e ~~ rf (, Sobre o autor ~ Bernard Lahire é professor da École Norrnale Supérieure Lettres et Sciences Humaines e Diretor do Grupo de Pesquisa sobre Socialização (CNRS / Universidade de Lyon 2). Tem publicado pela Artmed: Retratos sociológicos: disposições e variações individuais, 2004.. A CULTURA DOS INDiVíDUOS BERNARD LAHIRE _ .. ~ I .DEA PDEA ........... ........ .~ 111I ~ ~ o AUTO. NAO fAÇA CÓP'A RESPEITE mmmttfrtêM! L183c Lahire, Bernard A cultura dos indivíduos / Bemard Lahire ; tradução Fátima Murad. - Pano Alegre: Anmed, 2006. 656 p. ; 25 em. ISBN 85-363-0593·2 1. Educação - Sociologia. I. Título. CDU 37.015.4 Catalogação na publicação: Júlia Angst Coelho - CRB 10/1712 w~.q,er IUPERJ t I I Data 0 BIBLIOTECA 25.0 ~ . 2oo~.J. Tradução: Fátima Murad Consultoria, supervisão e revisão t~cnica desta edição: Jaqueline Pasuch Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Professora da Universidade do &tado do Mato Grosso ., ~ 2006 Post-scriptum Indivíduo esociologia Eninguém pode detenninar hoje em que terrenos ava~çará ou não avançará a ambição explicativa da sociologia. C. Bouglé, Biian de la sociotogie française conlemporaine, Félix Alcan, Paris, 1935. . Nossa consciência se ex1ravia: pois essa consciência, que julgamos ser nosso bem mais intimo, nada mais é do que apresença de outros em nós. Não podemos nos sentir sós. l. Pirandello, Une, personne et cent mil/e, Gallimard, L'lmaginaire, Paris, 1982, p. 34. procedimento utilizado ao longo de toda a pesquisa e que orientou a rea lização desta obra repousa em uma aposta científica, a saber, que o social se forta leça ao ser captado tanto na escala dos indiví duos quanto na escala de categorias ou gru pos. I Mais concretamente ainda, poderíamos dizer que este livro tentou responder da forma maís rigorosa e mais sistemática possível, no terreno das realidades culturais, à seguinte pergunta: o que se vê do mundo social quando se olha para ele do ponto de vista dos indiví duos que o compõem e, mais particularmente, da variação intra-individual de comportamen tos? A idéía que consiste em se perguntar o que fazem (praticam, pensam, apreciam, etc.) os mesmos indivíduos em diferentes campos ou subcampos de suas práticas parece simples. Po rém, ela não é evidente para o sociólogo. Por razões históricas, a sociologia, desde suas origens, tem relações complexas com a no ção de "indivíduo", e pode-se dizer que o a so ciolo&ia durkheimiana se afirmajustamente pelo abandono das realidades individuais. Os instru D I 1 mentos e os méfodos estatísticos, os procedimen tos de tipificação, os hábitos ce raciocínio assu mido~ e transmitidos em tomo de questões de representatividade, de generalização, de resulta dos de pesquisa - os quais conduziram à idéia de que é impossível, desinteressante ou pouco dese jável para o sociólogo captar o singular, o indivi .dual ou o particular - reforçaram pouco a pouco a visão segundo a qual "o social é o coletivo" e, ao mesmo tempo, a desconfiança em relação a qualquer "retomo ao indivíduo" (temor de lima psicologização das relações sociais, de uma re gressão para um certo atomismo, etc). Para con vencer completamente da legitimidade de um ponto de vista de conhecimento, é preciso res ponder às inquietudes e à série de contra-argu mentações que ele inevitavelmente suscita. Es sas foram justamente minhas objeções mais cons tantes em todas as etapas de reflexão. Se é preci so vencer resistências, isto implica em boa medi da travar uma batalha permanente contra as re sistências coletivas incorporadas. Este post saiprum procura explicitar essas resistências e mostrar a importância de vencê-las. 594 BERNARD LAHIRE ACIÊNCIA DAS VARIAÇÕES MENTAIS ECOMPORTAMENTAIS Diferentemente de uma parte das ciên cias cognitivas que descrevem e analisam fe nômenos do ponto de vista de sua universali dade neurobiológica ou psicológica (como di zia Halbwachs, o que agora se "estuda na or ganização individual é a espécie"),2 a sociolo gia - quando não sucumbe à sedução traiçoei ra do canto das sereias naturalistas - centra seu interesse, logo de saída, no conjunto das variações sociais do comportamento e do pen samento do homo sociologicus, pressupondo a invariância das grandes características da es pécie homo sapiens. Assim, ela ancora em con figurações históricas relativamente singulares o que poderia ser visto como realidades uni versais e naturais. Uma variação consiste rigorosamente em uma passagem do "mesmo fenômeno" ou da "mesma realidade" de um estado a outro. De vemos notar, portanto, que quando se fala da "mesma realidade" se está postulando a exis tência de uma invariante ou de um ponto co mum relativo. A variação supõe sempre uma modificação de realidades que podem ser de signadas pelo mesmo termo e, conseqüente mente, realidades que, para além de suas di versidades, possuem uma propriedade (ou uma série de propriedades) comum: variação de formas do sagrado, de modos de atividade eco nômica, do fenômeno burocrático ou estatal, variação de comportamentos morais, etc. Uma tal variação supõe uma operação de comparação que consiste em buscar semelhan ças e diferenças entre uma série de fenômenos ou entre as diferentes modalidades do mesmo fenômeno. A sociologia é fundamentalmente uma ciência da comparação, e poderíamos dizer que, ao contrário do provérbio que afir ma que "comparação não é razão", na sociolo gia "comparação é, em grande parte, razão", pois é por meio dela que se obtêm os conhe cimentos mais significativos. É preciso insistir que na sociologia a comparação não é'um mé todo como outro qualquer - como poderia fa A CULTURA DOS INDlviouas zer crer o fato de se referir a "o método com parativo" -, mas uma característica essencial do raciocínio sociológico. Ela pode ser implíci ta: por exemplo, quando Durkheim estuda o totemismo australiano, é para compreender melhor o papel das religiões e do sagrado em nossas sociedades e ele só pode descrever o universo mítico das formas elementares da vida religiosa tomando como referência nossos pró prios universos culturais. 3 Ela pode também, evidentemente, ser explícita: é nesse caso que se evoca o método comparativo, em que dois objetos - pelo menos - são explicitamente com parados. Comparar dois fenômenos (por exem plo, a prisão e o internato) ou dois estados de um mesmo fenômeno (por exemplo, o Estado francês no século XIX e no século XX ou o Esta do espanhol e o Estado francês no século XX), é colocar os fatos diante do mesmo tribunal, ou seja, submetê-los aoS" mesmos critérios de comparação para que se revelem semelhanças e dessemelhanças. A interpretação sociológica se estabelece verdadeiramente quando se começa a formular e a testar hipóteses sobre as razões cu os princí pios de uma variação (ou de uma diferença) observada. Antes de atribuir ao acaso as razões da variação ("variação livre" ou "aleatória"), diremos então que os comportamentos variam de tal maneira (descrição dos diferentes "esta dos" do fenômeno) "em função de", "segundo" ou "conforme" tal ou qual fator ou série de fa tores (explicação): variação de comportamen tos e de atitudes segundo o sexo, segundo o ní vel de formação, segundo o meio social, varia ção de comportamentos de um indivíduo ou de um grupo segundo a situação social considera da (privada/pública; na escola/na família, etc.) e assim por diante. O famoso método das varia ções concomitantes apregoado por Durkheim em As regras do método sociológico apenas pro põe uma maneira - estatisticamente fundamen tada -, entre outras, de pôr em prática rigoro samente o método comparativo ou a compreen são dos princípios que engendram as variações observadas de comportamento, de gostos, de opiniões ou de atitudes. VARIAÇÕES EREALIDADES MACROSSOCIOLÓGICAS Assim, para compreender as condutas e atitudes sociais (econômicas, religiosas, cul turais, políticas, etc.), o sociólogo dirige seu olhar classicamente às variações intercivili zações (por exemplo, formas da religiosidade no Oriente e no Ocidente ou nas sociedades tradicionais e nas sociedades industriais), às variações interépocas (por exemplo, a evolu ção do sentimento da criança ou da relação com a morte na França desde a Idade Média), às variações intersociedades (por exemplo, a forma variável do capitalismo na Inglaterra e na França ou na Alemanha, dadas as diferen ças d~ culturas políticas, religiosas, etc.), às variações intergru pos e interclasses (por exemplo, as desigualdades sociais de acesso a tai categoria de bens ou os usos socialmente diferenciados de instituições, de bens ou de obras) ou intercategorias (por exemplo, sexo, idade, nível de formação, etc.). Ele pode tam bém dedicar-se a explicar variações intra grupos ou intracategorias (por exemplo, as di ferenças homens/mulheres na classe operá ria; as juventudes populares e burguesas, etc.), mas raríssimas vezes voltou sua atenção às variações interindividuais e intra-individuais normalmente estudada~ em certos setores da psicologia. Variações intercivilizações. interépocas e intersociedades J I As comparaçues e variações de fatos soci ais intercivilizações, interépocas (históricas) ou intersociedades eram muito freqüentes nos primeiros grandes trabalhos da sociologia. Quer se trate de Max Weber, que maneja com erudi ção, na sua sociologia das religiões, os dados disponíveis em sua época sobre o hinduísmo, o confucionismo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo ou o budismo e encontra, por exem plo, uma confirmação do papel desempenha do pelo ascetismo protestante no desenvolvi- 595 mento do capitalismo na Europa ao estudar o caso da China, que preenche todas as condi ções econômicas de um desenvolvimento do capitalismo, mas que, marcada pelo confu cionismo, não chega a produzir o tipo de ho mem que seria suscetível de desenvolver uma empresa racional de tipo capitalista; quer se trate de Émile Durkheim, que compara ocasio nalmente, para as necessidades da compreen são dos fatos educativos, as sociedades tradicio nais, as sociedades européias, as sociedades indianas e egípcias, 4 cobrindo vários séculos de história do ensino na França, s a sociologia sempre teve metas interpretativas que vão além do contexto nacional e contemporâneo, asso ciando-se assim às preocupações de numero sos antropólogos e historiadores. Entretanto, esse tipo de pesquisas, que requer o dominio erudito de uma grande mas sa de trabalhos de especialistas, foi abandona do em larga medida por uma sociologia que é ao mesmo tempo profissionalizada e padroni zada. Restringindo o leque de seus métodos ao tríptico entrevista-aplicação de questioná rio-observação, os pesquisadores da disciplina na segunda metade do século XX, na maioria dos casos, adotaram objetivos muito mais mo destos e privilegiaram os trabalhos que repou sam sobre produções de dados originais - e portanto necessariamente limitados - em de trimento daqueles que são qualificados pejo rativamente como "de segunda mão". A atitu de de estigmatizar aquilo que constituiu uma parte importante do trabalho dos grandes an cestrais da disciplina é, ao mesmo tempo, cientificamente razoável e potencialmente em pobrecedora a longo prazo. Sem dúvida, o con trole da produção de dados, fundamental para o trabalho de interpretação, é incomparavel mente mais fino e rigoroso quando o próprio pesquisador concebe o dispositivo de pesqui sa. Contudo, ninguém teria a pretensão de questionar radicalmente as reflexões de Max Weber sobre o processo da racionalização ou negar em bloco o interesse das sínteses de Elias sobre o processo histórico de civilização dos costumes ou de pacificação do espaço social. 6 596 A CULTURA DOS INDIViDUOS BERNARD LAHIRL Variações Inlra-sociedad~s: melo, grupo, classe e calegoria "Existe, escreve Émile Durkheim, uma infinidade de fenômenos sociais que se produ zem em toda a extensão da sociedade, mas que assumem formas diversas segundo as regiões, as profissões, as confissões, etc. É o caso, por exemplo, do crime, do suicídio, da natalidade, da poupança, etc. Da diversidade desses meios especiais resultam, para cada uma dessas or dens de fatos, novas séries de variações, sem considerar aquelas produzidas pela evolução histórica."7 No fim do século XIX, o sociólogo francês desenha de maneira bastante precisa o programa científico de uma grande parte da sociologia - e especialmente daquela que ex trai sua força comprovatória de dados esta tísticos - ao longo de todo o século XX: um "mesmo" fenômeno se desdobra conforme uma série de princípios de diferenciação ou de variação. Quando Paul Fauconnet e Marcel Mauss, ambos portadores ativos da mensagem durkheimiana, empenham-se em convencer os não-sociólogos da força do social, eles também chamam a atenção para as variações inter e intra-sociedades: "Mesmo sentimentos que pa recem totalmente espontâneos, como o amor pelo trabalho, pela poupança, pelo luxo, são, na realidade, produto da cultura social, pois eles não existem em certos povos e variam infi nitamente no interior de uma mesma sociedade, segundo as camadas da população".8 ,Progres sivamente, os sociólogos vão se concentrando no segundo tipo de variJções (internas a uma determinada sociedade), deixando aos an tropólogos, na maioria das vezes, o cuidado de estudar as variações intersociedades ou intercivilizações, e aos historiadores o de pros pectar as variações interépocas. a modelo dessa sociologia das variações intra-sociedades encontra-se, entre outras, na obra de Émile Durkheim, a suicídio, publicada em 1897. a autor estabelece ali 'uma série de correlações referentes aos dados estatísticos do suicídio e prova, por exemplo, que a taxa de suicídio cresce com a idade e o grau de inten sidade da atividade social, que é mais elevado nos homens do que nas mulheres, nos protes tantes do que nos católicos, nos católicos do que nos judeus, mais forte em Paris do que na província, no início da semana do que no fim de semana, etc. 9 Contudo, a variedade de princípios de diferenciação' será substituída pelo estreita mento em torno de um princípio central de variação. De fato, de maneira bastante espon tânea, quando alguém fala hoje de sociologia das "diferenças sociais" sem qualquer outra especificação, está se referindo'implicitamen te a "diferenças socioeconômicas ou sociocul turais", a "diferenças entre classes sociais", "cn tre grupos sociais" ou "entre meios sociais". Essa maneira de ver articula-se agora, de for ma ba~tante corriqueira, aos múltiplos usos que se faz da nomenclatura de categorias sociopro fissionais do INSEE nas grandes pesquisas na cionais por questionário e também nas pesqui sas quantitativas e qu~litativas mais locais. Poderíamos dizer que, não obstante os dife rentes deslocamentos do ângulo de ataque das realidades sociais (dos mais estruturais aos mais interacionistas, dos mais centrados nos coletivos aos mais dirigidos às situações, às interações ou aos indivíduos, etc.), o "social" ainda é concebido em ampla medida como si nônimo de "coletivo" ("grupo", "classe", "meio"). Além disso, visto que a categoria sociopro fissional é uma variável sintética, la que com preende um grande número de propriedades ou traços distintivos (de fato, quem diz "grupo operário" diz também baixa porcentagem de mulheres, de bacharéis, etc.), ela é uma das variáveis independentes mais adequadas, seja no campo da prática ou da atividade estudada e, conseqüentemente, uma das mais comu mente utilizadas. A pesquisa das variações nos comportamentos e nas atitudes segundo a ori gem social dos entrevistados é tanto mais sis temática na medida em que a sociologia se profissionalizou e banalizou o recurso à ferra menta estatística. Poderiamos dizer que a fórmula genérica que condena essa centralização na variação de comportamentos em função do meio social de origem (qualquer que seja a maneira de de signá-la: classe, fração de classe, meio, grupo, etc.), e que foi amplamente explorada nos tí tulos e subtítulos de publicações sociológicas, é a seguinte: "os usos sociais (ou socialmente diferenciados) de..." (da escola, do espaço, do corpo, do tempo, do impresso, da arte, da fo tografia, etc.). Esse hábito de pensamento que consiste em fazer das diferenças entre "meios sociais" a totalidade das "diferenças sociais" diz muito sobre a demanda social implícita que pesou e ainda pesa sobre as ciências sociais (por um longo tempo associou-se sociologia e socialis mo), demanda social difusa porém urgente, ligada aos grandes conflitos sociais entre clas ses, às tradições sindicais ou políticas operá rias e mais amplamente populares, às reivin dicações de direitos sociais e de melhoria das condições de vida, às concepções marxistas de um mundo social dividido em classes sociais, etc., mas também aos objetivos políticos de clarados das democracias que pretendem re duzir as desigualdades sociais. Por isso, é im possível desconectar o princípio de variação número um na sociologia (assim como na his tória cultural, social e econô!Ilica durante mui to tempo) de todo um contexto político-ideo lógico e de lutas sociais. Roger Chartier fala inclusive de uma "concepção mutilada do so cial" na história que, por força de operar cor tes sociais não questionados (por exemplo eli te/povo, dominantes/dominados, hierarquias socioprofissionais ou socioculturais), acabou deixando de lado outros princípios plenamen te sociais de diferenciação: o sexo, a geração, a situação familiar (celibato, viuvez, casamen to, etc.), a vinculação religiosa, a tradição educativa ou corporativa, o percurso escolar, a posição intelectual, etc. l1 Se o uso rotineiro de noções como "clas ses", "grupos" ou "meios" foi determinado em ampla medida pelo estágio dos debates ideoló gicos, é evidente que o abandono progressivo desses princípios de diferenciação não deixa de estar ligado à mudança de contexto social e político, marcado pelo enfraquecimento das antigas problemáticas. Do mesmo modo, a in trodução mais sistemática há vários anos de diferenças sexuais, por exemplo, não deixa de estar relacionada ao produto dos movimentos e das lutas feministas e da tomada de cons ciência pública das diferenças de socialização 597 e de condições de vida entre homens e mulhe res em nossus sociedades. E poderíamos arti cular assim variáveis independentes e proble máticas político-ideológicas: a idade e o mer cado