Valor da calprotectina fecal na avaliação da recorrência pós-cirúrgica da Doença de Crohn The value of fecal calprotectin in the determination of postsurgical relapse in Crohn’s Disease patients G. DUQUE1, F. PORTELA1, F. RODRIGUES2, P. MINISTRO3, M. MARQUES4, CUNHA M.R.2, CASEIRO P.2, M. FERREIRA1, P. ANDRADE1, P. FREIRE1, H. GOUVEIA1, RIBEIRO M.G.2, C. SOFIA1 RESUMO ABSTRACT Introdução: Na Doença de Crohn (DC) a cirurgia não é curativa pelo que o risco de recorrência pós-cirúrgica é grande, sendo que a recorrência endoscópica precede a clínica. A instituição de terapêutica profilática está dependente da avaliação objectiva da actividade da doença. Objectivo: Determinar a capacidade da calprotectina fecal (CF) na predição de recidiva da DC em doentes com cirurgia prévia. Material e Métodos: Estudo prospectivo englobando doentes com diagnóstico de DC submetidos a ressecção ileo-cecal (mínimo 6 meses pós cirurgia), assintomáticos (Crohn´s Disease Activity Índex <150) e com terapêutica estável nas últimas 12 semanas. Todos efectuaram colonoscopia com ileoscopia cujos achados foram classificados de acordo com score de Rutgeerts. Amostras fecais foram colhidas e a CF foi doseada. Esta foi comparada com os resultados endoscópicos e com os valores laboratoriais (hemoglobina, leucócitos, plaquetas e proteína C reactiva). A análise estatística foi efectuada com o SPSS. Resultados: Incluídos 30 doentes (20 do sexo feminino), com idade média de 39,4 anos (22- 62). O valor médio de CF para os doentes com score de Rutggerts < 2 (21 doentes) foi de 69,4 ± 49,1 μg/g e 336,1 ± 201,1 μg/g para os doentes com Rutgeerts ≥2 (9 doentes), p <0,001. A área debaixo da curva ROC (AUC) para a CF foi de 0,974, com uma sensibilidade de 1 e uma especificidade de 0,48 ao considerarmos o valor de cut-off de 50 μg/g. O melhor valor de cut-off da nossa série foi de 116,50 μg/g, o qual obtinha uma sensibilidade de 1 e uma especificidade de 0,95. Ao considerarmos os parâmetros analíticos, a AUC foi de 0,469, 0,699, 0,750 e 0,756 respectivamente para a hemoglobina, plaquetas, leucócitos e proteína C reactiva. O grau de concordância entre a CF e a colonoscopia, calculado através do índice de Kappa, foi de 0,337 ao considerarmos o valor de cut-off de 50 μg/g, aumentando para 0,851 quando o cut-off considerado foi de 116,50 μg/g. Conclusão: A CF revelou-se um método útil na avaliação dos doentes com DC submetidos a ressecção intestinal prévia, melhor que os parâmetros analíticos. Na nossa série, o valor de cut-off com melhor acuidade diagnóstica foi de 116,5 μg/g. Palavras chave: Doença de Crohn, Calprotectina fecal, Recidiva. Introduction: Crohn’s Disease (CD) is a chronic condition marked by recurrent episodes of inflammation. Surgery is not curative and relapse is frequent, being the endoscopic relapse earlier than the clinical. Therefore, the institution of prophylactic therapeutics is dependent on identifying mucosal lesions associated with disease activity. Aims & Methods: To assess the capacity of fecal calprotectin (FC) as a non-invasive mean in predicting CD relapses in patients with prior surgery. A prospective study was planned, evolving CD patients with the following inclusion criteria: asymptomatic (Crohn’s disease activity index <150), submitted to prior ileocecal resection (at least 6 months before) and with stable therapy during, at least, 12 weeks. All the patients were submitted to ileocolonoscopy and the endoscopic findings classified according the Rutgeerts score. Fecal samples were collected and FC was quantified. CF was compared with endoscopic findings and with the laboratory values (hemoglobin, platelets, leucocytes and C-reactive protein - CRP). The statistical analysis was performed with the SPSS software. Results: 30 Patients (20 female), average age 39.4 years (min 22, max 62). FC mean for Rutgeerts score <2 (21 patients) was 69.4±49.1 μg/g and 336.1±201.1 μg/g for