ROGÉRIO DUARTE FERNANDES DOS PASSOS * Sumário. 1. O Caso da Escola Base. 2. A liberdade de imprensa. 3. Conclusão. 4. Referências. Resumo. O presente artigo objetiva revisitar o “Caso Escola Base” e pugnar perspectivas de sua observação sob os ângulos de leviandade, ética e liberdade de imprensa. Palavras-chave. Caso Escola Base. Direito à informação. Liberdade de imprensa. Abstract. This article aims to revisit the “School Base Case” and push their prospects for observation under the angles of levity, ethics and freedom of the press. Keuwords. School Base Case. Right to information. Free press. A maldição do fatalismo reside no fato de que basta acreditar nele para que ele se torne real. Roger Garaudy. 1. O Caso da Escola Base78. No mês de março de 1994, surgiu na imprensa uma notícia que chocou o país: a Escola de Educação Infantil Base, a Escola Base, localizada no bairro da de obter um instantâneo feed-back acerca do escrito e do tema. Ei-las. Opinião de Otávio Augusto Rossi Vieira, postada em 15-02-2006, às 17:55 h: Aprendi mais um pouco sobre o papel da imprensa no país. Advirta-se, pois, [fazendo referência à emissora de televisão], e outras por aí, a pararem de veicular diálogos gravados através de interceptação de dados (com autorização judicial ou não, expondo ao mundo, os acusados de hipótese criminosa. Não se pode usar a imprensa como órgão julgador (trial by midia). Não é bom para ninguém a exposição de denúncias criminosas, verdadeiras ou falsas. Contamina-se o mundo com a descarga energética negativa que isso produz na alma humana. Deixem aos tribunais de justiça e aos profissionais do direito (que estudam de 5 a 10 anos para graduação e especialização) a responsabilidade do julgamento e a oitiva (inteira) das gravações interceptadas. Opinião de leitor que se autodenominou “Olho Vivo”, postada em 15-02-2006, às 16:40 h: Excelente o artigo. Porém existiram diversos casos depois desse, menos visíveis, e a imprensa ainda não aprendeu a questionar o que lhe passam os investigadores, delegados e procuradores. É mais cômodo seguir com a manada e publicar, mesmo que haja incongruência na versão oficial ou não-oficial. É a briga pelo furo, sem qualquer responsabilidade pela sorte alheia. Opinião de Fábio Soibelman, postada em 16-02-2006, às 10:53 h: Tudo o que eu queria saber é se as indenizações chegaram, num cálculo muito otimista para o lesado pela imprensa, a cinco por cento do que o jornal faturou através do escândalo. Cf. as opiniões no sítio jurídico Consultor Jurídico, passível de acesso no endereço eletrônico <http://conjur.estadao.com.br/static/text/41958,1>. Acesso em 16-02-2006. 78 Excepcional trabalho de reconstrução dos fatos a partir da cobertura da imprensa no Caso Escola Base pode ser encontrada em RIBEIRO, Alex. Os Abusos da Imprensa: Caso Escola Base. Pref. de Carlos Brickman. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2ª reimp., 2001, 167 p. 77 Aclimação, em São Paulo, seria responsável por abusos sexuais em alunos de idade tenra. No total, seis pessoas foram acusadas dos crimes, dentre elas proprietários, transportadores das crianças e colaboradores da escola. A denúncia partiu de duas mães de alunos. Tornou-se manchete vulgar de jornais impressos e telejornais. O clamor público culminou com a invasão do prédio da escola – que era alugado – e a sua total destruição. Sobreveio o massacre público e jornalístico79 dos acusados e a destruição completa de suas vidas pessoais e profissionais. Instaurado o inquérito policial, identificou-se uma suposta mansão onde os ditos abusos aconteciam. Seu proprietário, um estrangeiro, teve a vida devassada e desmoralizada publicamente. A polícia “confirmou” à imprensa a existência dos crimes. Por fim, o laudo das supostas lesões do Instituto Médico Legal, primeiramente dúbio, e em seguida reticente80, acabou por não concluir acerca da existência da violência, não derrubando hipóteses outras como as advindas de meras possíveis assaduras apresentadas por uma das crianças, num dos verões mais quentes da história da cidade de São Paulo. O inquérito policial, vazio, foi arquivado, nada concluindo contra os acusados81. 79 A propósito, temos uma recordação emblemática do caso. Em entrevista concedida a telejornal – então à época no ar – de insuspeita emissora de televisão de São Paulo, e em pleno horário do almoço, os acusados foram massacrados pelas palavras do jornalista, que fazia as vezes de âncora, apresentador e inquisidor. O advogado dos que na verdade seriam ouvidos ou entrevistados mal pôde falar, e quase foi colocado como co-autor do crime que se lhes imputava. 80 Ribeiro (2001:88-89) descreve parte do conteúdo dos laudos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo: “Descrição: Lesões corporais: equimose [mancha escura, resultante de hemorragia, sob a pele e as mucosas, e na superfície de órgãos internos] azulada em região anal de 1 x 1. Colocado em posição genupeitoral observamos: ânus apresentando múltiplas rágadas [ulceração estreita e alongada] de mínimas dimensões e eritema [rubor congestivo da pele, por via de regra temporário, que desaparece momentaneamente à pressão do dedo] descamativo em toda a borda anal”. Descritas as lesões, o laudo passava para a conclusão: “Conclusão: Do observado e exposto, concluímos que o examinado apresenta vestígios de lesões compatíveis com a prática de atos libidinosos. Tem lesão corporal de natureza leve, a qual não podemos estabelecer nexo causal de certeza com o histórico”. No item “conclusão”, os legistas deveriam, obviamente, concluir, mas isso não foi feito. O laudo afirma que as lesões são compatíveis com prática de atos libidinosos, mas não garante categoricamente se as lesões são ou não decorrentes de ato libidinoso. Os médicos legistas também não se encontraram suficientemente seguros para estabelecer uma relação de causa