ID: 48021785 03-06-2013 Tiragem: 45684 Pág: 45 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 20,27 x 23,38 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 2 Sobre a discussão de fundo que tem sido evitada N João Carlos Espada Cartas de Varsóvia ão é possível esconder que, vista de Varsóvia, a situação política portuguesa na última semana é intrigante. Dois ex-presidentes da República apelam ao actual Presidente para que demita um governo com maioria parlamentar. O provedor de Justiça fez um apelo semelhante. Com o devido respeito, não compreendo esses apelos. Um governo com maioria parlamentar deve cair por procedimentos parlamentares — não por manifestações de rua, ameaças de violência, ou insultos ao Presidente da República. Também não compreendo bem a ideia de convocar congressos com a esquerda radical para reclamar mais democracia. A democracia, para a esquerda radical, sempre foi a ditadura da esquerda radical, exercida na rua, em nome da democracia. É verdade que existe um descontentamento geral no país e que o actual Governo já não dispõe de apoio popular? Não sei, embora as manifestações do último sábado não pareçam corroborar essa estimativa. Mas, a ser verdade, o líder da oposição democrática, o PS, tem um caminho aberto à sua frente: deve apelar directamente aos deputados do PSD e do CDS para retirarem o seu apoio ao Governo. Deve propor-lhes uma plataforma de ampla coligação como base de um futuro governo. Este poderia emergir como proposta do actual Parlamento ao Presidente da República, ou resultar de eleições antecipadas — que poderiam ser convocadas pelo Presidente quando a actual maioria parlamentar retirasse o seu apoio ao actual Governo. Tudo o resto parece-me um pouco peculiar. A ideia de que o Presidente deve demitir o Governo sempre que um coro de protestos se ouve nas ruas e na comunicação social, ou/e que uma sequência de notáveis apela à queda do Governo — essa ideia não é muito frequente numa democracia constitucional. Se posso dar um conselho ao Partido Socialista, que obviamente não tem sequer de o ouvir, eu aconselharia a que se afastasse da extrema-esquerda — como de facto fez, pela ausência do seu líder no congresso acima referido — e que se dirigisse aos deputados e, sobretudo, aos eleitores do PSD e do CDS. E que lhes dissesse, por exemplo, que admite as responsabilidades no despesismo que conduziu à vinda da troika, mas que a política do actual Governo é baseada numa engenharia financeira dirigista que ignora a realidade económica e social do país. O PS tem preferido acusar de neoliberalismo a política do actual Governo. Parece-me difícil que uma política que aumenta os impostos seja neoliberal. Mas o nome não importa muito. Só que, ao chamarem-lhe neoliberal, estão a sugerir que a questão é basicamente entre famílias políticas e não entre a realidade socioeconómica nacional e projectos de engenharia financeira dirigista que a ignoram. Devo imediatamente acrescentar que a referência à realidade nacional também não é conclusiva e contém os seus próprios perigos. Ninguém quer regressar ao “orgulhosamente sós” do dr. Salazar e não convém acordar forças nacionalistas adormecidas. Mas parece incontornável discutir o que melhor corresponde ao interesse nacional no actual contexto da União Europeia e do seu (sub)projecto de moeda única. Essa é a discussão que tem sido evitada entre nós — e por razões compreensíveis: é uma discussão tremendamente complexa e cheia de incógnitas. Não deve ser confundida, aliás, com um discussão, também necessária mas parcelar e subsidiária, sobre a aplicação dos fundos europeus. Um dia, aquela discussão mais funda vai ter de ser enfrentada. Entre nós e noutras paragens. O Presidente Hollande, por exemplo, acaba de criticar a Comissão Europeia por ter emitido recomendações de reformas estruturais a França, em troca de aceitar mais um adiamento de dois anos no cumprimento das metas do défice orçamental. Disse François Hollande que “cada país é que deve decidir a sua política económica, caso contrário não há soberania”. No mesmo dia, líderes democratas-cristãos alemães criticaram o Presidente francês acusando-o de estar a “minar o projecto europeu”. Horas depois, numa conferência de imprensa em Paris com a chanceler Merkel, François Hollande declarou que ambos os países reafirmaram o seu acordo em prosseguir na criação de um “autêntico governo económico europeu”. Não se compreende, francamente, como poderá a França continuar a reclamar soberania ao mesmo tempo que defende um governo económico europeu. Estas e outras razões geram crescente cepticismo dos eleitorados relativamente às políticas ditas europeias. Os partidos constitucionaispluralistas da Europa continental têm até agora reagido a esse cepticismo com declarações solenes contra os extremismos nacionalistas e xenófobos. Essas declarações são basicamente acertadas. Mas se os partidos constitucionais-pluralistas não escutarem os eleitores e não ponderarem as razões do mal-estar crescente, devemos recear seriamente que os extremismos sejam os grandes beneficiários das actuais dificuldades na zona euro. Um governo com maioria parlamentar deve cair por procedimentos parlamentares — não por manifestações de rua Professor universitário, IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia. Escreve à segunda-feira ID: 48021785 03-06-2013 Tiragem: 45684 Pág: 1 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 19,35 x 1,56 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 2 de 2 Opinião: o momento da esquerda e do PS vistos por João Carlos Espada