Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128
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A DRAMATURGIA DE AFONSO ÁLVARES ENTRE O ESTADO E A
IGREJA
Verônica Cruz Cerqueira (UFBA)
O dramaturgo português Afonso Álvares, sobre cuja biografia quase nada
sabemos, possivelmente nasceu no início do século XVI, foi criado do Bispo de Évora,
D. Afonso de Portugal, e depois mestre-escola em Lisboa1. Afonso Álvares é um dos
quatro maiores autores de um grupo de dramaturgos do século XVI que apresentava
em suas obras elementos em comuns ao teatro de Gil Vicente. Ao fazer a comparação
das obras de Vicente com as obras de autores contemporâneos ou posteriores a ele,
Teófilo Braga concebeu o nomenclatura de “Escola Vicentina” a este grupo de
autores que traziam em suas obras vestígios dos aspectos estilísticos vicentinos (2005
[1898]) 2.
Do dramaturgo, chegou-nos quatro autos. O Auto de Santo Antônio encena a
vida do santo, desde sua entrada no Mosteiro dos frades vicentinos, passando por
sua mudança para a Ordem dos franciscanos, a tentativa do diabo em desviá-lo de
1
Tais informações são possíveis devido às “conversas” entre Álvares e o dramaturgo António Ribeiro
Chiado, que compõem a edição das Obras de Afonso Álvares preparada no Centro de Estudos de
Teatro da Universidade de Lisboa e dirigida por José Camões.
2
Fazem parte deste grupo de dramaturgos, entre outros, António Ribeiro Chiado, António Prestes,
Baltasar Dias, Jerónimo Ribeiro, Anrique Lopes, Jorge Pinto, João Escovar, António de Lisboa, Simão
Machado, Sebastião Pires e Afonso Álvares, objeto de análise desta pesquisa. Completam este grupo
um significativo conjunto de textos anônimos.
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sua missão, até chegarmos ao ápice da história, a ressurreição de um menino, por
intercessão de Santo António a Deus. O Auto de Santiago baseia-se na realização de
um milagre também devido à intercessão do santo em favor de um homem,
prisioneiro dos mouros. Aborda de maneira concisa a questão da peregrinação, do
seguimento das leis divinas e do culto a Nossa Senhora.
O Auto de Santa Bárbara, no qual a crítica ao Paganismo é acentuada, o
primeiro sinal da grandeza da divindade cristã é a conversão de Bárbara, que
acontece por meio do batismo realizado por um anjo. Tal ação culmina no martírio
de Bárbara. E, por fim, o Auto de São Vicente, que relata a história do martírio do
santo e a disputa que teve com Daciano, rei dos gentios.
Todos os autos são de caráter hagiográfico, ou seja, contam a vida dos santos,
seus milagres, e por isso carregam consigo aspectos moralizantes e didáticos. Por
isso, para maior entendimento das obras de Afonso Álvares, precisamos entender o
que a hagiografia compreende. Segundo Augusto A. Nascimento
O texto hagiográfico medieval situa-se entre os extremos tipificados e
cronológicos dos Acta Martyrum (originados nos processos judiciais
romanos) e dos Acta Sanctorum (estabelecido pela crítica historiográfica dos
Bolandistas a partir do século XVII). Às suas variantes fundamentais
pertencem as Legendas destinadas ao culto (nomeadamente no ofício das
matinas), derivadas ou não das Passiones Martyrum e compendiadas, para
efeito em livro correspondente (o Legendário) e as narrativas isoladas, sob
forma de Vidas, Milagres, Transladações. (Apud: LANCIANI; TAVANI. 1993.
p. 307)
As narrativas hagiográficas exibem traços fundamentais como: a santidade ser
um dom de Deus, sendo assim, o nascimento e a morte de um santo são cercados de
sinais que o desvendam; a vida do santo manifesta o poder e a plenitude divina; o
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santo é modelo de valores. Os textos hagiográficos têm como principal finalidade a
instrução da fé dos menos conhecedores, ou seja, toma-se os textos hagiográficos
como exemplos para ensinamentos. Sendo assim, o homem medieval, ao ler ou
assistir tais obras, esperava encontrar um caminho para sua edificação e um
repertório de modelos de conduta que o levassem a dar um salto qualitativo de vida,
não na condição social, mas nas práticas espirituais.
A partir das considerações acima, observamos que os autos de Afonso Álvares
dividem-se em dois pares característicos: o primeiro compreende aos que
representam milagres, o Auto de Santo António e o Auto de Santiago, e abordam
questões como: nada é impossível para Deus; os milagres são respostas de Cristo aos
atos de fé dos cristãos; os verdadeiros milagres são aqueles que servem para
edificação do cristão e da Igreja.
