O G-20 e os constrangimentos às iniciativas contra-hegemônicas dos países em desenvolvimento nas negociações da Rodada do Desenvolvimento de Doha Ricardo Weber Professor de Relações Internacionais, IBMEC/RJ Doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Volume 1 – ANO 9– 2010 Sumário Introdução 3 Testemunho do Autor 22 Debate 39 2 Introdução: A tese tem como objeto o surgimento e a trajetória do G-20 durante as negociações da Rodada do Desenvolvimento de Doha (2001) da OMC até a paralisação das negociações em junho de 2008. Contrariamente à maior parte da literatura de Relações Internacionais sobre o tema, optamos por analisar o G-20 a partir de uma perspectiva sistêmica que discute e questiona o significado político do surgimento do grupo na ordem internacional pós Guerra Fria, durante a primeira rodada de negociações da Organização Mundial do Comércio. Nesse sentido, o estudo de caso sobre o G-20 assumiu uma dimensão mais ampla de pesquisa ao questionar as bases da ruptura ou continuidade da ordem internacional, a partir do papel das instituições. A análise do grupo dos vinte se orienta na direção das implicações e do significado do ressurgimento da clivagem Norte-Sul no pós Guerra Fria. O G-20 é, portanto, analisado como encarnando uma iniciativa contra-hegemônica de contestação às bases da ordem internacional. O objetivo do trabalho consistiu em explicar como a principal conseqüência do surgimento do Grupo dos Vinte resultou na impossibilidade de conclusão das negociações da Rodada de Doha (2001), determinando a sua suspensão, coincidente com o racha no núcleo da coalizão entre Brasil e Índia, em Julho de 2008. De uma perspectiva sistêmica, o G-20 que busca uma reforma fundamental da agricultura no regime de comércio consiste num reflexo do papel que a OMC passou a assumir na ordem internacional pós Guerra Fria, a partir do final dos anos 90. A hipótese deste trabalho sustenta que somente a partir da análise da relação que se estabelece entre os três pilares do multilateralismo econômico no momento do lançamento da rodada (2001), torna-se possível perceber grandes implicações sistêmicas sobre o formato da ação coletiva dos países em desenvolvimento no interior do regime, assim como sobre o rumo posterior das negociações. 3 Essa hipótese se baseia numa teoria institucionalista, que deriva a estabilidade da ordem internacional do papel das suas instituições fundamentais, atuando em conjunto e permitindo a restrição do emprego direto do poder, em contrapartida pelo aumento da influência ou autoridade legítima dos países desenvolvidos sobre a ordem internacional (IKENBERRY, 2001). Dessa perspectiva, a pergunta que esse trabalho buscou responder consistiu em identificar quais os constrangimentos institucionais o G-20 encontrou - no cenário multilateral do começo do novo século - ao liderar uma iniciativa de balanço diante da influência dos países desenvolvidos sobre o regime de comércio. Esse desenho da pesquisa aparece no primeiro capítulo da tese “Ordem Internacional e Instituições”, justificando o resgate da atuação complementar das instituições como determinante da estabilidade ou da mudança nas relações de poder entre Estados na esfera do multilateralismo econômico. Nesse sentido, o trabalho buscou contrastar o momento do lançamento da Rodada de Doha (2001) com alguns momentos anteriores da trajetória das instituições de Bretton Woods nas respostas às crises e nos seus impactos sobre o regime de comércio. A divisão em capítulos da tese se subordinou a essa dinâmica. O segundo capítulo, “O Surgimento do GATT-1947 e a Crise da Arquitetura de Bretton Woods” apresenta o regime de comércio do GATT, ressaltando sua inserção no multilateralismo econômico do pós Guerra e a relação de complementaridade que esse regime assumiu em relação ao FMI e ao BIRD. A análise parte dos dilemas colocados pelos idealizadores da ordem internacional no pós Guerra, quando opções políticas fundamentais estavam em jogo entre os parceiros da aliança atlântica. As escolhas feitas naquele momento se reproduziram no design institucional multilateral, expressando uma relação particular entre a regulação multilateral do comércio e das finanças. Essa relação é percebida como fundamental para a estruturação do ambiente institucional sob o qual o grande sucesso do GATT foi possível, durante a vigência do compromisso de Embeeded Liberalism (Ruggie, 1983). Foi essa relação que possibilitou o crescimento da liberalização do comércio compatibilizando-a com a proteção 4 social do Welfare State, contribuindo para o grande avanço na redução tarifaria durante Bretton Woods. A atuação complementar das instituições seria responsável por muitas das características do regime de comércio que permaneceriam condicionando a sua trajetória futura. Regras e princípios refletiam o design institucional complementar à atuação das outras instituições, como nos casos de princípios fundamentais, como o do Tratamento Nacional e o de Nação Mais Favorecida – MFN. Isso aparece pela natureza multilateral dessa regulação que teoricamente deveria se estender a todas as partes contratantes do Acordo, mas que, na prática, termina sofrendo muitas derrogações, pois esses princípios sempre operaram limitados por uma grande flexibilidade necessária para acomodar os países em desenvolvimento no interior do Acordo. No entanto, mesmo os países desenvolvidos detinham prerrogativas na aplicação das regras que possibilitavam restrições de importações, nos casos de desequilíbrios no balanço de pagamentos, conforme disciplinava o Artigo XVIII. Nesse espírito, havia sido sempre resguardado algum espaço para a manutenção do protecionismo comercial. A flexibilidade na aplicação das regras era compatível com uma ordem econômica na qual o valor era o crescimento para todos os países, a partir do equilíbrio macroeconômico entre as nações. A baixa institucionalização do comércio frente às demais instituições, como o FMI e o BIRD, atuava no sentido de aliviar as pressões do cumprimento das regras nas áreas sob maior institucionalização, responsáveis pelo equilíbrio macroeconômico sistêmico. Com o colapso da arquitetura econômica de Bretton Woods, essa característica do regime traria amplas repercussões sobre o GATT-1947. Principalmente pela forma como as instituições responderam à sucessão de crises que se inicia com o fim de Bretton Woods, como os choques do petróleo, a crise da dívida do terceiro mundo e a incerteza econômica dos países desenvolvidos, nos anos 70. Foi nessa conjuntura de crises que a Rodada Tóquio (1973-1979) foi lançada como 5 recurso para estimular a atividade econômica nos países desenvolvidos, quando a baixa institucionalização do regime e a flexibilidade das suas regras foram utilizadas por esses países como instrumentos no enfrentamento das conseqüências da crise, contornando as suas repercussões recessivas. O regime evoluiria na resposta à crise, avançando sua agenda sobre novos itens como barreiras não-tarifárias, subsídios, anti-dumping e restrições voluntárias às exportações que proliferavam diante do crescente protecionismo comercial empregado pelas nações do Norte. Nessas negociações, o curso de evolução do regime foi determinado pela criação dos códigos. A repercussão fundamental sobre as partes contratantes menos desenvolvidas se deu sobre a sua inserção no regime. Como países em desenvolvimento não tinham condição de assumirem os maiores compromissos implicados na celebração desses acordos, eles foram deixados à parte, originando uma grande fragmentação do GATT-1947, a partir da criação do chamado “GATT à La Carte”. No processo daquelas negociações, a adesão aos códigos era feita de forma opcional, relegando a maior parte dos países em desenvolvimento à marginalização dentro do Acordo. Enquanto para os países desenvolvidos havia um GATT dinâmico, que avançava rapidamente sua regulação sobre as novas áreas da agenda, os países em desenvolvimento passaram a se ressentir da sua pouca participação. Essas repercussões da rodada seriam fundamentais para o formato que assumiram as negociações comerciais no futuro, pois essa fragmentação teria de ser revertida, para que o multilateralismo comercial pudesse avançar na Rodada do Uruguai (1986-1994). No terceiro capítulo, “O Consenso de Washington e a nova inserção dos PEDs nas negociações da Rodada do Uruguai (1986-1994)”, a análise parte das conseqüências do choque dos juros do FED, sob Paul Volcker (1979) sobre as instituições da ordem econômica, concentrando-se sobre as suas implicações sobre o regime de comércio do GATT-1947. O capítulo analisa o processo de negociações da Rodada do Uruguai (19861994) da perspectiva da nova inserção em bases de reciprocidade dos PEDs no regime, explorando como o papel das demais instituições de Bretton Woods contribuiu para esse 6 resultado e suas implicações nos termos do surgimento de uma nova concepção de desenvolvimento propugnada pelas instituições. A partir da crise de Bretton Woods, os EUA, que se sentem ameaçados pelo fim da hegemonia do dólar (1979), decidem autonomamente elevar os juros da sua economia, resgatando o papel da sua moeda como meio de reserva internacional. Nesse processo, o país resgata a sua hegemonia sobre as finanças, forçando uma grande sincronização das políticas econômicas dos países em nível global. A partir dos crescentes influxos de recursos sobre a sua economia, os EUA passariam a deter capacidade quase irrestrita de financiamento, a partir da conversão das suas dívidas em imperativo da estabilidade sistêmica das finanças internacionais. Esse movimento determinaria o gatilho do grande endividamento externo das economias da periferia. Sob esse novo constrangimento sistêmico para a manutenção da estabilidade nas finanças, os EUA puderam liderar os países do G-7 no grande esforço de coordenação macroeconômica exigido para a estabilização da crise através do controle do valor do dólar. A partir dessas alterações que partem do pilar financeiro, abordamos a reconstrução lenta e gradual da nova arquitetura econômica, quando as mudanças na economia dos países desenvolvidos alteravam as estruturas produtivas das principais economias do planeta. Essa nova estruturação da economia encontraria expressão nas negociações da Rodada do Uruguai (1986-1994), resultando na maior institucionalização do regime, como forma de lidar com as mudanças na economia que reclamavam a ampliação e complexificação das áreas e temas sob regulação do GATT-1947. As conseqüências do fim do compromisso de Embeeded Liberalism (RUGGIE, 1993), apresentam-se sobre a forma da ameaça de cerceamento da autonomia política dos Estados sobre temas politicamente sensíveis. Isso geraria grande resistência dos países em desenvolvimento em participar daquelas negociações, pela sua apreensão diante dos novos temas, como os Serviços, a Propriedade Intelectual e os Investimentos. 