O papel dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura (1961-1964) na construção de uma nova sociedade Carla Michele Ramos (Mestranda História/Unioeste) [email protected] Durante os anos de 1961 a 1964 o Centro Popular de Cultura atuou no Brasil como movimento cultural que se caracterizou por uma forte ideologia política. Os artistas e intelectuais que estiveram envolvidos nos diversos projetos da entidade cepecista passaram a atuar politicamente no cenário brasileiro. A preocupação deste estudo é tentar compreender a atuação do CPC no espaço político através de suas atividades artísticas. O objetivo desse trabalho é analisar o papel dos artistas e intelectuais cepecistas ao construir um projeto nacional-popular que visava através das artes promover conscientização e mobilização social. Na concepção dos membros do movimento, a estrutura sócio-econômica do país só poderia ser modificada se a população, por meio da desalienação, fosse capaz de aderir à luta revolucionária. Em 1962 a diretoria da entidade redigiu seu Anteprojeto do Manifesto, um dos poucos documentos da época que foram encontrados, pois com o golpe civil-militar a sede da União Nacional de Estudantes localizada no Rio de Janeiro foi queimada e lá estavam vários documentos do CPC que tinha um trabalho conjunto com o movimento estudantil. Por meio deste texto é possível verificar questões acerca do modelo de arte assumido pelos artistas, bem como a função dos mesmos no projeto político-cultural. Depoimentos de ex-dirigentes e obras construídas por teóricos cepecistas revelam também a possível militância desses artistas e intelectuais via arte, a comunicação de caráter pedagógico e a luta na construção de um novo homem. Atualmente existe uma intensa preocupação por parte da História Cultural com as relações de poder e com a questão da identidade. Este estudo não privilegia somente a atuação dos intelectuais e artistas do CPC no âmbito cultural, mas procura compreender também como eles se colocaram diante da população ao estabelecer uma luta política que visava a transformação radical na estrutura social do país. Um dos pontos centrais nessa discussão, e que dá espaço para diferentes abordagens, é a apropriação do discurso marxista-leninista de vanguarda pelos cepecistas. Esse discurso será focalizado neste trabalho à luz do estudo de Antonio Gramsci sobre os intelectuais orgânicos, não em contraposição, mas buscando identificar se a atuação dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura pode ser identificada com essas duas concepções. O CPC no seu curto período de atividades realizou um trabalho que consistia ir em busca do povo e instruí-lo, no que diz respeito à realidade brasileira. A entidade acreditava que só através dessa nova consciência o homem poderia lutar por um outra organização social. Assim o teatro, a música, a literatura e outros meios artísticos foram utilizados para realizar essa mobilização popular. A arte não poderia romper diretamente com a hegemonia das classes economicamente superiores, mas poderia provocar no ser humano uma mentalidade revolucionária, rompendo assim toda e qualquer forma de dominação. O papel dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura (1961-1964) na construção de uma nova sociedade Carla Michele Ramos* GT6: Estado, meios de comunicação e movimentos sociais Resumo Este estudo tem como finalidade compreender a atuação do Centro Popular de Cultura (1961-1964) no espaço político brasileiro através de suas atividades artísticas. Analisar o papel dos artistas e intelectuais cepecistas ao construir um projeto nacional-popular que visava através das artes promover conscientização e mobilização social também é a preocupação deste trabalho. Este estudo não privilegia somente a atuação dos intelectuais e artistas desse movimento no âmbito cultural, mas procura verificar como eles se colocaram diante da população ao estabelecer uma luta política que desejava a transformação da estrutura social do país. Introdução A década de 1960 no Brasil foi um período de intensa radicalização social e efervescência política. Talvez seja por esse fato que a produção científica sobre esse momento ainda é um campo extremamente frutífero para análises historiográficas. Esse passado marcou profundamente a nossa história, pois se por um lado à sociedade brasileira naquela época vivenciou o início de um autoritarismo exacerbado com o golpe civil-militar em 1964, por outro observou uma experiência de engajamento político que deixaria seu legado às gerações futuras. No espaço