those with Rutgeerts ≥ 2 (9 patients), p < 0.001. The area under ROC curve for CF was 0.974, with a sensitivity of 1 and specificity of 0.45 considering the cut-off 50 μg/g. The best cut-off in our series was 116.50 μg/g, which achieved a sensitivity of 1 and specificity of 0.95. Considering the analytical parameters, the area under the ROC curve was 0.469, 0.699, 0.750 and 0.756 respectively for hemoglobin, platelets, leucocytes and CRP. When the concordance was calculated between FC and colonoscopy, the kappa index was 0.337 considering the cut-off 50 μg/g for CF and 0.851 when the cut-off considered was 116.50 μg/g. Conclusion: FC performs well in the postsurgical CD patients, better then analytical parameter, such as hemoglobin, platelets, leucocytes and CRP. In our series, the best cutpoint for indicating significative relapse was 116.5 μg/g. Key words: Crohn’s Disease, Fecal Calprotectin, Relapse. INTRODUÇÃO Um dos problemas na abordagem terapêutica da Doença de Crohn (DC) está relacionado com a recorrência após ressecção intestinal.1 Apesar do aumento da panóplia de fármacos imussupressores e da sua maior utilização, mais de 70% dos doentes irão ser submetidos a ressecção intestinal durante o curso da sua doença.2, 3 A recorrência pós-cirúrgica, 1 Serviço de Gastrenterologia, Hospitais da Universidade de Coimbra, 2Serviço de Patologia Clínica, Hospitais da Universidade de Coimbra, 3Serviço de Gastrenterologia, Hospital de São Teotónio, Viseu, 4Serviço de Informática e Estatística, Hospitais da Universidade de Coimbra Correspondência: Gabriela Duque • E-mail: [email protected] • Morada: Praceta Mota Pinto, 3000-075 Coimbra • Telf.: 239 400 400 041 Presentemente a desempenhar funções como Assistente Hospitalar de Gastrenterologia no Hospital Distrital da Figueira a Foz Prémio DECOMED 2011 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 11 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE quer na anastomose ileocólica, quer no íleon neoterminal é uma característica da DC. A recorrência endoscópica é observada em quase 73% dos doentes 1 ano após ressecção curativa (20% dos quais sintomáticos) e em 85 % após 3 anos (34% dos quais sintomáticos).4 Noutros trabalhos, essa percentagem atinge mesmo 93% aos 12 meses (com 37% sintomáticos), segundo alguns autores .5 Novas lesões foram até descritas algumas semanas após a cirurgia.6 Estima-se que 15-45% dos destes doentes necessitem de outra intervenção cirúrgica aos 3 anos, 26-65% aos 10 anos e 33-82% aos 15 anos.6,7 A severidade da recorrência endoscópica constitui o melhor factor para auspiciar a evolução clínica.5 O score de Rutgeerts5 é o método utilizado na uniformização e mensuração da recorrência endoscópica no ileon neoterminal dos doentes com DC já submetidos a ressecção ileo-cecal. Este índice foi desenvolvido a partir de um estudo no qual se demonstrou que a evolução clínica pós cirúrgica da DC é melhor antecipada pela severidade das lesões endoscópicas encontradas durante o primeiro ano após a realização da mesma. Estes mesmos autores concluíram que nos pacientes sem lesões ou com lesões endoscópicas ligeiras (Score de Rutgeerts i0 e i1), o surgimento de sintomas ou complicações de recidiva da doença eram muito raros e 80% destes doentes mantinham aspecto endoscópico sobreponível aos 3 anos. Em contraste, doentes com classificações endoscópicas de i3 e i4, tinham muito pior prognóstico, desenvolvendo complicações da doença nos anos subsequentes, isto é, 92 % destes doentes tinham progressão ou evolução severa aos 3 anos. Definiram ainda um grupo de risco intermédio, classificado como i2, em que cerca de 60 % dos doentes se mantinha com aspecto endoscópico idêntico e em 40 % ocorria agravamento das lesões. O método gold standard para a determinação de recorrência da DC consiste na realização de colonoscopia com ileoscopia. No entanto, devido à necessidade de preparação intestinal e de se tratar