7 No entanto, diante da fragmentação gerada pelo GATT A LA CARTE na rodada anterior, seria agora fundamental assegurar a adesão dos PEDs às negociações para que a rodada pudesse promover uma verdadeira reforma regulatória da economia global. Papel de destaque nesse processo coube à atuação das instituições de Bretton Woods, pois elas constrangeram os países em desenvolvimento ao ajuste estrutural das suas economias, forçando essa transição pela imposição das condicionalidades, associadas ao cumprimento da agenda de reformas econômicas do consenso de Washington. A Rodada Uruguai acontece no momento de transição política para a democracia nos países da América Latina. Nos anos 80, somava-se a isso a conjuntura de dívida e negociação desses países com o FMI e o Banco Mundial, o que fragilizava as economias em desenvolvimento minando sua resistência à agenda de reformas defendida pelas instituições. Foi a partir desses constrangimentos que o G-10, enquanto primeira iniciativa de formalização de coalizão de países em desenvolvimento no GATT, que resistia ao avanço das negociações nos novos temas rachou, sepultando definitivamente as coalizões de bloco, que consistiam no modo de representação tradicional dos países em desenvolvimento no regime. A partir do processo de Jaramillo, inaugurou-se o rumo à reciprocidade nas negociações da rodada, abrindo caminho para o surgimento das cross-over coalitions, envolvendo países desenvolvidos e em desenvolvimento em prol de uma solução conjunta para as negociações. Esse foi o caso do Grupo de Cairns, que permitiu a superação das divergências entre os EUA e a UE, aproximando suas posições nas negociações em agricultura que impediam a finalização da rodada. O que possibilitou essa convergência de posicionamentos no regime consistiu na alteração da visão preponderante da estratégia para atingir o desenvolvimento econômico nos PEDs, durante o longo processo de negociação. Paulatinamente, durante esse longo processo, os PEDs passaram a incorporar o receituário de políticas recomendadas pelas instituições. Segundo essa nova perspectiva, o desenvolvimento econômico seria atingido a partir do ajuste estrutural, aumentando a eficiência daquelas economias, pela integração ao mercado internacional via reformas e abertura econômica dos seus mercados, ambas 8 promovendo o incremento das suas exportações. Ou seja, o caminho para o desenvolvimento econômico consistia na combinação do comércio com estabilidade macroeconômica interna e não mais no processo da Industrialização por substituição de importações, recomendado pela CEPAL, anteriormente prevalecente na percepção dos países em desenvolvimento. O quarto capítulo da tese, “Anos 90: Crise das Instituições, o Debate sobre as Reformas e as Estratégias de Desenvolvimento dos PEDs”, concentra-se sobre as repercussões das crises financeiras dos mercados emergentes na década de 90 - México (1994-1995), Leste Asiático (1997), Rússia (1998) e Brasil (1999)- sobre as instituições da ordem econômica e o modelo hegemônico de desenvolvimento do Consenso de Washington. Em meados da década de 80, a estabilização macroeconômica fora atingida pela coordenação entre os países desenvolvidos do G-7, atuando por trás das instituições. Em seguida aos acordos que permitiram o retorno da periferia endividada ao mercado financeiro internacional, a crescente liberalização e desregulação desses mercados passariam a caracterizar as finanças crescentemente globalizadas da década de 90 como um não-sistema (BRESSER PEREIRA, 1997). A generalização desse modelo econômico seria crescentemente percebida como responsável pelas crises financeiras. Para BACHA (2002), o efeito das crises estaria deslocando o Consenso de Washington quanto às perspectivas do desenvolvimento da periferia, para dar lugar ao Dissenso de Cambridge, representando o amplo movimento de contestação e debate envolvendo as alternativas para o desenvolvimento econômico dos PEDs. Esse debate reverberou com força no interior dessas instituições, desde 1999. Em setembro desse ano, o relatório semestral do FMI, World Economic Outlook1 reservou um 1 World Economic Outlook. IMF, sept-1999. In: http://www.imf.org 9 capítulo do documento às propostas de prevenção e resolução das crises financeiras. No mesmo ano, o relatório anual do Banco Mundial procedeu da mesma forma. Nesses documentos constam as primeiras autocríticas do Fundo e do BIRD. Ambas as instituições adotavam uma inflexão no seu posicionamento tradicional que consistia em atribuir as crises exclusivamente aos fatores estruturais ou macroeconômicos dos mercados emergentes. A partir daquele momento, houve o reconhecimento do papel desempenhado pelo funcionamento inadequado e ineficiente do sistema financeiro internacional como responsável pela vulnerabilidade dos mercados vitimados pelas fugas de capitais. Naquela oportunidade, reconheceu-se que o Fundo e o G-7 tinham sua parcela de responsabilidade, pois a concessão de empréstimos aos países em crise de liquidez agravara o risco moral – moral hazarard. O fortalecimento do sistema financeiro impunha uma série de medidas, que incluíam a reforma do sistema financeiro e do FMI. Os EUA divulgaram uma proposta nesse sentido em fins de 1999 que foi defendida na reunião conjunta do FMI e do BIRD, de abril de 2000. A proposta de reforma institucional era originária do Congresso norteamericano e vinha sob a forma do Relatório Meltzer2, que defendia uma reestruturação radical do FMI e do BIRD. Esse documento gerava muitas críticas do Governo Clinton e do Congresso, pois nele se sobressaíam duas tendências principais. Uma delas era objetiva e voltada para os aspectos técnicos das propostas específicas para obtenção de metas econômicas definidas. Outra dimensão questionava o futuro papel do FMI e do Banco Mundial. Nesse caso, as críticas buscavam estabelecer se essas instituições deveriam perseguir metas econômicas concretas, definidas de forma técnica, ou permanecer sendo utilizadas como instrumentos para a prática de uma diplomacia ad hoc, por parte dos países desenvolvidos (Calomiris, 2000)3. Esse consistia no ponto mais crítico da mudança e que despertava as maiores 2 Report of the International Financial Institution Advisory Commission – IFIAC2000. Calomiris, Charles W. When will economics guide IMF and World Bank Reforms. In: Cato Journal, Vol. 20, No. 1 (Spring/Summer 2000). 3 10 resistências no debate interno dos EUA, segundo o Chairman do IFIAC, Allan Meltzer (2000)45. Nos princípios que deveriam contribuir com a credibilidade das reformas reverberava a influência dos debates sobre as novas vias para o desenvolvimento dos PEDs. Isso aparecia no princípio que chamava à atenção para a necessidade de respeitar a soberania dos países, recomendando a minimização da interferência sobre a regulação econômica dos Estados no que diz respeito aos critérios para o ingresso nas instituições, assim como no que concerne às condições estabelecidas para que os países possam recorrer à assistência das instituições multilaterais (IFIAC, 2000)6. Outro princípio importante dizia respeito à ausência de complementaridade entre a atuação das instituições econômicas, desde o fim de Bretton Woods, pois ressaltava a necessidade de uma clara distinção da área de atuação dos mandatos das instituições com o objetivo de aumentar a eficiência dos recursos (IFIAC, 2000). Inaugurava-se o debate sobre a necessidade de maior coerência entre os mandatos das instituições de Bretton Woods, refletindo a influência do novo debate sobre o desenvolvimento através das expectativas da comunidade internacional sobre a necessidade da incorporação dos países em desenvolvimento nos projetos de reforma das instituições. Esse debate que refletia uma concepção mais ampla do desenvolvimento, a partir da luta contra a pobreza e as privações de maiores graus de liberdade social, ganhava espaço no interior das Nações Unidas, nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ONU, 2000)7. Um marco importante nesse sentido consistiu no papel do Comitê de Ajuda e Desenvolvimento da OCDE - CAD (OCDE, 1996).8 4 Meltzer, Allan H. Reform of the IMF and World Bank. Carnegie Mellon University Year 2000. Tepper School of Business. In: http://repository.cmu.edu/tepper/14. Consulta em 09/01/2010. 