político a renúncia do presidente Jânio Quadros e a posse de João Goulart em 1961 provocaram uma postura de endurecimento dos setores de direita1 que já vinham realizando tentativas de intervenção no sistema de governo. Com uma propaganda que consistia em defender a democracia brasileira * Mestranda do Curso de Pós-graduação em História da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon, PR 1 Grupos sócio-econômicos que não desejavam profundas mudanças na estrutura política do país. 1 contra a crescente comunização2 do país, esses setores conseguiram limitar o poder de Goulart por meio da emenda parlamentarista. No meio social as ligas camponesas reivindicavam intensamente a reforma agrária e nas cidades o proletariado estava amadurecendo politicamente como classe3. Desde a segunda metade da década de 1950 vinha ocorrendo no campo cultural algumas rupturas em relação à produção artística. Grupos universitários de teatro como o Teatro Paulista de Estudantes e até profissionais como o Teatro de Arena de São Paulo resolveram dramatizar temáticas nacionais e valorizar em seus textos questões políticas, sociais e econômicas. Toda essa agitação popular acabou de certa maneira influenciando o engajamento político de alguns intelectuais e artistas da classe média em projetos sociais. Não podemos esquecer também que nesse momento houve uma forte crença dos grupos de esquerda, principalmente o Partido Comunista Brasileiro, na luta revolucionária. A Revolução Cubana em 1959 representou a primeira experiência socialista em terreno americano e isso serviu de estímulo a entidades político-ideológicas que visavam romper com a hegemonia das classes mais abastadas do país. Para Ridenti os anos 1960 foram tempos revolucionários, pois: Rebeldia contra a ordem e revolução social por uma nova ordem mantinha diálogo tenso e criativo, interpenetrando-se em diferentes medidas na prática dos movimentos sociais, expressa também nas manifestações artísticas... Naquele contexto, certos partidos e movimentos de esquerda, seus intelectuais e artistas valorizavam a ação para mudar a história, para construir o homem novo. (2003:135) Sendo assim, podemos perceber que o estudo que privilegia os objetos artísticos, não pode estar dissociado de uma análise referente ao campo político e econômico, pois nota-se uma intensa afinidade de relações entre esses diversos espaços de sociabilidade com o espaço cultural. É a partir desses embates, políticos e culturais, que o presente estudo se situa. O objetivo deste trabalho é tentar compreender as atividades que foram realizadas pelo Centro Popular de Cultura (1961-1964), identificando os meios 2 Setores políticos e sociais conservadores temiam a expansão das idéias comunistas no país, principalmente a consolidação de um regime socialista. 3 A propósito de uma discussão sobre o tema, ver BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan; Brasília, DF: Ed. UNB, 2001. 2 que seus militantes utilizaram para alcançar a pretensão de seu projeto revolucionário. Essa discussão procura revelar também qual foi à relação entre os intelectuais e artistas cepecistas e o público que eles desejavam atingir com sua produção artística. A atuação político-cultural do Centro Popular de Cultura O Centro Popular de Cultura foi um movimento iniciado em 1961 por um grupo de artistas e intelectuais e que teve como principais expoentes o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o cineasta Leon Hirszman e o sociólogo Carlos Estevam Martins. A princípio eles se estabeleceram no Rio de Janeiro e resolveram encenar uma peça teatral escrita por Vianinha intitulada A mais-valia vai acabar, seu Edgar. Essa peça ao questionar o capitalismo procurou oferecer ao público uma compreensão sobre a origem do lucro e o conceito da mais-valia. É possível perceber através dessa dramaturgia a intenção de instruir os espectadores acerca das questões econômicas. Para Damasceno (1994:92) a peça apresentava-se como uma farsa musical inspirada nas idéias brechtianas, transformando-se num marco cultural pois foi a partir de suas encenações, na Faculdade de Arquitetura do Rio de Janeiro, que artistas e intelectuais foram se interagindo e discutindo a formação de uma entidade capaz de realizar atividades de caráter político-pedagógicas. Assim nasceu o Centro Popular de Cultura, que mais tarde ficaria conhecido como CPC da UNE, por causa de sua estreita ligação com os projetos criados pela entidade estudantil, na finalidade de politizar o público universitário acerca dos problemas que atingiam a