XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006
O visual e o auditivo – uma análise espectrográfica e reflexões no
espelho de Constellation-Miroir de Pierre Boulez
Maurício Garcia Freire
Escola de Música da UFMG
e-mail: [email protected]
Euridiana Silva Souza
Escola de Música da UFMG
e-mail: [email protected]
Sumário:
Constellation-Miroir é uma obra de referência entre as composições de Pierre Boulez. O presente
trabalho faz uso da análise musical tradicional aliada à análise espectrográfica. O objetivo central é
auxiliar tomadas de decisões ou levantar questionamentos de um intérprete frente a uma composição
complexa como esta, principalmente no que diz respeito à exploração do uso dos pedais do piano
como modificadores timbrísticos. Apresenta-se uma contextualização da obra, análises
espectrográficas de pequenos trechos de uma performance, e questões mais amplas sobre a análise da
obra, usando múltiplos recursos. Explora-se ainda como a análise de uma performance, pode auxiliar
um intérprete.
Palavras-chave: Análise espectrográfica; efeitos acústicos; pedais do piano; Constellation-Miroir.
Introdução
Constellation-Miroir é o movimento central dos cinco que compõe a Terceira Sonata de
Pierre Boulez. Composta entre 1955 e 1957, o compositor utiliza uma forma aberta que contém o
seu próprio espelho. O título da peça se deriva do enorme interesse sobre o estudo das constelações
na época em que foi escrita e o uso metafórico dos pontos brilhantes no céu como pontos sonoros
do serialismo – constellation, e, na leitura espelhada, pois a peça pode ser feita da ‘da direita para a
esquerda’ – Miroir. Este movimento não contém somente o seu espelho, como também é o eixo
especular da obra completa1, escrita sob os anseios de Boulez em possuir um ‘hiperinstrumento’,
amplamente diverso em timbres, cores e sonoridades.
Je né décris là que lê principal critère organisateur de cette píèce; il y en a d’autres
naturellement, secondaries, adjacents, comme lê timbre – duson direct au son reverbere em
passant par la zone intermédiaire -, lê registre – délimitant lê champ de fréquences dans
lequal se mouvra tel ensemble -, etc. (Boulez: 1964:62).
Através do uso dos três pedais do instrumento, da exploração dos variados ataques e do
‘jogo’ com os registros de alturas, ele conseguiu um resultado timbrístico bastante interessante,
tornando o movimento em questão uma de suas obras de referência.
A peça compreende seis partes: Points 1, 2 e 3 - relacionados à série dodecafônica
propriamente dita, ou seja, aos “pontos sonoros” que a série produz; Blocs 1 e 2 - relacionados aos
blocos sonoros resultado de fusões de séries e expansões das mesmas, e Mélange - points e blocs.
1
Os cinco movimentos da sonata são: 1- Antiphonie; 2- Trope; 3- Constellation-miroir; 4- Strophe; 5Séquence. Constellation-miroir mantém-se sempre no centro de uma gama de permutações que podem ser feitas para a
execução completa da sonata, que obedece ao diagrama: 2-1-3-4-5 / 1-2-3-5-4 / 2-1-3-5-4 / 5-4-3-2-1 / 4-5-3-2-1 / 4-53-1-2.
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Pontos permanecem sempre na região média do piano, ao contrário de blocos que vão expandindo
para os registros extremos do instrumento.
A notação do tempo de duração, controle e manipulação do espectro sonoro, está
diretamente ligada à ressonância - liberação, inserção e sustentação de harmônicos formantes do
timbre:
É por isso que já vimos a série de doze sons iguais ser substituída por blocos sonoros sempre
com densidade desigual; e que vimos métrica ser substituída pela série de durações e blocos
rítmicos (células rítmicas ou superposição de durações diferentes); que vimos enfim, a
intensidade e o timbre não se contentarem mais com suas virtudes decorativas ou poéticas e
adquirir, além desses privilégios conservados, uma importância funcional que reforça seus
poderes e suas dimensões” (Idem; 1972:52).