da '1uventude" ou a invenção da "tercei ra idade", a origem técnica e os debates sobre a imigração, etc. Finalmente, é bastante comum a explora ção das variações intragrtlpos: as diferenças homens/mulheres, as diferenças de geração, as diferenças de vinculação confessional, etc. em tal grupo social. Às vezes, porém mais rara mente, o pesquisador explora as diferenças in terindividuais mais sutis em contextos socioe conômicos, culturais, regionais e mesmo familia res bem delimitados, como fez alivier Schwartz em O mundo privado dos operários: homens e mulheres do Norte,12 distinguindo os diferen tes membros das famílias estudadas, ou como eu mesmo procurei fazer em Sucesso escolar nos meios populares: razões do improvável 13 , a propósito das crianças dos meios populares em situação de 'iêxito" ou de "fracasso" escolar. oREVÉS SOFRIDO PElAS VARIAÇÕES INDMDUAIS Quando se muda o tipo de variação, pro duzem-se conhecimentos de naturezas diferen tes e de igual dignidade. Entretanto, em face da diversidade dos princípios de variação uti lizados, há uma forte tentação de afirmar, de maneira categórica e definitiva, qual é o "bom" princípio de diferenciação, qual é a escala de observação mais pertinente, o ponto de vista mais justo, e é assim, aliás, que costumam pro ceder inconscientemente os pesquisadores em suas batalhas, visando em última análise con quistar o monopólio da definição legitima do bom princípio de variação e da boa escala de contextualização de comportamentos. Mas o que se verifica, desse ponto de vista, é que as variações interindividuais, e mais ainda as va riações intra-individuais, são excluídas de for ma bastante generalizada do raciocinio socio lógico ordinário. Hoje, jamais passaria espon taneamente pela cabeça de um sociólogo que as diferenças observáveis nos comportamen tos ou nas atitudes de dois indivíduos singula 598 ACULTURA DOS INDiVíDUOS BERNARD LAHIRE res oriundos do "mesmo" meio social (ou da mesma família), ou entre uma série de com portamentos ou de atitudes de um mesmo in divíduo em situações diferentes (em um plano diacrônico ou sincrônico), sejam diferenças passíveis de uma interpretação sociológica, embora, olhando de perto, dificilmente have ria um sociólogo que contestasse a pertinência sociológica desses tipos de variação. Para compreender o revés sofrido pelas variações inter e intra-individuais em sociolo gia, é preciso remontar à sua fundação históri ca e, particularmente, à vontade durkheimiana de romper com a psicologia (com um certo tipo de psicologia de sua época) e de "explicar o social pelo social". Desse modo, chega-se ao cerne do problema, isto é, ao estatuto proble mático de que se investirá o indivíduo nessa disciplina. Personificação dos coletivos e exclusão do indivíduo "Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam caracteristicas muito especiais: eles consistem em diversas maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um podei de coerção em virtude do qual se impõem a ele [...]",14 escre ve Durkheim em 1895. Os fatos que interes sam ao sociólogo são fatos "exteriores ao indi víduo". Exit, conseqüentemente, o individuo. Mas onde é que existiriam esses fatos, propria mente sociais, exteriores ao indivíduo, e que, para o próprio Durkheim, dão a impressão de "pairar no are de planar novazio"?lS Em 1908, o historiador Charles Seignobos coloca a se guinte questão a Émile Durkheim: "Gostaria muito de saber que lugar é esse onde a coleti vidade pensa conscientemente". 16 E inúmeros sociólogos, de forma quase que automática, tomam partido de Durkheim contra Seignobos, o partido do fato social contra O das consciên cias individuais, o partido da não-consciência das realidades sociais contra o do motivo cons ciente das atividades. E, no entanto, faz muito sentido a questão que o historiador coloca ao sociólogo: em que a comunidade pensa a não ser nos indivíduos que a compõem? Se Durkheim tivesse respondido seriamente e le vado às últimas conseqüências uma tal ques tão - o que ele não fará, por julgar que isso não estava em discussão no momento - ele tal vez acabasse por reconsiderar seu raciocínio sociológico sobre o "social", o "coletivo" e o "individual". Pois, para chegar à idéia de "exterio ridade" das maneiras de agir, de pensar e de sentir em relação ao "indivíduo", tudo depen de do que se quer dizer com "exteriores ao in dividuo". Se isso significa "exteriores a cada individuo particular", ou seja, que preexistem e sobrevivem a cada indivíduo e que não são inventados por ele, não se pode deixar de con cordar com a proposição durkheimiana, expres sada anteriormente por Marx e posteriormen te por inúmeros antropólogos ou sociólogos. O fato é que não se inventa a cada geração a lín gua, o direito, a moeda, () casamento, etc., isto é, o conjunto de instituições econômicas, polí ticas, culturais, religiosas e morais que herda mos, mesmo sem nos dar conta disso muilas vezes, e com as quais, queiramos ou não, de vemos compor. Como escrevia Marx em O 18 Brumário de Louis Bonaparte, "a uadição das gerações mortas pesa enormemente sobre a cabeça dos vivos". É preciso acrescentar que, por preexistir a cada indivíduo particular e envolver milhares ou milhões de outros in divíduos passados e presentes, de instituições, de textos, de coisas, etc., os fatos sociais tam bém são externos aos indivíduos no sentido em que estes últimos não podem ter' consciência deles e conhecê-los espontaneamente. Os atores comuns só poderão dotar-se de repre sentações deles - mais ou menos fundamenta das empiricamente - por meio dos discursos sobre o mundo social (discúrsos religiosos, políticos, jornalísticos, filosóficos, literários ou científicos).l7 Entretanto, se o significado que se pre tende dar a isso é exteriores "a todos os indiví duos" ou escreve-se que "as maneiras coletivas de agir ou de pensar têm uma realidade fora dos indivíduos, que se conformam a ela a cada momento", 18 a formulação durkheimiana, sem que se dê conta, toma-se totalmente metafísica. Pois se essas maneiras preexistem a cada indi víduo singular e sobrevívem a ele, é porque inúmeros indivíduos já são portaullres dessas maneiras de agir, de pensar e de sentir ao nas cer e continuarão sendo após sua morte. "As sim como as crenças e as práticas de sua vida religiosa, escreve Durkheim, [que] ofiel encon trou prontas ao nascer; se elas existiam antes dele é porque elas existiam fora dele. O siste ma de signos de que me utilizo para expressar meU pensamento, o sistema de moeda que emprego para pagar minhas dívidas, os instru mentos de crédito que utilizo em minhas rela ções comerciais, as práticas adotadas em mi nha profissão, etc. funcionam independente mente dos usos que faço deles. Se tomamos uns após os outros todos os membros de que é com posta uma sociedade, o que precede poderá se repetir a propósito de cada um deles. Trata-se, portanto, de maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável proprieda de de existir fora das consciências indivi duais."19 Do ponto de vista de cada indivíduo que nasce, é evidente que as coisas existem antes dele e fora dele. Mas se todas as institui ções mencionadas funcionam independente mente dos usos que eu faço delas, elas não exis tem fora dos usos que fazem milhares de ou tros além de mim. Se todas as vezes eu consi derasse as coisas do ponto de vista de cada um desses outros indivíduos, eu poderia dizer, de fato, que nenhum deles inventa essas institui ções ao nascer. Mas se o raciocínio é pertinen te para cada um dos individuos tomados um a um, não se pode esquecer também que todas as vezes o conjunto dos outros individuos é portador de instituições que supostamente se impõem do exterior a cada indivíduo particu lar. Conseqüentemente, não se pode adicionar tais raciocínios acerca de cada indivíduo sin gular para deduzir daí que as instituições são exteriores a todos: ao contrário, elas são sus tentadas por todos. O social não é logicamente distinto dos indivíduos, e não vemos onde se apóia esse "fora dos individuos". Em muitas ocasiões, Durkheim exprime a idéia segundo a qual o fato social existe "in dependentemente das formas individuais que assume ao se difundir",20 que ele tem "uma existência própria, indepenckntede suas mani festações individuais".21 Porém, nesse aspecto ainda, a fonnulação não deixa de ser proble- 599 mática, pois se podemos afirmar que o fato social nem sempre é diretamente acessível às consciências individuais, que às vezes ele não é desejável para a pessoas em particular ou que ele não é o produto da agregação de compor tamentos isolados de entidades autônomas, é difícil pensar que fato social exista indepen dentemente dos indivíduos. Ao contrário, os fatos sociais atravessam sob formas diferentes uma infinidade de casos individuais. Eles não são independentes das formas individuais, mas existem por meio dessas formas individuais que podemos tanto dessingularizar por medidas estatísticas 22 quanto singularizar pelo estudo de caso, pela observação direta de comporta mentos, etc. O fato social que interessa a Durkheim - na perspectiva de uma diferencia ção nítida em relação à psicologia - diz respei to à realidade desembaraçada, varrida de sin gularidades individuais, de circunstâncias sin gulares que estão ligadas a cada caso indivi duaI. O sociólogo "deve se empenhar em ver [os fatos sociais] pelo lado em que eles se apre sentam isolados de suas manifestações indivi duais".23 E não é casual que Durkheim privile gie o estudo das instituições e dos fatos que assumiram a forma mais cristalizada possível, como "o sistema de regras jurídicas". Porque são realidades que já sofreram um processo de despersonalização, de formatação social ob jetivada, e que podem fazer com que se esque ça que elas só existem porque há indivíduos que as utilizam cotidianamente. Que o social possa ser apreendido nessas. formas objetivadas, isso é evidente, mas que se considere que essas formas objetivadas exis tem fora dos múltiplos usos individuais é um erro do sociólogo preocupado em não recair nas explicações psicológicas. O risco de uma tal sociologia consiste em interpretar direta mente as formas sociais objetivadas (semiologia social) sem estudar os usos reais dessas for mas (sociologia da recepção, da apropriação ou de usos socialmente diferenciados) e, por tanto, de cair na sobreinterpretação. Na luta por fundar e delimitar uma or dem de fatos especificamente sociais, Durkheim vai operar de fato um deslocamento metafí sico que consiste em inventar um novo "ser psíquico", distinto de cada ser psíquico indi 600 BERNARD LAHIRE ACULTURA DOS INDiVíDUOS vidual, e que chamará diversamente de "cons ciente coletivo", "espírito coletivo" ou "alma coletiva". Assiste-se então a um duplo mo vimento: 1) um primeiro movimento de ex clusão do indivíduo, sustentado pela idéia Qus ta, mas inadequada) segundo a qual o todo (o social) é mais (ou não é o mesmo) que a soma das partes (os individuos); e 2) um segundo movimento de personificação do coletivo, que consiste em dotar esse todo de atributos clas sicamente ligados ao indivíduo: consciente, in consciente, espírito, alma, etc. Por esse duplo movimento, ao mesmo tempo em que imagina demarcar-se fortemente da psicologia e con quistar uma autonomia, Durkheim faz uma pesada concessão à psicologia, mostrando que ainda é obcecado pelo raciocínio sociológico: 1) ele concebe o indivíduo como território so ciológico por excelência e faz do termo "cole tivo" um equivalente estrito do termo "social"; 2) ele fala de realidades coletivas como se falaria de um indivíduo singular personifi cando-as. EmAs regras do método sociológico (1895), Durkheim escreve que "agregando-se, pene trando-se, fundindo-se, as almas individuais dão origem a um ser; psíquico, se quiser se definir assim, mas que constitui uma individualidade psíquica de um novo tipo". E acrescenta em nota de rodapé: "É nesse sentido e por essas razões que se pode e que se deve falar de uma cons ciência coletiva distinta das consciências indivi duais".24 Do mesmo modo, embora admita sem objeções que "é bem verdade que a sociedade não compreende outras forças atuantes como a dos individuos", Durkheim explicita em O suid dio (1897): "Somente os indivíduos, ao se uni rem, formam um ser psíquico de uma nova espé cie que, conseqüentemente, tem sua própria maneira de sentir e de agir".2s Ao formular as coisas dessa maneira, Durkheim está preocupado principalmente em definir o objeto próprio à sociologia distinguin do-o daquele do psicólogo (entre outros): "Mas, para que a sociologia tenha uma maté ria que lhe seja própria, é preciso que as idéias e as ações coletivas sejam diferentes por natu reza daquelas que têm sua origem na consciên cia individual e também que sejam regidas por I leis especiais."26 Para isso, ele se apóia em um raciocinio científico plenamente justo que pode ser resumido em uma fórmula: o todo é mais do que a soma das partes. ''0 espírito coletivo nada mais é que um composto cujos elementos são os espíritos individuais. Mas eles não estão mecanicamente justapostos e fixados uns aos outros. Em perpétuo intercâmbio me diante a troca de símbolos, eles se penetram mutuamente; agrupam-se segundo suas afini dades naturais, coordenam-se e sistematizam se. Desse modo, forma-se um ser psicológico in teiramente novo e sem igual no mundo".27 Ou ainda: 'VlStO que um todo não é idêntico à soma das partes, ele é uma outra coisa, cujas proprieda des diferem daquelas que apresentam as par tes de que é composto. [...) Em virtude desse princípio, a sociedade não é uma simples soma de indivíduos, mas o sistema formado pela sua associação representa uma realidade especí fica que tem suas características próprias."28 Com o todo (a configuração social ou o fato social) não sendo a soma das partes (os indivíduos considerados separadamente), não se poderia imaginar que o social fosse redutível à soma ou à resultante de múltiplas ações e intenções individuais ou postular que o saber sobre o todo pressupõe um saber prévio sobre os elementos que o compõem. Sobre isso, Durkheim tem plena razão, do mesmo modo que Elias décadas mais tarde. 29 Porém, ao proceder dessa maneira, Durkheim, antes de tudo, assume claramente o risco de personificar o coletivo. Ele não pre tende sequer defender essa psicologização do coletivo como uma metáfora ou uma "ficção cômoda para o espírito" e útil para a constitui ção do objeto próprio à sociologia. Longe de qualquer atitude nominalista, ele argumenta em favor de uma concepção realista desses "se res": "Essas expressões da língua corrente, a consciência social, o espírito coletivo, o corpo da nação, não têm um mero valor verbal, mas exprimem fatos eminentemente concretos".30 Dizer que existem hábitos, crenças ou senti mentos compartilhados mais ou menos por comunidades ou grupos sob o efeito de condi ções de vida materiais e/ou simbólicas, e/ou educativas, e/ou morais, e/ou religiosas, etc. comuns é sociologicamente justo. Mas dizer que existem hábitos ou crenças que só perten cem a esse novo "ser psíquico" que é "a socie dade" ou que a sociedade possui uma "indivi dualidade psíquica" própria é uma pura e sim ples personificação metafísica. Do mesmo modo, Durkheirn personifica a sociedade quan do escreve: "Para que a sociedade possa tomar consciência de si e manter, no grau de intensi dade necessário, o sentimento que ela tem dela mesma, é preciso que ela se reúna e se concen tre".3l Pois, para usar os termos adequados, não tem nenhum sentido dizer que uma sociedade (uma instituição, um grupo, um coletivo) "toma consciência dela mesma", assim como é um absurdo dizer que ela "pensa", que ela tem um "espírito", uma "alma", "intenções" ou uma "vontade". Essa maneira durkheimiana de di zer da sociologia deixará embaraçadas gera ções inteiras de sociólogos que se perguntarão se tais consciências existem "realmente" ou não, se são ideologias ou crenças dominantes im postas, porém apropriadas de forma distinta por diferentes categorias, grupos ou mesmo indivíduos,32 se são representações comparti lhadas pela maioria, pela "média"33 ou pela totalidade de indivíduos de um grupo ou, ain da, se são propriedades relativamente inva riantes que o sociólogo faz emergir mediante um trabalho de desindividualização, de des singularização de representações individuais. A questão não se coloca somente a propósito das representações: a realidade de todo fato social (comportamentos ou representações) pode ser indagada do mesmo modo. Quando Marcel Mauss e Paul Fauconnet escrevem em 1901: Pudemos observar com muita freqüência que uma multidão, uma assembléia, não pensava e não agia como fariam os indivíduos isola dos; que os agrupamentos mais diversos, uma familia, uma corporação, uma nação, tinham um "espírito': um caráter; hábitos como os in divíduos têm os seus. Por isso, em qualquer caso, sente-se perfeitamente que o grupo, multidão ou sociedade tem verdadeiramente uma natureza própria, que determina nos in divíduos certas maneiras de sentir, de pensar e de agiL34 601 eles apenas retomam argumentos tirados de As regras do método sociológico: "O grupo pensa, sente, age de uma maneira muito diferente do que fariam seus membros se estivessem isolados".35 Para ser mais exato e evitar a personificação, seria preciso dizer: "Os membros de um grupo pensam, sentem, agem de uma maneira muito diferente do que fariam se vivessem em outros grupos" (pois não há saída possível do mundo social para consciências individuais formadas pela convi vência de diíerentes grupos e instituições que, nesse sentido, nunca são isolados), ou ainda, insistindo sobre o peso do contexto de ação no qual se encontram os indivíduos: "Os mem· bros de um grupo pensam, sentem, agem de uma maneira muito diferente na presença ou no âmbito do grupo do que fazem quando são separados dele." O sociólogo não tem neces sidade de aderir ingenuamente a uma concep ção individualista para fazer a crítica da reificação-personificação dos coletivos. Indivíduo: universal demais ou singular demais Mas, sobretudo, Durkheim (e os durkhei mianos depois dele) não se dá conta de que situa o indivíduo fora do campo de intelecção da sociologia ao deduzir precipitadamente de um raciocínio correto um postulado errôneo: o todo não é a soma de suas partes, o social é essa realidade específica., prod uto das relações entre as partes e, portanto, as partes não são realidades sociais por si mesmas e não são ob jetos legítimos de reflexão e de estudo para o sociólogo. Isso precisaria ser demonstrado. O erro de raciocínio consiste em pensar que a um objeto (o indivíduo) corresponderia um tipo de realidade (biológica e/ou psicológica, "or gânico-psíquica"). Assim, em seu raciocínio, Durkheim, paradoxalmente, considera o indi víduo como um ser dessocializado e com isso confunde "coletivo" e "social" em vez de con testar a própria idéia de "consciência indivi dual" desligada de qualquer forma de vida so cial. Portanto, ele não põe em questão, e inclu sive legitima, a idéia segundo a qual certas "idéias" e "ações" teriam "sua origem na cons 602 BERNARD LAHIRE ciência individual", enquanto que ourras teriam uma origem coletiva. 