Um time sob controle dos trabalhadores Um minuto de silêncio. Estávamos diante da televisão, em preto-e-branco, na casa do seu Petrolino, em Casimiro de Abreu, quando os jogadores do Corinthians se reuniram no centro do campo, cada um com um braço erguido e um punho fechado, numa homenagem ao Sócrates, que tinha morrido pouco antes. O gesto era o mesmo que o ex-jogador costumava fazer pra comemorar seus gols. Seu Petrolino se levantou da cadeira de balanço, abaixou completamente o som da televisão pra estender o minuto de silêncio e se dedicar plenamente à nossa conversa. Com uma camisa do Petroleiros, time de futebol que montou com companheiros de trabalho e de vida, nos ofereceu suco de caju e começou a nos mostrar um álbum com fotos e anotações sobre o time. O álbum tem fotos de treinos, campeonatos, viagens, reuniões (de futebol e de lutas sindicais e sociais) e de outros momentos de lutas dos trabalhadores. "Nosso time é uma fraternidade: é uma expressão da nossa amizade, um espaço de brincadeira e, como faz parte da nossa vida, faz parte da nossa luta por uma sociedade justa e livre", explicou seu Petrolino. "Criamos o Petroleiros em 1978, pouco antes da Copa na Argentina. A ditadura lá queria utilizar o futebol como pão e circo, pra abafar os gritos dos torturados. Já queríamos fazer um time e a vontade de sermos solidários com nossos vizinhos nos levou a colocá-la logo em prática. Fomos incentivados, nesse projeto, por alguns petroleiros de Buenos Aires, que nos enviaram uma carta dentro de uma caixa de alfajores. Ser um modo de combater a ditadura no Brasil também nos estimulava. E, claro, a vontade de jogar bola", complementou. Seu Petrolino nos contou que fizeram Deliciosos alfajores em cuja caixa nos chegou a carta de alguns petroleiros de Buenos Aires algumas partidas nas quais distribuíram panfletos incentivando que jogadores e seleções boicotassem a Copa e explicassem o porquê. Nesse esforço, o Petroleiros se articulou com comitês de boicote à Copa em alguns países. Alguns jogadores, como o alemão Paul Breitner, não foram à Copa em protesto. "Nosso time funcionava com autogestão. Tomávamos as decisões em reuniões, nas quais todos tínhamos total direito de voz e de voto, em que decidíamos coletivamente. Não havia hierarquia entre nós. O debate era estimulado e havia uma cobrança mútua fraterna pra que todos cumpríssemos o que tivéssemos decidido coletivamente. Isso não quer dizer que não havia espaço pra ajustes de rumos, pra criatividade sobre a criatividade, pra "desobediência". O Yuri Gagarrincha era muito criativo e muito habilidoso. Tanto em campo, onde driblava muito bem, quanto fora, sempre com idéias que entortavam nossas perspectivas. Ele unia muito bem jogadas individuais e jogo coletivo e solidário". "Quem era o Yuri Gagarrincha, seu Petrolino?". "Era o craque do nosso time. Seu nome era Leônidas Barreto. Ele era técnico de manutenção na Reduc. Admirava o cosmonauta Yuri Gagarin, embora fosse crítico em relação à União Soviética. Considerava que o stalinismo tinha trancafiado os sovietes e o próprio socialismo na Sibéria. Mesmo assim, sempre elogiava a Revolução Russa e, de vez em quando, treinava com a camisa do Yashin". Bebemos um pouco mais de suco de caju, enquanto continuamos nossa conversa. "Muito interessante, seu Petrolino. Mas e os trabalhadores que não compunham o Petroleiros? Eles podiam participar das decisões do time?". "Nosso grupo tinha autogestão interna. Entre nós, havia verdadeiramente democracia de base. Mas não chegamos a construir uma organização em que a democracia de base estivesse ao alcance do conjunto dos petroleiros. Em relação a isso, devemos levar em consideração que não tínhamos mesmo a intenção de ser o time de todos os petroleiros. Estimulávamos que fossem criados vários grupos de base autônomos e que as linhas mais gerais da luta comum fossem decididas em congressos de grupos de base. Por outro lado, temos que reconhecer que havia um limite na nossa autogestão e que isso era um problema. Apesar de aceitarmos muito bem sugestões de outros trabalhadores e até de incentivarmos os companheiros dos diversos setores a nos enviarem propostas, não conseguimos organizar uma autogestão mais ampla, pro conjunto dos trabalhadores petroleiros. Chegamos a dar alguns passos nesse sentido. Era comum que outros trabalhadores até participassem de reuniões do Petroleiros, alguns deles nossos torcedores, e decidíamos muitas coisas juntos. Mas não era suficiente". "É difícil mesmo, seu Petrolino. Mas, se reunirmos experiências de autogestão, podemos chegar a uma proposta bem consistente, que só se tornará realidade se for praticada pelo coletivo. Aquele filme sobre o qual falamos recentemente (pode ser visto em http://watch.usnowfilm.com), mostra um time da Inglaterra em que os torcedores, com a ajuda de um sistema informático, escolhem a escalação". "Pois é, eu vi. Eles fazem parcialmente autogestão, pelo lado dos torcedores. A Democracia Corinthiana, movimento organizado pelo Sócrates e outros jogadores do Corinthians no início da década de 1980, conseguiu que os jogadores participassem de decisões envolvendo o método de trabalho do time. O grande desafio é realmente a democracia de base em grande escala, em instituições complexas e de grande porte e em grandes extensões territoriais. O futebol mobiliza milhões de pessoas no mundo. Imagina se isso acontecesse de modo crítico e com democracia de base. Seria uma revolução. E imagina se em cada local de trabalho as pessoas se organizassem dessa forma". Continuamos nossa conversa nos deliciando com o suco de caju e, sobretudo, com a própria conversa. Em breve, visitaremos novamente o seu Petrolino. Mas, enquanto isso, queremos conversar com nossos companheiros de cada local de trabalho. E também jogar futebol. O convite está feito. Nosso correio eletrônico é [email protected]. Cidadão Boilesen Vamos passar esse filme, de Chaim Litewski, no Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro, na terça 26 de junho, às 18h . Se quiserem assistir conosco, serão muito bem-vindos. Convidem também os companheiros de trabalho. O sindicato fica na Avenida Passos, 34 – Centro (entre a Avenida Presidente Vargas e a Praça Tiradentes). Os carros-fortes estão cada vez mais parecidos com tanques militares. Por que será?