6 International Financial Institution Advisory Commission - IFIAC- Allan H.Meltzer, Chairman. Report of the International Financial Institution Advisory Commission. March, 2000. In: http://phantomx.gsia.cmu.edu/IFIAC. Consulta em 10/02/2010. 7 Resolução da Assembléia Geral (A/RES/55/2), de 8 de setembro de 2000. 8 Shaping the 21st Century; the Contribution of Development Cooperation, París, OCDE, maio (1996). In: http://www.oecd.org/dac. Consulta em 13/01/2010. 11 Este Comitê passou a adotar esses objetivos oriundos das cúpulas das Nações Unidas, como metas para a concessão da ajuda internacional. Foi somente a partir dessa ampliação do escopo dos temas relacionados ao desenvolvimento que se tornou possível assegurar o compromisso conjunto do FMI, do BIRD, da OCDE e das Nações Unidas em relação a esses novos objetivos, propugnados pelo CAD, em Junho de 20009. O compromisso conjunto das instituições assinalava uma mudança na sua atuação, pois tradicionalmente elas não se aproximavam assim justamente em razão da maior representação dos interesses dos países em desenvolvimento nas Nações Unidas, em contraste com as instituições de Bretton Woods, que sempre representaram e sustentaram políticas favoráveis aos países desenvolvidos. Nesse documento, essas instituições assumem diretamente o comprometimento com as metas internacionais do desenvolvimento, especialmente com a redução da pobreza. Áreas como a ajuda internacional ao desenvolvimento e a abertura comercial passaram a ser associadas diretamente a um direito do acesso das exportações dos PEDs aos setores chave das economias desenvolvidas, assim como ao fim do protecionismo comercial nos Têxteis e na Agricultura. As percepções tanto dos economistas neoliberais, quanto de ONGs como a OXFAM passaram a coincidir na relação existente entre o protecionismo comercial dos países desenvolvidos e a pobreza existente nos países em desenvolvimento10. Uma expressão dessa nova relação entre o desenvolvimento dos PEDs e o fim do protecionismo comercial nos países desenvolvidos consistiu na realização da Conferência Internacional sobre o Financiamento e o Desenvolvimento – CIFD-, entre 18 e 22 de março de 2002. A conferência representava o ponto culminante de um processo preparatório de dois anos, que já incluíra cinco conferências regionais e quatro sessões preparatórias (ONU, 2002), consistindo na primeira iniciativa da ONU destinada a endereçar conjuntamente 9 Um mundo melhor para todos: implementação dos objetivos do desenvolvimento internacional. Documento elaborado para a XXIV sessão especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, junho 2000 para acompanhar o cumprimento dos compromissos da Cúpula do Desenvolvimento Social de Copenhague de 1995. In: http://www.paris21.org/betterworld. Consulta em 13/01/2010. 10 Cambiar las reglas. Comercio, globalización y lucha contra la pobreza. Oxfam, 2002. In: http://wwwcomercioconjusticia.org. Consulta em 11/01/2010. 12 questões macroeconômicas e financeiras, num ambiente alternativo ao lócus tradicional das discussões no interior das instituições de Bretton Woods. A Conferência incluiu a participação do FMI, do BIRD e da OMC, conjuntamente a outras agências do sistema ONU, como a UNCTAD e o PNUD11. Em Monterrey (2002)12, estabeleceu-se que o comércio e o capital privado, principalmente no que diz respeito aos investimentos diretos, consistem nas principais fontes de financiamento para o desenvolvimento. Na Declaração de Monterrey, a seção “International Trade as an Engine for Growth”,13 apresentava o comércio diretamente relacionado ao objetivo do desenvolvimento dos PEDs14. No quinto capítulo, “O G-20 e as Negociações Agrícolas da Rodada de Doha: Possibilidades e Limites da Atuação dos Países em Desenvolvimento na OMC”, analisamos como esse momento de transição das instituições coincidiu com o lançamento da Rodada de Doha (2001), permitindo que as perspectivas do desenvolvimento dos PEDs fossem incorporadas ao regime de comércio, transferindo muitas tensões para aquelas negociações. A incorporação do tema do desenvolvimento na Declaração de Doha (2001) abriu grande espaço para a disputa do significado de uma rodada comercial comprometida com o tema, pois não havia consenso para a tradução desse compromisso em termos concretos nas negociações do regime. Essa disputa ressuscitaria a clivagem Norte-Sul e apresentaria implicações definitivas sobre o destino da Rodada de Doha (2001). Em torno das divergências nos temas mais sensíveis para os interesses do desenvolvimento é que se daria o impasse em Cancun (2003). Nesse sentido, o 13 Report of the International Conference on Financing and Development. New York, United Nations, 2002. Disponível em: http://dacceddssds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N02/392/67/pdf/N0239267.pdf?OpenElement. Acesso em: 08 jun. 2008. 14 Monterrey Consensus of the International Conference on Financing Development. United Nations Department of Economic and Social Affairs: Financing and Development Office, 2003. Disponível em: http://www.un.org/esa/ffd/monterrey/MonterreyConsensus.pdf. Acesso em: 08 jun. 2008 13 ressurgimento da clivagem Norte-Sul no regime envolveria três temas fundamentais para essa nova concepção do desenvolvimento, representados pela liberalização da agricultura, pela rejeição ao avanço dos temas de Singapura (1996) e pela questão do Algodão. O texto da Declaração de Doha (2001) já trazia uma grande ambigüidade quanto ao destino dos temas de Singapura (1996). Não havia um compromisso claro no texto, permitindo definir o status desses temas nas negociações. A rejeição a esses temas, contudo, já figurava no comportamento das coalizões de PEDs como o Like Minded Group, desde a Conferência de Singapura (1996). O G-90 que emergiu em Cancun (2003), consistindo na base de apoio mais ampla para o G-20, tinha na rejeição ao avanço desses temas o seu principal interesse negociador. Foram as divergências quanto ao significado do compromisso do regime com o desenvolvimento dos PEDs que possibilitaram que alguns BRICs liderassem muitos países em desenvolvimento, buscando apontar o rumo correto daquele compromisso. O que permitiu ao G-20 contar com o apoio de uma grande variedade de países em desenvolvimento - como no caso de um G-90, em Cancun (2003) e de um G-110, em Hong Kong (2005) - era a perspectiva de que a ênfase da rodada no desenvolvimento seria deslocada da agenda pela tradicional liderança transatlântica das negociações. Nesse sentido, a costura de uma proposta concreta de negociação em agricultura representou uma reação ad hoc ao domínio das negociações pela aliança entre os EUA e a UE. A política do Brasil e da Índia na OMC foi diretamente relacionada à concentração sistêmica de poder e não simplesmente produto de interesses especificamente comerciais (HURREL, 2009. p 36) 15 . A formulação de uma proposta concreta pelo G-20, que se contrapunha àquela dos países desenvolvidos, surgiu como conseqüência da falta de alternativas com que se defrontaram alguns BRICs, como Brasil e Índia, que diante daquela conjuntura foram capazes de conquistar a adesão da China e de outros membros menores do mundo em desenvolvimento, como Argentina, Chile e África do Sul, seguidos por 15 Hurrel, Andrew. Hegemonia, liberalismo e Ordem Global: qual é o espaço para potências emergentes. In: Os BRICs e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV, 2009. 14 muitos países menores. Esse formato da ação coletiva, entretanto, encerrava em si um grande dilema para o futuro das negociações da OMC, pois abrigava no seu núcleo de liderança uma grande heterogeneidade de interesses negociadores. O Brasil, grande líder da coalizão e responsável pela iniciativa de formação do grupo tinha grande interesse na liberalização da agricultura pela OMC. O setor do agronegócio respondia por parcela importante do crescimento do PIB. No entanto, a alta competitividade da agricultura brasileira não possibilitava o recurso ao argumento do direito ao desenvolvimento como figurava no mandato de negociação da rodada. No caso da Índia, o que menos desejava em Doha consistia no fim do direito de proteger a sua agricultura doméstica. Conservando grande parte da população em áreas rurais, habitadas por agricultores pobres, o país se conservava na coalizão pelo compromisso celebrado com o Brasil de que haveria exceções para os países em desenvolvimento, possibilitando a manutenção do seu protecionismo doméstico. Sua presença no G-20 possibilitava que a Índia permanecesse conservando as mesmas bases da sua política externa em agricultura, a partir de um papel de maior protagonismo nas negociações. Como apontaram PANAGARYIA (2002) e SRINIVASAN (2003), a postura da Índia refletia a falta de uma formulação clara do interesse nacional nas negociações, resultando numa postura retraída, negativa e defensiva na rodada. Isso contribuiu de forma central para que a Índia aderisse ao projeto de liderança daquele grupo por iniciativa do Brasil. No caso da China, o país emprestava seu grande peso político ao G-20 não se interessando na liderança das negociações ou sequer assumindo uma postura ativa esperada de um grande poder emergente no cenário multilateral. O principal interesse da China em Doha consistia em NAMA. Com relação ao tratamento especial e diferenciado para os PEDs, a China admitia, mas não fechava