de um método invasivo, apresenta baixa compliance.8 Desta forma, um método não invasivo capaz de identificar e graduar o subgrupo de pacientes com recorrência da doença apresentaria grande utilidade clínica. A calprotectina foi descrita pela primeira vez em 1980 por Fagerhol et al.9 Constitui mais de 60% das proteínas do citosol dos neutrófilos pelo que constitui uma proteína abundantemente encontrada em todos os fluidos biológicos em proporção à inflamação existente a este nível.10 Os níveis elevados de calprotectina fecal (CF) correlacionam-se com a migração de neutrófilos para o lúmen intestinal e com o grande turnover leucocitário (a calprotectina é libertada aquando a morte celular). É resistente à degradação bacteriana presente no intestino, estável até mais de uma semana a temperatura ambiente e está distribuída uniformemente nas fezes. É facilmente quantificável utilizando método de ELISA o que constitui um método simples e não dispendioso. Apenas 5 g de fezes são suficientes para a sua quantificação.11 Uma das aplicações mais promissoras da CF é a capacidade de predizer recidiva clínica e ser marcador de cicatrização da mucosa intestinal.11 A CF pode posicionar-se como alternativa não invasiva capaz de identificar os doentes com risco de recidiva. Nesse sentido, de forma a determinar a acuidade da CF no diagnóstico de recidiva endoscópica, os autores desenvolveram um protocolo, no qual os valores de CF foram comparados com os achados endoscópicos, classificados de acordo com índice de Rutgeerts e, secundariamente, a CF foi comparada também com os valores laboratoriais (hemoglobina, leucócitos, plaquetas e proteína C reactiva). OBJECTIVOS Determinar a capacidade da calprotectina fecal (CF) na predicção de recidiva da DC em doentes com cirurgia prévia. MATERIAL E MÉTODOS Doentes Foi elaborado um estudo prospectivo, desenvolvido entre Dezembro de 2010 e Maio de 2011, onde se englobaram 30 doentes com seguimento habitual em consulta de DII no hospital, com diagnóstico de DC inequívoco de localização ileal/ ileocólica com antecedentes de cirurgia intestinal e sem doença peri-anal activa. Os doentes elegíveis estavam clinicamente assintomáticos (definidos por Crohn´s Disease Activity Index < 150), possuíam tempo mínimo 12 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE em meio frio. O tempo decorrido entre a colheita da amostra fecal, a realização de colonoscopia e a avaliação analítica (determinação da hemoglobina, plaquetas, leucócitos e proteína C reactiva) foi, no máximo, 4 semanas. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do nosso hospital e todos os doentes deram o seu consentimento informado para inclusão no estudo. n TABELA 1 Distribuição dos achados endoscópicos de acordo com o score de Rutgeerts Score de Rutgeerts Nº de doentes i0 5/30 i1 16/30 i2 4/30 i3 3/30 i4 2/30 desde a cirurgia (ressecção ileal ou ileocólica sem se estender para além do ângulo hepático) igual ou superior a 6 meses e com terapêutica estabilizada há pelo menos 12 semanas. As colonoscopias consideradas foram exames totais, isto é, com observação da anastomose cirúrgica e exploração do íleon neoterminal, realizadas com e sem anestesia e executadas por gastrenterologistas experientes em doença inflamatória intestinal. Os doentes cumpriram a preparação intestinal habitual, com 4 L de polietileno glicol. Os achados foram classificados em 5 classes, de acordo com índice de Rutgeerts: i0 se ausência de lesões no íleon terminal; i1 se presença de 5 ou menos erosões no íleon terminal; i2 se mais de 5 erosões no íleon terminal com mucosa indemne entre elas ou lesões maiores limitadas à anastomose ileocólica; i3 ileíte aftosa difusa no íleon neoterminal com mucosa extensamente inflamada; i4 inflamação difusa com úlceras de grandes dimensões, nódulos e/ou estenoses. Estas lesões endoscópicas foram divididas em 2 grupos: i0 e i1, considerados como ausência de recidiva