educação brasileira. Um movimento que ficou caracterizado por sua atuação político-cultural e que inicialmente teve suas ações marcadas pelo gênero agitprop – agitação e propaganda4. A primeira atividade artística a ser transformada em arma cultural foi o teatro. Uma renovação na concepção de arte que está presente no Anteprojeto do Manifesto, documento redigido pela diretoria cepecista que defendeu uma arte popular engajada e revolucionária, que se identificasse com a aspiração do povo brasileiro e 4 Essa forma teatral, também conhecida como agitprop, foi utilizada pelos revolucionários russos após a vitória bolchevique em 1917, para difundir e propagar suas idéias sócio-políticas. No caso específico do movimento cepecista a proposta era alcançar as massas populares em seus diferentes 3 comprometida com a luta política (MARTINS, 1962). A entidade cepecista ampliou essa visão de arte para outros setores culturais como a música, a literatura, o cinema e artes plásticas, intensificando assim a participação de artistas e intelectuais nessa campanha de emancipação política. Em vários depoimentos de militantes cepecistas, aparece a idéia de que essa entidade apesar de um estreito vínculo com a União Nacional de Estudantes não se via como seu órgão cultural, ou seja, limitada e subjugada pelas suas determinações, apesar desse discurso estar registrado formalmente em vários documentos5. Com autonomia administrativa o CPC funcionou inicialmente como uma empresa, sem verbas governamentais teve que criar estratégias para manter uma folha de pagamento e ainda investir em diversos departamentos culturais. Participou do projeto UNE-Volante, uma caravana que percorreu diversas capitais brasileiras realizando espetáculos teatrais, debates políticos e shows musicais durantes os anos de 1962 e 1963 visando politizar a massa estudantil acerca dos problemas do ensino superior brasileiro. A união estudantil aproveitou da capacitação artística do CPC para propagar a idéia da reforma universitária, pagou por esse serviço e conseguiu mobilizar várias unidades regionais nessa campanha. Uma influência muito importante à entidade cepecista foi o Movimento de Cultura Popular de Recife, conhecido como MCP. Esse movimento foi caracterizado por um programa pedagógico que visava elevar o nível cultural da população pernambucana. Num documento, datado de 1964, ele é definido por sua diretoria como: É um órgão de caráter técnico, rigorosamente apolítico e pluralista, segundo o modelo da UNESCO, porquanto não discrimina filosofia, credo ou convicções ideológicas. É um lúcido esforço da comunidade inteira – populares, estudantes, intelectuais, particulares e poderes públicos – para acelerar a elevação do nível material e espiritual do povo, através da educação e da cultura. (ALENCAR,1980:69) Diferentemente do MCP, o movimento cepecista se auto definiu como uma entidade de caráter político e daí surgiram por exemplo sua ligação com a UNE, resultando num trabalho voltado para a politização das massas estudantis. O espaços - associações, ruas, sindicatos - provocando através de denúncias e propaganda política conscientização e posicionamento crítico do público. 5 Ver depoimentos de integrantes do CPC em BARCELOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. 4 próprio Vianinha, quando ainda era membro do Teatro de Arena de São Paulo, acreditava que a ligação entre entidades que desejavam intervir politicamente na realidade brasileira e grupos culturais seria fecunda pois todos tinham como pretensão realizar profundas reformas na estrutura do país (1960:78). Ao analisar o Centro Popular de Cultura como entidade privada, deve-se levar em consideração que sua participação em comícios, sindicatos e aglomerações partidárias não aspirava o uso da arte para fins lucrativos. Seus integrantes apesar de integrantes ou simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro não trabalhavam para um determinado segmento político-partidário, ao contrário, muitos foram os atritos entre intelectuais e artistas por causa da instrumentalização da arte. Esses artistas e intelectuais ao construir um modelo artístico e colocá-lo em prática não só revolucionaram nossa visão de arte como também deixaram profundas marcas na concepção de luta política no país. Embora o Teatro de Arena tivesse iniciado em fins dos anos 1950 experiências de uma dramaturgia de caráter nacional, enfatizando nos textos teatrais questões acerca da nossa realidade sócio-econômica, o movimento cepecista radicalizou a temática nacional-popular e procurou