O segundo grupo é formado pelos autos que
representam martírios, o Auto de São Vicente e o Auto de Santa Bárbara, que além de
promoverem o culto aos santos, simbolizam a vitória eterna de quem migrou para
Deus, incentivando então os fiéis cristãos a perseverarem no caminho da verdade.
Muito mais que proporcionar divertimento às pessoas, os textos hagiográficos
tinham a função de ensinar. Nos autos de Afonso Álvares encontram-se críticas à
conduta religiosa da sociedade e censuras à cobiça dos bens materiais, às vaidades, às
blasfêmias e às heresias. Por outro lado, é recorrente a exaltação dos dogmas da
Igreja Católica, como única e verdadeira casa de Deus, tais como a importância do
culto aos santos e a Nossa Senhora, e o valor dos sete sacramentos, entre outros. É
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através destes autos que Álvares promove reflexões acerca da conduta social da
sociedade portuguesa de meados do século XVI.
O Auto de São Vicente, além de relatar a história do martírio do santo, encena
questões a cerca do comportamento da sociedade portuguesa. Logo ao início do auto
existe uma fala da Cidade de Lisboa, em figura alegórica, em que expõe suas
dificuldades, algo relacionado à realidade de Lisboa no momento em que Afonso
Álvares escreve o auto. Fala da falta de reconhecimento por parte dos lisboetas
contemporâneos, dos grandes feitos portugueses que aconteceram na cidade, como
se pode observar nos seguintes versos:
Bem sei que alguns no presente
estão fora de saber
quem sam por vir deferente
tam sem fausto e impotente
segundo meu merecer
Porque vir-vos eu falar
sendo tam alta princesa
direis que pêra nobreza
me houvera d’atabiar
d’aparatos de riqueza.
Mas porém nam pode ser
vir a pessoa luzida
pois no peito traz metida
causa que o mesmo prazer
lhe dá tristeza crescida [...] (ÁLVARES, 2006. p. 156).
E junto daqueste mar
sam um pomar tam jocundo
que em mim se podem achar
tôdalas cousas do mundo.
Pois com as minhas armadas
e meus leais cavaleiros
e capitães mui guerreiros
tenho mil terras tomadas
e reinos mui estrangeiros (ÁLVARES, 2006. p. 157).
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De grande honra de Portugal, próspera e triunfante, a Cidade de Lisboa passa
a lamentar sua atual situação, refere-se à peste que assolou a cidade em 1530 e faz
alusão ao grande tremor de terra que em 1531 arrasou grande parte de Lisboa
(CAMÕES, 2006. p. 159).
Digo que em tempos passados
me vi muito prosperada
triunfante e mui abastada
e agora por meus pecados
sam tam desaventurada
que meus campos não dão pão
e os meus pobres lavradores
choram com dor e paixão
porque nam são sabedores
de tam forte excomunhão [...]
Pois outra causa danosa
mais chorosa
me dá inda maior ferida
firida mui dolorida
que é esta peste irosa
que me tem já destruída.
E sobre tamanha dor
mandou-me Deos outra guerra
guerra de grande pavor
que foi aquele tremor
que me pôs casi e terra.
Assi que pois tendes visto
quantos no presente estais
minhas angústias e ais
agora a causa disto
vos peço que me digais [...] (ÁLVARES, 2006. p. 158).
Logo após a fala da Cidade de Lisboa entra um Cidadão Rico que fará a
apresentação do auto, no qual é relatada a história do martírio de São Vicente tal
como a encontramos na Legenda Áurea3, A disputa entre São Vicente (representante
3
Uma coletânea hagiográfica, isto é, um conjunto de textos (legenda, literalmente “aquilo que deve
ser lido”, também tinha o sentido de leitura da vida de santos”) de grande valor (daí áurea, “de ouro”)
moral e pedagógico.
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de Deus) e Daciano (reis dos gentios) é na realidade a representação da guerra
travada pelos adeptos do Cristianismo contra os adeptos do Paganismo. Nesta luta
de São Vicente contra o Paganismo, vemos o apelo da Igreja para que os cristãos
deem suas vidas em prol da construção do Reino de Deus, em troca de todos os bens
que Deus proporciona àqueles que o seguem:
Senhor, muito bem conheço
tua infinita bondade
ser fundada em santidade
pelo qual eu me ofereço
a fazer tua vontade
E vamos logo sem pejo
senhor, que eu sam mui pagado
de seguir com grã desejo
tôdalas obras que vejo
em que Deos é mais louvado.
E se a ele aprouvesse
que essa gente que anda
cega que se convertesse
certo qu’eu por bem tevesse
quem em tam sagrada demanda
minha vida fenecesse (ÁLVARES, 2006. p. 173).