questão sobre sua necessidade, pois possuía grande interesse em obter maior acesso a grandes mercados emergentes como Índia e Brasil 15 em agricultura. A conveniência da China em permanecer no G-20, resultava da aspiração pela liderança dos países em desenvolvimento. Os seus interesses mais fundamentais consistiam no avanço da liberalização comercial, que lhe interessava pela competitividade das suas exportações. Isso entrava em conflito com a excepcionalidade de tratamento na OMC. Desse modo, à China convinha ser menos clara ou demandante acerca dos seus interesses concretos, pois ela podia deixar as demandas pela liberalização comercial dos PEDs a cargo dos países desenvolvidos, que poderiam avançar esses objetivos sem assumir o desgaste de pressionar os países em desenvolvimento (LAWRENCE, 2006, p. 27). A partir do momento em que a China empresta seu peso político, às margens da influência que poderia exercer sobre a rodada, o caminho estava aberto para que Brasil e Índia conduzissem o grupo a partir de uma liderança que não dividia propostas substantivas ou metas concretas em comum. Precisamente por interpretarem o conteúdo do compromisso com o desenvolvimento dos PEDs da Declaração de Doha (2001) de forma diversa, a proposta do grupo para as negociações consistia na fusão do objetivo central do Brasil da liberalização do comércio agrícola com a conservação da excepcionalidade das regras de tratamento diferenciado para os PEDs, que representava o interesse supremo da Índia nas negociações. Entretanto, essa conciliação heterogênea de interesses no G-20 possuía também um fator estabilizador representado pela sua concentração de poder. A distribuição do poder no G-20 se concentra num G–3+3. Num nível fundamental, há um G-3, formado por BRICs – Brasil, Índia e China. Em um segundo nível, configura-se outro G-3 composto por membros de menor expressão – Argentina, Chile e África do Sul. A esse núcleo se somavam 12 membros de pouca expressão. Essa concentração de poder blindava o grupo do assédio dos países desenvolvidos, pois enquanto não houvesse uma defecção no núcleo de poder do grupo, o G-20 se manteve capaz de prosseguir com seu projeto de liderança sobre as negociações. Esse formato de ação coletiva que permitiu o resgate da clivagem Norte-Sul começaria a se desgastar a partir das negociações do Documento de Modalidades de Julho 16 de 2004. Na ocasião, os líderes do G-20 foram incorporados ao círculo de negociações mais estreito da OMC, mediante a constituição do Five Important Parties (FIPs) que envolvia, além de Brasil e Índia, EUA, UE e Austrália. Uma repercussão fundamental dessa forma de aumentar a representatividade da OMC frente o desafio das coalizões de países em desenvolvimento consistiu em estimular os líderes do G-20 a prosseguirem negociando na liderança do grupo à frente de uma grande maioria de países pobres, refletindo-se num dilema para o progresso das negociações. Durante o longo processo de negociações, a tese acompanha a dinâmica do G-20 que se associa ao dilema de que mesmo diante da falta de resultados substantivos, e a despeito das divergências de interesses na coalizão, conservava-se um grande estímulo para o investimento na manutenção do grupo na perspectiva dos seus líderes. No entanto, a maioria dos seus membros ambicionava um resultado concreto que entregasse as promessas depositadas no compromisso com o desenvolvimento expresso em Doha (2001). Para esses países, o desgaste do G-20 tenderia a crescer com a evolução das negociações. Quando o processo de negociação passa a se desenvolver na direção da maior participação dos PEDs através do FIPs, surgiram as primeiras críticas dos demais membros do G-20 que não se sentiam representados por essa incorporação. Ao contrário, a percepção desses atores era a de que estava surgindo um novo QUAD, pois a diferença entre os níveis de desenvolvimento no interior do G-20 reproduzia aquela existente no interior do regime, sobre a qual se legitimava o direito ao desenvolvimento como tema central da rodada. Isso tornava incompatível a representação da maioria dos membros do G-20 por esses grandes mercados emergentes. O avanço das negociações em direção a outras agendas, como iniciativa que poderia ampliar as bases da barganha, possibilitando novos trade offs entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, não seria capaz de vencer o desafio trazido pelo G-20 para a Rodada de Doha (2001). Ao contrário, o que o prosseguimento das negociações evidenciou foi que 17 o G-20 e as negociações em agricultura foram colocados no centro da rodada, impedindo um compromisso entre os membros da OMC. Este capítulo se concentra sobre a análise do processo de negociação que progressivamente exaure os esforços da coalizão na busca pela manutenção da sua coesão. A dinâmica das negociações apresentaria desafios críticos para o G-20, ao acentuar as enormes divergências que separavam seus líderes do restante do grupo. Acompanhamos a evolução dos documentos produzidos pelas negociações e confirmamos uma grande incompatibilidade entre o compromisso formal com a ambição do mandato de Doha reafirmado em várias fases das negociações - em contraste com a ausência de resultados concretos ou substantivos que satisfizessem o interesse da grande maioria dos membros do grupo. Essa ambigüidade que o processo de negociação assume se torna cada vez mais claro para a liderança do grupo. Isso faria com que o G-20 passasse a se distanciar do seu perfil original que buscava compatibilizar o compromisso com os avanços no processo negociador da OMC - que aproximava sua liderança dos interesses dos países desenvolvidos - com a manutenção da aliança dos países em desenvolvimento que formavam as grandes coalizões de PEDs da rodada, como o G-90 e o G-110. Progressivamente, o Brasil, na liderança do G-20, passaria a buscar o apoio político externo às negociações da OMC, encaminhando-se para uma grande sinergia com os BRICs. Foi a partir dessa nova fase da sua atuação que o racha no seu núcleo de liderança se tornou inevitável. Os processos que levaram a esse resultado consistem no núcleo de análise desse trabalho. 18 Testemunho do Autor: Muito obrigado. Gostaria de agradecer sinceramente a iniciativa do CEBRI, que é uma oportunidade maravilhosa para mostrar meu trabalho. Queria me congratular com todos vocês, estou vendo que tem uma parcela jovem bastante significativa aqui me ouvindo e isso é sempre um prazer muito grande. Talvez a forma mais franca e mais clara de explicar um pouco de por que o interesse pelo tema do G-20 esteja profundamente ligado ao que o G-20 representava ou representou para alguém que estava acompanhando a política externa do Brasil na época de Cancún, em 2003, quando o grupo surge parecendo que iria arrebentar as portas da OMC. O G-20 inaugura uma iniciativa de balanço, em relação ao poder de influência dos países desenvolvidos sobre aquelas negociações e é considerado, em grande parte, um dos responsáveis pelo grande impasse que marcou a conferência de Cancún, paralisando tais negociações, atrasando o cronograma da Rodada, definindo do quadro de modalidade para 2004. Há um grande interesse em entender como esses novos heróis do mundo em desenvolvimento conseguem se unir e paralisar as negociações da Rodada Doha. Exatamente questionando um pouco essa primeira idéia de como as coalizões estão se formando e estão negociando na OMC, comecei a questionar um pouco: será que foi o G20 que paralisou essas negociações? Ou quanto do G-20 responde pela paralisação dessas negociações? Qual o significado político da formação do G-20? Porque, num primeiro momento, uma grande parte da literatura, inclusive, considera o G-20 como parte de uma coalizão de terceira geração. O que seriam essas coalizões de terceira geração? Seriam coalizões de geometria variável. Isso quer dizer que esses países do terceiro mundo, antigamente identificados por uma dimensão, sobretudo ideológica no seu comportamento de ação coletiva no regime comercial, teriam passado a agir num sentido mais pragmático de identificação de seus interesses para, a partir desses, formar coalizões pontuais em determinados temas da negociação que não teriam obrigatoriamente uma continuidade em 19 outras arenas de negociação. Haveria um pragmático muito maior dessas coalizões de países em desenvolvimento (PEDs) que estão atuando na OMC desde sua criação pós-1995. Comecei a questionar isso, essa tese é uma tentativa de leitura da coalizão do G-20 a partir da perspectiva da Rodada Doha, como Rodada do Desenvolvimento. Isso porque o fator explicativo e causal mais forte, no qual apoio minha explicação, consiste no fato dessa Rodada ser uma Rodada do Desenvolvimento e no fato do tema do desenvolvimento se apresentar de uma forma ímpar, completamente diferente do que já se apresentou em todas as outras etapas das rodadas de negociação do regime de comércio. Assim que, exatamente buscando explorar qual é essa concepção de desenvolvimento e como ela pode ter uma influência tão grande sobre as negociações da OMC - estou na verdade sustentando que o G-20 consiste num sintoma mais acabado dessa manifestação, dessa idéia de desenvolvimento – isso me levou a olhar para como o regime de comércio vem se desenvolvendo desde o pós-guerra. Ainda, como que nas diferentes fases do desenvolvimento do regime comercial, a atuação do regime de comércio regulam as finanças internacionais, ou seja, as esferas do multilateralismo econômico assumiram diferentes configurações