endoscópica; e i2, i3 e i4 considerados como recidiva endoscópica. A colheita de fezes decorreu no domicílio, em contentor plástico esterilizado, previamente ao início da preparação intestinal ou uma semana após a realização de colonoscopia. O doseamento da CF foi efectuado no Laboratório de Patologia Clínica do nosso hospital utilizando o método quantitativo ELISA (EK-CAL; Calprotectin ELISA, Buhlmann, Suíça) que recomenda a utilização do cut-off de 50 μg/g. A sua quantificação foi efectuada num período máximo de 120 dias após conservação a -20º e o tempo mediado desde a colheita de fezes e a sua recepção foi inferior a 7 dias, com conservação Análise estatística Os dados foram analisados utilizando o programa SPSS para Windows 17.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA). Valores de p<0,05 indicaram significância estatística. Dados demográficos e clínicos foram recolhidos através de entrevista clínica e pesquisa no processo único do doente. Foi criada tabela crosstabs de ambas as variáveis categóricas (valores de CF e aspecto macroscópico da colonoscopia expresso no score de Rutgeerts) com respectivo cálculo da sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo (VPP) e valor preditivo negativo (VPN). As variáveis contínuas foram testadas para a sua distribuição normal utilizando o teste Shapiro-Wilk. O teste de Mann-Whitney U foi o teste não paramétrico utilizado na comparação das médias dos valores de CF, PCR e leucócitos entre os 2 grupos. O teste T de Student foi o teste paramétrico utilizado no cálculo das médias de hemoglobina e plaquetas entre os dois grupos. A relação entre a CF os achados endoscópicos, bem como os parâmetros analíticos e os achados endoscópicos (definidos como colonoscopia negativa para recidiva endoscópica se score de Rutgeerts ≤1 e colonoscopia positiva se score de Rutgeerts ≥2) foi calculada com curvas Receiver Operation Characteristic (ROC), nomeadamente com a área debaixo da curva (AUC). Foi ainda determinado nesta curva um ponto de corte que melhor estivesse associado a resultado positivo no teste de CF.12 Para determinação do grau de concordância entre os valores de CF e a colonoscopia, para os cut-off preconizados pelo fabricante dos kits de quantificação da CF e o determinado na nossa série, com maior sensibilidade e especificidade, utilizou-se o índice de concordância Kappa (K).12 Na determinação da associação entre 2 variáveis, nomeadamente entre a CF e os valores laboratoriais analisados, foi utilizada a correlação de Spearman. REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 13 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE (tempo mínimo de 9 meses e tempo máximo de 269 meses). CF média em ambos os grupos: Rugeerts ≥ 2 (colonoscopia A maioria das cirurgias haviam positiva) e Rutgeerts < 1 (colonoscopia negativa). sido realizadas por via aberta (23/30). À data da realização do estudo 23,3% (7/30) estavam sem medicação; 30% (9/30) estavam medicados com messalazina; 36,7% (11/30) estavam medicados com azatioprina; 3,3% (1/30) estava medicado com a combinação de messalazina e azatioprina e 6,7% (2/30) estavam a fazer terapêutica com biológicos (adalimumab). Era patente uma maioria de doentes não fumadores (27), sendo 2 deles ex-fumadores. As colonoscopias foram realizadas em 66,7% (20/30) sob sedação anestésica. A distribuin FIGURA 2 ção dos achados endoscópicos Distribuição dos valores de CF nos 2 grupos em estudo. pela classificação do score de Rutgeerts apresenta-se em seguida na tabela 1. Assim, 21 doentes apresentavam um score de Rutgeerts <2 e 9 doentes, um score de Rutgeerts ≥2. A CF média foi significativamente superior nos doentes com score de Rutgeerts ≥2. Para o grupo dos doentes com score de Rutgeerts < 2, a CF média foi de 69,4 ± 49,1 μg/g, enquanto que para os restantes doentes, esta foi de 336,1 ± 201,1 μg/g (p <0,001) (figura 1). Efectivamente, 10 doentes dos 21 sem recidiva