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26 fev 2015 O Globo Demétrio Magnoli é sociólogo
Voz do Brasil
Eu sabia que eles assinariam um manifesto. Ingênuo, imaginei que, desta vez, seria um texto contra
o pacote fiscal de Dilma Rousseff (culpando, bem entendido, o mordomo, que se chama Joaquim).
Contudo, eles desistiram de fingir: o inevitável manifesto, intitulado “O que está em jogo agora”, é tão
oficialista como “A voz do Brasil” dos velhos tempos. Num lance vulgar de prestidigitação, o texto dos
“intelectuais de esquerda”, assinado por figuras como Marilena Chaui, Celso Amorim, Emir Sader, Fabio
Comparato, Leonardo Boff, Maria da Conceição Tavares e Samuel Pinheiro Guimarães, apresenta­se como
uma defesa da Petrobras — mas, de fato, é outra coisa.
O ofício intelectual não combina bem com manifestos. Dos intelectuais, espera­se o pensamento
criativo, a crítica do consenso, a dissonância — não o chavão, a palavra de ordem ou o grito coletivo. Por
isso, eles deveriam produzir manifestos apenas em circunstâncias excepcionais. Os “intelectuais de
esquerda”, porém, cultivam o estranho hábito de assinar manifestos. Vale tudo: crismar um crítico
literário como inimigo da humanidade, condenar a palavra equivocada no editorial de um jornal, tomar o
partido de algum ditador antiamericano, denunciar a opinião desviante de um parlamentar. O manifesto
sobre a Petrobras é parte da série — mas, num sentido preciso, distingue­se negativamente dos demais.
A fabricação em série de manifestos é um negócio inscrito na lógica do marketing. De fato, pouco
importa a substância do texto, desde que ele ganhe suficiente publicidade, promovendo a circulação do
nome dos signatários. Como os demais, o manifesto da Petrobras é uma iniciativa em proveito próprio.
Mas, nesse caso, o proveito tem dupla face: além do marketing da marca, busca­se ocultar o fracasso de
uma ideologia. Por isso — e só por isso! — ele merece a crítica de quem não quer contribuir,
involuntariamente, com a operação mercantil dos “intelectuais de esquerda”.
Segundo o manifesto, a Operação Lava­Jato desencadeou uma campanha da mídia malvada para
entregar a Petrobras, junto com nosso petróleo verde­ amarelo, aos ambiciosos imperialistas. A meta
imediata da conspiração dos agentes estrangeiros infiltrados seria restabelecer o regime de concessão. Sua
meta final seria remeter­ nos “uma vez mais a uma condição subalterna e colonial”. A fábula, dirigida a
mentes infantis, esbarra numa dificuldade óbvia: sem o aval do governo, é impossível alterar o regime de
partilha.
A Petrobras não foi derrubada à lona pelo escândalo revelado por meio da Lava­Jato, que apenas
acelerou o nocaute. Os golpes decisivos foram assestados ao longo de anos, pela política conduzida nos
governos lulopetistas, sob os aplausos extasiados dos “intelectuais de esquerda”. No desesperador cenário
atual, a direção da Petrobras anuncia uma redução brutal de investimentos na prospecção e extração,
precisamente os setores em que a estatal opera com eficiência. O regime de partilha obriga a empresa a
investir em todos os campos do pré­sal. A troca pelo regime de concessão será, provavelmente, a saída
adotada pelo governo Dilma. Os “intelectuais de esquerda”, móveis e utensílios do Planalto, escreveram o
manifesto para, preventivamente, atribuir a mudança de rumo aos “conspiradores da mídia”. Por meio
dessa trapaça, conciliam a fidelidade ao “governo popular” com seus discursos ideológicos anacrônicos.
Ficam com o pirulito e a roupa limpa.
Há uma diferença de escala, de zeros à direita, entre as perdas decorrentes da corrupção e as geradas
pelo neonacionalismo reacionário. A Petrobras é vítima, antes de tudo, do investimento excessivo movido
a dívida, da diversificação ineficiente e do controle de preços de combustíveis. Numa vida inteira de
falcatruas, Paulo Roberto Costa, o “Paulinho”, e Renato Duque, o “My Way”, seriam incapazes de causar
danos remotamente comparáveis aos provocados pelos devaneios ideológicos do lulopetismo — que são os
dos signatários do manifesto. “A História dirá!”: os “intelectuais de esquerda” invocam, ritualmente, o
veredito de um futuro sempre adiável. O manifesto é uma manobra diversionista. Ele existe para desviar a
atenção pública de um singelo, mas preciso, veredito histórico: a falência da Petrobras é obra de uma
visão de mundo.
Franklin Martins, o verdadeiro autor do manifesto, cometeu um erro tático ao colocar seu nome entre
os signatários. Ao fazê­lo, o ex­ministro descerra o diáfano véu de independência que cobriria a nudez do
texto. O manifesto não é a “voz da sociedade”, nem mesmo de uma parte dela, mas a Voz do Brasil.
Nasceu no Instituto Lula, como elemento de uma operação de limitação dos efeitos da Lava­Jato.
Enquanto os “intelectuais de esquerda” assinavam uma folha de papel, Lula reunia­se com
representantes do cartel das empreiteiras e Dilma preparava o “acordo de leniência” destinado a restaurar
os laços de solidariedade entre as empresas e os políticos.
Sem surpresa, no último parágrafo, o manifesto menciona o ano mágico. A conspiração “antinacional”
e “antidemocrática” dos inimigos da Petrobras almejaria provocar uma “comoção nacional” e, finalmente,
a “repetição” do golpe militar de 1964. Na Venezuela, que deixou de ser uma democracia, o regime
aprisiona líderes opositores sob acusações fantasiosas de conspiração golpista. No Brasil, que é uma
democracia, acusações similares partem dos “intelectuais de esquerda”. Os signatários do manifesto,
sempre encantados por regimes nos quais a divergência política equivale à traição da pátria, sonham com
o dia em que falariam sozinhos, como porta­vozes de um poder incontestável.
O manifesto é uma peça de corrupção intelectual. Ele contamina a praça do debate público com os
resíduos de um discurso farsesco. A Petrobras é um pretexto. Os “intelectuais de esquerda” enrolam­se no
pendão auriverde para fingir que não estão pelados.
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