cumprir uma tarefa - que muitas vezes acreditamos ser do Estado – educativa na tentativa de elevar o nível de conscientização do povo brasileiro, e para que isso ocorresse seria fundamental nas palavras de Vianna uma arte que enfrentasse os problemas mais fundos da existência humana, que indagasse com mais vigor e mais audácia a origem dos comportamentos e os porquês das circunstâncias que nos envolviam (1962:94). Quando falamos de tarefa educativa é importante ressaltar que esse tipo de atividade que vinha sendo praticada nas regiões do Brasil, pois o CPC incentivou a criação de vários centros populares de cultura nos estados brasileiros, não estava condizente com o modelo educador que as classes dominantes projetavam ao estado. Se pensarmos a partir da concepção gramsciana que revela que todo Estado é ético sendo uma das suas funções elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, que corresponde à necessidade de desenvolvimento das forças produtivas e dos interesses das classes dominantes (DIAS,1996:77), entenderemos quais os motivos que levaram o acirramento da luta entre essas classes e o governo de Goulart, que após o plebiscito de 1963 conseguiu a restauração do presidencialismo e uma crescente popularidade junto aos setores de esquerda. Para os grupos dominantes o Estado já não estava mais 5 correspondendo aos seus interesses, pois ao defender as reformas de base6, acreditavam que o então presidente dava espaço a futuras reivindicações populares que poderiam romper com a hegemonia desses grupos no país e por isso era necessário uma articulação política capaz de derrubar possíveis mobilizações de cunho socialista. Nesse contexto de intensos conflitos entre entidades sociais que desejavam transformar a estrutura do país e grupos que se mobilizavam para manter o status quo, o CPC realizou um trabalho de formação de consciência e de crítica social. Para isso reformulou o conceito de cultura popular e conseqüentemente a postura dos intelectuais diante dos problemas da nação. Na concepção dos teóricos cepecistas como Carlos Estevam Martins e Ferreira Gullar, a arte popular deveria se identificar com a vontade do povo, ou seja, uma arte voltada para os interesses da população brasileira. Sendo assim essa arte teria que se associar aos processos materiais e à realidade sócio-econômica nacional. Foi a partir desse ideal artístico que a função da cultura passou a ser problematizada e adaptada para fins de instrução política e mobilização social. A arte popular revolucionária, defendida pelo grupo que redigiu o Anteprojeto do Manifesto, passou a ser utilizada como um instrumento de conscientização e de transformação. O teatro, a música e a poesia, por exemplo, não modificaria diretamente a realidade brasileira, mas poderia agir nas pessoas em forma de esclarecimento, e através dessa tomada de consciência elas seriam capazes de realizar uma mobilização social para acabar com a distinção entre as classes. O povo a ser alcançado era aquele que se encontrava oprimido pelo sistema vigente e que poderia se unir coletivamente. Os camponeses, operários e estudantes eram os mais visados no início das atividades cepecistas, a intenção de criar um sentimento de pertencimento a um grupo tornou-se a principal meta desse movimento. No período final de sua atuação, a equipe de redação do CPC ao fazer um balanço de suas atividades relatou que teve grandes dificuldades de atuar junto às massas e que as experiências mais bem-sucedidas foram com o público estudantil (BARCELLOS,1994). 6 Dentre as reformas de base lançadas pelo presidente João Goulart (1961-1964), estavam contidas a reforma agrária e a reforma universitária. Essas reformas teriam como objetivo provocar amplas transformações na estrutura social do país, privilegiando as classes menos abastadas. 6 Para conquistar as massas populares os artistas e intelectuais deveriam repensar sua prática e tomar conta de que aquele era o momento de contribuir para a transformação da sociedade. Gullar destaca o papel desses intelectuais nesse período: O escritor, o cineasta, o pintor, o professor, o estudante, o profissional liberal redescobrem-se como cidadãos diretamente responsáveis, como os demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir diariamente, e sobre cujo destino têm o direito e a obrigação de atuar. (1980:84). A missão desses artistas e intelectuais que constituíram o CPC era a militância via arte e para consolidação de tal projeto os meios de expressão teriam que ser transformados em armas políticas. O trabalho consistia