endoscópica significativa apresentaram valores de CF infeRESULTADOS Dos trinta doentes incluídos no nosso estudo, riores a 50 μg/g, 17 doentes apresentaram valores de CF inferiores a 100 μg/g e apenas 4 acima deste 20 eram do sexo feminino e 10 do sexo mascuvalor (figura 2). lino, com uma média de idades de 39,4 ± 11,4 A área debaixo da curva ROC para a CF em reanos (idade mínima de 22 anos e máxima de 62 lação com os achados endoscópicos foi de 0,974 anos). Todos haviam sido submetidos a ressecção (excelente capacidade discriminativa), sugerindo ileocecal (episódio cirúrgico único de ressecção que a CF distingue correctamente os 2 grupos de intestinal) há uma média de 83,8 ± 68,8 meses doentes (figura 3). n FIGURA 1 14 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE ficidade de 0,48. O VPP foi de 0,45 e o VPN de 1. Curva ROC e AUC para CF e achados da colonoscopia (AUC 0,974). A partir da curva ROC, o valor da CF que melhor define recorrência endoscópica na nossa série foi 116,50 μg/g, associado a uma sensibilidade sobreponível ao cut-off anterior (de 1) mas associado a um acréscimo importante na especificidade para 0,95. Dos parâmetros analíticos, foram analisados os valores de hemoglobina, leucócitos, plaquetas e proteína C reactiva (PCR). Os valores médios nos dois grupos estão apresentados na tabela (tabela 3). Apenas os valores de PCR e leucócitos apresentaram diferença n TABELA 2 estatisticamente significativa. Tabela crosstabs para cálculo da sensibiliAs curvas ROC foram calculadas para os parâmedade, especificidade, valor preditivo positivo tros analíticos em relação com os achados endoscó(VPP) e valor preditivo negativo (VPN) picos (figuras 4 e 5). Embora o poder discriminativo Calprotectina seja fraco, os leucócitos e a PCR evidenciam melhor Total <50 >=50 poder discriminativo (respectivamente AUC 0,750 e 0,756) quando comparados com as plaquetas e da Sem recidiva (Rutgeerts <2) 10 11 21 hemoglobina (AUC respectivamente 0,689 e 0,505). Recidiva (Rutgeerts ≥2) 0 9 9 10 20 30 Total Posteriormente foi avaliado o grau de concordância entre os valores de CF e os achados endoscópicos, novamente para ambos os cut-off (50 e 116,50 n TABELA 3 μg/g). O índice de kappa foi, respectivamente, 0,337 Valores médios dos parâmetros analíticos e 0,851, realçando a melhor performance do último (PCR, leucócitos, hemoglobina e plaquetas). cut-off determinado. Por último, procedemos à determinação de Parâmetro Score de Score de p existência de associação entre as variáveis entre si analítico Rutgeerts <2 Rutgeerts ≥2 (correlação de Spearman), tendo sido evidente uma correlação com significado estatístico entre CF e PCR 0,55±0,62 1,34±1,2 0,028 PCR (ρ<0,51; p<0,005) e entre a PCR e os leucócitos Leucócitos 6,3±1,5 7,7±1,5 0,034 (ρ<0,47, p<0,01). n FIGURA 3 Hemoglobina 13,7±0,7 13,6±1,6 0,908 (ns) Plaquetas 248,1±57,0 282,1±62,8 0,149 (ns) Foram então calculados os valores de sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e valor preditivo negativo para o cut-off preconizado pelo distribuidor do kit da CF, tendo por base um tabela crosstabs (tabela 2). A sensibilidade deste teste foi de 1, com especi- DISCUSSÃO Embora a prevenção de recidiva pós cirúrgica da DC e a modificação de potenciais factores de risco tenham tido especial enfoque em múltiplos estudos, permanecem ainda como problemas de difícil resolução. A recidiva é de algum modo imprevisível já que os factores de risco que se podem analisar previamente à realização da cirurgia (idade de início da doença, REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 15 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE ter invasivo e a necessidade de preparação intestinal rigorosa Valores da AUC para os parâmetros analíticos (leucócitos, plaquetas o que dificulta a sua utilização e PCR): 0,750, 0,689 e 0,689 e 0,756, respectivamente como meio de monitorização de doentes, particularmente nos doentes