confrontaram, desde muito cedo, com
rupturas de ordem material e emocional, rupturas, estas, que induziram a elaboração
de racionalizações que se constituem em forte obstáculo à saída da situação.
Muitos deles vivenciaram a primeira ruptura na infância, com a morte,
abandono ou divórcio dos progenitores. As suas vivências familiares ocorreram num
quadro de relacionamentos emocionalmente instáveis, ambíguos, permissivos,
conflituosos, promíscuos. Não raros, passaram a infância em instituições onde não
obtiveram qualquer qualificação académica e profissional, não conheceram uma figura
de referência com que se pudessem identificar, nem aprenderam a estabelecer
relações e a criar laços. Quanto aos que foram remetidos para familiares, são muitos
os casos em que estes não lhes proporcionaram uma educação compatível com as
exigências da sociedade actual, seja porque nunca os aceitaram incondicionalmente,
seja por manifesta falta de meios materiais e culturais.
Outros enfrentaram a primeira ruptura quando se depararam com a
impossibilidade de conceber um projecto de vida, em face das baixíssimas
expectativas que foram obrigados a formar a respeito do futuro. Não encontraram na
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escola uma verdadeira oportunidade para acreditar que possuem capacidades
bastantes para se apropriarem do conhecimento, nem descobriram a sua utilidade
para a futura vida profissional. O tempo da escola acabou por representar uma
confirmação da sua impotência e falta de capacidade para acompanhar as exigências
da sociedade moderna. Quando chegaram ao mercado de emprego, os únicos postos
de trabalho a que podem realisticamente aspirar nem oferecem independência
material, nem condições de realização profissional e pessoal, uma vez que as tarefas,
demasiado simples e rotineiras, não estimulam a evolução cognitiva, nem, tão pouco,
estabilidade. Não tiveram oportunidade de percepcionar qualquer vantagem no
trabalho a não ser a obtenção de um rendimento que, para maior agravante, nem
sequer garante a satisfação das necessidades elementares. Por exemplo, viver numa
casa minimamente condigna, poder pagar a renda, a água e a luz. Além disso, a
passagem pela escola muito contribuiu, na precisa medida em que não lhes ofereceu
as condições para que se apropriassem dos saberes socialmente inclusivos, para que
incorporassem valores e atitudes de verdadeira desafeição pelo trabalho. O contributo
da escola para a formação de predisposições refractárias à adaptação ao posto de
trabalho, designadamente a aceitação de hierarquias sociais, da disciplina, da relação
entre o sucesso e o esforço implicado, é uma realidade que acabou por os enredar
numa engrenagem que nada ajuda a superar a falta de recursos que os afecta.
Em muitos dos casos que seguimos, a primeira ruptura decorreu de práticas
de consumo de álcool, droga e prostituição na adolescência, com toda a carga de
doenças que estão correntemente associadas a estes consumos (sida, cancro,
psicoses, depressões…), das rupturas relacionais no seio da família, do desemprego e
da derrapagem para uma vida solitária.
Residir em habitats propícios à produção de subculturas, mais ou menos
desviantes, é um outro factor que representa, em muitos casos, uma ruptura na vida
dos indivíduos, designadamente pelo facto de a socialização das gerações mais
jovens ocorrer no seio de grupos de pares que só podem obter uma identidade através
do mecanismo psicológico da inversão da escala de valores.
Em comum, os nossos beneficiários partilham uma história que os levou a
percorrer todas as etapas do percurso da desinserção analisadas por autores como
Gaulejac, Paugam, Dubet, etc.. Não conseguindo fazer face aos acontecimentos da
vida, começaram por desenvolver estratégias defensivas alicerçadas na negação da
realidade e na fuga para o culto da ilusão de uma saída imediata. É o caso, já referido,
de muitos cuja passagem pela escola agravou seriamente o processo de fuga da
realidade, na justa medida em que a vivência desse tempo não representou, nem a
oportunidade de adquirir conhecimentos e competências relevantes para a inclusão,
nem a percepção das lógicas de funcionamento do mundo do trabalho. Deambular
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anos a fio, sem outro objectivo que não fosse o de “matar” o tempo, inseridos em
grupos de pares unidos pela mesma carência de sentido e ao mesmo tempo
fortemente identificados com os padrões de consumo e de vida dominantes na nossa
sociedade, foi o traço mais forte da sua adolescência e juventude. Não dispondo de
capital afectivo, cultural e social, ficaram impossibilitados de desenvolver as
capacidades de resistência que lhes permitiriam lutar contra os obstáculos que
decorrem dessa primeira socialização recheada de privações. Alguns enveredaram
pelos consumos de drogas e por toda a aprendizagem de uma vida fora da realidade
que esta prática comporta. Regra geral, os antecedentes sócio - afectivos familiares,
assim como a trajectória social e cultural não geraram as predisposições para resistir
às dificuldades de adaptação aos mundos que nunca fizeram parte das suas vivências
familiares e comunitárias. Acresce que além da falta de referências afectivas estáveis,
na sua história familiar, que, já de si, os impediu de encontrar força numa imagem
positiva de si próprios, também não vislumbraram na escola ou noutras instituições, do
âmbito das solidariedades verticais, o mínimo indispensável de aceitação e de
investimento para que tal descoberta fosse possível.
