Valor da calprotectina fecal na avaliação da recorrência
pós-cirúrgica da Doença de Crohn
The value of fecal calprotectin in the determination
of postsurgical relapse in Crohn’s Disease patients
G. DUQUE1, F. PORTELA1, F. RODRIGUES2, P. MINISTRO3, M. MARQUES4, CUNHA M.R.2, CASEIRO P.2, M. FERREIRA1, P. ANDRADE1, P. FREIRE1,
H. GOUVEIA1, RIBEIRO M.G.2, C. SOFIA1
RESUMO
ABSTRACT
Introdução: Na Doença de Crohn (DC) a cirurgia não é curativa
pelo que o risco de recorrência pós-cirúrgica é grande, sendo
que a recorrência endoscópica precede a clínica. A instituição de
terapêutica profilática está dependente da avaliação objectiva
da actividade da doença.
Objectivo: Determinar a capacidade da calprotectina fecal (CF)
na predição de recidiva da DC em doentes com cirurgia prévia.
Material e Métodos: Estudo prospectivo englobando doentes
com diagnóstico de DC submetidos a ressecção ileo-cecal (mínimo 6 meses pós cirurgia), assintomáticos (Crohn´s Disease
Activity Índex <150) e com terapêutica estável nas últimas 12
semanas. Todos efectuaram colonoscopia com ileoscopia cujos
achados foram classificados de acordo com score de Rutgeerts.
Amostras fecais foram colhidas e a CF foi doseada. Esta foi
comparada com os resultados endoscópicos e com os valores
laboratoriais (hemoglobina, leucócitos, plaquetas e proteína
C reactiva). A análise estatística foi efectuada com o SPSS.
Resultados: Incluídos 30 doentes (20 do sexo feminino), com
idade média de 39,4 anos (22- 62). O valor médio de CF para
os doentes com score de Rutggerts < 2 (21 doentes) foi de
69,4 ± 49,1 μg/g e 336,1 ± 201,1 μg/g para os doentes com
Rutgeerts ≥2 (9 doentes), p <0,001. A área debaixo da curva
ROC (AUC) para a CF foi de 0,974, com uma sensibilidade de
1 e uma especificidade de 0,48 ao considerarmos o valor de
cut-off de 50 μg/g. O melhor valor de cut-off da nossa série foi
de 116,50 μg/g, o qual obtinha uma sensibilidade de 1 e uma
especificidade de 0,95. Ao considerarmos os parâmetros analíticos, a AUC foi de 0,469, 0,699, 0,750 e 0,756 respectivamente
para a hemoglobina, plaquetas, leucócitos e proteína C reactiva.
O grau de concordância entre a CF e a colonoscopia, calculado
através do índice de Kappa, foi de 0,337 ao considerarmos o
valor de cut-off de 50 μg/g, aumentando para 0,851 quando o
cut-off considerado foi de 116,50 μg/g.
Conclusão: A CF revelou-se um método útil na avaliação dos
doentes com DC submetidos a ressecção intestinal prévia,
melhor que os parâmetros analíticos. Na nossa série, o valor
de cut-off com melhor acuidade diagnóstica foi de 116,5 μg/g.
Palavras chave: Doença de Crohn, Calprotectina fecal, Recidiva.
Introduction: Crohn’s Disease (CD) is a chronic condition marked
by recurrent episodes of inflammation. Surgery is not curative
and relapse is frequent, being the endoscopic relapse earlier
than the clinical. Therefore, the institution of prophylactic therapeutics is dependent on identifying mucosal lesions associated
with disease activity.
Aims & Methods: To assess the capacity of fecal calprotectin (FC)
as a non-invasive mean in predicting CD relapses in patients with
prior surgery. A prospective study was planned, evolving CD patients with the following inclusion criteria: asymptomatic (Crohn’s
disease activity index <150), submitted to prior ileocecal resection
(at least 6 months before) and with stable therapy during, at least,
12 weeks. All the patients were submitted to ileocolonoscopy and
the endoscopic findings classified according the Rutgeerts score.
Fecal samples were collected and FC was quantified. CF was
compared with endoscopic findings and with the laboratory values
(hemoglobin, platelets, leucocytes and C-reactive protein - CRP).