com necessidades de várias observações Desta forma um método não invasivo, cómodo, de fácil interpretação, não dispendioso e com boa correlação com os achados endoscópicos, permitiria identificar esses mesmos doentes de forma a instituir a devida terapêutica e monitorizar a sua resposta. Os resultados do nosso trabalho apontam no sentido que a CF possa constituir um insn FIGURA 5 trumento útil na monitorização Valores da AUC para hemoglobina: 0,505 dos doentes com DC submetidos a ressecção intestinal. Na nossa série, cerca de 1/3 dos doentes, apesar de assintomáticos e sob terapêutica, apresentavam lesões endoscópicas com risco de recorrência significativo. São estes doentes, não reconhecíveis aquando da entrevista clínica que urge identificar, atendendo ao risco acrescido de recidiva. Estes pacientes apresentam valores de CF que foram significativamente superiores nos doentes com score de Rutgeerts ≥ 2. A CF revelou excelente capacidade discriminativa (AUC localização e seu comportamento, hábitos tabágicos e número de ressecções cirúrgicas) não permitem 0,974), muito superior aos parâmetros analíticos em cada caso individual determinar o curso provável estudados (hemoglobina, leucócitos, plaquetas e da doença. Por isso têm sido feitas recomendações PCR), nomeadamente na distinção entre doentes no sentido de realizar colonoscopia com ileoscopia que necessitem de eventual ajuste terapêutico e aos 6-12 meses após ressecção ileocecal, numa ten- aqueles que podem manter-se com regime previatativa de detectar a recidiva pré-clínica e servindo mente instituído. Aliás, os únicos valores analíticos como guia às decisões terapêuticas. Presentemente com diferença estatística nos 2 grupos avaliados este meio complementar de diagnóstico constitui o (com e sem recidiva endoscópica) foram os leucómelhor método na determinação da recidiva endos- citos e a PCR. cópica precoce e o grau da severidade da recidiva A sensibilidade e o VPN deste teste para o valor endoscópica tem implicações clínicas. No entanto, de cut-off preconizado pelo fabricante foram muito apresenta como principais problemas o seu carác- bons. Contudo, este valor está associado a uma n FIGURA 4 16 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE baixa especificidade e VPP. O aumento do valor de cut-off para 116,5 μg/g mantém os valores de sensibilidade e determina um aumento na especificidade (para 0.95), conferindo óptimas características a este teste de diagnóstico. Com este novo cut-off, ocorre um aumento da acuidade diagnóstica, confirmada também com o aumento da concordância do mesmo (avaliada pelo índice Kappa) com o que foi considerado o gold standard no nosso trabalho: a colonoscopia. Os nossos resultados reforçam a utilidade da CF no universo dos doentes previamente operados com ressecção intestinal e vai de encontro a outros trabalhos publicados. Costa et al13 estudaram grupo de 12 doentes com DC submetidos a ressecção intestinal e encontraram uma absoluta concordância entre os doentes com recorrência da doença na anastomose e valores de CF aumentados. Orlando et al14 investigaram o papel da determinação da CF na predição de recorrência pós cirúrgica em doentes assintomáticos com doseamentos de CF e realização de ecografia aos 3 meses e colonoscopia um ano após cirurgia. Os autores determinaram uma sensibilidade de 63% e uma especificidade de 75% para um cut-off > 200 mg/L e de 94% e 25 % respectivamente para cut-off < 50 mg/L. Finalizaram as suas conclusões determinando que aquele valor de CF (200 mg/L) aos 3 meses era diferenciador dos doentes que deveriam ser submetidos a colonoscopia, no sentido de detectar recorrência precoce. Finalmente num estudo recentemente realizado, ainda somente com resultados preliminares, envolvendo 19 doentes15 com ressecção ileocecal, procederam à classificação dos mesmos com Índice de Harvey-Bradshaw (IHB), doseamento de parâmetros analíticos e realização de