e efeito entre o histórico narrado e a lesão corporal de natureza leve encontrada no garoto. No tópico seguinte do laudo, os peritos passam a responder uma série de quesitos. É quando estabelecem contradição com o que haviam concluído antes: “1. Houve prática de ato libidinoso? R.: Sim. 2. Em que consistiu? R.: Provável coito anal. 3. Houve violência? R.: Sim. 4. Em que consistiu? R.: Violência presumida pela idade” (grifos nossos). Ressalte-se que a delegacia de polícia responsável pelo caso, antes do laudo, chegou a receber um telex do IML “adiantando” os resultados do exame de corpo de delito: “...informamos que o resultado do exame é positivo para a prática de atos libidinosos...”, cf. Ribeiro (2001:41). As mães das crianças, após o fato, mantiveram tratamento psicológico para as crianças com profissional da área, que acredita que algum abuso tenha acontecido, e que, ao longo do trabalho, seria revelado, mas que por força de ética profissional, jamais viria à tona (2001:166). 81 É interessante observar como nesse tipo de cobertura jornalística a conclusão da opinião pública parece caminhar para um veredicto com características de definitivo. Resgate-se aqui, ainda que de passagem, o caso descrito no filme-documentário “Capturando os Friedmans” (Capturing the Friedmans), de Andrew Jarecki, de 2003, onde pai e filho de uma família judia de classe média dos Estados Unidos da América, ambos professores de informática, são acusados de pedofilia em seus alunos em 1987. A gravidade e o clamor público que envolveu os fatos tiveram agressividade semelhante ao que ocorrera na Escola Base, visto que os fatos ocorreram justamente num ambiente escolar, onde os alunos se encontram em posição de grande fragilidade e submissão hierárquica. No documentário, ao mesmo tempo em que há a cobertura 78 Evidentemente que os prejudicados foram à justiça em busca de reparação por dano material e moral. Conseguiram indenizações ante aos veículos de imprensa, e ainda, junto à Fazenda do Estado de São Paulo, que inclusive chegou a ser multada por litigância de má-fé no Supremo Tribunal Federal em face da interposição sistemática de recursos. Foi o maior caso de erro, leviandade, falta de ética ou coisa parecida que já aconteceu na imprensa brasileira. 2. A liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa é um dos pressupostos do estado democrático de direito. A imprensa é a atividade livre de difusão de conhecimento, de cultura, de entretenimento, e, sobretudo, de informação. A sua natureza pressupõe uma atividade livre, justamente para a realização de seu ideal maior, que se consubstancia em ser o veículo de (in) formação estrutural de uma sociedade. A imprensa, inclusive, testemunha historicamente o processo político, os fluxos e influxos sociais, e a própria edificação do tecido social. A imprensa, portanto, testemunha, registra, e se torna depositária de todo o arcabouço social. E não é possível pensar em todos esses atributos sem a sua necessária liberdade de atuação. Observe-se, porém, que não é apenas esse o papel que se espera da imprensa. Não se espera, portanto, que ela tenha apenas um caráter contemplativo, de registro, enfim, um papel passivo e imparcial ante aos fatos, como se poderia supor. Os próprios destinatários da informação, não raro, desejam um papel ativo, investigativo, crítico, persuasivo dela, e desejam uma imprensa que lhes dê voz ativa ante ao poder constituído na realização do ideal de estado democrático de direito. E, repita-se, sem liberdade, nenhum desses objetivos pode realizar-se. E essa liberdade deve realizar-se fora do Estado. E seria desejável, dentro do possível e em alguma medida, realizar-se fora do mercado também, o que nem sempre acontece, pois, atividade livre e na maioria das vezes privada que é, dependem de regras, pressupostos e padrões de qualquer atividade econômica organizada82. O desejado papel persuasivo, a independência, a imparcialidade, e o próprio caráter (investig)ativo da imprensa lhe adjetivou o vulgar status de “quarto poder”. É claro que o adjetivo é inadequado – pois pela sua desejável independência e liberdade de opinião/ expressão, jamais poderia ser entendida como tal (como “poder”) da mídia, a própria família realiza imagens de seu cotidiano e de sua versão e análise dos fatos. Um exaluno dos acusados, surpreso, depõe e afirma nunca ter visto nenhum dos atos em que se acusavam os Friedman, de sorte que a aula era simplesmente chata, como qualquer outra. O depoimento de uma das ditas vítimas, porém, deveras contraditório e impreciso com relação aos acontecimentos, revela a cobertura insuficiente da imprensa para uma certeza plena dos fatos (como, aliás, em qualquer cobertura policial), não obstante os inúmeros indícios dos crimes, deixando ao telespectador a prolação de seu veredicto íntimo. O retrato dos momentos vividos pelos Friedman assemelha-se a um reality show, mas, que nesse caso, funciona de forma verossímil. 82 Gomes (1993: 16-17), no mesmo sentido, nos aduz que (...) é natural imaginar que o empresariado do ramo compõe-se de um clube de altruístas dedicados ao bem-estar social. Nada mais falso. Os jornais não são diferentes de qualquer outro estabelecimento comercial, seja uma grande multinacional do ramo automotivo seja o açougue da esquina. Os empresários fazem jornal porque dá lucro – e essa talvez seja a melhor notícia sobre o assunto (...). 