The statistical analysis was performed with the SPSS software.
Results: 30 Patients (20 female), average age 39.4 years (min
22, max 62). FC mean for Rutgeerts score <2 (21 patients) was
69.4±49.1 μg/g and 336.1±201.1 μg/g for those with Rutgeerts
≥ 2 (9 patients), p < 0.001. The area under ROC curve for CF was
0.974, with a sensitivity of 1 and specificity of 0.45
considering the cut-off 50 μg/g. The best cut-off in our series was
116.50 μg/g, which achieved a sensitivity of 1 and specificity of
0.95. Considering the analytical parameters, the area under the
ROC curve was 0.469, 0.699, 0.750 and 0.756 respectively for
hemoglobin, platelets, leucocytes and CRP. When the concordance
was calculated between FC and colonoscopy, the kappa index was
0.337 considering the cut-off 50 μg/g for CF and 0.851 when
the cut-off considered was 116.50 μg/g.
Conclusion: FC performs well in the postsurgical CD patients,
better then analytical parameter, such as hemoglobin, platelets,
leucocytes and CRP. In our series, the best cutpoint for indicating
significative relapse was 116.5 μg/g.
Key words: Crohn’s Disease, Fecal Calprotectin, Relapse.
INTRODUÇÃO
Um dos problemas na abordagem terapêutica da
Doença de Crohn (DC) está relacionado com a
recorrência após ressecção intestinal.1 Apesar do
aumento da panóplia de fármacos imussupressores
e da sua maior utilização, mais de 70% dos doentes
irão ser submetidos a ressecção intestinal durante o
curso da sua doença.2, 3 A recorrência pós-cirúrgica,
1
Serviço de Gastrenterologia, Hospitais da Universidade de Coimbra, 2Serviço de Patologia Clínica, Hospitais da Universidade de Coimbra, 3Serviço de
Gastrenterologia, Hospital de São Teotónio, Viseu, 4Serviço de Informática e Estatística, Hospitais da Universidade de Coimbra
Correspondência: Gabriela Duque • E-mail: [email protected] • Morada: Praceta Mota Pinto, 3000-075 Coimbra • Telf.: 239 400 400 041
Presentemente a desempenhar funções como Assistente Hospitalar de Gastrenterologia no Hospital Distrital da Figueira a Foz
Prémio DECOMED 2011
REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 11
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
quer na anastomose ileocólica, quer no íleon neoterminal é uma característica da DC.
A recorrência endoscópica é observada em quase
73% dos doentes 1 ano após ressecção curativa (20%
dos quais sintomáticos) e em 85 % após 3 anos (34%
dos quais sintomáticos).4 Noutros trabalhos, essa
percentagem atinge mesmo 93% aos 12 meses (com
37% sintomáticos), segundo alguns autores .5 Novas
lesões foram até descritas algumas semanas após a
cirurgia.6 Estima-se que 15-45% dos destes doentes
necessitem de outra intervenção cirúrgica aos 3
anos, 26-65% aos 10 anos e 33-82% aos 15 anos.6,7
A severidade da recorrência endoscópica constitui
o melhor factor para auspiciar a evolução clínica.5
O score de Rutgeerts5 é o método utilizado na uniformização e mensuração da recorrência endoscópica no ileon neoterminal dos doentes com DC já
submetidos a ressecção ileo-cecal. Este índice foi
desenvolvido a partir de um estudo no qual se demonstrou que a evolução clínica pós cirúrgica da
DC é melhor antecipada pela severidade das lesões
endoscópicas encontradas durante o primeiro ano
após a realização da mesma. Estes mesmos autores
concluíram que nos pacientes sem lesões ou com
lesões endoscópicas ligeiras (Score de Rutgeerts i0
e i1), o surgimento de sintomas ou complicações
de recidiva da doença eram muito raros e 80%
destes doentes mantinham aspecto endoscópico
sobreponível aos 3 anos. Em contraste, doentes com classificações endoscópicas de i3 e i4,
tinham muito pior prognóstico, desenvolvendo
complicações da doença nos anos subsequentes,
isto é, 92 % destes doentes tinham progressão ou
evolução severa aos 3 anos. Definiram ainda um
grupo de risco intermédio, classificado como i2,
em que cerca de 60 % dos doentes se mantinha
com aspecto endoscópico idêntico e em 40 %
ocorria agravamento das lesões.