36 Seguindo docilmente uma parte dos psi cólogos de seu tempo, Durkheim costuma de finir o individuo (mais ou menos explicitamen te) por sua universalidade biológica e psíqui ca, às vezes por alguns pendores, instintos ou inclinações genéricos demais para poder expli car os fatos sociais, mas não o concebe funda mentalmente como uma realidade sociologica mente apreensível enquanto tal. 37 O indivíduo é reduzido então a uma "natureza humana" ("natureza individual", "constituição psicoló gica do homem") e a "estados muito gerais" ou a "predisposições vagas e, por isso, plásticas".38 Sua concepção do "psicológico" é próxima da quilo que chamaríamos hoje de "biológico" ou de "genético" e ela se mostra claramente quan do, ao pretender questionar a explicação pelo "fator psicológico", ele nos apresenta sua con cepção do "psicológico" tomando o exemplo, surpreendente para um leitor atual, da "raça": Existe, aliás, um meio de isolar quase que com pletamente o fator psicológico de maneira a poder determinar a extensão de sua ação, que é procurar entender de que maneira a raça afeta a evolução social. De fato, as caracteds ticas étnicas são da ordem orgânico-psíquica. Portanto, a vida social deve variar quando elas variam, se os fenômenos psicológicos têm so bre a sociedade a eficácia causal que se atei bui a eles. Porém, não conhecemos nenhum fenômeno social que esteja sob a dependên cia incontestada da raça.39 _ Apenas eventualmente vemos despontar em certas formulações uma concepção do in divíduo não mais como um ser com caracterís ticas gerais consideradas na escala da humani dade ou de um grupo étnico, mas enquanto ser singular sobre quem o mundo social impri me sua marca e através do qual se reflete. O indivíduo não é mais universal, genéríco e plás tico, mas concreto e singular. Essa outra con cepção do indivíduo mostra-se assim median te aquilo que Durkheim diz sobre "manifesta ções individuais", "estados de consciência in dividuais". Nesse caso ilustrativo, o sociólogo deve desembaraçar-se totalmente do caráter (excessivamente) individual (singular, circuns tanciado, particular) para que manifeste-se o A CULTURA DOS INDiVíDUOS fato social. E é nisso que a supressão estatísti- ca das particularidades embaraçosas e a abs tração relativa que supõe todo empenho de es tabelecer equivalências e de classificar em ca tegorias fazem a felicidade do sociólogo durkheimiano: '~sim, há certas correntes de opinião que nos impulsionam, com uma inten sidade desigual, conforme as épocas e os paí ses, um ao casamento, por exemplo, outro ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos elevada, etc. Trata-se evidentemente de fatos sociais. À primeira vista, eles parecem insepa ráveis dasformas que assumem nos casos parti culares. Mas a estatística nos fornece o meio de isolá-los. De fato, eles são representados, não sem exatidão, pela taxa de natalidade, de nupcialidade, de suicídios, ou seja, pelo nú mero que se obtém dividindo a média total anual de casamentos, de nascimentos, de mor tes voluntárias pelo de homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidar. Pois, visto que cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares indistintamente, as circuns tâncias individuais que podem ter alguma par ticipação na produção do fenômeno neutrali zam-se mutuamente e, como conseqüência, não contribuem para determiná-lo. O que ele expressa é um certo estado de alma coletivo. Eis o que são os fenômenos sociais, desemba raçados de qualquer elemento estranho. Quan to às suas manifestações privadas, elas têm al guma coisa de social, pois reproduzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma de las depende também, e em grande medida, da constituição orgânico-psíquica do indivíduo, das circunstâncias particulares em que ele se encontra Elas não são, portanto, fenômenos propriamente sociológicos. Elas têm a ver ao mesmo tempo com os dois reinos; poderíamos chamá-Ias de sociopsíquicas. Elas interessam ao sociólogo sem ser a matéria imediata da sociologia. 4O Idéia esrranha essa que consiste em pen sar que as estatísticas revelam, pela própria abs tração de circunstâncias singulares a que elas submetem atos ou representações individuais, uma "alma coletiva". Durldteim poderia dizer mais exatamente que todos têm em comum cer tas propriedades fundamentais e que o conjun to de circunstâncias, particularidades, proprie dades secundárias, etc. desaparecem pelo pró prio ato do registro e da codificação estatística. Ele não pode apoiar seu raciocínio no aporte heuristico que a sociologia produzirá mais tar de procedendo por estudos de caso, entrevistas ou observações diretas de comportamentos. Ele situa do lado do não-sociológico tanto uma vaga ordem "orgânico-psíquica" quanto as "circuns tâncias", os contextos que hoje seriam conside rados pelo sociólogo como parte integrante do social. É como se o social se expressasse por meio dos indivíduos, mas não fosse dependente de les, como se utilizasse os individuos como me ros suportes, à maneira de um organismo com plexo composto de células. Seja como for, é essa a perspectiva adota da por Marcel Mauss, cerca de 30 anos mais tarde, ao considerar as relações entre psicolo gia e sociologia: Por toda parte, em todas as ordens de coisas, o fato psicológico geral aparece com toda niti dez porque ele é social; é comum a todos aque les que participam dele, e, por ser comum, ele se despoja de variantes individuais. Vocês têm nos fatos sociais uma espécie de experiência natu ral de laboratório que faz desaparecer os har mônicos para deixar apenas, por assim dizer, o tom puro. 41 Mauss quase chega a falar a linguagem da categorização e da contagem estatística, abs trações úteis para revelar variações pertinen tes em função de determinadas variáveis so ciológicas. O social é o comum. Portanto, não existe socia.l na variante individual, no 'parti cular, no singular, no detalhe. Entretanto, para parafrasear o belo título de um romance, pode se dizer que o social reside também nos deta lhes. O fato social é o que pode ser vivido por milhares de indivíduos, segundo modalidades relativamente singulares. Ao escrever que a religião é "a maneira de pensar própria ao ser coletivo" e que cons titui um "vasto conjunto de estados mentais que não se produziriam se as consciências par ticulares não estivessem unidas, que resultam dessa união e que se somaram àqueles que de rivam de naturezas individuais",42 Durkheim faz uma enorme concessão à psicologia de sua épo ca, pois admite que uma "consciência indivi- 603 dual" possa ter um sentido e alguma realidade fora de qualquer vida social. A uma natureza individual, que não sabemos por quais proces sos milagrosos foi gerada, se "somaria" uma consciência coletiva: Em cada um de nós, pode-se dizer, existem dois seres que, por serem inseparáveis a não ser pela abstração, não deixam de ser distintos. Um é feito de todos os estados mentais que não se relacionam a não ser com nós mesmos e com os acontecimentos de nossa vida pessoal: é o que se poderi:: chamar de ser individual. O ou tro é um sistema de idéias, de sentimemos e de hábitos que exprimem em nós, não nossa per sonalidade, mas o grupo ou os diferentes gru pos dos quais fazemos parte; é o caso das cren ças religiosas, das crenças e práticas morais, das tradições nacionais ou profissionais, das opiniões coletivas de todo tipo.Q3 Por essa partição entre dois "seres" ou dois "grupos de estados de consciência",44 o soció logo revela uma maneira de pensar que hoje é vista como uma fraqueza interpretativa. Por tanto, Durkheim é metafísico não apenas quan do personifica os grupos, mas também quan do evoca a consciência individual. De fato, "sondar" rigorosamente cada consciência individual (ou, mais precisamen te, as crenças, os hábitos, as disposições, as competências, as apetências individuais) faz com que se encontrem apenas realidades cole tivamente fundadas e mobilizadas, que os "co letivos" em questão sejam cada vez mais am plos e duradouros (espaço nacional, por exem plO),45 ou que, ao contrário, sejam mais estrei tos (comunidade conjugal, relação de amiza de, etc.) e às vezes, inclusive, mais efêmeros (sociabilidade de férias, conversa casual em um bar, etc.). O erro de raciocínio de Durkheim46 está ligado de algum modo à analogia inapro priada que ele utiliza para pensar a relação entre indivíduo e sociedade. Pois, longe de poder ser comparada à relação entre uma par te e seu todo, à imagem do átomo (unidade elementar, ''indivisível e homogênea", como diz a definição) e da matéria, a relação entre o indivíduo e a sociedade é de outra natureza bem diversa. Se, no entanto, decidíssemos manter o vocabulário da "parte" e do "todo", seria preciso pensar uma coisa que não sugere 604 ACYLlURA DOS INDiVíDUOS 605 BERNARD LAHIRE DE NOMO DIlPLEX A NOMO MIlL nPLEX Para o sociólogo que analisa a complexidade dos patrimônios de disposições individuais e as variações intra-individuais de comportamentos resultantes deles, certas formulações durkheimianas são bastante su gestivas. De fato, em um texto intitulado "O dualismo da natureza humana e suas condições sociais",· que tem como objetivo explicitar alguns desafios contidos em As formas elementares da vida religiosa, Émile Durkheim se pergunta: "De onde vem a idéia, para retomar uma outra expressão de Pascal, de que so mos esse 'monstro de contradições' que nunca pode satisfazer completamente a si mesmo?", e fala do ho mem como um ser destinado a sofrer permanentemen te por estar dividido contra si mesmo: "É esse desa· cordo, essa perpétua divisão contra nós mesmos que faz, ao mesmo tempo, nossa grandeza e nossa misé· ria: nossa miséria porque estamos condenados assim a viver no sofrimento; nossa grandeza também, pois é com isso que nos singularizamos entre todos os se· res. O animal avança com prazer em um movimento unilateral e exclusivo: o homem sozinho é obrigado a dedicar ao sofrimento um papel em sua vida". Todavia Durkheim só compreende a variaçãointra individual de comportamentos e de atitudes, que de semboca em certos casos em uma luta de si contra si, como uma "dualidade constitutiva da natureza huma· na": dualidade entre a alma e o corpo, a razão e a sensibilidade, o impessoal e o pessoal, o sagrado e o profano e, em última instância, a consciência social e a consciência individuaI. "A velha fórmula Homo duplex verifica-se, portanto, pelos fatos. Longe de sermos simpies, nossa vida interior tem como que um duplo cen tro de gravidade. Há, de um lado, nossa individualida de e, mais especificamente, nosso corpo que a sus tenta; de outro, tudo o que, em nós, expressa algo diferente de nós mesmos." Não apenas Durkheim ima gina a questão das contradições individuais sob a for ma de um "conflito" central ou de uma "contradição interna" entre duas grandes tendências opostas (homo dupleXj mais do que de uma pluralidade de disposi ções (homo pluralis ou multipleXj, como também ad mite no raciocínio que em cada indivíduo possam existir disposições (atitudes, pulsões, inclinações, sentimen· tos, paixões, tendências, etc.) que só teriam a ver com ele mesmo, enquanto que outras o prenderiam a rea· lidades sociais impessoais, distinções que não têm es· tritamente nenhum sentido sociológico: "Existe em nós um ser que representa tudo em relação a ele, de seu ponto de vista próprio, e que, em tudo o que faz, tem como único objetivo ele mesmo. Mas existe também um outro S9r que conhece as coisas ,sub specie aetemitatis, como se participasse de um outro pensa· mento que não o nosso, e que, ao mesmo tempo, em seus atos, tende a realizar finalidades que vão além dele", ou ainda: "é bem verdade, portanto, que somos formados de duas partes e como que de dois seres que, embora associados, são feitos de elementos muito diferentes e nos orientam em sentidos opostos". Admitindo mais ou menos explicitamenle a exis tênciade disposições que não foram socialmenleCXX1S tituídas ("Porém, é evidente que paixões e tendências egoístas decorrem de nossa constituição individual, enquanto que nossa atividade racional, tanIa teórica quanto prática, depende estreitamente de causas s0 dais") e reduzindo a questão da pluralidade de dispo sições sociais incorporadas a uma "dualidade" interior ("nos somos duplos", "nós realizamos uma antinomia", "a dupla existência que levamos concorrentemente: uma puramente individual, que tem suas raÍZes em nosso organismo, a outra social, que nada mais é que o prolongamento da sociedade") entre dois seres ou duas consciências, Durkheim retoma por sua conta e adapta aos seus propósitos a oposição clássica entre natureza (individual) e cultura (coletiva) e faz desse conflito central a razão de toda uma série de sofrimen tos individuais. É a divisão de si (puramente indívi dual) contra si (produto do social) que está no cerne da explicação que ele desenvolve. Abrindo a possibi lidade da existência de disposições ou de inclinações que não teriam nenhuma origem social (mesmo em uma expressão ambigua tal como: "varias de nossos estados mentais, e dos mais essenciais, tém uma 00 gem social", sublinhado por mim), ele toma difícil a emergência de uma sociologia disposicionalista da pluralidade de experiências socializadoras. Pois não é a contradição entre o social e o ínlivi dual que produz os sofrimentos de que fala Durkheim, e sim múltiplas contradições possiveis entre os diver sos produtos heterogêneos de um mundo social diterendado. Como escrevia Maurice Halbwachs em As causas do suicídio: ' ... J tédio ou desgosto pela exis tênda prodUZ-59 mais comumente em uma sodeda de mais complexa, onde as situações individuais mu dam com mais freqüência e mais rapidez, onde o rit mo de vida é mais acelerado, onde há mais riscos para os indivíduos de se sentirem inadaptados em relação ao seu meio". b Mal-estares ou crises individuais pro vêm do fato de que cada indivíduo pode ser portador de uma pluralidade de disposições que nem sempre encontram os contextos para sua realização (pIurali dade interna insaciada), pode ser desprovido de lis posições que lhe permitam fazer lace às múltiplas si· tuações que se apresentam a ele em um mundo so cial diferenciado (pIura/idade extema probIemáIica) ou pode fazer investimentos em diversos âmbitos sociais (na famOia e no trabalho, no trabalho e nos lazares, ele.) que se revelam incompatíveis ou contraditórios (pluralidade de investimentos probIernatíca).< L ~. DURKHEIM, 't.e dualisme de la nature humaine el se. condiIions sodaIes", SciBntia, XY, 1914, p. 206-221, b. M. HALBWACHS, Les Causes du suicide, op. cit., p. 12. c. B. LAHIRE, "De la lhéotte de rhabitus à une sodalogle psychoIogique", in B. lAHlRE (sob a dir.I, Le Trw.oI sodoItJgique do Piene SourrIeu. Denes el Critiques, op. ci!., p. 121-152. j:. verdadeiramente a analogia, a saber, que o todo ções que são apenas o eco 1e fora em nossa está presente, de forma mais ou menos comple· mente".48 O que Halbwachs explica nos é apre ta, em cada uma de suas partes e que as partes sentado de forma bastante sugestiva pela es crita literária de Luigi Pirandello: não têm uma existência autônoma, isto é, inde pendentemente e previamente às diferentes Ficar na companhia de você mesmo, sem uma formas de vida social que elas constiruem, su presença estranha? É uma bela solidão, de cessivamente ou simultaneamente, entre elas. verdade! ... Pois então, em sua memória, abre Se o todo (os diferentes mundos, grupos, se uma pequena janela na qual aparece sorri subgrupos, instituições que compõem o mundo dente, entre um vaso de cravos e um vaso de social) é, sem contestação, mais do que a soma jasmim, a Titi de cutrora tricotando uma echarpe de lã vermelha, parecida com a que das partes (os indivíduos tomados um a um), se vê no pescoço daquele velho insuportável, as partes não são, entretanto, de uma nature· o senhor Giacomino, a quem você esqueceu za distinta do todo e não podem ser tratadas de dar - ah, meu Deus! - uma carta de reco em hipótese nenhuma como se fossem as meno mendação para o Presidente de Sociedade Be res unidades indivisíveis. Pois, para Durkheim, neficente; um bom amigo, mas tão chato, ele explicar o todo pelas partes é "explicar o com também, principalmente quando se põe a ta plexo pelo simples" e "o superior pelo infe garelar sobre as malandragens de seu se~re tário particular, que, ontem... não, ontem não, rior",47 ao passo que a realidade do indivíduo quando mesmo? anteontem, quando estava não tem nada de elementar, simples e inferior. chovendo e a praça parecia um lago, com Mesmo quando está temporariamente aquele cintilar de gotas d'água e os alegres "isolada" (fora de interação direta com pes matizes de sol... e na corrida, meu Deus! que soas), a consciência individual só é consciên caos! o chafariz, a banca de jornal, o bonde cia porque continua a rrabalhar e a retrabalhar que chiáva estridente na cu!Va, um cachorro mentalmente, sob a forma de sonhos acalen que fugia... Em suma, você foi parar em uma sala de bilhar e deu de cara bem com o secre· tados ou de projeções imaginárias, cenas da tário do presidente da Sociedade Beneficen vida social (e principalmente diálogos), na qual te... Oh, esses sorrisos que subiam pelos bigo· ela se formou, reconduzindo-nos irremediavel des grisalhos, toda vez que você errava o gol· mente ao circuito de nossas relações de pe, em suas espertas carambolas contra o interdependência passadas. Mesmo o raciocí amigo