79 –, mas, no mundo contemporâneo, especialmente pela atual velocidade de circulação das informações, sua capacidade de formar a materialização/ aceitação dos fatos, bem como a sua penetração e formação de opinião junto à sociedade, lhe outorga características de poder, influência e, não raro, de algum abuso no exercício de suas prerrogativas. No plano constitucional, a liberdade de imprensa vem consubstanciada em alguns dispositivos, especialmente no artigo 220 da Constituição Federal de 05-101988, que dispõe acerca da ausência de restrições quanto à manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, em qualquer forma, processo ou veículo, dentro do que dispõe o seu texto, aduzindo o seu § 1º que nenhuma lei conterá disposição que venha a constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística, com a observância de comandos contidos no art. 5º, incisos IV83, V84, X85, XIII86 e XIV87. Ainda no mesmo artigo, a vedação à censura está expressa no § 2º; no § 3º, a competência de lei federal para regular diversões e espetáculos públicos (inciso I), para a proteção da pessoa e da família em programas de rádio e televisão e sua publicidade (inciso II); e a restrição legal para a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias no § 4º. A vedação na formação – direta ou indireta – de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação social está no § 5º; e por fim, a dispensa de licença de autoridade para publicação de veículo de comunicação impresso no § 6º. Há, portanto, um arcabouço ético-legal insculpido em nossa Lei Maior, dispondo acerca da liberdade de informação, de expressão e de imprensa, enfim, de liberdade de expressão jornalística. Como bem assenta Silva (1998:249), É nesta [liberdade de informação jornalística] que se centra a liberdade de informação, que assume características modernas, superadoras da velha liberdade de imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar e é nela ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade de ser informado. Por isso é que a ordem jurídica lhe confere um regime específico, que lhe garanta a atuação e lhe coíba abusos. Quando se analisa o “Caso Escola Base”, vê-se, na verdade, um profundo desequilíbrio nas determinações contidas no texto constitucional para o exercício de tais liberdades. A garantia do sigilo de fonte88 – fundamental no jornalismo investigativo, e 83 Art. 5º, inciso IV. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; Art. 5º, inciso V. É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; 85 Art. 5º, inciso X. São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 86 Art. 5º, inciso XIII. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; 87 Art. 5º, inciso XIV. É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. 88 O sigilo de fonte é uma garantia para a continuidade do fluxo de informações do jornalista e a garantia de proteção da origem de suas pautas e da paternidade/ exclusividade da notícia. Não neguemos, porém, que, em alguns segmentos – como, por exemplo, no jornalismo esportivo –, informações atribuídas às fontes são no mínimo curiosas, como no caso de falsas contratações de astros do futebol mundial (o argentino Maradona) ou de famosos jogadores em final de carreira para clubes de São Paulo (o brasileiro Zico), que, respectivamente, sabia-se estruturalmente impossíveis naquele momento para o futebol brasileiro, especialmente pela impossibilidade de arcar com os salários, ou por poder bancar atletas que não reuniam mais condições de exercer o futebol profissionalmente em face de precária condição física. 84 80 previsto no artigo 5º, inciso XIV do texto constitucional –, foi utilizada sem a devida verificação de sua fidedignidade ou acerto, pugnando por deflagrar uma denúncia infundada e leviana, que especulou e criou conjeturas desastrosas, que tornaram proporções de uma “bola de neve” que desce um despenhadeiro. O direito de resposta do atingido, já previsto na Lei nº 5250/1967 (Lei de Imprensa) – que teve 20 de seus 77 artigos suspensos por decisão do Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2008 através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 130), e definitivamente declarada incompatível com a atual Constituição em abril de 2009 – e sendo também corroborado no inciso V do artigo 5º do texto da Lei Fundamental, ante ao poder econômico, pôde, ao presente caso, tornar-se uma possível escusa para a divulgação de informação incerta e desastrosa, não levando em consideração que desmentir uma notícia e reconhecer a sua inexistência é notoriamente mais difícil que recompor a verdade e o status quo ante do ofendido. A sede de liberdade de imprensa e justiça social, aguçadas pela restrição sofrida pelos meios de comunicação por um significativo período autoritário (1964-1985)89 fizeram – e supõe-se fazer até hoje – a imprensa cometer assassinatos da honra e da imagem das pessoas, pugnando contra todas as prerrogativas que a própria liberdade de imprensa e informação objetivaram Recorde-se em relação ao jornalismo esportivo, o folclórico o episódio em que o empresário Paulo Machado de Carvalho – 1901-1992, apelidado de o “Marechal da Vitória”, em função de chefiar a delegação brasileira campeã mundial de futebol na Suécia, em 1958 – descontente com o fato que os plantões esportivos de todas as emissoras de rádio de São Paulo ouviam a sua, a Rádio Panamericana (hoje, Jovem Pan) para dar informações aos ouvintes, “usurpando” todo o seu investimento em tecnologia, repórteres e correspondentes, inventou uma excursão – que nunca aconteceu – de seu time de coração, o São Paulo Futebol Clube, à Itália, pelos anos 1950. A transmissão radiofônica da excursão – que era exclusividade da Panamericana – noticiou uma partida contra o time italiano do Milan, onde o São Paulo perdia por 4 x 0, tendo seus jogadores expulsos injustamente de campo, sendo também agredidos e maltratados pelos carabinieri italianos. O fato contagiou a cidade de São Paulo e até mesmo os torcedores adversários, gerando um clima de revolta, comoção e solidariedade ao clube paulistano. Todas as outras emissoras deram o fato, e claro, ouvindo a Panamericana. Só depois que Paulo Machado de Carvalho desmentiu a excursão, denunciando a farsa, de maneira que a ousada estratégia de marketing provou que