e como essas diferentes configurações da relação entre comércio e finanças condicionaram, até certo ponto, a inserção dos países em desenvolvimento no regime de comércio. Apresentando o primeiro capítulo desse trabalho, um capítulo teórico, recorro a um institucionalista chamado John Ikenberry, que defende a tese de que, após as guerras, surgem oportunidades de mudança. Mudança por conta do fim de uma ordem que permite a construção de uma nova ordem. A grande implicação nesse ponto é que a grande estabilidade depende do papel das Instituições. Instituições garantem princípios e regras que são favoráveis a alguns Estados e desfavoráveis a outros. Mais favoráveis aos países hegemônicos no momento da “pactuação” da ordem, um “Path Dependence” que constrange as oportunidades de mudança da ordem internacional. Apresento no primeiro capítulo esse desenho de pesquisa, sustentando o argumento do Ikenberry de que é a partir da complementaridade da atuação das Instituições que a 20 estabilidade da ordem internacional se mantém. No segundo capítulo, investigo essa complementaridade da atuação das Instituições, nesse caso envolvendo a regulação das finanças e a regulação do comércio, para dar conta como o Acordo de Geral de Tarifas de Comércio (em inglês General Agreement on Tarifs and Trade, GATT) surge na ordem de Bretton Woods. Continuarei a percorrer a literatura institucionalista, cito o John Ruggie16, menciono o compromisso de “bitter liberism” que sustenta que as Instituições estão permitindo que os Estados tenham um grande sucesso na liberalização comercial dos vinte primeiros anos do pós-guerra. O grande sucesso dessas rodadas de negociação comercial acontecem sobre essa grande complementaridade institucional. A partir dessa, os países em desenvolvimento têm uma inserção no GATT à margem das regras, conseguem uma série de exceções para viabilizar o seu desenvolvimento econômico, na época associado à industrialização por substituição de importações. Percorro esse caminho para dar conta do fim dessa ordem de Bretton Woods, para chegar à crise dos anos 70 quando começam as crises do Petróleo, crises do Câmbio; começam também uma série de movimentos financeiros e uma crise muito grande que é preciso tentar restaurar, suprir as consequências recessivas da crise através da promoção do avanço da liberalização comercial. Como é que isso vai implicar na inserção dos países em desenvolvimento dentro do GATT? Entramos na Rodada Tóquio, de 1973 à 1979, que busca lidar com as consequências recessivas da crise e, para tanto gera uma grande fragmentação no acordo. Essa grande fragmentação que surge pela celebração dos códigos na Rodada Tóquio. Os países em desenvolvimento são deixados, em grande parte, à margem dessas negociações. Não obstante, conquistam a base jurídica do Code of Good Practice (CGP) através da causa de habilitação de 1979, no final da Rodada.. Os grandes ganhos de liberalização comercial dos novos setores de desenvolvimento econômico estão concentrados na celebração dos códigos que são celebrados de forma voluntária. Os países que têm interesses, têm ganhos 16 John Ruggie é um professor universitário de Direitos Humanos e Negócios Internacionais austroamericano. É representante especial na ONU para área de negócios e direitos humanos e professor da Universidade de Harvard. 21 para realizar naquela celebração se dedicam a essas negociações enquanto que os PEDs ficam à margem delas sem participar dos ganhos da mesma forma. No terceiro capítulo, dou conta da reconstrução da arquitetura institucional e da relação entre comércio e finanças. Abordo a Rodada Uruguai do GATT, mas o faço sob a perspectiva de como as Instituições do multilateralismo econômico vão constranger os países em desenvolvimento a embarcar em negociações recíprocas com o mundo desenvolvido. Abordo o papel do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como se dá o constrangimento das reformas, como essas negociações e a imposição de condicionalidades, num primeiro momento, vencem a resistência dos PEDs, quebrando a coalizão do G10. Começam a aparecer as Crossover Coalitions, o grupo de Kerns e mais uma série de iniciativas que estão mexendo profundamente com a exceção tradicional desses países no regime. Abordo ainda a questão do Choque de Juros de 1979, de que forma esses constrangimentos impostos pelas Instituições levamos países a liberalizarem o seu comércio e como esses constrangimentos começam a partir de certo momento naturalizados, generalizados, já que os PEDs começam a ingressar na liberalização unilateral do comércio, muitas vezes sem constrangimento e sem a presença de uma barganha. Eles interiorizam essa perspectiva de desenvolvimento ligado à abertura econômica, juro estrutural, ao aumento da eficiência e promoção das exportações. Entrando no capítulo quatro, concentro-me nos anos 90 e como esses países recém incorporados nas negociações com o mundo desenvolvido dentro do regime de comércio vão sofrer os efeitos da fuga de capital dessa década. Recorro novamente no capítulo quatro, à separação entre comércio e finanças, e concentro-me na parte das finanças, nas crises que sucessivamente vão percorrer leste asiático em 1997, Rússia em 1998, Brasil em 1999, e como a ressaca dessas crises financeiras gera amplo debate no cenário internacional sobre a questão do desenvolvimento dos PEDs. Se anteriormente, durante ainda a Rodada Uruguai, esses países interiorizam sua concepção do desenvolvimento associada ao Consenso de Washington, quando se fala no final de 1989, o relatório conjunto do Banco Mundial, do FMI, está ressaltando pela primeira vez na história dessas Instituições uma autocrítica. Uma autocrítica não só no sentido da atuação do Banco Mundial e do FMI na 22 gestão das crises financeiras, mas, sobretudo, uma autocrítica em relação à receita para o desenvolvimento econômico. A partir desse momento, há um resgate muito grande do papel do Estado na promoção do desenvolvimento. Se pegarmos a literatura nacional, veremos o Edmar Lisboa Bacha falando em algo que ele chamará de Dissenso de Cambridge em contraposição ao Consenso de Washington. O Dissenso de Cambridge estaria associado aos nomes de Dany Rodriguez, do Ha-Joon Chang – do Chutando a Escada –, e do Joseph Stliglitz. E qual a grande lição desse grande Consenso? É papel do Estado de ser o grande promotor do desenvolvimento. Não é mais possível acreditar que o desenvolvimento dos países menos desenvolvidos será atingido única e exclusivamente via integração no sistema internacional e uma retirada do Estado do seu papel de regulador ou locador de recursos. Então, a partir desse questionamento, dessa nova concepção do desenvolvimento, que está surgindo desses relatórios, o próprio Congresso dos Estados Unidos interioriza isso. Ele passa a trabalhar sob a perspectiva da reforma das Instituições de Bretton Woods. E, dentro dessa perspectiva de reforma, o que pode-se perceber é uma grande preocupação com o resgate na confiança dessas Instituições. Como esse resgate da confiança deveria ser perseguido? Através de uma reforma que tivesse em vista princípios para atuação dessas Instituições. Princípios como, por exemplo, respeito à soberania dos países na regulação e na locação de recursos nos seus cenários domésticos e respeito à questão do desenvolvimento como direito fundamental desses países que seria financiado, sobretudo através do comércio internacional. O comércio é uma grande fonte de financiamento para o desenvolvimento. Isso aparece no relatório da Comissão Meltzer, é acentuado no Consenso de Monterrei, na Conferência Internacional para o Financiamento para o Desenvolvimento, em 2002, e, a partir desses movimentos que estou citando, passamos a ter uma crescente associação da liberalização do comércio agrícola com o direito ao desenvolvimento dos PEDs. Creio que esse seja um ponto fundamental para poderemos entender um pouco do que está acontecendo na OMC e do que leva o G-20 não apenas a se formar, mas também a possuir algumas medidas de potencial explicativo para entendermos o que está acontecendo 23 no transcorrer das negociações da Rodada Doha. Então, se pensarmos em termos de cenário internacional e essa relação comércio e finanças no começo do século XXI, quando foi lançada a Conferência de Doha, observamos que o tema de desenvolvimento, antes associado profundamente ao receituário do Consenso de Washington e o papel do FMI, está completamente deslocado do interior dessas Instituições, e isso algo que não aconteceu antes. Onde é que o tema do Desenvolvimento vai encontrar abrigo na alvorada do século XXI? Exatamente como programa da primeira rodada da Organização Mundial do Comércio, há a incorporação do tema do desenvolvimento no interior, mas o faz pleno de contradições e de incertezas quanto ao significado preciso do desenvolvimento dos países menos desenvolvidos. Creio que o ponto fundamental seja “pleno de incerteza”. O tema do desenvolvimento adentra a OMC, vira o tema da primeira rodada de negociações em Doha e, desde então, conseguimos perceber uma série de ambiguidades que se manifestam no texto em relação à questão do desenvolvimento. Em primeiro lugar, a declaração de Doha menciona o compromisso dos países desenvolvidos com a liberalização do comércio agrícola como via para o desenvolvimento dos PEDs. Mas, ao mesmo tempo, não se compromete com nenhum tipo de resultado. “Without prejudging the results of negotiations”. Em segundo lugar, a questão dos Temas de Cingapura17 que vêm desde a Conferência de Cingapura em 1996. Quatro são os temas profundamente ligados à interferência da regulação multilateral sobre o comportamento dos Estados e também sobre a capacidade de regulação dos Estados. Essa questão encontra um abrigo completamente ambíguo na Rodada de Doha. Esses quatro temas estão completamente deslocados nessa nova concepção do desenvolvimento que está surgindo no cenário multilateral. E como eles aparecem em Doha? Aparecem com a declaração dúbia quanto à interpretação. Na declaração de Doha, aparece escrito, basicamente, que, após a quinta Conferência Ministerial, ou seja, após Cancún, seriam decididas as modalidades das negociações desses temas. Os países em desenvolvimento interpretam essa mensagem significando que teriam oportunidade de, através do processo do consenso, rejeitar a negociação desses temas. 