O método gold standard para a determinação de
recorrência da DC consiste na realização de colonoscopia com ileoscopia. No entanto, devido à
necessidade de preparação intestinal e de se tratar
de um método invasivo, apresenta baixa compliance.8 Desta forma, um método não invasivo capaz
de identificar e graduar o subgrupo de pacientes
com recorrência da doença apresentaria grande
utilidade clínica.
A calprotectina foi descrita pela primeira vez
em 1980 por Fagerhol et al.9 Constitui mais de
60% das proteínas do citosol dos neutrófilos
pelo que constitui uma proteína abundantemente
encontrada em todos os fluidos biológicos em
proporção à inflamação existente a este nível.10
Os níveis elevados de calprotectina fecal (CF)
correlacionam-se com a migração de neutrófilos
para o lúmen intestinal e com o grande turnover
leucocitário (a calprotectina é libertada aquando
a morte celular). É resistente à degradação bacteriana presente no intestino, estável até mais de
uma semana a temperatura ambiente e está distribuída uniformemente nas fezes. É facilmente
quantificável utilizando método de ELISA o que
constitui um método simples e não dispendioso.
Apenas 5 g de fezes são suficientes para a sua
quantificação.11
Uma das aplicações mais promissoras da CF
é a capacidade de predizer recidiva clínica e ser
marcador de cicatrização da mucosa intestinal.11
A CF pode posicionar-se como alternativa não
invasiva capaz de identificar os doentes com risco
de recidiva.
Nesse sentido, de forma a determinar a acuidade
da CF no diagnóstico de recidiva endoscópica, os
autores desenvolveram um protocolo, no qual os
valores de CF foram comparados com os achados endoscópicos, classificados de acordo com
índice de Rutgeerts e, secundariamente, a CF foi
comparada também com os valores laboratoriais
(hemoglobina, leucócitos, plaquetas e proteína
C reactiva).
OBJECTIVOS
Determinar a capacidade da calprotectina fecal
(CF) na predicção de recidiva da DC em doentes
com cirurgia prévia.
MATERIAL E MÉTODOS
Doentes
Foi elaborado um estudo prospectivo, desenvolvido entre Dezembro de 2010 e Maio de 2011,
onde se englobaram 30 doentes com seguimento
habitual em consulta de DII no hospital, com
diagnóstico de DC inequívoco de localização ileal/
ileocólica com antecedentes de cirurgia intestinal
e sem doença peri-anal activa.
Os doentes elegíveis estavam clinicamente
assintomáticos (definidos por Crohn´s Disease
Activity Index < 150), possuíam tempo mínimo
12 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
em meio frio. O tempo decorrido entre a colheita
da amostra fecal, a realização de colonoscopia e a
avaliação analítica (determinação da hemoglobina,
plaquetas, leucócitos e proteína C reactiva) foi, no
máximo, 4 semanas.
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética
do nosso hospital e todos os doentes deram o seu
consentimento informado para inclusão no estudo.
n TABELA 1
Distribuição dos achados endoscópicos de
acordo com o score de Rutgeerts
Score de Rutgeerts
Nº de doentes
i0
5/30
i1
16/30
i2
4/30
i3
3/30
i4
2/30
desde a cirurgia (ressecção ileal ou ileocólica sem
se estender para além do ângulo hepático) igual ou
superior a 6 meses e com terapêutica estabilizada
há pelo menos 12 semanas.