em instruir o povo acerca dos problemas nacionais e também provocar uma condição de pertencimento num grupo, ou seja, construir uma vontade coletiva. A mensagem política foi priorizada, pois o importante era transformar o público, o leitor e o ouvinte num sujeito politizado. As peças teatrais, por exemplo, dramatizavam questões como o imperialismo norte-americano, a elitização do ensino superior e o subdesenvolvimento, enfatizando um discurso revolucionário de engajamento político e de ação social. Peças curtas de caráter dramático no estilo de crítica política foram encenadas nas ruas e nos sindicatos, elas ficaram conhecidas como “autos” e tinham como gênero o agitprop, era um teatro de agitação e propaganda voltado para denunciar fatos políticos e mobilizar os espectadores. Desses o mais famoso foi Auto dos 99% uma sátira sobre os problemas da universidade brasileira que interagiu humor e crítica na intenção de politizar o público estudantil sobre a necessidade de uma reforma no ensino superior, essa peça foi apresentada pela primeira vez em Curitiba durante o II Seminário Nacional de Reforma Universitária. No que diz respeito à arte literária, a entidade cepecista publicou Cadernos do Povo Brasileiro, coleção que reuniu diversos volumes com temáticas sociais que objetivou principalmente informar sobre os grandes problemas nacionais. Violão de Rua fez parte dessa obra, como livro de poesia procurou através da linguagem poética conscientizar o povo sobre a necessidade da luta contra os imperialismos, sobretudo o norte-americano e também pela emancipação 7 econômica, bem como esclarecer a incompatibilidade entre o regime capitalista e a liberdade ou construção do homem (FÉLIX,1963:146). Os artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura É possível perceber que apesar dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura não pertencer necessariamente aos quadros da classe explorada, eles optaram por ser povo, “destacamentos de seu exército no front cultural” (MARTINS,1962:127). Essa postura vanguardista da entidade cepecista recebeu inúmeras críticas durante a década de 1980 por estudiosos como Marilena Chauí, José Arrabal e Heloisa Buarque de Holanda. Na concepção marxista-leninista que vigorava no pensamento de esquerda da época, a vanguarda só poderia ser assumida por uma entidade capaz de utilizar a denúncia como um instrumento de força política e através dela promover entre as massas populares lucidez e tomada de poder. Em sua obra Que Fazer?, Lênin destaca o papel da vanguarda na luta revolucionária: só o partido que organize campanhas de denúncias realmente dirigidas a todo o povo poderá tornar-se, nos nossos dias, vanguarda das forças revolucionárias ... e para ser vanguarda é necessário, precisamente, atrair outras classes. (1978: 102/103). Como vanguarda caberia ao CPC levar ao povo informações que destruíssem a alienação em que viviam. Esses artistas e intelectuais acreditavam que por terem tido acesso a conhecimentos que são oferecidos somente a determinadas classes, eram socialmente privilegiados e por isso possuíam o dever de oferecer tais conhecimentos à população (MARTINS, 1980:82). Por meio de expressões artísticas eles denunciaram a estrutura política e econômica do país, radicalizaram o discurso revolucionário para provocar a mobilização das massas e conseqüentemente a construção de uma nova sociedade. Virgínia Fontes ao analisar a ampliação do Estado e a coerção no Brasil identifica as agitações sociais que marcaram o século XX: A atuação voltada para a contestação precisava educar, alfabetizar, produzir conhecimento por todos os meios, da ciência à literatura, arte, música, teatro, cinema...uma das primeiras preocupações desses partidos...era exatamente a difusão não apenas de suas próprias palavras 8 de ordem ou visões de mundo, mas também de uma cultura mais ampla para as camadas populares. Assim, setores partidários de “agit-prop” – agitação e propaganda – constituíram-se em formas de aprendizado social e de acesso à literatura, ao debate internacional, às discussões filosóficas ou econômicas. (2005:183/184). Para a autora a luta contra o capitalismo deveria ocorrer em todos os setores: econômico, político, social e cultural. Nesse sentido os grupos que realizaram esse tipo de campanha tiveram um importante papel na luta pela emancipação política. Era preciso convencer o povo da necessidade de uma ruptura no sistema, talvez seja por isso que o CPC se aproximou do gênero agitprop pois denunciar a estrutura vigente permitiria ao povo tomar