17 Compras Governamentais; Facilitação do Comércio, Propriedade Intelectual e Investimentos. 24 Os países desenvolvidos interpretam a mesma declaração no sentido de que esses sistemas seriam discutidos apenas quanto a sua modalidade de negociação, mas que a sua inclusão no quadro de negociação já estaria assegurada na partir da Declaração de Doha. Então, essas ambiguidades que vão se acumulando no texto da Declaração de Doha são, em larga parte, responsáveis pelo fracasso que é verificado em Cancún. O que acontece em Cancún? Quem paralisa Cancún? É apenas o G-20? Não! Quem está por trás desse grande malogro de Cancún é, sobretudo o G-90, que está surgindo pela participação do grupo países africanos, caribenhos e do Pacífico (ACP, sigla em inglês) e do Grupo Africano. Eles estão reunindo 90 países em desenvolvimento que rejeitam, como um todo três dos Temas de Singapura, os que representam a agricultura e a questão do algodão. Essa última, sobretudo, uma questão ligada ao desenvolvimento dos países mais pobres; os africanos produtores de algodão têm um grande problema, têm uma grande reparação contra o comportamento dos Estados Unidos e mercados desenvolvidos que subsidiam altamente o único produto do qual eles têm vantagem comparativas que se destacam. Dessa forma, é mais ou menos traçando essas ambiguidades que vou conduzindo a interpretação do que está acontecendo na Rodada de Doha. A formação do G-20 é tradicionalmente tida como uma coalizão de Geometria Variável, uma coalizão de terceira geração na OMC. Estou me posicionando de uma forma extremamente crítica em relação a isso. Quais são os interesses compartilhados pelos membros do G-20? Ou esses membros do G-20 se dividem em termos de interesse em relação àquela proposta agrícola? Há uma grande barganha ali. No caso dos três países líderes, de maior peso econômico no G-20 China, Índia e Brasil – há um interesse muito grande do Brasil na liberalização da agricultura, mas não há esse interesse da parte da Índia, muito menos da parte da China. Há uma grande predileção desses grandes países pela concessão do tratamento especial, que figura em Doha. No caso da China, essa está ainda em um período de transição recém admitida como membro da OMC, não está preparada nem está disposta a fazer maiores concessões em negociações, não está disposta a liderar coalizão nenhuma. A Índia tem um interesse em 25 dividir a liderança dessa coalizão com o Brasil, mas é, ao mesmo tempo, muito presa. A Índia sempre se prendeu muito ao seu papel tradicional de liderar os países em desenvolvimento no GATT, dentro do grupo informal, dentro do regime que não existe mais, então o que se vê pela junção desses grandes atores é uma oportunidade sistêmica única que permite, sobretudo, ao Brasil, liderar essa coalizão da qual a China não aparece. A China empresta um grande poder econômico, um grande poder político, uma grande visibilidade para esse G-20, mas não se manifesta nessas negociações. Quase que deixa essas negociações correrem em torno da liderança brasileira. E a consequência que surge no transcorrer das negociações é a ausência completa de compromissos concretos com as metas do G-20. Aprova-se, por exemplo, um acordo “Marco de Julho”, um compromisso em torno dos princípios que o G-20 está defendendo para a forma de redução tarifária, mas, em termos de compromissos concretos, isso não acontece. Em 2005, a mesma coisa. A partir de certo momento, o G-20 percebe que uma tentativa de balanço profundamente associado à idéia de legitimidade do direito de desenvolvimento dos PEDs não encontra espaço para se concretizar no interior da Organização Mundial do Comércio. Como o G-20 reage a essa limitação? Cada vez o grupo desgasta mais a sua coalizão com os PEDs diante das oportunidades que se oferecem de aproximação com os países desenvolvidos e isso se torna uma tendência no comportamento do grupo. Principalmente depois da incorporação da Índia e do Brasil no FIPs (Five Important Parts) que acontece nas negociações de 2004, no “Marco de Julho”; e mais tarde, com o transcorrer das negociações, o Brasil começa a perceber que investir nessa polarização não entrega resultado concreto. E o Itamaraty tem uma iniciativa muito interessante, passando a tentar vincular a idéia de legitimidade, que defendo, como sendo aquilo que permitiu a formação do G-20, e começa a vincular essa idéia de legitimidade com o tema dos biocombustíveis, da redução da fome no planeta e da liberalização dos mercados agrícolas internacionais. Começa a fazer isso no fórum econômico mundial de 2007, investindo nos temas dos biocombustíveis como meio de extinguir a pobreza nos países mais pobres e de 26 proporcionar uma oportunidade aos países desenvolvidos de atingirem uma maior limpeza na matriz energética do planeta, trazendo esse tema para o encontro dos BRICs. Nesse momento, – em 2007 ainda -, creio estar se revelando a “cara” do G-20 de uma forma muito clara. Esse encontro de 2007 acontece, creio, que a duas semanas, mais ou menos, do encontro final na sede da OMC de junho de 2008, que é quando acontece o racha definitivo entre Índia e Brasil. O Brasil apóia uma proposta dos EUA e o grupo arrebenta. Nas palavras de Celso Amorim, “ele estava por um fio e o fio arrebentou”. Tentei passar uma visão ampla da pesquisa, de como se desenvolveu, mas tem muita coisa ainda para ser explorada. 27 Debate: Pergunta: Muito obrigada, Ricardo. É difícil resumir Em meia hora, ele acelerou uma tese de tantos anos e tantas páginas. Foram mais de 400 escritas, fora o que tinha por trás na pesquisa. Agradecemos muito e vamos abrir agora para um debate e para comentários. Vou fazer uso da minha prerrogativa de apresentação e pedir que ele comente, também.Ele citou alguns constrangimentos. Queria que você mencionasse o constrangimento causado também no Mercosul pela “crítica” à liderança e à atuação. Você citou os FIPs – Five Importants Parts. E é claro que dentre os FIPs, a Argentina não estava e isso criou um constrangimento, veio muito à imprensa. Então, queria saber se na sua tese isso é mencionado e também esse impacto. Pergunta: Você estava falando das oportunidades que apareceram para o Brasil mediante a articulação do G-20 e mencionou que há uma dificuldade, um enfraquecimento do movimento do G-20, a medida que as oportunidades de aproximação com países desenvolvidos vão aparecendo. Então, minha pergunta é: Quais, você acha, são os melhores caminhos para o Brasil atuar? Se é melhor que ele se apegue mais às oportunidades de aproximação com esses países ou se ele abra a mão de alguns interesses para poder representar melhor o grupo. Dr. Ricardo Weber: Antes para esclarecer, deixe-me eu lhe perguntar uma coisa: Você está se referindo, quando fala “abre mão”, a que especificamente? Pergunta: 28 A algumas oportunidades de negócios, de aproximação com os países desenvolvidos... Dr. Ricardo Weber: Em prol da união? Pergunta: É, em prol da credibilidade do G-20, de que ele tem como líder em relação aos países menos desenvolvidos. Dr. Ricardo Weber: Perfeito. Pergunta: Mais alguma colocação nessa primeira rodada? Pergunta: Sou da ABIFINA, Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina. Você falou como a Rodada de Doha paralisou a partir do momento em que o Brasil, em 2008, concordou com a proposta americana, a Índia interferiu e deu para trás e as coisas não evoluíram mais. Mas, a partir daí, se seguiu à crise internacional e os EUA se tornaram, mais do que nunca, hiperprotetores; então esse hiperprotecionismo que aconteceu inclusive na questão agrícola, você acha possível retomar a partir daquele estágio que paramos em 2008? 