As colonoscopias consideradas foram exames totais, isto é, com observação da anastomose cirúrgica
e exploração do íleon neoterminal, realizadas com e
sem anestesia e executadas por gastrenterologistas
experientes em doença inflamatória intestinal. Os
doentes cumpriram a preparação intestinal habitual,
com 4 L de polietileno glicol. Os achados foram
classificados em 5 classes, de acordo com índice de
Rutgeerts: i0 se ausência de lesões no íleon terminal; i1 se presença de 5 ou menos erosões no íleon
terminal; i2 se mais de 5 erosões no íleon terminal
com mucosa indemne entre elas ou lesões maiores
limitadas à anastomose ileocólica; i3 ileíte aftosa
difusa no íleon neoterminal com mucosa extensamente inflamada; i4 inflamação difusa com úlceras
de grandes dimensões, nódulos e/ou estenoses. Estas
lesões endoscópicas foram divididas em 2 grupos:
i0 e i1, considerados como ausência de recidiva endoscópica; e i2, i3 e i4 considerados como recidiva
endoscópica.
A colheita de fezes decorreu no domicílio, em contentor plástico esterilizado, previamente ao início da
preparação intestinal ou uma semana após a realização
de colonoscopia.
O doseamento da CF foi efectuado no Laboratório
de Patologia Clínica do nosso hospital utilizando o
método quantitativo ELISA (EK-CAL; Calprotectin
ELISA, Buhlmann, Suíça) que recomenda a utilização
do cut-off de 50 μg/g. A sua quantificação foi efectuada
num período máximo de 120 dias após conservação
a -20º e o tempo mediado desde a colheita de fezes e
a sua recepção foi inferior a 7 dias, com conservação
Análise estatística
Os dados foram analisados utilizando o programa SPSS
para Windows 17.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA).
Valores de p<0,05 indicaram significância estatística.
Dados demográficos e clínicos foram recolhidos
através de entrevista clínica e pesquisa no processo
único do doente.
Foi criada tabela crosstabs de ambas as variáveis
categóricas (valores de CF e aspecto macroscópico
da colonoscopia expresso no score de Rutgeerts) com
respectivo cálculo da sensibilidade, especificidade,
valor preditivo positivo (VPP) e valor preditivo negativo (VPN).
As variáveis contínuas foram testadas para a sua distribuição normal utilizando o teste Shapiro-Wilk. O
teste de Mann-Whitney U foi o teste não paramétrico
utilizado na comparação das médias dos valores de
CF, PCR e leucócitos entre os 2 grupos. O teste T de
Student foi o teste paramétrico utilizado no cálculo
das médias de hemoglobina e plaquetas entre os dois
grupos.
A relação entre a CF os achados endoscópicos,
bem como os parâmetros analíticos e os achados endoscópicos (definidos como colonoscopia negativa
para recidiva endoscópica se score de Rutgeerts ≤1
e colonoscopia positiva se score de Rutgeerts ≥2) foi
calculada com curvas Receiver Operation Characteristic (ROC), nomeadamente com a área debaixo
da curva (AUC). Foi ainda determinado nesta curva
um ponto de corte que melhor estivesse associado
a resultado positivo no teste de CF.12
Para determinação do grau de concordância entre
os valores de CF e a colonoscopia, para os cut-off
preconizados pelo fabricante dos kits de quantificação da CF e o determinado na nossa série, com
maior sensibilidade e especificidade, utilizou-se o
índice de concordância Kappa (K).12
Na determinação da associação entre 2 variáveis,
nomeadamente entre a CF e os valores laboratoriais
analisados, foi utilizada a correlação de Spearman.
REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 13
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
(tempo mínimo de 9 meses e
tempo máximo de 269 meses).
CF média em ambos os grupos: Rugeerts ≥ 2 (colonoscopia
A maioria das cirurgias haviam
positiva) e Rutgeerts < 1 (colonoscopia negativa).
sido realizadas por via aberta
(23/30).
À data da realização do estudo 23,3% (7/30) estavam sem
medicação; 30% (9/30) estavam
medicados com messalazina;
36,7% (11/30) estavam medicados com azatioprina; 3,3%
(1/30) estava medicado com a
combinação de messalazina e
azatioprina e 6,7% (2/30) estavam a fazer terapêutica com
biológicos (adalimumab).
Era patente uma maioria de
doentes não fumadores (27),
sendo 2 deles ex-fumadores.