Com uma origem cultural e social muito modesta, desde muito cedo
conviveram com a falta de meios de vida e não conheceram outra situação que não
fosse a desinserção. Por força desse constrangimento tão persistente nas suas vidas,
acabaram por procurar os meios de evitar o sofrimento, o que induziu neles uma
acumulação de vulnerabilidades que, por sua vez, conduziram a novas rupturas. Por
exemplo, ligaram-se a um companheiro com falta de competências para assumir o
papel de marido e de pai, perderam completamente o domínio sobre as suas
condições de existência à medida que foram tendo sucessivos filhos, envolveram-se
no tráfico e no consumo de drogas, em expedientes ilegais para assegurar a
subsistência, etc..
Impotentes para melhorarem o seu modo de vida, acabaram por se adaptar
psicologicamente às suas condições de existência porque só assim conseguem
reduzir o seu sofrimento. Vêem-se a si próprios como desprovidos de poder para
actuar sobre a situação, e assim reforçam a imagem negativa que desenvolvem a seu
respeito. Não conseguindo livrar-se da situação que os oprimiu, tendem a transformar
a visão que dela têm, instalam-se na resignação e na passividade, modificam a sua
relação com as normas, tornam-se indiferentes aos pensamentos e reacções dos
outros.
Na sua esmagadora maioria, os beneficiários que acompanhamos nunca
dispuseram de um capital social, relacional e afectivo que lhes permitisse parar o
processo de desinserção. Sem meios para tentarem a saída da situação, enveredaram
pela adaptação, único caminho possível para escapar ao doloroso sentimento
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decorrente das privações. Instalados na pobreza, os seus modos de existência são um
exemplo vivo de retraimento social, de isolamento, de falta de domínio e de controlo
sobre os acontecimentos da vida. Acabaram por interiorizar uma atitude fatalista
acerca da situação na qual se encontram, ora considerando-se vítimas do sistema, ora
vendo-se como totalmente responsáveis pelo que lhes acontece. Aprenderam a
adquirir referências mais ou menos desviantes e desestruturadoras, ao mesmo tempo
que evitam relacionar-se com pessoas cujas vidas mais organizadas lhes
proporcionariam referências distintas. Recorrem a racionalizações que não deixam de
significar que se desvalorizam a si próprios.
Dimensão simbólica da in(ex)clusão
Excluídos no plano do consumo, uma vez que os seus rendimentos não lhes
permitem viver segundo as normas socialmente dominantes, os beneficiários a que
nos referimos acumulam, como já vimos, sérias privações ligadas às sociabilidades
primárias, havendo-se tornado, em larga medida, dependentes, das transferências do
Estado. A sua integração na dimensão social, designadamente na rede familiar e de
amigos, está longe de constituir um suporte relevante para o estabelecimento de laços
de solidariedade susceptíveis de criar antídotos contra a vulnerabilidade social. No
plano simbólico, nem o trabalho, nem a família, nem a comunidade de residência
podem alimentar o seu orgulho e sustentar a interiorização do sentimento de utilidade
social. Os “nossos” beneficiários são um exemplo dramático de um encadeamento de
exclusões que torna particularmente problemáticas as possibilidades de saída da
situação.
Ao contrário do que acontece com as classes populares que, exclusivamente
afectadas pela exclusão económica acabam por reforçar a sua coesão e desenvolver
um forte sentido de pertença a um grupo, por oposição aos actores dominantes, os
indivíduos que são atingidos pela exclusão simbólica vivem uma situação bem mais
devastadora. A sua existência é uma associação de fraquezas, em que à escassez de
recursos económicos se acrescenta o isolamento, a miséria afectiva, a ruptura das
pertenças, a deriva física e psíquica. Não podem, como as classes populares,
desenvolver uma visão da organização social enquanto espaço construído por
relações sociais conflituais entre actores com interesses divergentes, desde logo
porque não está ao seu alcance desempenhar um papel susceptível de exprimir um
lugar e uma utilidade na produção social.