Charles, apelidado de 'Lua cheia'. E nio intelectual mais abstrato, que parece ser depois? O que aconteceu depois que saiu da um processo individual autônomo, "reproduz sala de bilhar? Ah, sim... Sob a luz de um lam pião, na rua úmida e deserta, um pobre bêba esquematicamente um verdadeiro debate no do melancólico tentava cantarolar uma velha ir.terior de nós mesmos, mas que só é possível canção napolitana; aquela mesma que, já faz e que sem dúvida só nos ocorreu porque já muitos anos, você ouvia cantar, quase todas debatemos e discutimos com outras pessoas. as noites, nesse vilarej0 nas montanhas enco Robinson Crusoé conta que, desde sua chega lhido sob os castanheiros, onde você tinha ido da à ilha, ele deliberou sobre o mdo que de~ria encontrar sua querida Mimi, que depois se empregar para voltar aos escombros do navio: casou com o velho comendador Della Venera e morreu um ano mais tarde ... Querida 'Então, eu convoquei um conselho - quero di MimiL.. Lá está ela, ali, em uma OUU1! janeli zer, em meu pensamento - para saber como é nha que se abre em sua memória••. Ah, sim, que eu levaria a jangada'. Nossas diversas opi uma bela maneira de estar só, de verdade!49 niões e nossos pontos de vista apenas aparen· temente estão encerrados em nossa mente. O que leva Émile Durkheim a situar cla Pode-se dizer; ainda de forma metafórica, que nosso pensamento é muitas vezes como uma ramente o indivíduo do lado dos objetos da sala de deliberações onde tomam assento e biologia ou da psicologia é a idéia segundo a discutem entre si argumentos, idéias e abstra qual se poderia fazer dos "estados de consciên ções que, em grande medida, devemos aos cia individual" uma "causa determinante" dos outros: mas são os outros que debatem em nós, fatos sociais. Ele critica vigorosamente a utili· que sustentam teses, que formulam proposi· zação de motivos individuais gerais para expli 606 BEBNARD LAHIRE car fatos sociais (o sentimento de desejo sexual não explica a família; o sentimento de religio sidade não explica as igrejas, etc.).50 Desse ponto de vista, sua inquietude é inteiramente fundada e associa-se às reservas de Max Weber quanto às explicações simplistas do desenvol vimento do capitalismo por uma informe atra ção do dinheiro ou uma vaga e geral auri sacra fames. Mas ele não extrai todas as conseqüên cias lógicas dessa proposição e tende, por um lado, a situar todo o social no coletivo e ape nas no coletivo (uma ordem de fato específi ca), enquanto que o indivíduo parece ser con siderado de antemão como um simples elemen to, um simples componente não passível de ser estudado como objeto social; e, por outro lado, a hipostasiar os coletivos tratando-os como qua se-pessoas. Mas, o fato de existir uma ordem de fato específica (o social) não deveria levar a cortar o mundo real em "partes" que depende riam dessa ordem e em outras que não depen deriam. Durkheim esquece de fazer o retorno sociológico - aos indivíduos que são seres ple namente sociais, produtos do todo (ou melhor, de diferentes "todOS")51 que eles formaram. Se Durkheim (e os durkheimianos) con tribuíram enormemente para a confusão con ceituai, ainda presente, associada à noção de "individuo", ele às vezes se aventura um pou co mais longe, e mais imprudentemente do ponto de vista do controle das fronteiras disci plinares, fora dos limites que ele próprio tinha fixado. Assim, ele escrevia (em 1900), com mais audácia científica, que "a psicologia também está destinada a se renovar em parte" sob a influência da pesquisa sociológica, "pois, se os fen6menos sociais penetram o indivíduo do exterior, há todo um campo da consciência in dividuai que depende em parte de causas so ciais que a psicologia não pode abstrair sem se tornar ininteligível";52 ou ainda (em 1908) que "toda sociologia é uma psicologia, mas uma psicologia sui generis. Acrescento que essa psi cologia é destinada, creio, a renovar proble mas que se colocam atualmente a psiçologia puramente individual e mesmo, como reação, a teoria do conhecimento".s3 A sociologia, no fundo, ''também desemboca em uma psicolo gia", mas em uma psicologia que Durkheim julga (em 1909) "mais concreta e complexa do ACULTUM DOS INDiVíDUOS _ que aquela que fazem os psicólogos puros"54 de sua época. Em Da divisão do trabalho social (1893), Durkheim mostra-se particularmente conquis tador, continuando a ceder uma parte do ter reno à psicologia: Sem dúvida, é uma verdade evidente que não existe nada na vida social que não esteja nas consciências individuais; a questão é que qua se tudo o que se encontra nesta!! últimas vem da sociedade. A maior parte de nossos estados de consciência não se teria produzido em seres isolados e teriam se prodU2ido de uma maneira bem diferente em seres agrupados de outra maneira. (...] Produtos da vida em grupo que só a natureza da vida em grupo pode explicar. 55 Mas é geralmente em passagens de textos mais curtos (principalmente resenhas críticas de obras) que o sociólogo revt!1a uma outra manei ra de considerar o individual e o social, as par tes e o todo. Assim, comentando em 1885 uma obra de Ludwig Gumplowicz na Revue phiLoso phique, o jovem sociólogo escreve de uma ma neira que pode parecer surpreendente que o estudo dos fenômenos sociológico-psíquicos não é [...] um simples anexo da sociologia; é sua própria substância. Se as guerras, as inva sões, as lutas de classes têm uma influência sobre o desenvolvimento das sociedades, é com a condição de agir primeiro sobre as consciências individuais. Pois tudo passa por elas, e é delas, em última análise, que tudo emana. O todo só pode mudar se as partes mudarem, e na mesma medida. 56 Paradoxalmente, apenas os sociólogos que romperam com os levantamentos estatís ticos e COm as operações de codificação, de categorização dos individuos ou de seus atos, opiniões, crenças, etc. podem sentir, dcsde que reflitam um pouquinho, a ausência de nomina lismo crítico em Durkheim quando ele opera uma separação ontológica entre os fatos de consciência individuais e os falOS de consciên cia coletivos. Realmente, parece claro para todo produtor ou todo sociólogo usuário de levan tamentos estatísticos que as recorrências ou as invariâncias constatadas dependem de um tra balho científico de eliminação das singulari- 607 QUAL OBJETO PARA UMA SOCIOLOGIA COGNITIVA? Não deveríamos ver nessa maneira durkheimiana de (não) pensar (sociologicamente) o "individuo" algo original, sem desdobramentos e sem conseqüências. De lato, não apenas numerosos trabalhos de sociolo gia atuais repousam implicitamente sobre a idéia de que o "individuo" (seja sua enorme singularidade, seja sua problemática universalidade) está fora do campo de interesse da sociologia, como o mesmo raciocínio opera-se nas reflexões mais recentes que abordam explicitamente essas questões. Tomaremos apenas um exemplo entre outros dessa persistência lembran do o programa de sociologia cognitiva descrito por Eviatar Zerubavel.a Para fundar a especificidade da sociologia cognitiva, o sociólogo norte-americano si tua sua contribuição em uma posição "intermediária" entre dois pólos opostos: de um lado, o individualismo cognitivo (cognitiveindividualism) que se interessa pelo pensamento de indivíduos singulares, por sua subjeti vidade, por suas experiências pessoais... e, de outro lado, o universalismo cognitivo (cognitive universalism) que estuda os aspectos cognitivos comuns ao conjun to dos seres humanos. Enquanto o individualismo cognitivo se interessa pelos "individuas" (individuaIs) e o universalismo cognitivo pelos "seres humanos" (human beings), a sociologia cognitiva se interessa pe los "seres sociais' (soda! beings). Portanto, a sociolo gia tem como especificidade o estudo dos fatos cognitivos próprios aos homens como "membros de comunidades de pensamento" e, desse modo, traz á tona uma infinidade de diferenças culturais cognitivas entre um grupo social e outro, entre uma época e ou tra ou entre uma sociedade e outra. Uma tal definição poderá parecer "natural" aos olhos da grande maioria dos sociólogos. E tanto mais natural na medida em que um dos principais desafios dos soció logos, hoje, é fazer com que sua voz seja ouvida no coro bastante unânime das disciplinas (psicologia cognitiva, neurofisiologia, lingüistica cognitiva, informática, inteligência artificial, filosofia do espirito, etc.), tomando como objeto de seu discurso o "Homem" ou o ''homem em gerar (distinto de outras espécies, com um cérebro humano, características físicas huma nas, etc.). Mas o esquema que coloca a sociologia e as "comunidades de pensamento" (isto ê, as comparações intergrupos) entre "indivíduos" (isto é, as comparações interindividuais) e '1-lomem" [Isto é, as comparações interespécíes) aceita laciIamente, sem dizê-lo, que a sociologia não pode i1leMr em nenhum dos dois ou tros níveis de comparação dos quais ela se distingue. Entretanto, se ê venlade que as ciências sociais têm pouco a dizer sobre "o homem em geral" (ainda que certas questões, tais como a divisão sexual dos papéis, os fenômenos de dominação ou o tabu do incesto, pos sam ser colocadas na escala do conjunto das socieda des lunanas, certos autores não hesitam em falar de fenômenos universais a propósito desses fatos cultu rais), elas estão longe de ser desprovidas de pertinência para comjXeender sociologicamente (no sentido am plo do tenno) os comportamentos de indivíduos singu lares [lnterprelando-os a partir de sua sociogênese e do esludo de contextos onde se inserem suas ações e seus pensamentos) como numerosas biografias exce lentes ou estudos de caso históricos que provaram en acte.b Argumentando no sentido de uma diferença en tre "indivíduos", "seres sociais" e "seres humanos", Zerubavel diz, sem medir todas as suas conseqüên cias fi.neslas, que o "indivíduo" não é fundamentalmente um objeto sociológico. A sociologia "ignora o mundo pessoal e interior dos indivíduos", ela deve "evitar o es tritamente pessoal", sem confundir "o impessoal com o universar: "Enquanto certos aspectos de nosso pensa mento são, com toda certeza, ou puramente pessoais ou absolutamente universais, há muitos que não são nem ~ coisa nem outra". Ao escrever isso, ele pres supõe que o "estritamente (ou puramente) pessoal" ou que um "mundo pessoal" poderia existir fora de qual quer inlluência social e paralelamente a "pensamen tos" que, por sua vez, seriam "sociais", Mas é exata· .mente esse tipo de idéias que se deve abandonar cien tificamente para pensar até o extremo e sistematica mente corno sociólogo. No enIanIo, o mesmo autor constata que, em uma sociedade com uma rigida divisão sociai do trabalho, caracteriZada por uma grande divisão cognitiva do tra· balho, "cada um de nós é membro de vãrias comuni dades de pensamento" e que "considerando que estamos socialmente situados na intersecção unica de comunidades de pensamento normalmente sepa radas, nosso caráter cognitivo também tende a ser unico". Ou ainda que com "as redes de minhas filiações pessoais tomando-se mais complexas, minhas lem branças. por exemplo, se individualizam e tomam-se inevitavelmente mais pessoais". O mais pessoal (inte· rior, íntimo, singular, etc.) lIão é, portanto, com toda lógica, nada mais que o social incorporado, e é a dife renciação sociaJ dos campos de atividade associados á pluralidade das influências socíalizadoras ás quais os individuos estão expostos que explicam o senti mento de ser um indivíduo unico e de "não ser de modo nenhum delenninado canpletamente pela sociedade". _lo a. E. ZERUBAVEL "The SocioIogy of lhe Mind", Social Mindseapes: An C<Jgnit;"" SocioIogy, cp. cit., p. 1-22. Todos os . trechos enados lotam _ por mim. b. Entre outras obras de l"isIoriadores, podemos citar C. GINZBURG, I.e Nomage elles VetS, cp. cit.; G. lEVI, Le Powoir au lIiIJage. Histoire crum exorcisle dans Ie Piémont du XVII sióclo, Gallimard, Paris, 1989; J. lE GOFF, Saint Louis, Fayard, Paris, 1996; e J. CORNETTE, La _ w potNOir. Orner Taton el :e proces de la raison cráat. Fay.ord, Paris, 1998. Assim, Joêl ComeUe escreve em sua introdução uma coisa que vai llIlÕIIl além de seu belo estudo 00 caso: 'O - . . de Omer TaJon remele a uma indagação mais geral, que fiz em oWo . . , , - e que se ...feria a um outro tempo: a busca do fthIcllo, visto em suas práticas sociais, profissionais, institucionais; a 1 . . - de """"Mlr uma história da pessoa po/tlue, através - . 6 _ uma época que a gente descolxe, que se ooscobre" (op. di., p. 12). 608 ACULTURA OOS INDiVíDUOS BERNARD LAHIRE dades, de estabelecimento de equivalências, de categorização, etc., e que é a partir de declara ções individuais de práticas, de opiniões, etc. que se pode apreender tais "fatos sociais". Embora Durkheim tenha escrito que "os esta dos da consciência coletiva são de natureza diferente dos estados da consciência individual" e que "a mentalidade dos grupos não é a mes ma dos particulares", S7 é porque a reflexão so ciológica não seria elaborada então no contato permanente com o trabalho de pesquisa (es pecialmente estatística). Somente um tal con fronto poderia ter levado a tomar consciência das necessárias agregações de dados, cálculo de médias, tipificação conceitual, etc. que per mitem revelar a realidade desses seres ma crossociais que são as instituições, os grupos, as classes, as correntes de idéias, etc. Durkheim utilizava esse vocabulário macrossocial de uma maneira epistemologicamente realista, que o impedia de considerar enquanto tal o trabalho de construção que tais conceitos supõem. Por tanto, ele não dava muita atenção à "alquimia social da qualificação, que transforma um caso, com sua complexidade- e sua opacidade, em um elemento de uma classe de equivalência, suscetível de ser designada por um nome co mum, e integrada enquanto tal a mecanismos mais amplos".58 O que obriga a ser um pouco mais nominalista na prática científica é o con fronto com os dados, com as múltiplas dificul dades de codificação, de categorização, com a interpretação nuançada de tendências estatís ticas que nunca são da ordem de 100%, com a impressão de forçação (legítima, mas mesmo assim forçação) que constitui todo ato de tipificação de culturas, de grupos, de movimen tos, de fenômenos, com base no conhecimen to de uma série de dados relativamente com plexos, etc. Retornando a cada caso singular depois de tê-lo desembaraçado de seus aspectos mais singulares, para as necessidades legítimas da causa estatística, Durkheim cOl).sidera que o estado coletivo reflete-se em cada um deles, mas que essa reflexão não é verdadeiramente um objeto sociológico: "O que os constitui [os fatos sociais] são as crenças, as tendências, as práticas do grupo tomadas coletivamente; quanto às formas de que se revestem os esta- I dos coletivos ao se refletir nos indivíduos, tra ta-se de coisas de outra espécie,,-s9 Porém, se Durkheim situa o indivíduo fora do interesse sociológico, evocando de antemão realidades macrossociais, é porque ele não se coloca o problema da acessibilidade metodologica mente construída a essas realidades. O acesso a essas realidades supõe processos de totaliza ção, de categorização ou de tipificação com base em traços de comportamentos individuais. É a partir dessas formas "refletidas" do social que todo sociólogo estuàa o social e não (\ con trário. Durkheim procede como se fosse possí vel ter acesso diretamente à inteligência dos fatos coletivos sem passar por essas "coisas de outra espécie" que são os "estados coletivos refletidos". Isso é sinal de que ele ainda pensa muito como um filósofo social, isto é, como um erudito que não traduz diretamente seus pro blemas teóricos em ato~ concretos de pesqui sa, em maneiras de ter acesso ao real, em tipos de levantamentos, em pesquisas empíricas de traços, índices ou indicadores. Entre o homo rationalis de psicologia su mária e anti-histórica da eccnomia60 ou do in dividualismo metodológico na sociologia, que ainda hoje vêem as categorias macrossocio lógicas como entidades metafísicas,61 e a ex clusão do indivíduo por todas as formas implí citas ou explícitas de "holismo", constata-se que há um enorme buraco em matéria de constru ção sociológica do indivíduo. LUTAR CONTRA CERTOS HÁBITOS DE PENSAMENTO Personíficar os coletivos, isto é, dotar os grupos ou as instituições de propriedades atri buídas inicialmente aos indivíduos (consciên cia, pensamento, intenção, vontade, espírito, etc.) é o melhor meio de desprezar os indiví duos enquanto produtos sociais. A verdadeira autonomia da ciência psicológica desejada por Durkheim passa, portanto, por uma dupla in versão de perspectiva: 1) o abandono de cate gorias próprias aos indivíduos para falar de "coletivos" (rejeição de qualquer personifica ção); e 2) a constituição do indivíduo como objeto sociológico legítimo. Ainda que a personificação dos coletivos tenha sido amplamente criticada por numero sos sociólogos e que os casos mais patentes de personificação sejam evitados atualmente de forma bastante generalizada,62 o raciocínio durkheimiano que tentei destrinchar acima tra duziu-se efetivamente em maneiras de conce ber e de dar conta das pesquisas sociológicas em particular na sua dimensão quantitativa os quais é muito difícil questionar hoje. Contu do, como escrevia Bachelard, "hábitos intelec tuais que foram úteis e saudáveis podem, com o tempo, ser um entrave à pesquisa".63 O esforço de reconstrução de perfis cultu rais individuais, que está no cerne desta obra, obriga também a operar um retomo reflexivo sobre os pressupostos de hábitos intelectuais que consistem normalmente: em agregar indivíduos em grupos ou categorias com base em propriedades comuns; - em listar os traços mais freqüentes re lacionados estatisticamente a essas categorias ou a esses grupos operan do triagens cruzadas (pela variável dita independente, distribui-se a po pulação envolvida em diferentes clas ses ou categorias e observam-se os efei tos dessa distribuição sobre variáveis ditas dependentes) ou em calcular médias por categoria/grupo para es tabelecer em todos os casos as distân cias intercategorias/grupos; - em esboçar um retrato ideal-típico do grupo (e de sua cultura), sob a forma de '1ma figura individual imaginária, que nunca existe como tal na realida de social; - tal procedimento envolve uma série de concepções sociológicas prévias