As colonoscopias foram realizadas em 66,7% (20/30) sob
sedação anestésica. A distribuin FIGURA 2
ção dos achados endoscópicos
Distribuição dos valores de CF nos 2 grupos em estudo.
pela classificação do score de
Rutgeerts apresenta-se em seguida na tabela 1. Assim, 21
doentes apresentavam um score
de Rutgeerts <2 e 9 doentes, um
score de Rutgeerts ≥2.
A CF média foi significativamente superior nos doentes
com score de Rutgeerts ≥2. Para
o grupo dos doentes com score
de Rutgeerts < 2, a CF média foi
de 69,4 ± 49,1 μg/g, enquanto
que para os restantes doentes,
esta foi de 336,1 ± 201,1 μg/g
(p <0,001) (figura 1).
Efectivamente, 10 doentes
dos 21 sem recidiva endoscópica significativa apresentaram valores de CF infeRESULTADOS
Dos trinta doentes incluídos no nosso estudo, riores a 50 μg/g, 17 doentes apresentaram valores
de CF inferiores a 100 μg/g e apenas 4 acima deste
20 eram do sexo feminino e 10 do sexo mascuvalor (figura 2).
lino, com uma média de idades de 39,4 ± 11,4
A área debaixo da curva ROC para a CF em reanos (idade mínima de 22 anos e máxima de 62 lação com os achados endoscópicos foi de 0,974
anos). Todos haviam sido submetidos a ressecção (excelente capacidade discriminativa), sugerindo
ileocecal (episódio cirúrgico único de ressecção que a CF distingue correctamente os 2 grupos de
intestinal) há uma média de 83,8 ± 68,8 meses doentes (figura 3).
n FIGURA 1
14 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
ficidade de 0,48. O VPP foi de
0,45 e o VPN de 1.
Curva ROC e AUC para CF e achados da colonoscopia (AUC 0,974).
A partir da curva ROC, o valor
da CF que melhor define recorrência endoscópica na nossa
série foi 116,50 μg/g, associado
a uma sensibilidade sobreponível ao cut-off anterior (de 1)
mas associado a um acréscimo
importante na especificidade
para 0,95.
Dos parâmetros analíticos,
foram analisados os valores
de hemoglobina, leucócitos,
plaquetas e proteína C reactiva
(PCR). Os valores médios nos
dois grupos estão apresentados
na tabela (tabela 3). Apenas os
valores de PCR e leucócitos apresentaram diferença
n TABELA 2
estatisticamente significativa.
Tabela crosstabs para cálculo da sensibiliAs curvas ROC foram calculadas para os parâmedade, especificidade, valor preditivo positivo
tros analíticos em relação com os achados endoscó(VPP) e valor preditivo negativo (VPN)
picos (figuras 4 e 5). Embora o poder discriminativo
Calprotectina
seja fraco, os leucócitos e a PCR evidenciam melhor
Total
<50
>=50
poder discriminativo (respectivamente AUC 0,750
e 0,756) quando comparados com as plaquetas e da
Sem recidiva (Rutgeerts <2)
10
11
21
hemoglobina (AUC respectivamente 0,689 e 0,505).
Recidiva (Rutgeerts ≥2)
0
9
9
10
20
30
Total
Posteriormente foi avaliado o grau de concordância entre os valores de CF e os achados endoscópicos, novamente para ambos os cut-off (50 e 116,50
n TABELA 3
μg/g). O índice de kappa foi, respectivamente, 0,337
Valores médios dos parâmetros analíticos
e 0,851, realçando a melhor performance do último
(PCR, leucócitos, hemoglobina e plaquetas).
cut-off determinado.
Por último, procedemos à determinação de
Parâmetro
Score de
Score de
p
existência de associação entre as variáveis entre si
analítico
Rutgeerts <2 Rutgeerts ≥2
(correlação de Spearman), tendo sido evidente uma
correlação com significado estatístico entre CF e
PCR
0,55±0,62
1,34±1,2
0,028
PCR (ρ<0,51; p<0,005) e entre a PCR e os leucócitos
Leucócitos
6,3±1,5
7,7±1,5
0,034
(ρ<0,47, p<0,01).
n FIGURA 3
Hemoglobina
13,7±0,7
13,6±1,6
0,908 (ns)
Plaquetas
248,1±57,0
282,1±62,8
0,149 (ns)
Foram então calculados os valores de sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e valor
preditivo negativo para o cut-off preconizado pelo
distribuidor do kit da CF, tendo por base um tabela
crosstabs (tabela 2).