29 Pergunta: Bom dia, pretendo fazer uma pergunta um pouco mais espinhosa, em relação a sua opinião, de fato. Minha intenção é perguntar alguma coisa no modelo da primeira pergunta, só que então foi o seguinte: haja visto que muita gente considera que o Mercosul está paralisado e que agora, que a Rodada de Doha está paralisada; onde você vê o melhor caminho? Onde, Brasil deve investir mais as suas fichas? O seu capital político, o seu capital para avançar esse tipo de negociação. Porque, como foi levantado, muita gente critica a negociação global porque fere a regional. Então, uma vez que isso já foi feito e que as duas já estagnaram, onde vale a pena o Brasil investir mais? Dr. Ricardo Weber: Está ótimo. Vou começar pela primeira pergunta em relação à Argentina. No caso da Argentina, ela foi profundamente crítica da liderança do Brasil no G-20. Começa a se ter uma denúncia muito grande. Essa denúncia da Argentina reverbera de uma forma muito forte no Ministério das Relações. Exteriores. O Rubens Ricupero está denunciando, no final das negociações, o comportamento do Brasil à frente do G-20, como esse projeto de liderança na OMC está pondo a perder uma série de esforços diplomáticos que já foram construídos no passado. Uma aproximação de tantos anos foi colocada para escanteio em prol de uma estratégia que, segundo o depoimento do Ministro, se não me engano, sempre foi de improvável concretização. Ele, inclusive, cita que, em termos concretos, os grandes mercados que interessam ao Brasil no longo prazo são os mercados de seus próprios parceiros do G-20. É o grande mercado indiano, é o grande mercado chinês. O G-20 é uma coalizão que se forma de forma Ad Hoc exatamente para tentar se contrapor a tal poder de agenda de países desenvolvidos nas negociações e que não possui complementaridade e interesse suficiente para sustentação dessa coalizão a longo prazo. Na segunda pergunta, em relação ao enfraquecimento da coalizão pelos compromissos assumidos com países em desenvolvimento que a impedem, em certo sentido, de caminhar no ritmo das negociações. Qualquer proposta tem a ver com o G-90 30 ou G-110; em Hong Kong se forma o G-110 que está apoiando as propostas do G-20. Acho complicado dizermos, agora, no conforto do exame, de todas essas negociações que já aconteceram, que talvez fosse mais proveitoso não ter investido no G-20. Acho que o investimento no G-20 gerou muitos custos. Muitos custos que não entregaram nenhum resultado concreto. O fato é: essa estratégia demandou custos; envolveu uma enorme capacidade de mobilização; deixou de lado uma série de alternativas anteriores; e não se reverteu em nada concreto para o Brasil. Entretanto, houve um ganho de imagem para o Brasil no cenário internacional? Sem dúvida de que houve. Quer dizer, como se mede? Em que esfera você se propõe a avaliar a relação custo-benefício dessa iniciativa? Acho que aí está a questão central, se você quer responder a pergunta se o Brasil deveria ou não. Acho que talvez em termos de imagem internacional do Brasil, sim. O Brasil assumiu um papel protagônico que não tinha até então. Será que valeu a pena em termos concretos? Minha resposta é não. Em relação à crise internacional, uma coisa que é interessante é que, quando o G-20 politiza as negociações da OMC, quando o G-20 investe na bandeira de biocombustíveis, de despoluição do planeta, o que vai acontecer? A crise internacional se aproximando, como essa bandeira de legitimidade do G-20 vai começar a ser atacada pelos países desenvolvidos? Os países desenvolvidos vão investir no argumento de que os grandes BRICs, que estão por trás do G-20, são grandes poluidores, e que a produção de Commodities ligadas aos biocombustíveis tende a fazer o que? A encarecer os preços dos alimentos que já estavam em alta no sistema internacional. Então a crise compromete de uma forma central essa bandeira de legitimidade que o G-20 está buscando encontrar por fora da OMC. Esse é um ponto central. Muito do que explica a ação coletiva nesse ponto está ligada ao argumento da legitimidade do direito ao desenvolvimento e também é verdade que a crise se aproximando descaracteriza essa bandeira até certo ponto. Então, não acredito em um retorno do G-20. Não acredito mesmo. Para mim, foi uma etapa muito interessante da nossa história. A ultima pergunta, mais capciosa, de amigo, era se o avanço das negociações... Pergunta: 31 A pergunta foi no sentido em que temos duas grandes iniciativas de certa forma estagnadas, pelo menos muitas pessoas consideram estagnadas, Mercosul e o G-20. Você respondeu a primeira parte, então, anterior: não vale a pena investir no G-20 porque, na sua opinião, ele não funciona mais. Então, e para resposta natural é: vale a pena investir no Mercosul? Esse é o caminho? Dr. Ricardo Weber: É, acho que sim. Mesmo porque não se tem uma outra alternativa no cenário multilateral tão atrativa assim no presente. Pelo menos, eu não estou vendo. Algum outro comentário? Pergunta? Pergunta: Sobre esse seu comentário de custo-benefício. Recentemente, numa palestra no Itamaraty, o Ministro Celso Amorim falou que até os últimos anos o Brasil vinha a reboque das decisões dos envolvidos, tendo que pedir licença para tudo. Hoje, o país se coloca sem ter que pedir licença. Então esse respeito que o país adquiriu e que esse, independente de G20 ou não, você não vê como uma coisa irreversível? E só aí já terá valido a pena? Dr. Ricardo Weber: Olha, não sei até que ponto a gente pode falar de irreversível. Acho que é irreversível se o Brasil seguir uma linha de maior protagonismo no tabuleiro das negociações daqui para frente. Caso não siga, acho que se reverte até certo ponto. Não acho que isso justifique qualquer coisa. Não acho que os danos que foram causados para o Mercosul possam ser desconsiderados assim. Houve um ganho de imagem, sem dúvida. Agora, como avaliar esse ganho de imagem vai depender da perspectiva que você vai adotar. Para isso, acho que é fundamental a gente ver o que está acontecendo um pouquinho mais adiante. Sem dúvida que é uma coisa nova, sem dúvida que é muito empolgante a gente ver essas negociações 32 acontecendo e esse protagonismo todo do Brasil; no entanto, a gente não pode esquecer – e é isso o argumento que estou trazendo – que as condições foram excepcionais para que essa coalizão se formasse. Um direito de desenvolvimento está associado à liberalização dos mercados agrícolas e quem potencializa esse direito ao desenvolvimento são grandes mercados emergentes que não estão interessados, com exceção do Brasil, na liberalização propriamente da agricultura. As condições forma excepcionais. O Brasil “surfou” nessa onda de uma forma fantástica. Realmente, quando a oportunidade se apresenta fica muito difícil recusar uma coisa dessas. Isso que acho que faz do fenômeno G-20 um fenômeno tão interessante. O G-20, como falei quando comecei aqui, está querendo “arrombar as portas da OMC”; está querendo dizer que o movimento de balanço, de poder, podem determinar resultados para as negociações. Acho que a OMC mostra é que não podem. O que a OMC mostra é que o processo decisório do consenso, que é um processo de grande informalidade entre os negociadores, permite que a Instituição vá contornando as críticas, vá incorporando a parcela da liderança desses BRICs no seu interior, no círculo mais estreito de negociações. Isso acontece no FIPs, em 2004, mas já vem acontecendo desde que a OMC começa, em 1996. O Diretor Geral Mick Moore se dedica a uma série de “Confidence-Building Measures”, medidas de resgate da confiança na Organização”. Começa a expandir os ciclos decisórios através da realização de reuniões “miniministeriais”. Então, na verdade, o que a incorporação do Brasil e da Índia no FIPs mostra é que a OMC, que já vinha lidando com as críticas à falta de transparência desde o começo da Organização, consegue muito bem incorporar a liderança do Brasil e da Índia e, ao fazer isso, ressalta muito o potencial de crítica dos outros membros de menor desenvolvimento. Para isso, contou com a característica estrutural do G-20, porque é formado por um G-3 (Brasil, Índia e China, grandes mercados emergentes, BRICs); mais um outro G-“trêzinho”, conformando um G-6 (Chile, África do Sul, Argentina) e o resto de países de menor desenvolvimento. Essas características do G-20, por um lado, fazem com que o grupo se converta num obstáculo para o prosseguimento as negociações. Porque, sem você desfalcar o grupo na sua liderança, nesses três países líderes, nesse G-”trêzinho”, formado de Índia, 33 China e Brasil; não há como quebrá-lo.Tanto é que depois de Cancún, os Estados Unidos tentam desfalcar muitos países do G-20 e tem sucesso nessa iniciativa Celso Amorim vai se referir ao G-20, num determinado momento, como um “G-12 Plus”, porque ele vai perdendo membros mesmo; só que o núcleo duro do grupo, esse G-3, continua. Então, enquanto esse G-3 continuar, o G-20 tem uma grande representatividade, já 60% da população mundial está no G-20, 70% dos agricultores no mundo inteiro. É um argumento de legitimidade muito forte. Acho que, havendo a legitimidade, é melhor para você conseguir entender como é que essa coalizão se forma, muito mais do que a explicação em termos de identidade e interesses negociadores naquele tabuleiro. Comentário: Queria fazer um comentário. Trazendo para o G-20 financeiro atual e, dentro dele, a discussão também da reforma das Instituições, que é um dos capítulos do seu livro. Se você acha que dentro dessa discussão das cotas, dos países em desenvolvimento que ainda é algo muito pequeno – em termos de ganho mesmo, mas certamente é um ganho -; e, ao mesmo tempo, queria aproveitar as colocações que você faz e a pergunta da Noemi e dizer que eu sou mais otimista em relação ao Brasil. A gente teve uma discussão muito recente, inclusive, em Washington, sobre a liderança e a responsabilidade brasileira. Quer dizer, o Brasil como líder responsável e aí acho que a gente descola. É muito difícil essa pergunta que o Ricardo teria que responder sobre o ganho real do G-20. Porque você tem um ganho subjetivo enorme, mas não foi uma atitude isolada. Se a gente olha hoje, o panorama é aquele cenário inicial que até comentei aqui. Quer dizer, o Brasil está em todas as negociações. Institucionalizamos os BRICs; acabamos agora, em abril, de fazer uma reunião dos BRICs em Brasília. Fez uma reunião do IBAS, que também é um outro bloco Índia, Brasil e África do Sul). Quer dizer, aqui na região criou a UNASUL. Há uma série de iniciativas. E a gente que