Vendo Daciano que São Vicente não cedia a suas constantes investidas para
que mudasse de religião determina que o santo seja morto, cumprindo-se assim o
destino do santo.
Pues no quieres otorgar
Em ló que tanto te ruego
Yo te quiero sentenciar
que tu cuerpo vayan luego
cruelmente a justiciar.
Y por más escarmentar
A cualquier outro cristiano
Tal muerte te haré dar
Que todo El pueblo romano
Tiemble sólo em mentar
al grande Rey Daciano.
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Y tomaldo mis sayones
Qu’en su muerte ya consiento
Y alzad la em pregones
Pues contra mis sacros dioses
quiso poner argumento
con falsas predicaciones (ÁLVARES, 2006. p. 185).
Após seus soldados martirizarem São Vicente, Daciano ordena que o corpo do
santo seja jogado aos lobos e corvos. Mas, por intervenção divina, aparecem no
caminho onde o corpo do santo fora jogado dois pastores que por intercessão de um
anjo celestial dão ao corpo um sepultamento digno.
Pastores, nam temais nada
ouvi a revelação
de a vós enviada
e ponde logo em concrusão
obra tam santa e sagrada.
Sabereis que este passado
corpo que vedes presente
é o mártire Vicente
que está no céu colocado
com Deos padre omnipotente.
O qual pregando a fé
De Cristo filho de Deos
os gentios fariseus
o mataram sem porquê.
Porém sua alma está nos céus
Com Jesu de Nazaré.
E porque seus ossos são
relíquias pera louvar
i chamar o povo cristão
que o leve a sepultar
com santa lamentação (ÁLVARES, 2006. p. 195).
Como que para reafirmar ou incentivar o culto aos santos, escolhe-se dois
pastores, cidadãos que à época eram os mais prejudicados pelas calamidades que se
assomavam sobre a Cidade de Lisboa, para que sejam aqueles que em procissão com
cânticos solenes sepultem o santo dignamente.
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A análise dos autos de Afonso Álvares que empreendemos buscou identificar
e interpretar questões sociais contemporâneas ao dramaturgo, tendo por mediação o
discurso religioso que os fundamenta. Como se viu, os autos têm temas diferentes,
uns relatam milagres dos santos; outros, seus martírios, com personagens e enredos
próprios, mas sempre deixando entrever a discussão de questões candentes à época
do teatrólogo. Existe nas obras de Afonso Álvares uma unidade temática que é
conferida pelo caráter religioso. O estudo deste aspecto torna possível entender
melhor como funcionava a sociedade portuguesa de meados do século XVI. Como
também é possível observar que os autos de Álvares parecem ter colaborado com o
discurso oficial da Igreja Católica no intuito de reafirmar os dogmas frutos do
Concílio de Trento, em momento de importantes embates religiosos dentro da
cristandade.
Como diz Maria Idalina Rodrigues “a dramaturgia religiosa [tem] a
capacidade de arrumar situações, de tecer contrastes, de provocar a resposta do
espectador que ora se comove, ora se indigna, ora aprende, ora se diverte”
(RODRIGUES, 1993, p.72). A literatura dramática religiosa não é simplesmente o
relato da vida de um santo, mas uma fonte histórica, neste caso, de aspectos do
cotidiano do povo português, seja do ponto de vista social ou do religioso.
REFERÊNCIAS:
Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128
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ÁLVARES, Afonso. Obras de Afonso Álvares. Ed. e introd. de José Camões. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006.
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa: Escola de Gil Vicente. Porto:
Livraria Chardron, 1898.
CAMÕES, José. Introdução. IN: ÁLVARES, Afonso. Obras de Afonso Álvares. Ed. de
José Camões. Lisboa: INCM, 2006, p. 07-32.
LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giusepe. Dicionário da Literatura Medieval Galega e
Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993.
RODRIGUES, Maria Idalina Resina. Santos em cena: ensinar - comover - divertir.
Revista da Faculdade de Letras - Línguas e Literatura. Anexo V - Espiritualidade e
Corte em Portugal, Séculos XVI a XVIII. Porto. 1993. p. 71-108. Disponível em
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8051.pdf
SEQUEIRA, Gustavo de Matos. Os continuadores de Gil Vicente. In: Albino Forjaz de
Sampaio (dir.). História da Literatura Portuguesa Ilustrada, vol II, Paris - Lisboa,
Aillud e Bertrand, s.d., p. 97-118.
VARAZZE, Jacope de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução do latim,
apresentação, notas e seleção iconográfica: Hilário Franco Júnior. - São Paulo:
Compainha das Letras, 2003. p.188-191.
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