A sensibilidade deste teste foi de 1, com especi-
DISCUSSÃO
Embora a prevenção de recidiva pós cirúrgica da
DC e a modificação de potenciais factores de risco
tenham tido especial enfoque em múltiplos estudos, permanecem ainda como problemas de difícil
resolução.
A recidiva é de algum modo imprevisível já que os
factores de risco que se podem analisar previamente
à realização da cirurgia (idade de início da doença,
REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 15
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
ter invasivo e a necessidade de
preparação intestinal rigorosa
Valores da AUC para os parâmetros analíticos (leucócitos, plaquetas
o que dificulta a sua utilização
e PCR): 0,750, 0,689 e 0,689 e 0,756, respectivamente
como meio de monitorização
de doentes, particularmente
nos doentes com necessidades
de várias observações
Desta forma um método não
invasivo, cómodo, de fácil interpretação, não dispendioso
e com boa correlação com os
achados endoscópicos, permitiria identificar esses mesmos
doentes de forma a instituir a
devida terapêutica e monitorizar a sua resposta.
Os resultados do nosso trabalho apontam no sentido que
a CF possa constituir um insn FIGURA 5
trumento útil na monitorização
Valores da AUC para hemoglobina: 0,505
dos doentes com DC submetidos a ressecção intestinal.
Na nossa série, cerca de 1/3
dos doentes, apesar de assintomáticos e sob terapêutica,
apresentavam lesões endoscópicas com risco de recorrência
significativo. São estes doentes,
não reconhecíveis aquando
da entrevista clínica que urge
identificar, atendendo ao risco
acrescido de recidiva. Estes pacientes apresentam valores de
CF que foram significativamente superiores nos doentes com
score de Rutgeerts ≥ 2. A CF
revelou
excelente
capacidade
discriminativa (AUC
localização e seu comportamento, hábitos tabágicos
e número de ressecções cirúrgicas) não permitem 0,974), muito superior aos parâmetros analíticos
em cada caso individual determinar o curso provável estudados (hemoglobina, leucócitos, plaquetas e
da doença. Por isso têm sido feitas recomendações PCR), nomeadamente na distinção entre doentes
no sentido de realizar colonoscopia com ileoscopia que necessitem de eventual ajuste terapêutico e
aos 6-12 meses após ressecção ileocecal, numa ten- aqueles que podem manter-se com regime previatativa de detectar a recidiva pré-clínica e servindo mente instituído. Aliás, os únicos valores analíticos
como guia às decisões terapêuticas. Presentemente com diferença estatística nos 2 grupos avaliados
este meio complementar de diagnóstico constitui o (com e sem recidiva endoscópica) foram os leucómelhor método na determinação da recidiva endos- citos e a PCR.
cópica precoce e o grau da severidade da recidiva
A sensibilidade e o VPN deste teste para o valor
endoscópica tem implicações clínicas. No entanto, de cut-off preconizado pelo fabricante foram muito
apresenta como principais problemas o seu carác- bons. Contudo, este valor está associado a uma
n FIGURA 4
16 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
baixa especificidade e VPP. O aumento do valor de
cut-off para 116,5 μg/g mantém os valores de sensibilidade e determina um aumento na especificidade
(para 0.95), conferindo óptimas características a
este teste de diagnóstico. Com este novo cut-off,
ocorre um aumento da acuidade diagnóstica, confirmada também com o aumento da concordância
do mesmo (avaliada pelo índice Kappa) com o que
foi considerado o gold standard no nosso trabalho:
a colonoscopia.
Os nossos resultados reforçam a utilidade da CF
no universo dos doentes previamente operados
com ressecção intestinal e vai de encontro a outros
trabalhos publicados.
Costa et al13 estudaram grupo de 12 doentes
com DC submetidos a ressecção intestinal e
encontraram uma absoluta concordância entre
os doentes com recorrência da doença na anastomose e valores de CF aumentados.