Boulez recorre à liberação de harmônicos com o uso do pedal tonal, designando os
chamados acordes ou arpejos que vamos chamar negativos: não foram atacados, mas estarão soando
no resultado sonoro final. Na bula de Constellation-Miroir, Boulez deixa bem claro: “As indicações
de pedal, extremamente precisas, devem ser estritamente respeitadas”.2 Dentre as formas de usar o
pedal Boulez prescreve: usar pedal inteiro, usar meio pedal, limpar pedal inteiro, limpar meio pedal,
abaixar ou relevar progressivamente o pedal, entre outros. Essa gama de utilizações possibilitará os
efeitos acústicos relacionados diretamente à presença e duração dos harmônicos.
Através da análise espectrográfica, ou seja, “visualização dos parciais [do som] presentes
com respectivas intensidades e durações” (Garcia; 2001:374), de uma dada interpretação3 de trechos
da peça, poderemos observar os referidos efeitos acústicos.Essa análise nos possibilita levantar
questões como: de que modo esses efeitos são construídos? São ou não claramente percebidos?
Como esse tipo de análise, de uma interpretação, pode auxiliar na performance da peça?
O uso dos pedais: partituras e gráficos
Boulez recorre, às vezes, ao uso dos três pedais do piano simultaneamente. É interessante
ressaltar os efeitos que cada um desses pedais gera ao ser acionado:
- Pedal esquerdo (una corda): “o mecanismo do instrumento desloca-se todo para a
direita, de modo que, na região médio-aguda o martelo percute em duas cordas ao invés de três; na
região médio-grave percute em uma ao invés de duas e nos bordões graves bate descentrado”
(Henrique; 1994:199). Há uma diminuição do volume sonoro e uma mudança no timbre ocasionada
pela redução na produção de harmônicos.
- Pedal direito: “o pedal direito faz com que os abafadores, em bloco, desencostem das
cordas, deixando-as, assim, livres para vibrar. Há um acréscimo de harmônicos no som produzido,
pois, mesmo quando se toca uma só nota, junta-se a ela os sons resultantes da vibração por simpatia
das outras cordas” (op.cit: 200).
- Ao se acionar meio pedal, o feltro dos abafadores não se levantará completamente, de
forma que os harmônicos agudos ficam mais contidos. O mesmo acontece quando se limpa meio
pedal: mantêm-se os harmônicos graves em detrimento dos agudos.
- Pedal central (tonal ou sostenuto)4: o uso deste pedal torna possível prolongar o som de
uma nota grave enquanto de utiliza ambas as mãos no registro médio e agudo. Enquanto estiver
acionado, ele mantém somente os abafadores que já se encontravam desencostados, quando do
ataque da nota. Boulez recorreu a esse pedal não somente para sustentar sons já atacados, mas para
liberar harmônicos de notas não atacadas.
2
Boulez, Pierre. Troisième Sonate pour piano. Formant 3 (Constellation-Miroir) (1955-57). Universal Edition
13293(b). Première edition et deuxième édition corrige por Robert Piencikowski.
3
Cláudio Helfer. Astrée-auvides, Teatre Municipale de Vevey [1980] 1986.
4
O pedal central varia de função conforme o modelo do piano. Somente o piano de cauda possui o pedal com a
função descrita a frente.
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Para análise dos efeitos dos usos desses pedais, foram selecionados dois trechos de Blocs
25. No primeiro trecho, o acorde marcado na partitura indica as notas liberadas pelo pedal tonal, e as
respectivas marcas no gráfico indicam esse efeito. O pedal direito é completamente trocado em cada um dos
acordes ,”limpando” todos os sons tocados anteriormente, exceto aqueles gerados pelo pedal tonal.
Notas
liberadas
pelo pedal
Ressonâncias
do pedal tonal
Ressonâncias
do pedal tonal
Ilustração 1- primeiro trecho escolhido e seu respectivo gráfico espectral
No segundo trecho o pedal da direita é acionado “meio-pedal”, como explicita o
compositor. Também notamos a troca “meio pedal”, criando um efeito de ‘massa sonora’ advindo
de harmônicos parcialmente retirados e adicionados em cada uma dessas trocas.
5
Nesses gráficos espectrais, as freqüências (linhas e pontos) aparecem em uma escala logarítmica vertical
ascendente do grave para o agudo, e a amplitude relativa é representada em ordem crescente por cores do azul ao
vermelho.
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.