todas as rádios e jornais ouviam a sua emissora para dar informações – mesmo quando mentirosas –, copiando o seu jornalismo e “surrupiando” o seu investimento, o que todos os outros veículos de informação não puderam contestar. Anote-se, porém, que o direito à informação e, sobretudo, à informação verdadeira, não foram cotejados nessa estratégia – talvez até mesmo em relação aos outros meios-de-comunicação –, de forma que a especulação da informação incerta e duvidosa que no jornalismo esportivo se atribui inclusive à fonte é uma realidade. Por outro lado, também não se negue a proteção ao sigilo da fonte como condição integrante do direito à informação e do direito de ser informado, ao qual pugna o trabalho do jornalista, que, não raro, colide com interesses comerciais e estratégicos dos veículos de comunicação. Caso emblemático nesse sentido foi verificado em 1994 nos Estados Unidos da América, quando um ex-executivo e cientista da indústria de tabaco daquele país concede entrevista a programa televisivo da rede de tevê CBS afirmando que a diretoria de fabricante de cigarros tinha conhecimento da capacidade viciadora da nicotina e da inserção de aditivos químicos para acentuar o vício, bem como sobre os seus efeitos maléficos à saúde. Porém, quando o programa com a entrevista iria ser levado ao ar, a emissora recua na exibição ante as possíveis consequências jurídicas devastadoras. O entrevistado que teria sua identidade “protegida” da exposição pública por motivos óbvios, passou à condição de mera fonte ou denunciante, sofrendo devassa em sua vida privada e ameaças de morte. A questão foi retratada no filme “O Informante” (The Insider), de 1999, dirigido por Michael Mann. 89 São emblemáticos alguns fatos do período, onde, com a presença de censores na redação, os jornais do Grupo Estado, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, respectivamente, publicaram versos de “Os Lusíadas”, de Luiz Vaz de Camões, e receitas de bolo, para indiretamente alertar os leitores da censura que sofriam. 81 proteger em favor do interesse do indivíduo e da sociedade. O abuso do exercício dessa liberdade atenta, em ultima ratio, contra ela mesma90. As regras de mercado aplicáveis às empresas jornalísticas criaram a obsessão nos veículos de comunicação pela venda de jornais e revistas, pela audiência, pela conquista de possíveis anunciantes e negócios. A credibilidade pugnada por eles é institucionalmente avalizada pela quantidade de leitores ou telespectadores, pela audiência e pelo volume de negócios fechados e seus resultados. Um critério qualitativo que pugna, por exemplo, pelo caráter educativo, como inclusive dispõe de forma genérica o artigo 221 da Lei Fundamental91, de há muito ficou em segundo plano (que nos diga a televisão brasileira nas tardes de domingo). Nessa receita de audiência, temos como ingredientes o sexo, o sobrenatural, a violência, o ridículo, o vil, o vazio, o malandro, o desinteligente, e a exposição da pessoa humana em situações de indignidade. São predicados, não raro, enaltecidos em pessoas públicas de caráter duvidoso. E não nos espantemos: a fórmula funciona92. Essa receita foi adicionada na cobertura do Caso Escola Base. Jornais e revistas da cidade de São Paulo estamparam manchetes como “Kombi [que transportava as crianças] era motel na escolinha do sexo”, ou ainda, “escola de horrores”. Repórteres de televisão perguntaram às crianças: “a tia passou a mão em você?”93. Numa época marcada pela impunidade de crimes do colarinho branco, pela violência urbana e pela ineficiência do Poder Judiciário, esse discurso encontra forte eco na sociedade, especialmente nas camadas que têm menos acesso à cultura e informação qualificada. É 90 É claro que essa saudável e positiva “embriaguez” democrática que recuperou a imprensa e a própria sociedade brasileira, provocou reações. Ainda que haja vozes dissonantes deste argumento, iniciativas como os projetos de lei conhecidos como “Lei da Mordaça” (Projeto de Lei nº 65/1999) e o atinente à criação do Conselho Federal de Jornalismo (Projeto de Lei nº 3985/2004), na circunstância e ocasião em que aconteceram – notadamente em momentos de crise política, com intensas denúncias de malversação de recursos públicos e corrupção no governo – foram por muitos tidos como tentativas de amordaçamento e intimidação das vozes investigativas do poder. 91 Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. 92 Gomes (1993:15), em conclusão semelhante, lembra que no exercício desse tipo de cobertura, os jornais resgatam um velho prazer que a maioria tem dificuldade de confessar, mas ao qual se entrega todo dia diante da televisão, nas novelas. As pessoas gostam de acompanhar folhetins. Gostam mais ainda quando esses folhetins tratam de casos reais. Por isso, com o correr dos anos, a ficção em capítulos praticamente desapareceu da imprensa diária, tendo seu espaço gradativamente ocupado pelo noticiário criminal. 93 Ribeiro (2001: 48-49) transcreve uma dessas entrevistas que compuseram a receita da condução do massacre jornalístico aos acusados na televisão, onde se tentava referendar algo praticamente já tido como verdade absoluta. Repórter pergunta à criança, supostamente vítima: Repórter: – Esta mulher, ela deitava em cima de você? Criança: – Deitava. Repórter: – O que ela fazia, o que ela queria? Diante da relutância do garoto, o jornalista sugeriu a resposta: Repórter: – Te beijar a boca? O garoto respondeu com um aceno de cabeça e o repórter voltou à carga: Repórter: Tem fotógrafo? Eles tiraram fotos? 