Orlando et al14 investigaram o papel da determinação da CF na predição de recorrência
pós cirúrgica em doentes assintomáticos com
doseamentos de CF e realização de ecografia aos
3 meses e colonoscopia um ano após cirurgia. Os
autores determinaram uma sensibilidade de 63%
e uma especificidade de 75% para um cut-off >
200 mg/L e de 94% e 25 % respectivamente para
cut-off < 50 mg/L. Finalizaram as suas conclusões determinando que aquele valor de CF (200
mg/L) aos 3 meses era diferenciador dos doentes
que deveriam ser submetidos a colonoscopia,
no sentido de detectar recorrência precoce. Finalmente num estudo recentemente realizado,
ainda somente com resultados preliminares,
envolvendo 19 doentes15 com ressecção ileocecal, procederam à classificação dos mesmos com
Índice de Harvey-Bradshaw (IHB), doseamento
de parâmetros analíticos e realização de colonoscopia aos 12 meses após cirurgia. Nesta amostra,
mais uma vez se encontrou que os pacientes com
score de Rutgeerts <2 possuíam valores de CF
significativamente inferiores aos pacientes com
score de Rutgeerts ≥ 2. Por outro lado, os valores
laboratoriais e o IHB não possuíam diferenças
estatísticas entre os 2 grupos.
Existem no entanto alguns trabalhos discordantes, nomeadamente Scarpa et al 16 ao
seguirem uma amostra de 63 doentes com DC
após ressecção ileocólica, realizaram a compa-
ração com achados analíticos e endoscópicos e
concluíram que estes doentes mantêm valores
elevados de CF, mesmo aquando remissão clínica, não sendo patente qualquer diferença entre
valores da CF em doentes com CDAI inferior ou
superior a 150. Com estes resultados chegou-se
a equacionar a invalidez da CF após ressecção
intestinal. Já Lamb et al17 encontraram concordância da CF com os índices clínicos mas não
com os endoscópicos. Este estudo envolveu 2
grupos: o primeiro, composto por 13 doentes no
período imediato pós-cirúrgia, seguidos longitudinalmente ao longo de um ano com colheitas
regulares de marcadores fecais, atestaram que
a normalização dos valores da CF, em doentes
sem intercorrências, num período de dois meses
após a cirurgia; o outro grupo, composto por
104 doentes, classificados clinicamente com
IHB, tendo realizado colonosopia em 43 doentes.
Neste grupo, a CF apresentou boa correlação
com actividade clínica (superior à PCR) mas
o mesmo não aconteceu com os achados endoscópicos. No entanto, ao contrário do nosso
trabalho, a avaliação endoscópica parece não
ter sido padronizada, nomeadamente com a
utilização do índice de Rutggerts.
Existem várias limitações que poderão ser
imputadas ao nosso estudo. Uma delas, transversal a todos os estudos pós ressecção ileocecal
em doentes com DC, é a falta de um teste que
por si só possa determinar de modo definitivo
a existência de recorrência da doença. Este facto aumenta a dificuldade em validar o uso de
qualquer outro teste.
Na recorrência sintomática, sabe-se que o
comportamento pós-cirúrgico da DC depende
das suas características pré-cirurgia. A maioria
dos nossos doentes era não fumadora e a doença
abarcava o íleon terminal e/ou cego/ascendente
proximal, mas não entrámos em linha de conta
com o comportamento prévio e extensão.
O nosso estudo não envolveu avaliação anatomo-patológica sistematizada, o que poderá
ser considerado uma limitação. No entanto, o
conceito de recorrência tem sido definido tendo
por base achados clínicos, analíticos e endoscópicos, não englobando a histologia.
Embora os nossos dados, bem como os de
outros autores sejam promissores quanto à
REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 17
ARTIGO ORIGINAL
ORIGINAL ARTICLE
utilidade da CF, parece-nos no entanto fundamental a implementação de mais estudos para
consubstanciar estas conclusões. Estes deverão
caracterizar-se por amostras maiores, incluir a
avaliação prospectiva dos novos cut-off e explorar a aplicação da CF à monitorização da
terapêutica imunomoduladora.