Área parcialmente limpa pelo
“meio pedal” entre os dois
primeiros ataques
Ressonância
ocasionada pelo
acionamento do
“meio pedal”
Ilustração 2- segundo trecho escolhido e seu respectivo gráfico espectral
Análise dos gráficos
Esses efeitos acústicos são produzidos a partir da retirada ou inserção de harmônicos no
espectro sonoro, da ressonância nas cordas liberadas, ou ainda, da sustentação de determinados
harmônicos. Ao observar o primeiro gráfico, percebemos harmônicos que se prolongam, liberados e
sustentados pelo pedal tonal. No segundo trecho, evidencia-se a sustentação não linear de
harmônicos de frequências mais baixas durante a execução de notas agudas. aqui, o efeito se dá pela
forma de acionar e ‘limpar’ o pedal da direita: meio-pedal. Vemos ainda a limpeza parcial do som
entre os dois primeiros ataques no trecho dois.
Os efeitos são perceptíveis auditivamente, e claramente visualizados na análise
espectrográfica. Quanto à clareza dessa percepção, devemos ter em mente que, a nossa percepção é
culturalmente desenvolvida, baseada, sobretudo, nas alturas, ataques e durações. Ao delimitar a
duração a partir de um timbre e de um efeito resultante - as ressonâncias- o compositor coloca em
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segundo plano a nossa percepção condicionada, restando-nos apenas um efeito sutil a ser
compreendido, processado e decifrado por nossa audição.
“A análise não deve estudar os ‘aspectos’ do fenômeno iluminado de modos diferentes, ela
deve aproximar, no interior da obra, os diversos componentes que concorrem para sua realização”
(Boulez; 1995:175). Observar uma análise, não só da obra6, mas, de uma performance dessa obra,
nos leva a tomar decisões técnicas e práticas, no presente caso, das necessidades de uma precisão
estrita e mecânica do uso dos pedais, para conseguir o efeito que intencionava o compositor. Essas
análises nos mostram que cada pedalização provocar um efeito muito bem definido, com um papel
estruturante na peça.
Há imagens e sombras no espelho. As imagens são vistas, as sombras se escondem. As
sombras estão lá, na superfície do espelho, mas não se enxergam com facilidade uma vez que
há mais luz nas imagens do que nas sombras. Toda sombra no espelho significa, portanto, a
presença de uma consciência que emerge do esforço para percebe-la. (Lucas; 2001:4).
As nossas análises podem contribuir para essa consciência que se esforça em perceber as
sombras enevoadas dos espelhos de nossas performances. Não só porque a peça em questão traz em
si a marca miroir, antes, porém porque permite que, com olhos e ouvidos atentos, transcenda-se
esse espelho na busca dos efeitos timbrísticos nela contidos.
Referências Bibliográficas
Boulez, Pierre. (1995)[1954]. “...Auprès et au Loin”. In Apontamentos de aprendiz.São Paulo: Perspectiva.
___________
. (1964) “Sonate ‘que me veux-tu’” in Méditations, nº 7, p.61-75.
___________
. (1955-57). Troisième Sonate pour piano. Formant 3 (Constellation-Miroir) Universal Edition
13293(b). Première edition et deuxième édition corrige por Robert Piencikowski.
Garcia, Maurício Freire. (2001). “Density 21.5 de Edgard Varèse: uma análise espectrográfica”. In Anais do
XIII Encontro da ANPPOM. Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG.
Henrique, Luis.(1994). Instrumentos musicais. Porto: Calouste Gulbenkian.
Lucas, Glaura. (2001). As sombras no espelho – percepção e interpretação em etnomusicologia. Trabalho
apresentado na disciplina Análise etnomusicológica II – Prof. Elizabeth Travassos, Centro de letras
e Artes da UNIRIO – Rio de Janeiro (não publicado/policopiado).
Tugny, Rosângela Pereira de. (1996). "Le piano et les dés: études sur Music of Changes, Klavierstück XI et
Constellation - Miroir". Tese de doutorado. Université de Tours. France.
6
Para análise detalhada ver Tugny, Rosângela Pereira de. (1996). "Le piano et les dés: études sur Music of
Changes, Klavierstück XI et Constellation - Miroir". Tese de doutorado. Université de Tours. France.
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