lucidez da origem dos problemas em que vivia e essa atitude seria o princípio do comprometimento do mesmo com a transformação social. Através dessa visão, pode-se perceber que Virgínia Fontes aproxima da concepção gramsciana que revela que uma “reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica” (GRAMSCI,2002:19). Por isso é importante ressaltar a função da entidade cepecista em não promover somente a elevação intelectual das massas mas também uma postura de crítica e de ação revolucionária. Uma das questões que mais oferece divergências nos estudos realizados sobre o Centro Popular de Cultura é a posição dos artistas e intelectuais em relação às massas populares. Dois pontos devem ser considerados como essenciais nesta análise. Primeiro a origem social dos militantes cepecistas e em segundo a atuação contestadora e a luta por uma nova hegemonia. Em seu manifesto os artistas e intelectuais cepecistas aparecem como aqueles que devem falar diretamente e revolucionariamente ao povo brasileiro, “ao povo como entidade coletiva que precisa escapar como um todo ao cerco de miséria de que é vítima e que encontra na atuação política organizada, unificada, seu único caminho de redenção” (MARTINS, 1962:132). A ligação entre cepecistas e massa é o de transmissão e recepção de conhecimento. Os artistas e intelectuais não são oriundos dessa massa, eles fazem parte de uma classe economicamente privilegiada que teve acesso à instrução intelectual. A partir dessa posição eles acreditavam que possuíam o dever de transmitir tal conhecimento àqueles que não tiveram a mesma oportunidade e que o trabalho que realizavam era de extrema importância ao curso da história. 9 Assim a postura política do CPC pode ser compreendida à luz da teoria marxista-leninista sobre a organização das massas. Lênin afirmava que os operários eram capazes de ter apenas consciência dos problemas econômicos que atingiam a sua classe, sendo assim havia a necessidade de levar a consciência política a eles, e essa só poderia ser dada a partir do exterior, ou seja, de fora da esfera das relações entre operários e patrões (1978:92). Através dessas colocações, podemos perceber uma clara separação entre teoria (desenvolvida pelos intelectuais) e a prática (dos trabalhadores). Essa posição burguesa dos intelectuais e artistas cepecistas legitimava a responsabilidade de educar e conduzir as massas à emancipação política e para Lênin esses destacamentos deveriam “ir a todas as classes da população como teóricos, como propagandistas, como agitadores e como organizadores” (1978:95). Sendo assim a ação e a atitude de romper com a hegemonia predominante ficaria a cargo do povo oprimido e não dos intelectuais. No Relatório do Centro Popular de Cultura aparece os objetivos da entidade no cenário brasileiro: A tomada de consciência, por parte de artistas e intelectuais, da necessidade de se organizarem para atuar mais eficaz e conseqüentemente na luta ideológica que se trava no seio da sociedade brasileira levou-os a criar o Centro Popular de Cultura.Partindo dessa tomada de consciência, o CPC se propõe, desde o seu nascimento, a levar arte e cultura ao povo, lançando mão das formas de comunicação de comprovada acessibilidade à grande massa, e aprofundar nos demais níveis da arte e da cultura o conhecimento e a expressão da realidade brasileira. Não é propósito do CPC popularizar a cultura vigente, mas sim, através da arte e da informação, despertar a consciência política do povo. (EQUIPE DE REDAÇÃO DO CPC, s/d: 441/442). Apesar do posicionamento burguês da intelectualidade cepecista sua função seria se aproximar do povo e conhecer suas aspirações, criando um projeto capaz de atender as necessidades das diversas classes sociais. É importante ressaltar que os artistas e intelectuais que se engajaram nesse projeto já possuíam uma atuação política, é o caso por exemplo de Oduvaldo Vianna Filho que além de dramaturgo era também um militante da esquerda e de Carlos Estevam Martins que realizava um trabalho na área de pesquisa no ISEB7. Funcionando 7 Instituto Superior de Estudos Brasileiros, vinculado ao Ministério da Educação, formado por sociólogos, cientistas políticos, economistas e filósofos. Agência de pesquisas, financiadas por fundos 1 como um movimento que tinha como perspectiva a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, podemos deduzir que o CPC atuou como uma organização partidária pois suas atividades de pedagogia política visavam educar as massas para a tomada de poder. Para Gramsci a vontade coletiva age “como