CONCLUSÃO
A CF revelou-se um método útil na avaliação dos
doentes com DC submetidos a ressecção intestinal prévia, ao identificar os que não apresentam
sinais endoscópicos de recidiva e que portanto
não necessitam de ajustes terapêuticos nem
de investigação endoscópica. Por outro lado,
permite a identificação dos doentes que possam
beneficiar da realização da colonoscopia com
ileoscopia e/ou terapêutica imunomoduladora/
imunossupresssora.
Os nossos resultados apontam ainda para a
possibilidade de que o uso de um cut-off mais
elevado poderá produzir resultados superiores. n
BIBLIOGRAFIA
1. Wiliams JG, Wong WD, Rothenberer DA, Goldberg SM. Recurrence of Crohn´s disease
after resection. Br J Surg 1991; 78 10-9.
2. Farmer RG, Whelan G, Fazio VW. (1985) Long-term follow-up of patients with Crohn’s
disease. Relationship between the clinical pattern and prognosis. Gastroenterology;88(6):1818-25.
3. Cosnes J, Nion-Larmurier I, Beaugerie L, Afchain P, Tiret E, Gendre JP. Impact of the
increasing use of immunosuppressants in Crohn’s disease on the need for intestinal
surgery. Gut 2005, 54(2):237-41.
4. Rutgeerts P, Geboes K, Vantrappen G, Beyls J, Kerremans R, Hiele M. Predictability of
the postoperative course of Crohn’s disease. Gastroenterology 1990;99(4):956-63.
5. Olaison G, Smedh K, Sjödahl R. Natural course of Crohn’s disease after ileocolic
resection: endoscopically visualised ileal ulcers preceding symptoms. Gut 1992;
3(3):331-5.
6. Rutgeerts P. Strategies in the prevention of post-operative recurrence in Crohn’s
disease. Best Pract Res Clin Gastroenterol 2003; 17(1):63-73.
7. Biancone L, Onali S, Calabrese E, et al. Non-invasive techniques for assessing postoperative recurrence in Crohn’s disease. Dig Liver Diis 2008; 40:265-70.
8. Belsey J, Epstein O, Heresbach D. Systematic review: oral bowel preparation for
colonoscopy. Aliment Pharmacol Ther 2007; 15;25(4):373-84.
9. Fagerhol MK. Calprotectin, a faecal marker of organic gastrointestinal abnormality.
Lancet. 2000; 25;356(9244):1783-4.
10.Sutherland DA, Richard B., Gearry, Franz A. Frizelle. Review of fecal biomarkers in
inflammatory bowel disease. Diseases of the colon & rectum 2008; 51: 1283-1291.
11.Gisbert JP, McNicholl AG. Questions and answers on the role of faecal calprotectin
as a biological marker in inflammatory bowel disease. Digestive and Liver Disease
2009; 41: 56-66.
12.Pestana MH, Gageiro JN. Análise de Dados para Ciências Sociais - A complementaridade do SPSS” ed Sílabo;1998.
13.Costa F, Mumolo MG, Bellini M, et al. Role of faecal calprotectin as non-invasive
marker of intestinal inflammation. Dig Liver Dis 2003; 35: 642-7.
14.Orlando A, Modesto I, Castiglione F, et al. The role of calprotectin in predicting endoscopic post-surgical recurrence in asymptomatic Crohn’s disease: a comparison with
ultrasound. Eur Rev Med Pharmacol Sci 2006; 10(1):17-22.
15.Lasson A., Strid H., Rydström B., Öhman L., et al. Faecal calprotectin- a marker of
endoscopic recurrence and prognosis one year after ileocaecal resection for Crohn´s
disease. Gut 2010; 59 (Suppl III) A293.
16.Scarpa M, D´Inca R, Basso D, et al. Fecal lactoferrin and calprotectin after ileocolonic
resection for Crohn´s disease. Dis Colon Rectum 2007; 50: 861-9.
17.Lamb CA, Mohiuddin MK, Gicquel J. et al. Faecal calprotectin or lactoferrin can
identify postoperative recurrence in Crohn’s disease. Br J Surg 2009; 96(6):663-74.
18 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014
Download

Valor da calprotectina fecal na avaliação da recorrência pós