82 quase o retorno ao desejo da justiça primitiva privada e da vingança particular. É de se questionar se tal conduta colima com o interesse público que deve nortear a atividade jornalística, pois é sabido que não há interesse público sem o seu exercício com responsabilidade, especialmente no que tange à divulgação de fatos e dados, sendo certo reconhecer que “interesse público” não é o mesmo que “interesse do público”. E essa fórmula de atender ao “interesse do público” parece funcionar na manutenção da programação de muitos veículos de comunicação, inclusive no rádio. Não raro, o rádio torna público de forma ridícula a situação de pessoas que foram vítimas de crimes94. Não raro, o microfone de rádio faz prefeitos em importantes cidades do interior95. E também, os editores chefe de jornais do interior, muitas vezes bacharéisl em direito fazendo as vezes de jornalistas, utilizando de seu nome, posição e prestígio, circulam pelas varas do fórum da cidade folheando todo o tipo de processos 94 Situação nesse sentido foi verificada de perto pelo autor desse trabalho. Após danos causados em veículo automotor após tentativa de furto, programa policial de rádio, ao ter acesso ao boletim de ocorrência, noticiou-o em tom jocoso. Em seguida, sem ser a vítima ouvida pela emissora de rádio acerca das circunstâncias do crime que sofreu, durante semanas a mesma sofreu a abordagem de conhecidos lhe relembrando o acontecido e lhe questionando o acontecimento de forma desagradável, como que rememorando uma anedota, e nos moldes do que foi descrito no aludido programa. A propósito do discurso radiofônico de cobertura policial, Gomes (1993:11-12) oportunamente lembra que há duas características aparentemente contraditórias, do ponto de vista do interesse do ouvinte. É o mais ágil dos meios de comunicação, capaz de fornecer informações sobre determinado assunto diretamente do local dos fatos em questão de minutos. Exatamente por essa rapidez de informação, é também o meio de comunicação que corre os maiores riscos de fornecer dados errados aos ouvintes, o que é popularmente chamado nas redações de “barriga”. Para ficar num exemplo rotineiro de barriga e explicar como isso influi numa percepção errada sobre o noticiário envolvendo crimes, vamos examinar uma situação bem comum. É normal, nos noticiários matutinos, a apresentação de repórteres que fazem o balanço das ações policiais durante a noite anterior. Como a única fonte disponível para que o jornalista forneça essas informações são os boletins de ocorrência (quando não são os próprios policiais envolvidos nessas ações), é comum a repetição de notícias como a seguinte: “Um grupo de policiais da Rota matou na noite passada três assaltantes que tentaram invadir uma casa no bairro da Aclimação. Os policiais deram voz de prisão aos três homens quando eles tentavam escalar o portão da residência número 115 da Rua Pires da Motta. Foram recebidos à bala, reagiram e acabaram matando os ladrões do tiroteio”. Quem se informa apenas pelo rádio, nesses noticiários do período da manhã, tende a acreditar numa coleção de equívocos (quando não de mentiras, pura e simplesmente). Primeiro, que a polícia sempre surpreende assaltantes em pleno flagrante, o que não é verdade porque a própria experiência do cidadão comum demonstra que o mais rotineiro é a chamada “averiguação” de suspeitos, que costuma ser uma revista geral, sob mira de armas, de qualquer cidadão cuja aparência não coincida com o padrão de classe média bem vestida ou bem comportada. Depois, esses informes levam a acreditar na mais extraordinária pontaria da polícia, contra uma péssima mira dos adversários. Em geral, mesmo atirando à noite, contra alvos em movimento e, às vezes, bem distantes, os policiais matam seus oponentes. Na melhor das hipóteses, o bandido morre ao dar entrada em algum pronto-socorro. Costuma-se dizer que são os vencedores que escrevem a história (...). 95 Trabalhando temas correlatos e fatos históricos nesse sentido, cf. o trabalho de MARINO, Divo. O Populismo Radiofônico em Ribeirão Preto. Ribeirão Preto: Suplemento do jornal “A Palavra de Ribeirão Preto”, jul. 1975, 106 p. A propósito, comenta brevemente o autor (1975:82) sobre a trajetória de um dos prefeitos do município de Ribeirão Preto, Welson Gasparini (mandato de 2005-2008), onde, também no jornalismo, era um pioneiro: – antevia a fase posterior da imprensa ribeirãopretana que, sem a presença do articulista intelectual, assumiu a função de noticiar, de forma mecânica, acontecimentos mundanos e publicitários – traduzindo a tradicional formação dos homens públicos do interior nas funções de advogado, professor e jornalista –, por onde, na carreira política (e ao lado do microfone de rádio), foi eleito vereador no período de 1960-1963, prefeito no período compreendido entre 01-01-1964 a 31-01-1969, deputado estadual em 1970, e novamente ao cargo de prefeito no período de 01-02-1973 a 31-01-1977. 83 judiciais (inclusive os protegidos por segredo de justiça) e verificando as demandas que os cidadãos do município movem ou sofrem96. 3. Conclusão. A liberdade de imprensa, como ensina Barbeiro (2003:2), é perpassada pela própria liberdade de expressão, indo além daquela, até mesmo na qualidade de direito fundamental humano, pois atende ao direito de informar e de ser informado, sem qualquer limitação, devendo ser defendida por jornalistas e por qualquer um que queira manifestar-se, fazer uma reflexão, denunciar ou expor-se como descontente em relação ao governo, de onde vem o seu caráter dinâmico e sua necessidade de ser sempre perseguida, vez que submetida às pressões que a sociedade – mesmo a democrática – exerce sobre ela, havendo a necessidade do estabelecimento de um fluxo sempre contínuo, sob pena de sucumbir à ação da censura ou dos agentes sociais poderosos em face dela atingidos, o que, inclusive, lhe dá o status de patrimônio social, donde se justifica a sua proteção por política pública e a pela própria responsabilidade do cidadão de velar pela sua existência (2003:2). Ressalta o autor, ainda, que essas liberdades – de imprensa e de expressão – restritas nos períodos autoritários da sociedade, foram