colonoscopia aos 12 meses após cirurgia. Nesta amostra, mais uma vez se encontrou que os pacientes com score de Rutgeerts <2 possuíam valores de CF significativamente inferiores aos pacientes com score de Rutgeerts ≥ 2. Por outro lado, os valores laboratoriais e o IHB não possuíam diferenças estatísticas entre os 2 grupos. Existem no entanto alguns trabalhos discordantes, nomeadamente Scarpa et al 16 ao seguirem uma amostra de 63 doentes com DC após ressecção ileocólica, realizaram a compa- ração com achados analíticos e endoscópicos e concluíram que estes doentes mantêm valores elevados de CF, mesmo aquando remissão clínica, não sendo patente qualquer diferença entre valores da CF em doentes com CDAI inferior ou superior a 150. Com estes resultados chegou-se a equacionar a invalidez da CF após ressecção intestinal. Já Lamb et al17 encontraram concordância da CF com os índices clínicos mas não com os endoscópicos. Este estudo envolveu 2 grupos: o primeiro, composto por 13 doentes no período imediato pós-cirúrgia, seguidos longitudinalmente ao longo de um ano com colheitas regulares de marcadores fecais, atestaram que a normalização dos valores da CF, em doentes sem intercorrências, num período de dois meses após a cirurgia; o outro grupo, composto por 104 doentes, classificados clinicamente com IHB, tendo realizado colonosopia em 43 doentes. Neste grupo, a CF apresentou boa correlação com actividade clínica (superior à PCR) mas o mesmo não aconteceu com os achados endoscópicos. No entanto, ao contrário do nosso trabalho, a avaliação endoscópica parece não ter sido padronizada, nomeadamente com a utilização do índice de Rutggerts. Existem várias limitações que poderão ser imputadas ao nosso estudo. Uma delas, transversal a todos os estudos pós ressecção ileocecal em doentes com DC, é a falta de um teste que por si só possa determinar de modo definitivo a existência de recorrência da doença. Este facto aumenta a dificuldade em validar o uso de qualquer outro teste. Na recorrência sintomática, sabe-se que o comportamento pós-cirúrgico da DC depende das suas características pré-cirurgia. A maioria dos nossos doentes era não fumadora e a doença abarcava o íleon terminal e/ou cego/ascendente proximal, mas não entrámos em linha de conta com o comportamento prévio e extensão. O nosso estudo não envolveu avaliação anatomo-patológica sistematizada, o que poderá ser considerado uma limitação. No entanto, o conceito de recorrência tem sido definido tendo por base achados clínicos, analíticos e endoscópicos, não englobando a histologia. Embora os nossos dados, bem como os de outros autores sejam promissores quanto à REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 17 ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE utilidade da CF, parece-nos no entanto fundamental a implementação de mais estudos para consubstanciar estas conclusões. Estes deverão caracterizar-se por amostras maiores, incluir a avaliação prospectiva dos novos cut-off e explorar a aplicação da CF à monitorização da terapêutica imunomoduladora. CONCLUSÃO A CF revelou-se um método útil na avaliação dos doentes com DC submetidos a ressecção intestinal prévia, ao identificar os que não apresentam sinais endoscópicos de recidiva e que portanto não necessitam de ajustes terapêuticos nem de investigação endoscópica. Por outro lado, permite a identificação dos doentes que possam beneficiar da realização da colonoscopia com ileoscopia e/ou terapêutica imunomoduladora/ imunossupresssora. Os nossos resultados apontam ainda para a possibilidade de que o uso de um cut-off mais elevado poderá produzir resultados superiores. n BIBLIOGRAFIA 1. Wiliams JG, Wong WD, Rothenberer DA, Goldberg SM. Recurrence of Crohn´s disease after resection. Br J Surg 1991; 78 10-9. 2. Farmer RG, Whelan G, Fazio VW. (1985) Long-term follow-up of patients with Crohn’s disease. 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