consciência operosa da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo” (2002:17). Portanto essa vontade seria a expressão das massas, ou seja, a necessidade do povo que ao ser elevada à consciência poderia ser convertida em ação transformadora. Para construir essa unidade coletiva, os artistas e intelectuais da entidade cepecista utilizaram as expressões artísticas para politizar o povo e proporcionar uma compreensão acerca de seu papel histórico e social. É importante destacar que como grupo contra-hegemônico o CPC buscou não só elevar o nível cultural da população brasileira mas também promover uma formação política, capaz de criar uma nova concepção de mundo e romper com os abusos das classes dominantes. Durante a década de 1980 o Centro Popular de Cultura recebeu várias críticas por parte da historiografia brasileira. Criticando a postura vanguardista dos intelectuais e artistas dessa entidade Holanda destaca: ao reivindicar para o intelectual um lugar ao lado do povo, não apenas se faz paternalista, mas termina por escamotear as diferenças de classes, homogeneizando conceitualmente uma multiplicidade de contradições e interesses. A necessidade de uma laborioso esforço de adestramento à sintaxe das massas deixa patente às diferenças de classe e de linguagem que separam intelectual e povo. (1981: 19). Para a autora essa posição dos integrantes do CPC em relação à massa ocorreu de maneira paternalista, a linguagem que os separavam demonstrava a superioridade intelectual e a legitimação de uma vanguarda. Representante também dessa corrente historiográfica, Marilena Chauí (2000:61) ao analisar a questão da cultura popular identifica na ação cepecista uma atitude inconscientemente autoritária e uma certa concepção instrumentalizada da cultura e do povo. A maioria das críticas foram dirigidas ao Anteprojeto do Manifesto, documento este que não refletia a postura de todos os seus militantes, mas sim de federais e profissionais progressistas, que oferecia cursos, publicava livros e desenvolvia teses. Foi fechado em 1964 com o golpe militar. 1 um grupo coordenado pelo sociólogo e primeiro presidente da entidade Carlos Estevam Martins. A postura de arte popular revolucionária defendida por esse grupo provocou várias discussões no interior do movimento, principalmente por artistas que desejavam um maior aprofundamento nas questões estéticas. Num depoimento, Martins (1980:81) procurou se defender dessas acusações que estavam surgindo sobre a atuação política do CPC. Ele relata que cada geração opera dentro de um horizonte e de um tempo histórico e que era preciso entender que o CPC estava atuando nesse limite. Portanto esse movimento não deveria ser questionado pelas posições que tomou em relação a instrumentalização da arte e sua pedagogia política. Naquele período houve uma intensa agitação dos setores de esquerda que acreditavam viver um momento de profundas reformas, essa efervescência provocou um engajamento da classe média em questões políticas e sociais. Martins ao se posicionar contra aqueles que definiram a ação cepecista de paternalista destaca o papel do CPC: A participação popular era o objetivo, a finalidade, a razão de ser do CPC. Evidentemente, nós levávamos ao público determinadas idéias e informações. Se isso é ser paternalista, então todos os autores que li e que abriram a minha cabeça também foram paternalistas comigo e eu muito lhes agradeço. Qualquer pessoa que tenha alguma coisa a dizer aos outros não faz mais do que a sua obrigação quando tenta se comunicar. Não vejo como chamar isso de paternalismo.(1980:80) As informações que os artistas e intelectuais cepecistas ofereciam ao povo através das diversas expressões artísticas refletiam a difícil realidade brasileira. Eles criaram peças teatrais que dramatizavam questões como o imperialismo, economia nacional, universidade brasileira8. Para os artistas as mensagens contidas nessas peças deveriam iluminar o público, tirando-o da alienação e provocando uma revolta que o levaria a engajar-se numa luta coletiva para modificar o sistema. A música, a literatura e a arte plástica também foram didatizadas para alcançar o mesmo objetivo, a mensagem política foi priorizada e temas como subdesenvolvimento, analfabetismo, concentração latifundiária se tornaram alvos de ataques. A pretensão era denunciar e mobilizar, ou seja, despertar as camadas populares e unir as mesmas em torno de um projeto de 8 Ver dramaturgia do Centro Popular de Cultura em PEIXOTO, Fernando. O melhor do teatro do CPC da UNE. São Paulo: Global, 1989 1 transformação. A cultura popular difundida pela entidade cepecista deveria dar conta de tais objetivos, pois na visão de Gullar: A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira. Cultura popular é compreender que o problema do analfabetismo, como o da deficiência de vagas nas Universidades, não está desligado da condição de miséria do camponês, nem da dominação imperialista sobre a economia do país...