Sem recursos para participar na produção de uma cultura capaz de produzir
uma leitura crítica da situação vivida, e que, ao mesmo tempo, permitisse
experimentar um sentimento de pertença a um colectivo detentor de um lugar
determinado no seio do sistema social, os indivíduos de que falamos vivenciam uma
situação substancialmente distinta da dos pobres que, embora ocupando o último
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escalão da hierarquia social, embora recebendo os salários mais baixos e fazendo os
trabalhos mais penosos ou os mais sujos, têm consciência de ocupar um lugar no
sistema e de ter uma utilidade social, mesmo que esta não seja valorizada. Uma
vivência distinta das dos pobres que, apesar das frustrações provocadas pelo
confronto quotidiano com a riqueza dos outros, possuem uma cultura que lhes permite
fazer face à desvalorização. Está fora do seu alcance o recurso a formas de
resistência à desvalorização, tais como a aceitação da ordem das coisas, a revolta, a
indignação, tal como a mobilização colectiva ou individual (mobilidade pessoal por
qualificação profissional ou geracional através dos estudos dos filhos). Seja porque, na
sua maioria, as múltiplas carências que hoje os afectam estiveram presentes na sua
vida desde que nasceram, seja porque os aspectos estruturantes da cultura operária
se vão dissipando, os beneficiários que acompanhamos dificilmente poderão partilhar
certas normas e representações colectivas.
E dizemos que dificilmente poderão partilhar o ideal de eu social definido na
base do sistema de valores e normas socialmente valorizados, que o mesmo é dizer,
as suas identidades individuais não puderam construir-se segundo os modelos ideais
valorizados e admitidos como os melhores, porque as múltiplas interacções em que
estiveram envolvidos, não só na infância, como ao longo da sua vida, não lhes
permitiram aceder a um sentido positivo de si próprios, ou seja, tornaram impossível o
processo de auto reconhecimento e de reconhecimento pelos outros.
Para o encadeamento dramático das privações a que os nossos beneficiários
estiveram sujeitos muito contribuiu, de certo, a sua relegação para áreas residenciais
ou instituições fortemente segregadas que são alvo de uma estigmatização social
colectiva. Foram remetidos para territórios que suscitam classificações, em si mesmas,
geradoras de segregação social na precisa medida em que a separação espacial
tende a gerar a separação social. Como assinala Gaulejac, relegação social e
relegação urbana confundem-se e reforçam-se mutuamente, acabando por precipitar
formas de solidariedade restrita não desprezíveis. Diz este autor que nos privaríamos
de um elemento de análise relevante se assimilássemos a relegação urbana e social à
quebra de todos os laços sociais. Todavia, se é certo que dessa socialidade nascida
da necessidade de sobreviver decorre a criação de certos laços sociais de dimensão
local, não é menos verdade que tais laços estão longe de representar um trunfo para a
saída da situação. Muito longe disso, a gestão dos constrangimentos externos, o
desemprego, a fraca escolaridade, a discriminação no emprego, encontra uma saída
frequente na produção de contra valores e de subculturas que aprofundam e
consolidam a exclusão simbólica e social. Por uma inversão de sentido, estratégia
frequente nas situações em que os constrangimentos simbólicos são fortes, as
actividades ilegais e a delinquência são transformadas em modo de sobrevivência
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valorizado. Trata-se de uma estratégia de revalorização simbólica que se aproxima da
que Bourdieu assinalou como uma forma de luta “com as armas dos desarmados”.
Entre os beneficiários que acolhemos, não escasseiam os que fizeram um
percurso de completa desinserção social por via da exclusão em domínios como o
desemprego, os recursos económicos, as relações sociais, a valorização simbólica.
A fraqueza dos recursos materiais que oprime as suas vidas é tal que nem
chega a poder avaliar-se em relação à média nacional, ou às normas culturais
prevalecentes na sociedade. Vivem o dia - a - dia em torno da sobrevivência, carentes
de pertenças e de apoio psicológico e compelidos a procurar ajudas, sempre vividas
como
humilhantes.
Protagonistas
de
histórias
familiares
constrangidas
pela
acumulação de dificuldades externas e internas, acabaram por perder o sentido de
afiliação e foram compelidos a depender das organizações humanitárias em que
encontram ajuda. No plano simbólico, não podem iludir a imagem de serem cidadãos
privados de dignidade e de valor, de serem impotentes para conceber um futuro em
que pudessem gozar de um papel activo e valorizado. Enredados num encadeamento
de perdas, acabaram por caminhar em direcção à perda da confiança em si, depois, à
da esperança e, finalmente, enveredaram por um processo de decadência.
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A relegação social dos beneficiários do Rendimento Social de