que o uso rotineiro já não pennite mais dis tinguif6" e que aqueles que abandona ram de uma vez por todas os esforços quantitativos não estão mais em con dições de revelar; - ele supõe a manutenção de figuras ideal-típicas e/ou objetos tais como os grupos, as classes, as categorias, etc., todos eles objetos macrossociais cons- 609 _truídos no âmbito de condições cole tivas e políticas de vida específicas. Somos levados aqui, em nossas pes quisas sociológicas mais banais, a com por com os marcos sociais ou políti cos de nossa linguagem e descobrimos que nossos procedimentos cognitivos mais fundamentais (antes mesmo da questão da natureza e da pertinência das categorias utilizadas)65 nos acanto nam entre as grades de uma jaula.66 É nos limites desse espaço restrito que nós, ideólogos, jornalistas, romancistas, pesquisadores em ciências sociais, pen samos e nos exprimimos, às vezes nos debatendo contra as grades dessa jaula; - ele leva a crer que a sociologia pode perfeitamente apreender o mundo social sem ter necessidade de tratar a questão da base individual desse mun do. Entretanto, do mesmo modo que, como diz Marx, "desde o inicio, uma maldição pesa sobre 'o espírito', a de ser 'conspurcado' por uma matéria que apresenta-se aqui sob a forma de ca madas de ar agitadas, em uma pala vra, sob a forma da linguagem" (Ideo logia alemã), uma maldição pesa so bre o mundo social: a de se apresen tar fora de seus produtos objetivados (arquiteturas, móveis, máquinas, fer ramentas, textos, etc.), sob a forma de indivíduos que nascem e morrem, que dispõem de um corpo relativamente frágil, que são distintos uns dos ou tros (o que não quer dizer isolados), que não podem estar em dois lugares ao mesmo tempo, etc., e que se reve lam rapidamente bastante singulares em sociedades altamente diferencia das quando se alonga o questionário que permite compará-los; ele se opera em detrimento da apreen são da complexidade social (da singu laridade) dos individuos (e principal mente de seus patrimônios individuais de disposições incorporadas) compon do os grupos ou as categorias. O efei to último de um tal procedimento con sistirá, de maneira geral, em oferecer .610 ACULTURA DOS INDiVíDUOS BEANAAD LAHIAE _a imagem de um ator individual per feitamente coerente e homogêneo. Porém, um indivíduo, como ser social, é uma realidade sempre mais comple xa do que as imagens que o sociólogo, o historiador ou o antropólogo pro põem dos grupos, das instituições, das relações sociais, dos coletivos que eles formam entre si. Embora não se trate absolutamente de contestar a legitimi dade científica da imagem estilizada ou do quadro simplificador, a imagem não deve impedir de retomar, em um dado momento, ao funcionamento do mundo social com a idéia de que um indivíduo nunca é "portador" de uma única propriedade geral, mas que, ao contrário, ele é o produto de uma infi nidade de "propriedades gerais", o que constitui sua complexidade (e sua sino gularidade), e que é com essa comple xidade que ele age e interage com ou· tros indivíduos também complexos (ou singulares).67 E poderíamos comentar longamente o conjunto de pressupostos - entre os quais a não distinção da escala de observação e do nível de análise do indivíduo ao grupo, do estudo do caso singular à abordagem estaústica e à apresentação ideal-típica das disposições e pre ferências mais freqüentemente ligadas ao grupo, ou ainda o caráter necessariamente unitário do estilo de vida ou do conjunto de práticas, tanto individual como coletivo - ins crito~ em uma formulação do tipo: "Uma das funções da noção de habitus é dar conta da unidade do estilo que une as práti cas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes [...]. O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unitário, isto é, um conjunto unitário de escolha de pessoas, de bens, de práticas."68 Sem reflexão sobre a noção de escala de observação ou de análise,69 a idéia de sistemati cidade do habitus pode deslocar-se do estatu to de intuição científica criadora que busca melhor das hipóteses, em probabilida des estatísticas (nem 0% nem 100%), em proposições categóricas ("todos os operários, todos os banqueiros, todos os pequenos comerciantes, etc. são assim, têm essa propensão..... ou ain da "Um operário, um banqueiro, um pequeno comerciante, etc. é assim"). explicar coerências estatíSticas nas práticas e comportamentos de grupos ou de categorias para o de evidência não questionada que de signaria uma característica objetiva dos fun cionamentos ou dos mecanismos sociocogni tivos tanto individuais quanto coletivos. Assim, Luc Boltanski afinnaria em 1975, em um pará grafo do artigo intitulado "Da sistematicidade das palavras à coerência do hexis corporal", a evidência do caráter sistemático do habitus in dividual dos autores de históriás em quadri nhos, habitus que se encontraria operante tan to nos rostos quanto nas palavras, tanto nas roupas quanto nas obras: "Quanto à aproxima ção dos discursos e dos rostos (aos quais deve ríamos acrescentar, se houvesse espaço, as obras), ele quer chamar a atenção para o cará ter sistemático do habitus cuja 'obra', no senti do tradicional do termo, nada mais é do que um produto entre outro~, e que se realiza tão bem, às vezes melhor, na infinidade àe 'obras' objetivas produzidas pela prática cotidiana: discurso de humor, julgamentos, 'palavras' ou, ainda, marcas simbólicas inscritas na roupa, na mímica, nos gestos, no COrpO".70 Os procedimentos estatísticos de estabe lecimento de equivalência para as necessida des de codificação, como as operações de cál culo das médias por categoria ou de tipificação, desindividualizam os fatos sociais e fornecem uma versão "desdobrada" (abstraída das sin gularidades individuais) do social. Contudo, se consideramos que o mundo social não se apre senta aos indivíduos (seja interiormente ou exteriormente) de forma desdobrada e abstra ta, mas compactada e concreta (em forma de combinações concretas nuançadas de proprie dades), e se não queremos repetir o erro for mulado por Pierre Bourdieu, que consiste em deslocar-se do modelo da realidade à realida de do modelo, então podemos tentar, na re presentação dos fenômenos sociais, conside rar da forma mais rigorosa possível esse fato. - Queiramos ou não, ela conduz soció logos experientes e profanos aconver ter progressivamente figuras ideal-tí picas de culturas de grupos ou de clas ses, que não fazem mais do que esbo çar um quadro coerente fundado, 'na Mais sutilmente, às vezes, interpretam-se as tendências estatísticas ligadas a grupos ou a categorias como se fossem tendências dispo sicionais próprias às pessoas. Quando se diz, por exemplo, que 52% dos jovens da camada dos altos funcionários e 66% dos jovens do meio operário foram a uma festa de feira nos últimos 12 anos e se comenta esses dados di zendo que "os jovens do meio operário distin guem-se antes de tudo por sua tendência a ir mais aos bailes públicos e às festas de feira",71 muitos leitores pensarão espontaneamente, por economia interpretativa, em um jovem do meio operário que estaria voltado para (ocupado, interessado, envolvido por) a festa de feira e que se distinguiria de um outro jovem da ca mada dos altos funcionários muito mais "dota do". É preciso, entretanto, resistir a esses des vios interpretativos, pois a verdade dos fatos é que 52 a cada 100 jovens da camada dos altos funcionários e 66 a cada 100 do meio operário são estritamente equivalentes do ponto de vista da freqüência à festa de feira, e que, inversa mente, 48 a cada 100 jovens da camada dos altos funcionários e 33 a cada 100 do meio operário são estritamente equivalentes sob o ângulo da não-freqüência à festa de feira. Os grupos sociais dividem-se em subgrupos de praticantes, mas não os indivíduos que os com põem, e não se pode desviar do grupo para o indivíduo por analogia sem cometer graves er ros de interpretação. - I Ainda que negligencie a dimensão in dividual do mundo social, ela é obce cada pela noção de indivíduo ou de pessoa, no sentido em que sempre con fere aos grupos existências quase per sonificadas (dotando-os de vontade, de consciência, de intenção, de incons ciente, de representações ou de cren- 611 ças, termos dedicados originalmente ao indivíduo, ainda que essas abstra ções sejam reconstruções-abstrações científico-políticas) ou no sentido em que sempre refere-se ao grupo por meio de exemplificação, isto é, Hus trando-o com a ajuda de casos indi viduais, sempre mais ou menos cari caturais, e necessariamente despoja dos das singularidades individuais (ou pelo menos que se consideram inúteis para a função que devem cumprir nes ses "casos") em relação àquilo que se pretende afirmar sobre o grupo.12 Nin guém duvida que hoje o exemplo caricatura I, ilustrativo, tomou o lugar da personificação do coletivo, da figu ra individual ideal-típica ou do retra to individual dessingularizado, reves tindo-se da mesma função que o espí rito coletivo ou que as "consciências coletivas" quando o sociólogo não PÇlde mais se permitir - em razão da critica científica - personificar os co letivos.?' O que se faz, portanto, é subsumir o grupo no caso individual, em vez de "individualizar" o grupo; condensar o coletivo na pessoa em vez de personificar o coletivo. 74 É o grupo inteiro que se mostra na singularida de do caso que oferece, por sinédoque, como a quinta-essência de um estilo de vida coletivo, de uma cultura, de uma mentalidade, de uma vÍsão do munào ou de um habitus de grupo. O caso é então um modelo exemplar no sentido em que ele é constituído ao mesmo tempo como um indivíduo co mum entre outros que se supõe que façam parte da mesma série (como na "reprodução em série") e como um exemplo particularmente eloqüente (ideal, perfeito, edificante). O risco aqui é deslocar-se do caso ideal-típico ao caso concreto e levar a pensar que os casos concretos que se apresentam ao sociólogo entrevistador ou obser vador se parecem com os exemplares. Ou então, visto que nem todos os lei tores da sociologia estão dispostos a 612 BERNARD LAHIRE acreditar no que se diz, há o grande risco de se desenvolver uma crítica das "caricaturas" do mundo social opera das pelos sociólogos. Avançando um pouco mais na apreensão do todo pela parte (o indivíduo testemunhan do pelo conjunto do grupo), o sociólogo pode, inclusive, adicionar a pretensão literária de apreender o todo de um destino ou de uma personalidade individual a partir de um deta lhe singular. Por exemplo, em Balzac, o deta lhe revela o todo, o elemento simboliza o sis tema, em suma, o sistema está presente em cada um dos elementos que o constituem, condensa-se em cada detalhe. Uma casa subsumirá a fórmula geradora dos comporta mentos e atitudes do indivíduo que a habita. O mesmo para os calçados, uma bengala, um detalhe da roupa: "O detalhe, escreve Maurice Menard a propósito do estilo balzaquiano, per mite remontar ao conjunto de um personagem e mesmo ao conjunto de uma história. A lupa do pai Grandet tem valor de signo sobre os costumes do avaro, mas também sobre os cos tumes do Saumurois e da Restauração na pro víncia. Os calçados resumem toda a história dos Chouans, pois os calçados confortáveis de signam os verdadeiros Chouans e expressam o apoio dado pela Inglaterra à sua causa. As ben galas e chibatas de Lucien de Rubempré mar cam nitidamente as etapas de Ilusões perdidas. Assim, o romancista pode 'tornar verdade pela simples amostra' e fazer com que o leitor ado- te o mesmo procedimento, porque o detalhe 'conduz logicamente ao conjunto', porque as nuanças mais sutis e as pequenas 'verdades' são o meio de descobrir 'o conjunto [...) que os torna solidários"'.75 O próprio Balzac, inspirando-se em Cuvier, que consegue "remontar" de uma par te do esqueleto de um animal ao animal intei ro e classificável, explica que se pode recons tituir um "individuo classificado" a partir de um simples detalhe a seu respeito. Mais do que isso, a apreensão de um personagem pode per mitir compreender a lógica do conjunto de um contexto social ou institucional. Assim, ele es creve em Pai Gariot, a propósíto da "pensão Vauquer": "[...] toda sua pessoa [a senhora -4 Vauquer) explica a pensão, assim como a pen são implica sua pessoa". A senhora Vauquer é a instituição transformada em mulher, a pen são inteira encarnada em uma pessoa singular. RESISTIR AO AR DOS TEMPOS As evoluções sociológicas dos últimos 15 anos foram marcadas pelo nítido predomínio do tema do "individualismo" e de sua "ascen são".76 Assim, Henri Mendras via na França de hoje uma "desvalorização das grandes institui ções simbólicas" e uma "ascensão do indivi dualismo" (e particularmente uma "individuali zação da cultura"), "o enriquecimento médio e a difusão da cultura escolar conduzindo os franceses a querer construir, cada um, sua pró pria cultura pessoal". Do mesmo modo, Olivier Galland acredita descobrir uma galopante "individualização dos costumes e das escolhas culturais" nas "jovens gerações" ("um sistema de atitudes que ganhou amplamente os jo vens"), processo que ele define pelo fato de querer decidir por si mesmo e unicameue por si mesmo o que é bom ou mau para si", ou ainda pelo fato de que a cultura não é mais ''vivida pelos jovens [...] como um capital in tangível e sagrado que deve ser transmitido de geração em geração, mas como resultante de escolhas livremente consentidas que se ajustam melhor ao humor, às sensações, às emoções dos indivíduos ou dos grupos". Tolerâncias em re lação ao homossexualismo, ao divórcio, à eu tanásia, ao suicidio estariam assim subenten didas pela "idéia da livre disposição de si mes mo". Contudo, o autor não parece abalar-se com a constatação estatística renovada da de terminação das "escolhas" culturais, tanto dos jovens como dos menos jovens, pelo meio so cial e/ou a origem social, o nível de diploma e o sexo. Observa-se que o individualismo (ou a individualização) a que se faz referência pare ce estar situado às vezes nas práticas e na or dem objetiva das coisas, e outras vezes nas re presentações que os atores fazem para si. Mas, de maneira mais geral, não se percebe verda deiramente em que nivel- objetivo ou subjeti vo, prático ou discursivo - aplica-se a análise, ACULTURA DOS INDlViDUOS e não é difícil compreender que eventualmen te uma tal distinção não parece pertinente aos olhos dos "analistas" do individualismo (as re presentações objetivas da realidade são con fundidas então com a própria realidade). As sim, quando Olivier Galland escreve, a propó sito da socialização familiar intergeracional, que "a idéia da livre escolha contribui de facto para enfraquecer esse modo de transmissão", ele não se preocupa muito em saber em que medida uma "idéia" (uma "ideologia", um "dis curso", uma "representação de si") pode en fraquecer um "modo de transmissão" (de rela ções de interdependência interindividuais e de práticas). Exeunt os grupos ou as classes e suas cul turas, as relações de dominação culturais, as legitimidades culturais relativas, as desigual dades sociais de acesso à cultura, as institui ções familiares, escolares e culturais e seu tra balho de socialização (sobre o qual nos dizem, em certos casos, que ele "enfraqueceu"), as transmissões intergerações, as categorias de percepção e de hierarquização da cultura e os processos de sua interiorização: o indivíduo, suas escolhas e a necessidade histórica que ele tem de "construir por si mesmo" ou de "ser si mesmo", de ser "livre"]] ou "autônomo" estão agora no centro do novo discurso sociológico. A palavra de ordem geral passa a ser então a necessidade de romper radicalmente com uma sociologia passada (sendo esta representada implicita ou explicitamente por Pierre Bour dieu) que, segundo Amoine Hennion, teria tra tado o "apreciador" ou o "praticante" de uma atividade cultural ou artistica como um "'cu/ tural dope' [idiota cultural], que se engana so bre a natureza do que faz", ou como "o sujeito passivo de um apego, que sequer conhece suas verdadeiras determinações, reveladas, apesar de suas resistências, por impassíveis estatísti cas". O "apreciador", sustenta Hennion, não é um "idiota cultural", é um autor, um criador, um ''virtuoso da experimentação estética, téc -nica, social, mental, corporal". E, para arrema tar, julga-se (naturalmente sem oferecer a me nor prova empírica) que essa sociologia crítica da cultura, que supostamente vê nos gostos "apenas o jogo passivo da diferenciação social" e "a máscara colocada pela cultura sobre a 613 dominação", é agora um senso comum tão di fundido que é preciso ajudar os entrevistados a se desfazerem dessa concepção do mundo social para encontrar o ator tal como ele é, em uma espécie de autenticidade verdadeira: "Essa última visão é generalizada atualmente, a ponto de os próprios apreciadores apresentarem seus gostos como signos sociais, determinados por sua origem, que eles sabem relativos, históri cos, pretextos para rituais diversos - e é para doxalmente o sociólogo que deve "desso ciologizar" o apreciador para que ele fale de seu prazer, do que o prende, das técnicas sur preendentes que desenvolve para chegar, às vezes, à felicidade" (A. Hennion.). E nosso so ciólogo, herói libertador do ator oprimido pela sociologia clássica, não parece perceber que se contradiz ao afirmar, por um lado, que é preci so romper a qualquer custo com a postura crí tica daquele que não leva suficientemente a sério as palavras do entrevistado (':Já é hora de a sociologia levar mais a sério o apreciador, ou de ter mais respeito por ele") e, por outrO lado, que é preciso ajudar o entrevistado a se desembaraçar desse mau senso comum erudi to que ele supostamente interiorizou. Romper ou não romper com o senso comum? A respos ta parece depender dos gostos ou das aversões do sociólogo que "respeita" o que lhe parece respeitável e quer ajudar os entrevistados a romper, corno ele, com essa detestável sociolo gia crítica. Se as grandes hipóteses sobre as trans formações do mundo social em escala de uma história de longa duração não devem eviden temente ser banidas do discurso sociológico (por exemplo, pode-se pensar nos processos de racionalização, de diferenciação ou de pa cificação ilustrados por Max Weber, Émile Durkheim e Norbert Elias), não se pode acei tar também que certos autores façam das "gran des