restauradas em função da ação daqueles que compreenderam que a existência delas é um caminho para deixar de ser objeto e passar a ser o sujeito da história (2003:2). Não se negue, porém, que o próprio conceito de liberdade, tomado de forma ampla, representa um reflexo de um processo e de um fluxo social, sendo histórica e socialmente construída, perpassada por reflexões de ordem moral, filosófica, ética e religiosa de um povo. Nas variações de liberdade de imprensa e de expressão, a conceituação e a localização destas se tornam ainda mais difíceis, pois são vistas por parâmetros diferentes e pelos próprios interesses divergentes dos e nos Estados. No final do ano de 2005, o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou charges onde, numa delas, o profeta Mohamed (frequentemente traduzido para o português como Maomé) estaria vestindo uma bomba em forma de turbante na cabeça, com um pavio para acendê-la. Sendo certo que o fato foi tido como ofensa às disposições do Alcorão, surgiram protestos violentos em todo o mundo muçulmano em repúdio à imprensa da Dinamarca, com boicotes a produtos daquele país, ameaças aos seus cidadãos, além de ataques à embaixadas e mortes. O conflito ampliou-se na medida em que jornais da França, Noruega, Alemanha, Holanda, Itália, Espanha e Suíça, em solidariedade ao jornal dinamarquês e em nome da defesa das liberdades de imprensa e expressão, publicaram charges de conteúdo semelhante, de forma inclusive a reafirmar a liberdade de expressão como mais forte que a intimidação. 96 Ainda que nominal e diretamente não faça referência à atuação da imprensa, o inciso IX do artigo 93 da Constituição de 05-10-1988, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004 – talvez demonstrando a iminente ou futura (futura por ficar a cargo da lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, consoante se vê no caput do próprio artigo 93, inalterado pela emenda constitucional em questão) necessidade de conciliar a privacidade das partes envolvidas num processo judicial e o interesse público à informação –, dispôs que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. 84 Discutindo o assunto, editorial do jornal estadunidense New York Times (2006), opinou no sentido que nas nações ocidentais, liberdade de religião, expressão e de imprensa são diferentes aspectos da mesma liberdade. Na América, isso é fundamental. A Primeira Emenda [da Constituição norte-americana] une essas liberdades em um fundamento de direito para indivíduos acreditarem, cultuarem, pensarem e falarem de acordo com suas convicções mas que na tradição islâmica, não se vê tais liberdades da mesma forma, visto que o Alcorão desencorajaria manifestações artísticas em geral e proibiria descrições de Mohamed e outros profetas, apesar de, em alguns países árabes, judeus serem descritos como figuras diabólicas ou sub-humanas97. E aqui, o conflito dos limites da liberdade de imprensa e de expressão – subliminarmente escondendo o pano-de-fundo do atrito entre governos de discurso não muito solidário e tolerante –, refletem a política imperial já posta em prática no chamado choque das civilizações, dando igualmente o tão esperado pretexto para grupos radicais atuarem e aparecerem na mídia, “politizando” o processo. O episódio demonstra, portanto, a dificuldade de materialização do pleno conceito e dos limites de tais liberdades. Mas, saindo da esfera do conflito Ocidente/ Oriente, os limites de amplitude de tais liberdades são difusos e não plenamente estabelecidos tanto num quanto em outro lado do mundo98, não sendo diferente a questão no Brasil, especialmente no que tange tanto à identificação do interesse público 97 Vai além o referido editorial (2006) em afirmar que o episódio da caricatura ilumina profundas diferenças entre o Ocidente e tradicionais sociedades islâmicas. Os muçulmanos protestantes consideram nações inteiras como responsáveis pelas ações dos jornais. Em muito do Oriente Médio, isso pode fazer sentido, porque os governos dessa região frequentemente controlam a imprensa. Em lugares como Dinamarca e França, entretanto, isso simplesmente não ocorre. Mais fundamentalmente, liberdade de imprensa no Ocidente vence tabus de religiões sobre expressão. Na Europa Ocidental, assim como na América, cidadãos gozam de um alto grau de liberdade religiosa. Mas isso não inclui um direito de nunca ser ofendido ou ter a crença de alguém desafiada. Enfaticamente, isso não inclui ter uma religião privilegiada em detrimento das outras. Em um país livre, até mesmo discurso de blasfêmia é protegido – e o assunto, a ser contradito por fiéis. Sociedades islâmicas tendem a rejeitar tal ilimitada liberdade de expressão. Isso é assunto deles. Mas exigir que nações ocidentais rejeitem isso, também, é um passo em direção a um perigoso novo solo. Anote-se que em resposta às charges, veículos de comunicação de países árabes negaram a existência do holocausto, fizeram piadas com o fato e publicaram desenhos onde Adolf Hitler estaria numa cama com Anne Frank, famosa criança vítima do massacre de judeus na Segunda Guerra Mundial. Por fim, no intuito de demonstrar a sua imparcialidade, o jornal dinamarquês Jyllands-Posten afirmou que publicaria caricaturas do holocausto nazista em conjunto com o jornal iraniano Hamshahri, que é controlado pelo governo. Esse último jornal, inclusive, afirmou que realizaria um concurso de charges para avaliar se o conceito de liberdade de imprensa do Ocidente se aplica também ao genocídio nazista e, ainda, se a liberdade de expressão se estendia a anedotizar o holocausto. 