É compreender, em suma, que todos esses problemas só encontrarão solução se realizarem profundas transformações na estrutura sócio-econômica e, conseqüentemente, no sistema de poder. Cultura popular é, portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária. (1980:84) É possível perceber que quando Gullar define a cultura popular como consciência revolucionária, ele aponta o papel dos artistas e intelectuais na construção de uma nova sociedade. Para se construir uma nova ordem social era necessário desmontar o homem velho e criar em seu lugar um novo tipo de ser humano. Caberia então ao CPC oferecer sua criação artística e seu conhecimento intelectual para realizar esse projeto. Se por um lado à instrução se dava de cima para baixo, ou seja, da classe média para as camadas populares, a luta para modificar a estrutura política, econômica e social do país aconteceria de baixo para cima, eram as massas populares que por meio da tomada de consciência lutariam para conquistar o poder. Considerações Finais O Centro Popular de Cultura durante os anos de 1961 a 1964 realizou um trabalho educativo, objetivando elevar o nível intelectual das massas populares, e para isso utilizou os meios artísticos para alcançar o povo. Foi às ruas e aos sindicatos, participou de comícios e de assembléias políticas, funcionou ora como empresa, ora como colaboradora de entidades sociais. Desejou alcançar os diversos grupos sociais que acreditava estarem vivendo subjugados ao sistema vigente, mas só conseguiu atuar com bastante sucesso junto ao público estudantil. Renovou a concepção de cultura nacional-popular e mesmo depois de sua extinção, com o golpe civil-militar em 1964, questões como engajamento político dos artistas e intelectuais e a função social da arte podem ser vistas em 1 diversas lutas que se travaram contra o governo militar até o AI-59. Pode-se concluir que o CPC deu um novo sentido ao que se entendia por arte engajada. Reflexões sobre arte, política e cultura popular no período de atuação cepecista só poderão ser revistas a partir de seu momento histórico, pois se tentarmos analisar esses temos com noções fora desse tempo acabaríamos comprometendo a historiografia brasileira com visões superficiais e anacrônicas. Os cepecistas fizeram parte de um projeto contra-hegemônico, não ao lado de um determinado segmento político-partidário mas como eles mesmos afirmaram “ao lado do povo” (MARTINS,1962). Embora sendo de classes distintas, acredito que ao realizar esse trabalho o movimento demonstrou o importante papel de artistas e intelectuais no comprometimento com os problemas vivenciados pela sociedade brasileira. Temáticas nacionais e realidade brasileira foram colocadas nas letras das músicas e das poesias, nas encenações teatrais, na linguagem cinematográfica e nas exposições artísticas. O Brasil se transformou na fonte inspiradora da arte e aí a importância não só de compreender o trabalho desses artistas e intelectuais no que se refere ao campo político, mas também de analisar um momento de intensa inspiração da cultura brasileira. Hoje mais do que nunca precisamos repensar a atuação dos membros do Centro Popular de Cultura. Num país repleto de tensões e de diferenças sociais é necessário buscar meios para acabar com os abusos das classes hegemônicas. Não digo repetir a prática dessa entidade, pois o contexto atual exige novas ações, mas guiar-se pelo ideal que impulsionou aquela experiência, o ideal de responsabilidade, de compromisso e de engajamento. Oferecermos a esse projeto de transformação social o que possuímos de melhor, para tentarmos modificar a estrutura que nos oprime e que nos distancia de um sistema mais justo e igualitário. 9 Ato Institucional número cinco que instalou um regime de repressão e censura aos meios de comunicação, impedindo assim a liberdade de expressão e comunicação. 1 BIBLIOGRAFIA ALENCAR, Miguel N. de Arraes (1980). Que é o MCP? Arte em Revista. São Paulo: Kairós, nº 3, pp.98. CHAUI, Marilena (2000). Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez. DAMASCENO, Leslie Hawkins (1994). 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