idéias" que evocam (ascensão da fragmen tação, da individualização ou da injunção para "ser si mesmo") pressupostos da análise que deveriam explicar os comportamentos, quan do, na verdade, trata-se de fenômenos que, à medida que se conseguisse descrever suas mo dalidades e delimitar seus contornos, também deveriam ser explicados (quais- são as origens sociais - econômicas, escolares, familiares, ju 614 BERNARD LAHIRE ACULTURA DOS INDiVíDUOS rídicas, religiosas, ideológicas - dessas formas de individuação ou de individualização?),78 Além disso, embora elas só devessem ser evo cadas com precaução e apenas para expor e relacionar os múltiplos resultados de pesqui sas muito variadas, elas costumam ser apre sentadas como evidências, como um fundo natural sobre o qual se destacaria o conjunto de práticas e de atitudes sociais. Como prova do uso oscilante desses quadros interpretati vos, os autores, para legitimar essas "grandes idéias", apóiam-se mais habitualmente em fi lósofos ou ensaístas livres de qualquer imposi ção empírica (Marcel Gauchet, Alain Renaut, Gilles Lipovetsky, Daniel BeB, Ulrich Beck, Charles Taylor, etc.) do que sobre os trabalhos de pesquisadores em ciências sociais (historia dores, antropólogos ou sociólogos). Poderíamos dizer sobre o ar dos tempos sociológicos aquilo que Jacques Le Goff escre veu a propósito das pesquisas em história: Os historiadores têm o hábito muitas vezes irritante de ver nos inúmeros períodos da his tória a emergência ou a afirmação do indiví duo. Essa asserção repetitiva acaba por lançar o descrédito sobre a busca da eclosão do indi viduo na história. Trata-se, portanto, de um problema real, que exigiria numerosas, preci sas e delicadas pesquisas.79 Fora das fronteiras acadêmicas da socio logia, outros autores têm ainda maior liberda de de ação e uma língua interpretativa ainda mais solta que a dos sociólogos e propõem te ses que não podem deixar insensível o sociólo go que tenha o mínimo de racionalidade. Po rém, no universo científico como em qualquer outra parte, um dos maiores riscos de perda de lucidez e de liberdade consiste em se deixar determinar amplamente por seus adversários em suas escolhas teóricas, seus métodos ou seus objetos. Segundo uma lógica bem conhecida, trazida à luz já por Espinosa e~ sua Ética, que consiste em detestar tudo o que poderia estar vagamente associado à pessoa que se detesta, o pesquisador pode jogar fora o bebê junto com a água do banho e, em decorrência, a questão legítima das variações intra-individuais e in terindividuais dos comportamentos sociais com I as propostas vagas sobre a ascensão do indivi dualismo e a rejeição ideológica das concep ções em termos de classes sociais, a recusa po lítica de toda idéia de interesse coletivo e a convicção de que os individuos agora são mais autônomos, mais livres e que hoje, em nossas formações sociais, tudo o que há são contratos interindividuais submetidos a negociações per manentes. Assim, poderíamos ser tentados a rejei tar em bloco todas as questões que estão na base desse trabalho quando vemos hoje como certos autores negam a existência de classes sociais e de desigualdades sociais, apregoando um individualismo (pós-moderno ou não) e uma concepção conciliadora do mundo social. O melhor meio de reforçar suas convicções pri meiras sobre a legitimidade de tratar a ques tão do individuo nas ciêQcias sociais consiste em ler aqueles - filósofos ou autodenominados "sociólogos de ação" - que opõem o indivíduo, as faixas etárias ou a massa às classes sociais, a igualdade às desigualdades e a disseminação ou a incoerência à e~t.ruturação. Por exemplo, Gilles Lipovetsky acredita ver na "situação presente" um "processo de personalização", "movimento pós-moderno" que se caracteriza por uma "diminuição da ri gidez individual e institucional".80 Não apenas se estaria presenciando "o retraimento progres sivo das grandes entidades e identidades so ciais, em proveito não da heterogeneidade dos seres, mas de uma diversificação atomística incomparável", como também os próprios in divíduos estariam em pleno "abandono". Sob a pluma do filósofo pós-moderno desfilam as sim as imagens surpreendentes de uma "deses tabilização acelerada das personalidades", àe uma "fragmentação disparatada do eu", de uma "liquefação da identidade rígida do eu", de uma "desintegração da personalidade", de um "es facelamento do eu" - que foi "pulverizado em tendências parciais" e que se torna "um espaço 'flutuante', sem local fixo nem referência, uma disponibilidade pura" - ou de urna "aniquila ção dos sistemas organizados e sintéticos". Os indivíduos que compõem essa nova sociedade, que se "desagregaram em uma colcha de reta lhos heteróclita, em uma combinação polimor fa", são "cada vez mais aleatórios"; eles se apre sentam sob a forma de "miríades de seres hí bridos sem um forte vínculo de grupo" cuja consciência é "total indeterminação e flutua ção". Em uma tal sociedade submetida a um "processo de desagregação que fez eclodir a sociabilidade em um conglomerado de molé culas personalizadas", não existem mais ver dadeiramente nem grupos, nem classes (quer sejam sexuais, de gerações ou sociais) minima mente estabilizadas. Foi-se o tempo do "fosso intransponível entre os grupos", terminaram "as identidades e os papéis sociais, antes estrita mente definidos, integrados em posições regra das": agora "o fenômeno social crucial não é mais o vínculo e o antagonismo de classes, mas a disseminação do social. Hoje, os desejos iu dividualistas nos dizem mais que os interesses de classes". Paul Yonnet, por sua vez, vê na "massifi cação" ("a irrupção avassaladora de práticas de massa na França do pós-guerra") um "fe nômeno de alcance histórico" que "torna ca ducas as análises tradicionais da sociologia em termos de estratificação por classes ou por ca tegorias socioprofissionais". Também nesse caso, a rejeição à concepção de uma sociedade dividida em classes está no centro do pensa mento do autor, para quem "a sociologia das classes não domina o fenômeno da massifi cação: ela não é capaz de explicá-lo, de com preendê-lo, de integrá-lo em seus esquemas, em suma, de admiti-lo".81 Nos dois casos, o leitor tem a impressão de estar lendo atos performáticos de autores, que confundem seus desejos intelectuais e po líticos com realidades sociais, em vez de ver dadeiras análises apoiadas em pesquisas empíricas. O real é convocado sob a forma de exemplos falsamente concretos, a serviço de teses verdadeiramente abstratas e, às vezes, claramente delirantes. Nessas condições, com preende-se que seja forte a vontade de jogar fora o bebê junto com a água do banho. . Portanto, não é casual que, mantendo-se afastado das problemáticas e das indagações sociológicas (com um forte implícito sociopo lítico) sobre os grupos ou as classes, o próprio Erving Goffman se sentisse obrigado a explici- 6í S- tar a pertinência limitada e relativa de suas reflexões sobre a ordem da interação e os âm bitos da experiência individual. Nesse campo, é difícil não ceder às pressões morais e políti cas implícitas que pesam tanto mais sobre os pesquisadores (como é o meu caso) à medida que as interiorizaram: Eu não me ocupo da estrutura da vida social, mas da estrutura da experiência individual da vída social. Pessoalmente, dou prioridade à sociedade e considero os engajamentos de um indivíduo como secundários: este trabalho não trata, portanto, do que é secundário. Ele é su ficientemente vulnerável no campo em que se apóia para que não reclamem por ele não abor dar o que não pretende explorar. [...] Longe de abordar as diferenças entre classes favore cidas e classes desfavorecidas, esta análise parece descartar definitivamente esse tipo de questão. Eu admito. Mas acrescentaria que aquele que pretende lutar contra a alienação e despertar as pessoas para os seus verdadei ros interesses terá dificuldade para fazê-lo, porque- o sono é profundo. Minha intenção aqui não é cantar uma cantiga de ninar para elas, mas apenas entrar na ponta dos pés para observar como roncam. 82 APOIOS ECONTRA-APOIOS CIENtíFICOS É óbvio que as ciências sociais não ofere ceram apenas e unanimemente pesquisas que incorporam o conjunto de elementos do racio cínio descrito ao longo das páginas preceden tes. Mas não é casual que se descubra justa mente do lado de uma ciência social menos teorizante e mais técnica uma grande inventi vidade metodológica e (implicitamente) teóri ca - a saber, a sociolingüística variacionista desenvolvida nos Estados Unidos por William LaboV. 83 Labov orientou seus trabalhos sociolin güísticos em oposição à concepção de uma lín gua e de um social unificados e homogêneos que encontraríamos na obra de Saussure. Para ele, a questão da variação é central no estudo da língua tal como é utilizada por locutores reais, em contextos reais: variação de compor tamentos lingüísticos segundo os grupos ou 616 BERNARD lAHIRE categorias de vínculos (grupos socioculturais, sexo, faixa etária, etc.), mas também segundo as situações sociais encontradas pelos mesmos locutores ou até mesmo, às vezes, em uma única e mesma produção lingüística de um determinado locutor, dentro de uma situação extralingüística relativamente estabilizada. No prefácio à coletânea de textos de William Labov, Pierre Encrevé lembrava que, diferentemente de Noam Chomsky, que homogeneíza os 'Jul gamentos de gramaticalidade" e recusa "inda gar-se sobre sua extrema variação em um mes mo locutor", o sociolingüista leva em conta "os impactos sobre qualquer subsistema da inser ção de seus locutores no sistema da comunida de inteira, em sua divísão: a heterogeneidade inscrita na estrutura de toda gramática (inclu sive pretensamente 'idioletal')".B4 Com exceção de seu estudo sobre a ilha de Martha's Vineyard (na Nova Inglaterra), onde "os locutores são dados como 'uniesti 10s"',BS William Labov demonstrou, ao longo de suas pesquisas, o fato de que não existem "locutores de estilo único". Os estilos variam em um mesmo locutor de uma situação a ou tra e especialmente em função de seu grau de formalidade e de tensão. Quanto mais tensa e formal é a situação, mais o locutor tenta se conformar ao estilo (registro léxico e sintático, pronúncia) mais legítimo. Naturalmente, os locutores se diferenciam conforme possuam um leque mais ou menos amplo de estilos lingüís ticos à sua disposição, mas todos conhecem variações significativas de suas produções lin güísticas: "Por tildo o que sabemos, não existem locuto res de estilo único. Alguns entrevistados reve lam um campo de alternância lingüística mais amplo que outros, mas em todos eles encontra mos certas variáveis lingüísticas que mudam à medida que o contexto social e o tema se modi ficam."B6 Ou ainda, como obserVa Pierre Encrevé: '~ variação inerente é a heterogeneidade ins talada no cerne de todo dialeto próprio, de todo sistema lingüístico. Era isso o que mostrava a pesquisa em Nova York quando cada classe, em cada estilo, se caracterizava para esta ou aque A CULTURA DOS INDIViDUOS la variante por uma freqüência que não em ca tegórica (nem 0% nem 100%). Labov observa va também que as classes não se definiam por uma diferença no sistema de unidades emprega das, mas pela freqüência de aparição dessas uni dades nos diferentes estiloS".B7 O estudo variacionista de Nicolas Cou pland B8 mostra inclusive, de maneira muito sutil, como a diversidade dos microcontextos dentro de uma mesma situação está na origem de variações nos comportamentos lingüísticos de um mesmo locutor. O sociolingüista grava as conversas prnfissionais de uma mulher jo vem (Sue) durante toda uma jornada de traba lho. Sue é funcionária de uma agência de turis mo de Cardiff. Retendo cinco variáveis fonéti cas não-standard do inglês de Cardiff [suprimi o que está entre parênteses], Coupland mostra que as variantes utilizadas são mais ou menos standard ou não-standàrd em função do canal de mensagem (telefone versus face a face), do status dos interlocutores (amigos/clientes/pro fissionais do turismo) e do tema da discussão (relacionado com o trabalho/não-relacionado com o trabalho). O comportamento lingüístico de Sue não é determinado por uma situação global, mas, mesmo no interior de uma situa ção relativamente delimitada, a seleção de va riáveis está em constante flutuação. Mesmo quando os locutores parecem par ticularmente marcados por um vernáculo (dia leto praticado entre iguais), o uniestilo pode ser a exceção que confirma a regra (pluriesti los). O caso do VNA (vernáculo negro-ameri cano), estudado exaustivamente por~ William Labov,B9 representa um caso limite: os jovens negros do gueto de Nova York (pertencentes às frações de classe mais dominadas economica e culturalmente), cujas condutas lingüísticas ele estuda, caracterizam-se mais que outros - dada a heterogeneidade de suas condições de exis tência e de coexistência - por um uniestilo (o vernáculo) e sua adaptação às situações fora da comunidade pode reduzir-se a uma destrui ção parcial (linguagem pobre, entrecortada, etc.) ou total (silêncio) de suas habilidades lin güísticas ordinárias. Dominando bem apenas um estilo, eles às vezes não têm outra saída a não ser o silêncio nas situações mais tensas. Estamos diante do uniestilo do mais "caren te", do estilo único daquele que - por força da exclusão e da segregação - teve pouca oportu nidade de freqüentar outros meios sociocultu rais fora aquele onde constituiu seu vernácu lo. Vemos como há uma grande proximidade em relação à análise dos perfis culturais indi viduais mais consonantes. Contudo, mesmo no caso ilustrativo em que Labov conseguiu de algum modo neutrali zar naturalmente (versus experimentalmente) fatores que procurava fazer variar em suas pes quisas anteriores (grupo social, idade, origem étnica, etc.), "o domínio materno de estrutu ras heterogêneas" não é uma questão de "co nhecimento de vários dialetos", mas "faz parte da competência lingüística do indivíduo unilín güe".90 Labov inclusive acrescenta: "Nós sus tentamos que a ausência de permutas estilís ticas e de sistemas de comunicação estrati ficados é que seria disfuncional."91 Seja no ní vel do grupo ou da categoria (mesmo quando eles alcançaram o máximo de homogeneidade) ou no nível do indivíduo, a variação é observá vel e explica-se essencialmente pela pluralidade de contextos lingüísticos nos quais os locuto res foram socializados ao longo de seu passa do e que são levados a freqüentar ao longo de suas múltiplas interações. Portanto, a variação intra-individual tem origens sociais: a heteroge neidade das condições passadas de socializa ção lingüística e a pluralidade de contextos de atualização lingüística presentes. O locutor (es tatisticamente mais freqüente) pluriestilos é o produto em estado incorporado 1) da diferen ciação social de estilos (que remete de manei ra mais geral à diferenciação social das condi ções) e 2) do convívio individual com uma pluralidade de estilos ao longo das diversas etapas de socialização (uma sociedade forte mente diferenciada, mas que fechasse em si mesmos os diferentes grupos ou subgrupos não tornaria possíveis as influências lingüísticas pluriestilos). Portanto, não é casual que o soció logo norte-americano Paul DiMaggio se refe risse aos trabalhos sobre o bilingüismo para evocar as passagens de um registro cultural a outro em função das interações: "Do mesmo modo que os estudantes bilíngües que mudam 617 de código (code-switch) quando passam da rua à sala de aula (Gumperz, 1982, p. 38-99), os adultos da classe média aprendem a 'mudar de cultura' (culture-switch) quando passam de um meio a outro. Tais indivíduos dominam uma variedade de gostos, como sugerem as entre vistas, mas - e nisto está a chave do problema - eles os desenvolvem seletivamente em dife rentes interações e em diferentes contextos. (Um pai pertencente às frações superiores da classe operária, com uma esposa empregada de escritório, deve ter conhecimentos em ma téria de esportes e de rock, discutir política e alimentação natural com os amigos de sua mu lher e inculcar em sua filha ou em seu filho uma admiração por Brahms e Picasso)".92 É o interesse sociológico desse tipo de variações que tento mostrar no âmbito de uma sociologia da pluralidade disposicional (a so cialização passada é mais ou menos heterogê nea e dá lugar a disposições heterogêneas e às vezes, inclusive, contraditórias) e contextual (os contextos de atualização das disposições são variados). Assim, o ator individual não põe em prática invariavelmente, transcontextual mente, o mesmo sistema de disposições (ou habitus), mas podemos observar mecanismos mais sutis de vigJ.1ia./ação ou de inibição/ativa ção de disposições que supõem, evidentemen te, que cada indivíduo seja portador de uma pluralidade de disposições e atravesse uma pluralidade de contextos sociais. O que deter mina a ativação de tal disposição em tal con texto é então proàuto da interação entre rela ções de força interna e externa: relações de força entre disposições mais ou menos forte mente constituídas ao longo da socialização passada (interna) e relações de força entre ele mentos (características objetivas da situação, que podem estar associadas a pessoas diferen tes) do contexto que pesam mais ou menos sobre o ator (externo). O determinismo sociológico não é redutí vel ao determinismo pelo "meio social", que sempre mantém uma parte dos comportamen tos inexplicada (ou indeterminada) porque o "social" não é exatamente o sinônimo perfeito de "classe social" ou de "grupo social", e por que as "diferenças sociais" não são apenas di 618 BERNARD LAHIRE ferenças entre "grupos" ou "classes". O verda deiro determinismo sociológico, muito mais sutil, põe em jogo o social incorporado (indiví duos que foram socializados diferentemente como meninas ou meninos, filhos de operários ou de burgueses, pertencentes a um meio fa miliar protestante, católico ou muçulmano, filhos únicos ou com muitos irmãos, etc.) e os contextos relacionais, práticos e institucionais no interior dos quais o social incorporado é levado a atualizar-se. Em suma, em vez da vi são simplista de um determinismo massivo pela classe social de origem, que é impotente para explicar tudo e dá motivos aos amantes da li berdade sem apego nem raiz para resistir à idéia de determinismo, é preciso pensar em uma trama de disposições e de condições variá veis de suas aplicações que determine a cada momento cada indivíduo relativamente singu lar (singular por razões sociais). Se as pesqui sas realizadas junto a grandes populações per mitem oferecer uma imagem simplificada des ses determinismos verificando, mediante tria gens cruzadas, que os comportamentos jamais se distribuem aleatoriamente segundo as con dições sociais associadas a uma faixa etária, a um sexo, a uma posição ou origem social, a um nível de diploma, etc., é preciso estar em condições de pensar a complexidade de deter minismos que agem a cada instante como for ças invisíveis, quase sempre imperceptíveis por aqueles sobre os quais elas se exercem. Eviden temente, esses múltiplos determinismos con jugados não transformam indivíduos socializa dos em "idiotas culturais" ou em "seres passi vos", como repetem incansavelmente os deten tores de uma certa "liberdade de ator". Como se, por ser determinado socialmente, o indiví duo fosse simplesmente uma superfície passi va de registro de estruturas sociais, um servil portador de estruturas. Nota-se que essa sociologia é indissocia velmente disposiciona/ista e contextualista e que, ao mesmo tempo, distingue-se das socio logias que desprezam os contextos' (e suas va riações) explicando tudo pela cultura, pela mentalidade, pelo código de comportamento ou pelo sistema de disposições de que seriam portadores os indivíduos, e das sociologias que, A CULTURA OOS INDiVíDUOS inversamente, colocam toda a explicação do lado dos contextos, de suas estruturas, de suas affordances (James J. Gibson) ,93 de suas regras ou de suas convenções. 