98 Lembre-se, também, que tais conflitos em nome da liberdade de imprensa e de expressão já tiveram graves antecedentes, como no caso do escritor anglo-indiano Salman Rushdie, que, tendo feito uma descrição irreverente do profeta Mohamed no livro “Versos Satânicos”, de 1989, foi condenado à morte pelo crime islâmico de apostasia (o fomento do abandono da fé islâmica), em sentença religiosa ditada pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), que morreu sem revogá-la. A partir daí, Rushdie teve que viver na Grã-Bretanha escondido durante anos. 85 quanto do interesse privado no processamento das informações que servem à atividade jornalística. Se de um lado, talvez seja mais fácil visualizar o interesse público nas informações e questões que tem como foco e objetivo o Estado, na esfera privada, tal circunstância se revela mais complexa. Dines (2005) opina que Sob o ponto de vista estritamente formal, filológico e semântico, existe uma clara diferença entre a esfera pública e a esfera privada. Mas, em termos sociais, o interesse público não pode ser dissociado do interesse privado. E a comunicação – qualquer comunicação – só pode ser examinada ou estudada dentro do âmbito das ciências sociais aduzindo que, mesmo estando atualmente dispensados da necessidade de obter – em grande parte do mundo –, licença para veiculação de informações impressas, essa não exime a obrigação de análise dos efeitos que tal informação poderá produzir, sendo certo que, se essa liberdade foi conquistada a duras penas pela sociedade – bem como o desenvolvimento da indústria jornalística, com a atual dimensão e poder, conquistada com garantias políticas, portanto, públicas –, sem o oferecimento de contrapartidas, criar-se-ia uma situação de injustificável privilégio (Dines, 2005). Destarte, não se pretendeu em nenhum momento desqualificar a imprensa e a atividade jornalística, e muito menos julgá-la. Se fosse possível, ainda que pelo senso-comum, pesar na balança os acertos e erros, acreditamos que os acertos da imprensa superaram com folga os seus erros. No entanto, pretendeu-se revistar o Caso Escola Base para memorizar um erro grave, no intuito de nos dar a oportunidade de refleti-lo e entendê-lo, dele tirando lições, nunca nos esquecendo que no plano constitucional vigoram disposições inderrogáveis como o asseguramento da plenitude de defesa (artigo 5º, incisos LV e XXXVIII, alínea a), a vedação da privação da liberdade ou de bens sem o devido processo legal (inciso LIV) e a presunção de inocência (inciso LVII), e que o exercício da liberdade de imprensa deve levar em conta as contrapartidas já mencionadas anteriormente – especialmente com o exercício de uma responsabilidade voltada para os efeitos da circulação da informação –, em nome da liberdade que lhe fora concebida para o seu pleno exercício. Uma tarefa, sem dúvida, muito difícil de ser operacionalizada, mas não impossível e a qual não podemos nos furtar99. Com relação ao nosso foco central, verbi gratia, o Caso Escola Base, Souza (2003) nos lembra que 99 Demonstrando preocupação semelhante, ainda que em parte saindo da discussão da esfera privada, mas tendo em mente o objetivo do interesse público em todos os meios de comunicação, Dines (2005) procura responder a questão de: (...) como reanimar o compromisso social e a noção de serviço público que todos os veículos – impressos ou eletrônicos, públicos, estatais e privados – deveriam ter como objetivo? A resposta pode parecer simplista, quimérica, inalcançável. Mas é a única numa democracia. A observação de um fenômeno é a única forma de intervir sem agir. Quando a mídia, os media e os mediadores sentirem-se efetivamente observados e cobrados serão obrigados a mudar seus comportamentos e procedimentos. Estamos aqui para fazer exatamente isto: fazer do exercício da observação uma forma de contrapoder. 86 Cumpre frisar que nem todos os meios de comunicação veicularam as denúncias sobre as supostas moléstias aos impúberes da escola100. Isto revela que alguns setores da imprensa já adquiriram consciência de sua influência na sociedade e as consequências do poder do qual se reveste a mídia. Não se pretende afirmar com essas assertivas que os veículos divulgadores do caso em questão são irresponsáveis, ou desprovidos de qualquer ética profissional. Incontestável, porém, o equívoco cometido pelos mesmos, fato este que deve servir como alerta, no sentido de se proceder com maior cautela, no momento de se selecionar, não só as notícias a serem divulgadas, como também a abordagem a ser conferida a uma questão controversa. As prerrogativas constitucionais e legais, consagradas aos particulares, são de observância imperativa. Porém, de uma forma geral, o que vemos são as prerrogativas constitucionais e legais serem respeitadas apenas para aqueles que dispõem de poder econômico e político. Para o cidadão médio, comum, o sistema se mostra com iniquidade, anacrônico e distinto. Dele, foram vítimas os envolvidos nessa impressionante rede de propagação de falsas informações do Caso da Escola Base. Se por um lado o Código de Ética do Jornalista dispõe em seu artigo 5º que a obstrução direta ou indireta à divulgação da livre informação e a aplicação de censura ou autocensura são delitos contra a sociedade, por outro, impõem nos artigos 2º e 3º, respectivamente, o dever dos meios de comunicação pública – independentemente de sua propriedade –, de divulgação de informação precisa e correta, além da divulgação pautada pela real ocorrência dos fatos, tendo por finalidade o interesse social e coletivo. O que ocorreu no Caso da Escola Base foi uma sequência impressionante de desrespeito a princípios tanto de ética jornalística101 como de princípios elementares de 100 Um importante e antigo jornal paulistano foi um dos que, vendo a fragilidade do conjunto probatório que embasava a notícia, recusou-se a veiculá-la, sendo acusado de estar comprometido com a Escola Base, no famoso “rabo-preso”. Ribeiro (2001:161), avaliando a atuação deste jornal, relata que em determinado momento, após as proporções gigantescas que o caso tomou e o notório conhecimento da opinião pública sobre os supostos acontecimentos, tornou-se impossível para este veículo de comunicação ignorar o fato. Por fim, conclui que houve omissão de sua redação, pois, se as provas eram precárias, era necessária a publicação de matérias apontando as contradições do inquérito policial então em curso. Mas, observe-se também que se houve omissão de um único jornal, não se olvide que a mea culpa posterior feita por diversos órgãos de imprensa foi tardia e confirmadora dos efeitos trágicos da divulgação precipitada de fatos. 