está no CEBRI, discutindo o tempo todo isso, fez até um dossiê agora recente; uma outra discussão aqui no Rio também – quando nos fizemos 12 anos -; tem uma crítica muito grande dizendo o seguinte: Olha, o Brasil está em todos esses tabuleiros de negociação. Mas o que é na verdade a prioridade. Acho que a discussão que a 34 gente deve colocar, reforçar, no Brasil, é realmente pelo qual vai se fortalecer essa liderança brasileira. Quer dizer, o fato de hoje estarmos no G-20 e querer a reforma das Instituições, querer um papel mais protagônico. Por onde a gente, na verdade, vamos pressionar? Fortalecer mais aqui a nossa a região? É o Mercosul? Porque a UNASUL também foi criada; todas essas iniciativas têm um resultado muito pouco concreto se olhamos do ponto de vista econômico, comercial, Doha parada, o Mercosul parado; onde é que realmente colocamos nossas fichas? Em que temas dessas negociações? O Brasil, descolado de governos, tem uma força econômica muito grande, uma estabilidade muito grande. São os assets sobre os quais escrevemos. Por que o Brasil hoje é essa potência emergente? Porque está no BRICs, porque está no G-5... Desculpe, no G-20; no G-5 era antes do tal Heiligen prozess , que foi exatamente a tentativa do G-8 de dialogar com os emergentes, que é o G-8 mais o G-5.Cada hora aparece um grupo, agora o BASIC. Nas negociações de mudança do clima. Então, onde quer que esteja o tema, seja a água, segurança energética, segurança alimentar, o Brasil vai estar lá porque é uma potência em cada um desses temas. Então, sou otimista em relação ao Brasil, em termos dessa emergência. E, em todos os estudos e nessa – como mencionei o debate em Washington –, acho que toda a conclusão disso é o seguinte: Para que possamos, realmente, ser essa potência que todos esperam da gente, e há uma perspectiva imensa interna e externa, doméstica e internacional, isso vai passar por um trabalho enorme que o Brasil precisa fazer, é o famoso “dever de casa”. Se não trabalharmos para dentro nas reformas de logísticas, econômicas, tributárias, regulatórias, não conseguimos chegar lá. Então depende de nós. Queria fazer esse comentário e, se você pudesse responder a pergunta sobre as instituições financeiras.Mais alguma colocação? Pergunta: Queria sua opinião sobre a possibilidade de conclusão da Rodada Doha em função do recente protecionismo mundial pós-crise. 35 Dr. Ricardo Weber: Pois é, acho que a retomada das negociações vai depender de bastante coisa. Acho que a gente não tem hoje uma forma de fazer previsão. Porque, a grande questão é, uma vez retomadas as negociações, em que bases elas ocorreriam? A polarização, com certeza, vai ser diferente. Acho que o G-20 não volta. O Brasil até tem interesse em que ele volte, mas acho que ele não volta. Acho que a Índia não investe mais nisso da forma como investiu. É muito interessante você tentar perceber o que a Índia está vivendo quando ela entra no G20. E havia uma grande controvérsia de qual seria o interesse nacional. Muitos acadêmicos indianos estão criticando profundamente a forma como a Índia entra nessas negociações, dizendo: a Índia superou seu passivo de país atrasado, deveria estar buscando uma inserção maior nos mercados internacionais e não deveria fazer parte do G-20. Muita gente está cobrando isso da Índia, uma formulação clara do seu interesse nacional. O Primeiro Ministro indiano foi profundamente criticado em diversas ocasiões por seu posicionamento de líder do G-20, então é complicado. Acho que é muito interessante estudar o que vai acontecer, mas acho que, hoje, não temos uma condição muito clara de ver como é que essas relações vão se restabelecer numa retomada de Doha. Para mim, é muito incerto. Pergunta: Sobre a fraqueza das instituições financeiras. Ou mais, vamos dizer, uma necessidade de reforma. E hoje esse caminho começa a ser um pouco trilhado dentro do G20 financeiro com o sistema de cotas O que você espera dessa reforma? Dr. Ricardo Weber: É sim. Acho que esqueci de mencionar isso aqui, mas quando estou abordando a crise de Bretton Woods, estou acentuando o componente que foi essencial para se fechar tanto a Rodada Tóquio quanto a Rodada Uruguai que é o papel do G-7. O papel do G-7 foi fundamental. O impulso político para fechar a rodada, vem de fora, não está dentro da 36 OMC. A partir do momento que as Instituições não estão mais atuando de forma complementar, há esse grande ator político, o G-7, coordenando o comportamento dos Estados e propiciando o impulso político que fecha a Rodada Tóquio e a Rodada Uruguai. O que acontece é que esse círculo é muito estreito. O grande crescimento dos anos 90 nesses mercados emergentes coloca a questão de que é necessário ampliar esse círculo de governança global. O G-20 que estou abordando aqui é a manifestação disso no tabuleiro de negociações comerciais, o G-20 econômico seria uma manifestação desse mesmo movimento nas finanças internacionais. Na verdade última, estou abordando o regime comercial, mas o simples fato do nome ali ser G-20 do Comércio, G-20 das Finanças são “labels”, são rótulos. É o mesmo movimento. É essa briga por maior voz, maior poder de influência. Para mim, não tem muita diferença. Quem está fazendo o G-20 acontecer são os mercados emergentes, são os BRICs. São esses mercados que estão disputando uma maior voz nas instituições de governança global. Pergunta: Gostaria antes de lhe parabenizar pelo seu trabalho. Continuando a sua linha de raciocínio. Da mesma forma que sabemos que há um fundamento político do por que que a Índia na liderança do G-20, e em relação aos demais do grupo privilegiado BRICs, você concorda que também não há unanimidade em todos os demais em termos de participação de cada um nessa busca de consolidação? Dr. Ricardo Weber: Sim, só que a grande questão que temos aqui é que, para o Brasil, interessa muito a liberalização do comércio agrícola. 30% do PIB brasileiro são Commodities. Essa é uma diferença fundamental: commodities para a exportação. É agronegócio, business. Coisa que a China, por exemplo, tem uma grande promoção de commodities, mas que é direcionada, sobretudo, para o mercado interno. No caso da Índia, são milhares de agricultores pobres. Tem 32 países de colheita dentro das fronteiras indianas. Até pouco tempo atrás, a agricultura era uma questão estatal. Cada estado determinava como é que a agricultura 37 deveria ser gerenciada, porque a questão da subsistência da segurança alimentar é uma questão fundamental. A questão da segurança alimentar equivalia à soberania alimentar. Para eles, era muito clara essa equação, a produção de alimento é uma questão de segurança no país. Aqui é diferente, quem gerencia o agronegócio no Brasil é o agrobusiness. 30% do PIB está sendo produzido a partir disso. Então, para nós, o resultado concreto da liberalização do comércio é um grande negócio, realmente. Para a Índia, o que representa ali é você conseguir manter o tratamento especial diferenciado para sua agricultura. Quer dizer, não ser invadida por exportações de outros países. Manter sua agricultura, a sua população no campo. A segurança dos habitantes pobres indianos, é diferente. Pergunta: Pela sua resposta, então, isso também não é um fator como sendo uma das principais barreiras de não adesão da bandeira do biocombustível que o Brasil tão bem defende ou, de fato, é o líder desse processo ou é a voz única; até pelo outro fator da fronteira entre o risco, ou seja, entre a segurança alimentar porque você tem que primeiro ver a questão da fome – em detrimento da segurança do desenvolvimento através de uma matriz limpa de combustível. Dr. Ricardo Weber: O que acontece é o seguinte: o Brasil chegou a inaugurar cooperação com a Índia para exportação da tecnologia de produção de biocombustíveis durante as negociações da Rodada Doha. Havia uma crítica muito grande do potencial de poluição do planeta desses grandes mercados emergentes; a partir desse momento o Brasil entra na briga, celebra um compromisso com a Índia, transferência de tecnologia, a Índia se mostra interessada em comprar essa bandeira. Quer dizer, houve negociação, não sei até que ponto que isso prosseguiu depois. Mas, o começo dessa aproximação, aconteceu em 2007, mais ou menos, é aí que está acontecendo isso. Pergunta: 38 Você tem citado em determinado momento de sua tese os Temas de Singapura. Eu queria saber qual é o cenário atual na OMC da discussão desses Temas porque a idéia que tenho é que o G-20 discute a agricultura, então eu queria entender em que momento da sua tese você cita os Temas e qual é o cenário atual na OMC da negociação desses. Dr. Ricardo Weber: O que acontece é que o menos controverso deles que é Compras Governamentais, não sei se é Compras Governamentais ou Política de Concorrência; um deles foi mantido na agenda, todos os outros foram eliminados. Todos os outros caíram nas negociações. Isso aconteceu em 2004 ainda, no Marco de Julho, no Documento de Modalidades caem todos eles e só fica o menos controverso que era Facilitação de Comércio. E a União Europeia, que tinha um grande interesse nesses Temas, e vem perseguindo esse interesse durante todas as fases da negociação, concorda com o abandono dos demais Temas em 2004. Mantém um só na agenda. 39 O CEBRI Tese é uma publicação baseada na apresentação e no debate, no CEBRI, de teses acadêmicas em relações internacionais e política externa brasileira, elaboradas por brasileiros e defendidas e aprovadas em instituições de ensino superior no Brasil ou no exterior. 40 41