94 Mas essa reflexão sociológica (ao mesmo tempo epistemológica, teórica e metodológica) encontra ecos e apoios 95 também do lado de uma parte das pesquisas psicológicas. Embora os diferentes ramos da psicologia tenham como ponto comum pelo menos o fato de considerar o indivíduo como um objeto pertÚlente e legi timo, não se deveria tomar Durkheim muito ao pé da letra quando ele situa o indivíduo e suas características universais do lado da psi cologia. A própria psicologia está dividida (ou pelo menos àiverge) sob o ângulo do tratamen to científico do indivíduo. A uma psicologia que se interessa acima de tudo pelas estruturas cognitivas, perceptivas, comportamentais, etc. universais do homem - ir qual, dessa forma, faz das variabilidades interindividuais e intra individuais (exceto aquelas que, dentro de uma mesma espécie humana, dizem respeito ao de senvolvimento ontogenético e ao envelheci mento ou às diferer.tes formas de patologia) uma realidade a desprezar e a neutralizar a fim de trazer à luz "princípios essenciais" ou "leis gerais" do comportamento e da cognição - opõe-se nitidamente tanto uma psicologia crítica que trata de casos particulares e con cretos de maneira casuistica quanto uma psi cologia diferencial que faz dessas variações seu principal objeto de estudo. 96 É realmente difícil para o sociólogo não ver algum parentesco intelectual com a maneira como certos psicólogos falam hoje do indiví duo, da pluralidade de seus recursos cognitivos ou de seus traços disposicionais (entre os quais atuam fenômenos de vicariância), da coesão muito relativa de sua conduta e das restrições situacionais mais ou menos fortes que enfren ta: "Portanto, o modelo do funcionamento do indivíduo pode ser concebido como um siste ma dotado de uma pluralidade de recursos, em parte vicariantes, cuja utilização não é inteira mente especificada a priori, mas, em boa me dida, canalizada pelas restrições a que esse sis tema está submetido. [...] Pode-se identificar, para cada uma dessas atividades cognitivas, vários processos vicariantes, mostrar que 05 recursos a este ou àquele dependem, ao mes mo tempo, da existência de preferências indi viduais e de restrições da situação e, finalmen te, que esses dois fatores às vezes interagem de modo variável segundo os indivíduos [...]".97 Mesmo do lado das pesquisas mais ten dentes à universalização (e, em alguns casos, claramente à naturalização), a reflexão não deixa de ter interesse para o sociólogo. De fato, uma parte dos trabalhos realizados por nume rosos psicólogos que agora participam da cor rente dominante das ciências cognitivas é le vada a contrapor-se a hipóteses anteriores que atribuíam aos homens "uma série geral de ca pacidades de raciocínio que eles empregam em qualquer tipo de tarefa, qualquer que seja seu conteúdo específico".98 Em vez disso, hoje se considera que a "cognição humana é específi ca a domínios (domain-specific)". Poderíamos resumir uma parte das mudanças de modelos interpretativos dizendo que uma psicologia da transferência de capacídades ou de esquemas gerais, qualquer que seja o contexto de aplica ção ou de ação, foi substituída por uma psico logia da transferência cognitiva relativa de cer tos esquemas ou de certos procedimentos nos limites de "domínios" determinados. Assim, "o mesmo indivíduo que se revela notável diante de um tabuleiro de xadrez exibe um desempe nho banal em tarefas exteriores ao seu domí nio de competências. Por exemplo, a memória do expert em xadrez é bastante ordinária quan do ele lida com uma série de cifras, mesmo que a memória das posições das peças em um ta buleiro de xadrez esteja bem acima da de UUI novato. A expertise é tão pontual que ela não se estende nem mesmo à memória das peças colocadas ao acaso em um tabuleiro de xadrez".99 O mesmo expert em jogo de xadrez não é, portanto, de maneira mais geral, um "expert em reconhecimento de modelo visual". Contudo, é preciso assinalar que o exem plo tirado aqui dos trabalhos em questão é bastante atípico. Como observam os próprios autores citados, somente uma parcela margi nal das pesquisas refere-se à expertise e leva em consideração "domínios" como o jogo de xadrez, que são "artificiais e inventados" e que 619 supõem "muitas horas de prática intensa". Pois a grande maioria dos pesquisadores, a partir dos trabalhos de Noam ChomskylOO e de Jerry Fodor,lOl pensa essencialmente nos domínios de pensamento inatos que às vezes são conce bidos sob a forma de "módulos" encapsulados no cérebro. As restrições específicas aos domí nios a que se referem são igualmente inatas e dependentes do processo de evolução das es pécies. Assim, Chomsky pensa que o espírito consiste "em sistemas separados (isto é, a fa culdade de linguagem, o sistema visual, o módulo de reconhecimento facial, etc.) com suas propriedades específicas".I02 É compreensível então que esses pesqui sadores voltem-se de maneira crítica contra as ciências sociais, que fariam do "mental" um produto do "social". De fato, circulam diversas versões nas ciências cognitivas que põem em dúvida, de maneira mais ou menos radical, o caráter socialmente ou culturalmente cons truído das estruturas cognitivas: desde a idéia segundo a qual as capacidades cognitivas, em seu conjunto, seriam fundamentalmente ina tas e simplesmente se revelariam ou se atuali zariam ao longo de nossas experiências, até a tese segundo a qual essas capacidades inatas influiriam na ordem cultural facilitando a trans missão das representações culturais mais adap tadas às capacidades naturais de partida e, portanto, tornando mais difícil a transmissão das representações mais inadaptadas (com isso, nos perguntamos como essas representações puderam ser criadas por "seres humanos" se elas eram tão contrárias à r.atureza), passan do pela teoria segundo a qual, apesar de seu caráter inato, as capacidades cognitivas se en riquecem 103 e, às vezes, se modulam mediant~ as múltiplas experiências sociais. Entre muitos outros, Pascal Boyer questio na explicitamente o que ele considera como fruto de um certo senso comum erudito: ''A antropologia cultural geralmente supõe um senso comum, uma visão pré-teórica da aqui sição cultural, que eu chamaria de teoria da transmissão cultural exaU5tiva. O pressuposto principal é que as representações recebidas pelos membros adultos competentes de um grupo são inteiramente determinadas por aqui 620 ACULlURA DOS INDIVÍDUOS BERNARD ~H'RE Jo que lhe foi dado por meio da interação so cial. Essa concepção da aquisição cultural, que constitui o que Bloch chamava de 'teoria an tropológica da cognição', costuma ser tomada como algo evidente nas 'teorias antropológi cas"'.104 Entretanto, completa o autor, "pode ocorrer que certos aspectos importantes das representações culturais não sejam adquiridos estritamente por meio da socialização".lOS Se a cultura pode vir a "enriquecer" predisposi ções inatas, se a experiência pode intervir a títuio de "detonador" (trigger) de um sistema de representações inato, elas não estão funda mentalmente na origem das formas de pensa mento. Mais do que isso, a "causalidade é in vertida", pois é a "estrutura do espírito" que impõe suas restrições àquilo que, no mundo social, tem uma chance ou não de ser transmi tido e interiorizado. 106 As diferenças culturais não são, em nenhuma hipótese, uma prova da natureza cultural do pensamento, "pois as es truturas que variam na superfície normalmen te são construídas sobre o mesmo tipo de fun d<lção".107 O desafio que consiste em revelar a natu reza social dos "domínios" evocados é particu larmente importante para a sociologia (e para as ciências sociais em geral), para que não se torne uma espécie de anexo de uma ciência cognitiva inatista que não pára de avançar, in clusive nos domínios cultural, simbólico, edu cativo, etc., que pareciam inicialmente fora da sua intelecção. Esses domínios são delimitados por palavras específicas que os designam, por espaços e tempos mais ou menos específicos e às vezes até mesmo por instituições com seus arquivos (seus saberes acumulados disponíveis) e as regras do jogu específicas que oscircuns crevem. Eles têm (como o jogo de xadrez cita do) uma história natural (e geralmente um começo e um fim mais ou menos localizáveis) e supõem uma prática regular, e às vezes in tensa, para ser dominados. O fato de que to dos esses aspectos sejam considerados por al guns como superficiais, e que por isso não afe tariam fundamentalmente as "estruturas pro fundas universais do espírito humano", é ape nas o indicador de seu desinteresse por esse tipo de "estruturas" e de "profundidades". I Em sociedades diferenciadas, o mais co mum é que os mesmos indivíduos freqüen tem sucessiva ou alternativamente vários des ses tipos particulares de domínios socialmen te constituídos. O espaço de pesquisa que se abre aqui para a sociologia é o que se refere àquilo que constitui uma das especificidades de nossos universos com forte diferenciação autonomização dos domínios ou das esferas de atividades, a saber, indivíduos que atraves sam contextos (micro ou macro) ou campos de forças diferentes: uma sociologia em escala individual que a:Ialise a realidade social le vando em conta sua forma individualizada, incorporada, interiorizada; uma sociologia que se pergunte como a diversidade exterior ganhou corpo, como experiências socializa doras diferentes, e às vezes contraditórias, podem (co)habitar no mesmo corpo, como essas experiências in!:talam-se de maneira mais ou menos duradoura em cada corpo e como elas intervêm nos diferentes momentos da vida social ou da biografia de um indiví duo. Eis uma série de perguntas, entre muitas outras, que não podem ser deixadas de lado por uma sociologia que procura não despre zar as bases individuais do mundo social, ao mesmo tempo resistindo a todas as formas de naturalismo. Formulando tais perguntas, dotando-se de meios metodológicos de responder a elas, o sociólogo retoma perguntas clássicas da filo sofia (de Aristóteles a Montaigne) 108 que eram expressadas por meio de um vocabulário fami liar hoje: hábito ou disposição adquirida e es tável (em latim habitus, em grego hexis), se gunda natureza, costumes e familiaridade, exercício e exercitação, ser habitado pOI; encar nar ou incorporar. Já há alguns anos, M. Gribaudi e A. Blum assinalavam, a propósito da história, a "inade quação crescente entre as perguntas que a dis ciplina colocava aos seus objetos e os instru mentos de que ela dispunha para resolvê-las. Pois, embora tenhamos conceituado o sistema social como o produto de interdependências que respondem a várias lógicas diferentes, par ciais e contextuais, muitas vezes tentamos abordá-lo com uma sintaxe estatístiça que pos sibilita unicamente formular um discurso macrossocial".109 Para o sociólogo, trata-se igualmente de ajustar ou de adaptar seus tra tamentos dos dados aos problemas sociológi cos que pretende resolver, e não o inverso, como observava maliciosamente Elias lembran do que, às vezes, em matéria de tratamento de dados, the mil wags the dog ("o rabo chacoalha o cachorro ft ). NOTAS 1. A primeira parte deste post-scriptum foi publicada inicialmente com o título "Les variations pertinen tes en sociologie", in J. LAlITREY, B. MAZOYER e P. VAN GEERT (sob a dir.),Invariants et variabilitédans les sciences cognitiv~, Éditions de la MSH, Paris, 2002, p. 243-255. Outras panes foram publicadas sob a forma de um artigo, "Catégorisations et logiques individuelles: les obstacles à une sociologie des variations intra-individuelles", Cahiers internado naux lk sociologie, volume ex, 2001, p. 59-81. O conjunto foi complementado, reescrito e reorgani zado profundamente. . 2. M. /-W1lWACHS, "Conscience individuelle et espirit coIlectif", American Journal of Sociology, 44, 1939, p.812-822. 3. É. DURKHEIM, Les Formes élémentaires de la vie reIigieuse (1912), op. ci1. 4. É. DURKHEIM, Éducation etsociologie, PUF, Quadrige, Paris, 1989, p. 74. 5. É. DURKHEIM, CÉvolution pédagogique en France, PUF, Quadrige, Paris, 1990. 6. Cf. particularmente N. ELIAS, La Dynamique de l'Ocridmr, Calmann-Lévy, Paris, 1975, e La Civili sation rhs moeurs, Calmann-Lévy, Paris, 1973. For mulando uma objeção compartilhada por unIa gran de parte dos sociólogos a propósito das "grandes SÚlteses históricas", Pierre Bourdieu escrevia o se guinte em 1987: "No estágio atual da ciência social, vejo que a história de longa duração é um dos luga res privilegiados da filosofia social. En~ os soció logos, isso dá lugar com muita freqüência a consi derações gerais sobre a burocratização, sobre os processos de racionalização, a modernização, etc., que ttazem muito de proveito social aos seus auto res e pouco proveito científico." (Choses dites, op. clt., p. 56.) 7. É. DURKHElM, Le Suicide (1897), PUF, Quadrige, Paris, 1983, p. 227. Sublinhado por mim. 8. P. FAUCONNET e M. MAUSS, "Sociologie", in M. MAlJSS, La Grande Encydopidie (1901), OEuvres, 1. 3, Minuit. Paris, 1969, p. 139-177. 621 9. Ainda que não se apóie em um trabalho de nature za estatística, a obra do sociólogo alemão Max Weber sobre A ética protestante e o espúito do capitalismo começa com a constatação da existência de uma correlação estatística entre grupos socioprofission:tis e vínculos confessionais. O autor desenvolve nessa obra a tese célebre segundo a qual a ética protes tante (o ethos protestante) teria panicipado ampla mente do desenvolvimento de comportamentos eco nômicos de tipo capitalista. Partindo do fato de que, "se consultamos as estatísticas profissionais de um país onde coexistem várias confISsões religiosas, constatamos com uma freqüência bastante signifi cativa um íato que provocou várias vezes discussões acaloradas na imprensa, na literatura e nos congres sos católicos na Alemanha: que os diretores de em presa e os detentores dos capitais, assim como re presentantes das camadas superiores qualificadas da mão-de-obra e, mais ainda, os quadros técnicos e comerciais altamente educados das empresas mo dernas são, na sua grande maioria, protestantes" (M. WEBER, CÉthique protestante et /'esprit du capitalis me, Plon, Paris, 1964, p. 31), Max Weber tenta re construir as diferentes características da religião pro testante que poderiam explicar uma tal situação. 10. A. DESROSIERES, A. GQYe L. TIlEVENOT, "!:iden tité sodale dans le travail statistique. La nouvelle nomenclature des professions et catégories sociopro fessionnelles", Économieet statistique, INSEE, n'152, fevereiro de 1983, p. 55-81. 11. R. CHARTIER, "Le monde cornrne représentation", Annales ESC, n' 6, 44' Ano, novembro-dezembro 1989, p. 1511. 12. O. SCHWARTZ, Le Monde privé des ouvriers. Hommes et femmes du Nord, PUF, Paris, 1990. 13. B. WiIRE, Tableaux defamilles, op. ci1. 14. É. DURKHEIM, Les Regles de la méthode scx:iologique, op. ci1., p. 5. 15. Ibid., p. XVI. 16. É. DURKHEIM, Textes 1. Élements d'une théorie sociale, Minuit, Paris, 1975, p. 209. 17. B. LAHIRE, ''Avant-propos'', L'Invention de I~ille trisme", op. ci1., p. 5·8. 18. É. DURKHEIM, Les Regles de la méthode sociologique, op. cit., p. XXII. Sublinhado por mim. 19. Ibid., p. 4. Sublinhado por mim. 20. Ibid., p. 11. Sublinhado por mim. 21. Ibid., p. 14. Sublinhado por mim. 22. "O tipo médio estatístico e sua regularidade tempo ral são utilizados amplamente por Durkheim para escorar a existência de um tipo coletivo exterior aos indivíduos, pelo menos nos seus dois primeiros li vros: A divisão do trabalho social (1893) e As regras do método sociológico (1894Y, A. DESROSIERES, La fblitique rhs granrhs nombres. lflStDin de la raison statistique, La Découverte, Paris, 1993, p. 122. 622 _BERNARD LAHIRE 23. É. DURKHEIM, Les Regles de la méthode sociologiq1lf, op. cit., p. 45. 24. Ibid., p. 103. Sublinhado por mim. 25. É. DURKHEIM, Le Suicide (1897), op. cit., p. 350. Sublinhado por mim. 26. É. DURKHEIM, Textes 1, op. cit., p. 24. Sublinhado por mim. 27. Ibid., p. 365. Sublinhado por mim. 28. É. DURKHEIM, Les Regles de la méthode sociologique, op. cit., p. 102·103. Sublinhado por mim. 29. Norbert Elias escreve com uma inspiração muito durkheimiana: "Pois é verdade que não compreen· demos a estrutura de uma casa se consideramos cada uma das pedras que serviram para construí·la isola· damente e por si; não a compreendemos tampouco se a considerarmos pelo pensamento como uma uni· dade cumulativa, como se fosse um monte de pe· dras; talvez não seja totalmente inútil para a com· preensão do conjunto proceder a um levantamento estatístico de todas as particularidades das pedras para depois estabelecer a média, mas isto também não leva muito longe". (N. EUAS, La Societé des individus, op. cit., p. 41.) Mas Elias tem em mente essencialmente fenômenos de estruturações das re· lações sociais ou de configurações de relações de interdependência e se revela mais crítico que Durkheim quanto à possibilidade estatística de evi· denciar esse tipo de realidade de interdependência. Tais realidades sociais não podem ser apreendidas como se apreendem os determinantes sociais do sui· cídio ou da criminalidade a partir da variação das taxas de suicídio ou de criminalidade segundo algu· mas variáveis. Não é fácil "computá.las". 