101 Analisando a questão sob o ponto de vista da responsabilidade dos envolvidos e também da ética jornalística, a análise de Karam (1999): (...) a responsabilidade recai, também, nos pais dos alunos que chamaram a imprensa, no delegado que deu várias entrevistas acusando os donos e professores da escola e na medicina que errou em pelo menos um dos laudos, comprovando que o exame havia dado resultado “positivo para a prática de atos libidinosos”. A mídia deveria esconder isso? (...) Erros ocorrem em quaisquer áreas, nos prédios que racham, na medicação equivocada ou não do atendimento hospitalar, na sentença jurídica controversa, na interpretação sociológica ou econômica. O jornalismo, que ocupa mais visivelmente o espaço público, também sofre mais a ação dos palpiteiros, embora os erros de quaisquer áreas causem tanto prejuízo social quanto os dele. No entanto, é o jornalismo que, na imediaticidade do presente, no ritmo em que se desdobra o cotidiano, pode revelar aquilo que também prejudica as pessoas, seja o assassinato de menores, o benefício secreto recebido por bancos particulares ou as denúncias feitas por fontes autorizadas (pais de vítimas, laudo médico e versão policial) como no caso Escola Base. (...) A ética na informação jornalística não prescinde de um conjunto de fatores, que incluem responsabilidade e competência técnica de variadas fontes em diferentes campos de conhecimento. Elas representam mais que sua individualidade e interesses no cargo e espaço públicos em que atuam. E ao jornalismo cabe checar bem – e sempre, fontes e versões que projetam personalidades obscuras à repentina fama e prestígio. 87 direito, numa proporção talvez jamais vista na imprensa brasileira, onde uma versão que, se devidamente analisada seria controversa e passível de investigação e diligências, se tornou um fato artificialmente aceito como “verdade” por alguns meios de comunicação, que se entregaram à fórmula fácil do massacre público enquanto ingrediente de sua política de audiência e repercussão. Se também pode parecer difícil se chegar numa conclusão no sentido pleno das responsabilidades dos envolvidos ou até mesmo crer que os fatos que se seguiram após a divulgação das tais “denúncias” eram inevitáveis, é preciso não perder a capacidade crítica de acreditar que tal ocorrência foi desastrosa, e que se tem o dever de aprendizado – de pelo menos alguma coisa útil – com o fato, de não aceitá-lo como algo inerente da normalidade ou imprevisibilidade, e ter o horizonte aberto para tanto, além da humildade de se reconhecer e refletir que nenhuma pessoa em sã consciência e no exercício de sua cidadania, de sua dignidade e de seus direitos, admitiria ser vítima de coisa semelhante. Não se pode crer o contrário. Pode-se, sim, no exercício da liberdade de imprensa, assim como de qualquer outra, crer que pode haver o aperfeiçoamento de seu exercício e a melhor compreensão de seu alcance e efeitos, em fluxo contínuo. Lembre-se, por possivelmente paradoxal que seja, que as revoluções liberal-burguesas hastearam uma de suas bandeiras no chão das liberdades, dos direitos individuais e civis, historicamente construídos e defendidos numa perspectiva de incolumidade e integridade física e, expandidos mais recentemente, até mesmo na integridade psíquica e moral do indivíduo, de maneira que, ao se admitir uma prévia, maciça e não-criteriosa exposição pública da pessoa – feita com exageros e distorções –, se admite também um atentado justamente contra os tais liberdades e direitos. Ressalte-se, todavia, que não se deve cercear a liberdade de imprensa, de informação, de pensamento. Elas devem, nesses paradigmas de responsabilidade, serem as mais amplas possíveis. O Caso da Escola Base, por si só, jamais justificará uma posição no sentido de tolhê-las. Mas é preciso encontrar o difícil equilíbrio entre as regras de mercado e a operacionalização da informação, tendo em vista sempre o interesse público e a enorme penetração, repercussão e consequências que uma possível divulgação errônea ou imprecisa poderá trazer aos citados. Não se deve fazer uma “caça às bruxas”, mas reconhecer que ocorreram erros sérios no Caso da Escola Base, que destruíram a honra, saúde e auto-estima de pessoas, que corretamente foram, naquilo que foi possível, reparados, e os responsáveis, julgados pela justiça. E não reconhecendo esses erros, corre-se no risco de cair na leviandade. 4. Referências. BARBEIRO, Heródoto. Prólogo. In: BARBEIRO, Heródoto, CONY, Carlos Heitor e XEXÉO, Artur. Liberdade de Expressão. São Paulo: Futura, 2003, 103 p. DINES, Alberto. Conceitos de serviço público: media estatais e privados. Comunicação apresentada em 11-01-2005 ao 6º Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa reunido em Lisboa, Portugal. 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FILOSOFIA JUDAICO-CRISTÃ E DIREITOS HUMANOS JUDEO-CHRISTIAN PHILOSOPHY AND HUMAN RIGHTS André Ricardo Carvalho 102 102 Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP (UNIMEP), com bolsa da CAPES/PROSUP; especialista em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina/SC (UNISUL) e em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP (PUC-Campinas). Atualmente, é funcionário concursado do Banco do Brasil S.A., no qual exerce o cargo de advogado pleno. E-mail: [email protected]. 90