30. É. DURKHEIM, Textes 1, op. cit., p. 272. P. Valéry escrevia a propósito da noção de "nação": "NAÇÕES. São personalizações, o que leva ao absurdo", in Les Príncipes d'anarchie pure et appliquée, op. cit., p. 97. 31. É. DURKHEIM, Les Formes élémentaires de la vie religieuse (1912), op. cit., p. 603. 32. Como poderiam levar a pensar certas fórmulas durkheimianas: "Não existe uniformidade social que não permita toda uma escala de gradações indivi. duais, não existe de fato um coletivo que se impo· nha de maneira uniforme a todos os individuos", É. DURKHEIM, Textes 1, op. cit., p. 29. 33. "O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade for ma um sistema determinado que tem vida própria; podemos chamá·lo· de consciência coletiva ou co mum." (É. DURKHEIM, De la divUion du travail so cial, op. cit., p. 46.) \émos claramente como o racio cínio sociológico de Durkheim apóia·se em formas estatísticas não questionadas enquanto tais: a categorização e o cálculo de média por categoria criam estatisticamente realidades macroestruturais (classes, grupos, estruturas não-igualitárias, movi mentos, tendências, correntes, etc.). A CULTURA DOS INDiVíDUOS 34. P. FAUCONNET e M. MAUSS, "Sociologie", in M. MAUSS, La Grande Encyclopédie, op. cit. 35. É. DURKHEIM,Les Regles de la méthode sociologique, op. cit., p. 103. 36. E, mais uma vez, Paul Fauconnet e Mareei Mauss seguem seus passos ao escrever: "Entretanto, a ques tão é saber se, entre os fatos que ocorrem dentro desses grupos, há os que manifestem a natureza do grupo enquanto grupo, e não apenas a natureza dos indivíduos qut! os compõem, os atributos gerais da humanidadt. Nessa condição, e apenas nessa condi ção, haverá uma sociologia propriamente dita; pois haverá então uma vida da sociedade, distinta da que levam os indMduos ou, mais do que isso, distinta da que levariam se vivessem isolados". P. FAUCONNET e M. MAUSS, "Sociologie", in M. MAUSS, La Grande Encyclopédie, op. cit. Sublinhado por mim. 37. Nota-se de passagem que - ao pretender defender a todo custo o ponto de vista de Durkheim, como se essa personificação de coletivos não fosse, em última análise, nada mais que uma metáfora por trás da qual se deveria ';procurar compreender o que ele realmente queria dizer com isso" - a antropólo ga Mary DougIas (Comment pensent le.; institutions, op. cit.) tende a minimizar o erro de raciocínio e a ignorar o obstáculo que ele constitui para a com preensão sociológica dos indivíduos enquanto se res sociais relativamente singulares. 38. É. DURKHEIM, Le.; Rêgles de la mérhode sociologique, op. cit., p. 105. 39. Ibid., p. 107. 40. Ibid., p. 9-10. 41. M. MAUSS, "Rapports réels et pratiques de la psycho logie et de la sociologie", Sociologie et anthropologie, op. cit., p. 301-302. Sublinhado por mim. 42. É. DURKHEIM, Le Suicide, op. cit., p. 353. 43. É. DURKHEIM.Éducation et sociologie, op. cit., p. 51. 44. É. DURKHEIM, La Science sociale et l'action, PUF, Paris, 1987, p. 330. 45. Norbert Elias falava de habitus nacional. 46. Se falo de "erro" aqui, mesmo reconhecendo tudo o que a ciênàa sociológica racional ainda deve a esse autor que continua atual sob muitos aspectos e mesmo sabendo que Durkheim não pode ter em mente certas coisas tendo em vista o estágio em que se enCOnlTolIll os trabalhos sociológicos na sua época, é porque me parece que na ciência o pre· sente pode ser juiz do passado e que não é razoá vel pensar que o que era pertinente em um perío do anterior tomou·se obsoleto pela simples mu dança de estágio dos interesses científicos. Pois nada impediria então de aplicar no presente em diferentes trabalhos sociológicos concorrentes o mesmo raciocínio, e nesse caso já não se poderia ver muito bem o que pode ser um "erro" de racio cinio ou mesmo uma "verdade científica" (ainda que temporária). 47. É. DURKHElM, "Représentations individuelIes et reprêsentations colIectives", Revue de métaphysique et de morale, tomo VI, maio de 1898. 48. M. HALBWACHS, "La psychologie coIlective du raisonnement", Zeitschrift ftir Sozialforschung, op. cit., p. 357. Encontra-se na concepção polifônica ou plurivocal de Mikhail Bakhtin a mesma teoria im plícita do indivíduo. Cf. particularmente M. BAKHTIN, La Poétique de Dostoiévski, Seuil, Paris, 1970. 49. L. PlRANDELLO, Un' personne et cent mille, op. cit., p.18-19. 50. "Esses sentimentos resulram da organização coleti va, longe de ser sua base", É. DURKHEIM, Les Rêgles de la r;;éthode sociologique, 011. cit., p. 106. 51. "Portanto, se excluimos a intervenção de seres so brenaturais, só encontraríamos, fora e acima do in· divíduo, uma única fonte de obri!(ação, que é a so ciedade ou, mais do que isso, o conjunto de socieda des de que ele é membro". P. FAUCONNET e M. MAUSS, "Sociologie", in M. MAUSS, La Grande Encyclopédie, op. cit. Sublinhado por mim. 52. É. DURKHEIM, Textes 1, op. cit., nota 5, p. 35. 53. lbid., p. 61. 54. Ibid., p. 185. 55. É. DURKHElM, De la division du travail social, op. cit., p. 342. 56. É. DURKHElM, Te.xtes 1, op_ cit., p. 352. Sublinha'do por mim. 57. É. DURKHEIM, Les Rêgles de la méthode sociologique, op. cit., p. XVII. 58. A. DESROsiEREs, La Politique des grands nombres, op. dt., p. 301. 59. É. DURKHEIM, Les Regles de la méthode sociologique, op. cit., p. 8. 60. "Há nos economistas, escreve Pierre-André Chiappo· ri, uma preocupação minimalista (ou reducionista) que os leva a transpor as situações concretas a esque mas elementares, ou mesmo simplistas; exatamente onde o historiador; ao colllr.Írio, se preocupará em dar conta da riqueza do rear. "La notion d'individu en rnicroéconomie et en micro-histoire", in J.·Y. GRENIER, C. GRlGNON e P.-M. MENGER (sob adir.), Le Modêle ee le Ricit, MSH. Paris, 2001, p. 293. 61. Jon Elster fala ainda hoje dos "obscurantismos holistas", J. EI.STER, Psychologie politique, Minuit, Paris, 1990, p. 13. 62. "O discurso objetivista, escreve Pierre Bourdieu, ten de a constituir o modelo coostruído para explicar práticas realmente capazes de determiná-los: reificando abstrações (em frases como 'a cultura determina a idade do desmame'), ele trata suas cons· truções, 'cultura', 'estruturas', 'classes sociais' ou 'modos de produção' como realidades dotadas de uma eficácia social, capaz de interferir direramente nas práticaS; ou então, alribuindo aos conceitos o poder de agir na história QJIIIO agem nas frases do 623 discurso histórico as palavras que os designam, ele personifica os coletivos e os transforma em sujeitos responsáveis por ações históricas (com frases como 'a burguesia quer que..: ou 'a classe operária não aceitará que...'). (Nota de rodapé: j\o postular a existência de uma 'consciência coletiva' de grupo ou de classe e atribuindo aos grupos disposições que só podem se constituir nas consciências indivi· duais, ainda que elas sejam produto de condições coletivas, como a tomada de consciência dos interes ses de classe, a personificação dos coletivos dispen sa a análise dessas condições e, em particular, aque las que determinam o grau de homogeneidade ob· jetiva e subjetiva do grupo considerado e o grau de consciência de seus membros')" (Le Sens pratique, Minuit, Paris, 1980, p. 64). 63. G. BACHELARD, La Formation de l'esprít scientifique. Contribuition à une psychanalyse de la connaissance, Vrin, Paris, 1999, p. 14. 64. Maurizio Gnbaudi e Alain Blum fizeram a mesma constatação de um uso não·reflexivo do quadro cru· zado na história em "Des catégories aux liens individueIs: I'analyse statistique de I'espace social", Annales ESC, op. cit., p. 1366. 65. Constata·se isso claramente em matéria de refle xão sobre as operações estatísticas: "Portanto, se é verdáde que 'classificações diferentes levam a con clusões diferentes', é igualmente verdade que clas sificações diferentes levam às mesmas operações ló gicas e produzem... os mesmos modelos conceituais e as mesmas cadeias causais" M. GRlBAUDI e A. BLUM, "Les dédarations professionnelIes. Pratiques, inscriptions, sources", Annales ESC, julho-agosto 1993, n' 4, p. 991. 66. E constata-se, portanto, que as determinações so ciais das maneiras sociológicas de pensar o mundo social não se limitam às associações muito freqüen tes do tipo: holismo/socialismo, individualismo/li beralismo, etc. 67. Encontramos elementos de reflexão sobre a plura lidade de propriedades disposicionais no romance de Musil, O homem sem qualidades: "Musil explica, no capítulo inicial de O homem sem qualidades, o qual fala da Cacânia, que o habitante de um país tem sempre pelo menos nove características: uma característica profissional, uma característica de classe, uma característica sexual, uma caracteristi ca nacional, uma característica política, uma carac terística geogr.ífica, uma característica consciente, uma ínconsciente e talvez ainda uma característica privada" J. BOlNERESSE, rltomme probable. Robert Musil, le hasard, la moyenne et l'escargot de !'histoire, Éditions de 1'Éclat, Combas, 1993, p. 90. 68. P. BOURDlEU,l1aísons pratiques, op. cit., p. 23. 69. B. LAH1RE, "La variation des contextes en sciences sociales. Remarqes épistémologiques", Annales. Hisloire, scimas sociaks, op. cito 624 A CULTUAA DOS INDiVíDUOS BEANAAD LAHIAE 70. L. BOLTANSKl, "La constitution du champ de la bande dessinée", Acres de la recherche en sciences sociales, op. cit., p. 49. 71. J.-M. GUY (sob adir.), Les Jeunes et les sorries cultureUes, op. cit., p. 83. 72. Quando o "caso individual" serve para exemplifiéar o conjunto de um grupo ou de uma categoria, nota· se que é "o sistema que, em última análise, orienta e define o conteúdo do objeto empírico (M. GRIBAUDI, ·"Échelle, pertinence, configuration", in J. REVEL [sob a dir.] , Jeuxd'échelles. La micro-analyse à l'expérience, Gallimard/Seuil, Hautes Études, Pa ris, 1996, p. 119). 73. Constata-se, aliás, que a maneira como Durkheim fala do "tipo médio" é bem parecida às vezes com o caso ilustrativo, que fala pelo conjunto do grupo, da classe ou da época: "Se convencionamos cha· mar de tipo médio o ser esquemático que se consti tuiria reunindo em um mesmo todo, em uma espé cie de individualidade abstrata, as características mais freqüentes na espécie com as formas mais fre· qüentes [...]", É. DURKHEIM, Les Regles de la méthode sociologique, op. cit., p. 56. 74. B. LAHlRE, "Risquerl'interprétation...", Enquête,An thropologie, Histoire, Sociologie, op. cit., p. 61-87. 75. M. MENARD, "Honoré de Balzac", Encyclopaedia Universalis, op. cit. 76. Citarei neste parágrafo vários textos de comunica ções a um colóquio que deu lugar a um balanço das pesquisas em sociologia da cultura e ao anúncio de perspectivas de pesquisas para o futuro, levando em conta a evolução do mundo social e da discipli na. Trata·se do colóquio "O(s) público(s). Políticas públicas e equipamentos culturais", Auditório do Louvre, 28-29-30 de novembro de 2002, organiza. do conjuntamente pelo DEP do Ministério da Cul· tura e pela OFCE em parceria com o museu do Louvre. Os textos ou resúmos de comunicações são os seguintes: H. MENDRAS, "La culture dans la France que je vois", O. GALLAND, "Individualisation des moeurs et choix culturels: le rappon des jeune< générations aux valeurs et à la culture"; A. HENNION, "Ce que ne disent pas les chiffres... Vers une pragmatique du gout". 77. Teríamos "entrado nos anos da liberdade e da obri· gação de ser livre que acompanha o declínio do pro grama institucional", F. DUBET, Le Déclin de l'insriturion, Seuil, Paris, 2002, p. 15. 78. Como destacam Marlis Buchmann e Manuel Eisner, a imagem de um indivíduo autônomo~ reflexivo, autêntico, original, expressivo ou criativo tem'como modelo último o discurso da psicoterapia e não pode ser desconectada da ascensão histórica, ao longo de todo século XX, dos principais especialistas do "si", q\le são os psicólogos, psicanalistas, psicoterapeutas e psiquiatras. Cf. M. BUCHMANN e M. EISNER, 'The 79. 80. ft 81. 82. 83. 84. 85. 86. 87. 88. 89. 90. 91. 92. 93. transition from the utilitarian to the expre:&Íve self: 1900-1992", 1betics, 25, 1997, p. 157-175. J. LE GOFF, Saint Louis, op. dt., p. 499-500. G. UPOVEfSKl, ITre du vide. Essais sur l'individua lisme contemporain, Paris, Gallimard, Folio, 1993. Teses similares foram desenvolvidas nos Estados Unidos. Cf. particularmente D. HARVEY, The Condi rion ofPostmodemity, Basil BlackweJI, Oxford, 1989, M. FEIilllERSTONE, Undoing Culture, Globalization, Postmodemism and ldentity, Sage Publications, Lon dres, 1995, e o capítulo 9 ("Popular television and postmodernism") da obra de D. STRINATI, An lntroduction to Studying fupular Culture, Routledge, Londres e New York, 2000, p. 229-250. P. YONNET, Jeux, modes et masses. 1945-1985, Gallimard, Paris, 1985, p. 8. E. GOFFMAN, Les Cadres de l'expérienct, Minuit, Pa ris, 1991, p. 22. Em uma obra precedente, consagrei o item intitulado "Código switching e código mixing dentro de um mes mo contexto" à demonstração da importância de uma parte da sociolingüísti~ para uma sociologia em escala individual (B. LAHIRE, EHomme pluriel, op. cit., p. 74-76). P. ENCREVÉ, "Labov, linguistique, sociolinguistique", in W LABOV, Sociolinguistique, op. cit., p. 29. Subli nhado por mim. Ibid., p. 17. W LABOV, Sociolinguistique, op. cit., p. 288. P. ENCREVÉ, "Labov,linguistique, sociolinguistique", op. cit., p. 31. Sublinhado por mim. N. COUPLAND, "Style·shifting in a Cardiff work setting", Language in Society, 9, 1980, p. 1-12. Agra deço a Jean-Pierre Chevrot por ter me apresentado esse estudo, como também por seus comentários sensatos sobre ele. W LABOV, Le Parler ordinaire, op. cito U. WEINREICH, W LABOV e M. HERZOG, "Empirical Foundations for a Theory ofLanguage Change", in W P. LEHMANN e Y. MALKlEL (ed.), Direetions for Historical ünguistics, University ofTexas Press, Austin, 1968, p. 101. W LABOV, Sociolinguistique, op. cit., p. 283. P. DlMAGGIO, "Classification in an", American Sociological Review, op. cit., p. 445. Traduzido por mim. Avariação intra-individual de comportamen tos é levada em conta também em um artigo de dois criminalistas e de um sociólogo nane·ameri canos acerca dos componamentos criminosos: J. HORNEY, D. W OSGOOD e I. H. MARSHALL, "Cri minal Careers in the Shon·Term: Intra-Individual Variability and Its Relation to Local üfe Circums tances". American Sociological Review, vol. 60, 5, 1995, p. 655-673. J. J. GmSON, The Erological Approach to Visual Per ception, Houghton MiffIin, Boston, 1979. 94. Por exemplo, citei Geoffrey E. R. Uoyd em O homem pluml por sua critica pertinente da noção de "menta· lidade" que visa as concepções excessivamente uni tárias e homogeneizadoras de uma mentalidade onipresente ou transferível qualquer que seja o con texto (G. E. R. LLOYD, fuur emfiniravec lesmentalités, La Découverte, Paris, 1993). Mas, a meu VeJ; Uoyd tipicamente cai na armadilha inversa ao recusar qual quer outra realidade que não seja a dos "contextos dos discursos", das "circunstâncias de sua fonnula ção", dos "tipos de interação social" ou dos "regis tros de experiências", desprezando assim o estudo do social incorporado que explica o fato de que dois inàivíduos com disposições diferentes não :;e com portem da mesma maneira no mesmo contexto. 95. Que são o fruto de desenvolvimentos científicos pa· ralelos e que, até o presente, não se comunicavam. 96. Cf. J. LAUTREY, "Introduction", in J. LAUTREY (sob adir.), Universel et différentiel en psychologie, PUF, Paris, 1995, p. 1-14, e M. RICHEu.E, "Éloge des variations", in J. LAUTREY (sob adir.), Universel et d~'Jérentiel en psychologie, op. cit., p. 35-50. 97. 1. LAUTREY, "Introduction", op. cit., p. 9-10. Vertam bém na mesma obra a contribuição de C. PACTEAU, "Catégorisation: des processus holistiques et analy tiques" (p. 131-157). 98. L. A HIRSCHFELD e S. A. GELMAN, "Toward a topography of mind: an introduction to domain specificity", in L. A. HIRSCHFELD e S. A GELMAN (ed.), Mapping the Mind: Domain Specificity in Cognition and Cu/ture, Cambridge University Press, New York. 1994, p. 3. Traduzido por mim. 99. Ibid., p. 5. Traduzido por mim. 100. N. CHOMSKY, Language and problems ofknowledge, MIT Press. Cambridge, MA, 1988. 625 101. J. FODOR, Modularity of mind, MIT Press, Cam· bridge, MA, 1983. 102. N. CHOMSKY, Language and problems of know/edge, op. cit., p. 161. 103. S. CAREY e E. SPELKE, "Domain-specific knowledge and conceptual change", in L. A HIRSCHFELD e S. A. GELMA.N (ed.), Mapping the Mind: Domain Specificity in Cognition and Culture, op. cit., p. 169. 104. P. BOYER, "Cognitive constraints on cultural repre sentations: natural ontologies and regious ideas", in L. A. HIRSCHFELD e S. A GELMAN (ed.), Ma pping the Mind: Domain Specificity in Cognition and Culture, op. cit., p. 396. Traduzido por mim. 105. Ibid., p. 391. Traduzido por mim. 106. L. COSMIDES e J. TOOBY, "Origins of domain spe· cificity: The evolution of functional organization", in L. A. HIRSCHFELD e S. A GELMAN (ed.), Mapping the Mind: Domain Specificity in Cognition and Culture, op. cit., p. 85-116, e P. BOYER, "Cognitive constraints on cultural representations: natural ontologies and regious ideas", op. cit., p. 391-411. 107. R. GELMAN e K. BRENNEMAN, "First principies can support both universal and culture-specific learning about number and music", in L. A. HIRSCHFELD e S. A. GELMAN (ed.), Mapping the Mind: Domain Specificity in Cognition and Culture, op. cit., p. 386. 108. Para tomar dois autores que Francis GCjet relê (e . reúne) em um texto não publicado, "La notion éthique d'habitude dans les Essais: articuler l'art et la nature", Université Stendhal-Grenoble m, 2003. Cf. também P. HADOT, Exercices spirituels et phi losophie antique, Albin Michel, Paris, 1993. 109. M. GRIBAUDI e A. BLUM, "Des catégories aux liens individueis: l'analyse statistique de l'espace social", Annales ESC, op. cit., p. 1366-67.