Ouvir as ruas: Juventude, Participação
Política e Direito à Cidade
As manifestações que tomaram conta do país nos últimos meses têm aglutinado grupos e
demandas das mais diversas, mas certamente há pontos em comum importantes para que
elas tenham se espalhado com tamanha força a ponto de conquistar a redução da tarifa de
ônibus nas diversas cidades e o compromisso da Presidenta, governadores e prefeitos
com uma agenda de debates e mudanças. Já que agora os governantes estão anunciando
que vão ouvir as ruas, é melhor atentar para estes pontos comuns ao invés de tentar
desqualificar o interlocutor alegando ausência de lideranças.
Por uma nova Democracia
O primeiro destes pontos comuns é que de uma atitude de passividade e alienação que
tem sido característica da população brasileira por décadas, passou-se para uma clara
demanda por participação. Uma demanda tão explícita que está superando inclusive a
nossa paixão pelo futebol – a população parece dizer que até preferiria que a Copa não
fosse aqui, já que não há transparência nos processos decisórios relativos aos
investimentos feitos. O estopim da crise, o aumento das passagens, já trazia a mensagem:
não importam argumentos de que o reajuste seria inferior à inflação, o que importa é que a
decisão foi tomada sem que tenham sido ouvidos os principais interessados – ou seja, os
milhões de usuários do sistema.
Deste aspecto já deriva o segundo ponto comum: o conflito claro e contundente entre
democracia direta e democracia representativa. Todos os partidos e representantes eleitos
pelo povo – prefeitos, governadores, Presidenta, vereadores, deputados, senadores, bem
como suas equipes, foram acuados. Tiveram que sair pelas portas dos fundos, escapar de
agressões, ficaram atordoados, reagiram de forma equivocada dando declarações que
supostamente agradariam uma maioria conservadora ou simplesmente se calaram por
tempo demais. A mensagem mais uma vez é nítida: passadas mais de duas décadas de
retomada da democracia, a população já não se sente mais representada pelos que são
eleitos em processos que dependem de vultosas “doações” e alianças partidárias que
incluem os posicionamentos mais antagônicos para garantir a continuidade do poder nas
mãos dos mesmos grupos.
Comunicação em Rede
O terceiro aspecto que unifica as manifestações refere-se a sua estratégia de organização.
Aqui entra a força avassaladora das redes sociais que pegou a todos, sobretudo os mais
velhos, de surpresa. As ocupações são chamadas por diversos grupos para pontos
comuns ou pontos diversificados e se espalham de forma viral pelas redes. Ao se
encontrarem nos pontos indicados, a comunicação continua pelo celular já que não há
carros de som. A informação para os que não estão no encontro continua de forma
descentralizada: as pessoas filmam, fotografam, comentam e enviam para as redes
sociais. E para as redes de televisão que, percebendo a riqueza deste material, passaram
a estimular que seus telespectadores lhes enviassem os registros. Ou seja, as
manifestações estão também mandando um recado sobre o poder das novas tecnologias
para o acesso, a criação, modificação e distribuição do conhecimento. Neste aspecto, é
preciso atentar para o principal ator das manifestações: os jovens.
São sempre questionáveis definições generalizantes sobre a juventude. De qual juventude
estamos falando: a da classe média ou da classe trabalhadora? Dos bairros centrais ou da
periferia? Das cidades grandes ou pequenas? Mas, hoje, há, de fato, um traço comum à
grande maioria das pessoas do mundo com menos de 25 anos de idade: elas compõem o
que alguns chamam “geração net”, aquela que está conectada continuamente, usando a
rede mundial para desenvolver amizades, pesquisar assuntos de seu interesse, expressarse em diversas mídias, criar.
Esta geração está em profundo descompasso com a instituição que lhes é destinada em
nossa sociedade, a escola. Os jovens de hoje usam as novas tecnologias intensamente,
mas, sobretudo fora da escola: baixando livros eletrônicos, aprendendo idiomas,
participando de redes sociais, chats e grupos em que exploram assuntos de seu interesse
de forma colaborativa. Em contraposição, a escola – e também a universidade – é
marcada pela desmotivação provocada por exames e notas, pela rotina maçante, pela
ausência de novidades. Os estudantes que não têm seu potencial reconhecido ficam ainda
mais desmotivados, não se sentem inteligentes e, aos poucos vão perdendo a capacidade
de acompanhar as aulas. Claro que a inadequação do modelo escolar para a educação é
muito anterior a estas novas tecnologias, mas, com elas, o descompasso se acentuou
fortemente e agora, mais do nunca, precisamos superar o modelo atual por escolas que se
organizem com base na participação ativa dos estudantes, que façam uso das novas
tecnologias para a produção crítica do conhecimento, que promovam a apropriação da
cidade.
Talvez não esperássemos desta geração que parece ensimesmada com seus aparelhos
digitais que valorizasse a capacidade de pensar no coletivo para superar o comodismo
individual. Mas é isso que estamos testemunhando desde que se iniciaram os movimentos
que vem derrubando as ditaduras no mundo árabe, a ocupação das praças nos países do
hemisfério norte que naufragaram pela a crise causada pelo capital financeiro, no
movimento cultural das periferias de grandes cidades brasileiras e, agora, nas
mobilizações que se iniciaram em junho.
São juventudes diversas, mas juventudes em movimento, com garra e desejo de
transformação das cidades, dos países, do mundo. Assim como na primavera árabe e nas
praças ocupadas pelos indignados dos países ricos, o ambiente é de conexão, troca,
solidariedade. Diferente do que dizem as definições generalizantes que de tempos em
tempos ocupam as capas de revistas, os jovens de hoje não estão genericamente
acomodados, alienados, despolitizados. Eles estão reinventando a política para derrubar
ditadores, desafiar os mais ricos e inverter a lógica do mercado cultural.
Pelo Direito à Cidade
Por fim e não menos importante, é preciso perceber a forma escolhida para a
manifestação: a ocupação das ruas. Em São Paulo, são tão espalhadas as manifestações
que dá a impressão de que a cidade toda foi tomada. Neste aspecto, a conexão com o
ponto inicial de todo este processo é fundamental: a questão do transporte urbano. As
manifestações reivindicam o direito à ocupação da cidade. No início, quando a mídia e os
governantes ainda achavam que a “maioria pacífica” não iria concordar com esta
“bagunça” – ruas fechadas, tráfego interrompido etc. – mandaram as forças policiais com
toda sua truculência contra os supostos “baderneiros”. Mas, depois, ficou claro que a
maioria concordava com esta estratégia. A ocupação das ruas coloca em xeque o fato de
que o direito à circulação é na realidade um privilégio nas grandes cidades do Brasil hoje.
A agenda dos anos 90, de universalização do acesso aos serviços, parece ter se
esgotado, principalmente nas grandes cidades. Há certa generalização do acesso aos
principais serviços públicos, como saúde educação, água encanada, rede de esgoto,
coleta de lixo, energia elétrica, transporte público, ruas asfaltadas e iluminadas,
delegacias, rondas policiais, parques, praças e quadras esportivas.
No entanto, as cidades permanecem extremamente desiguais e a insatisfação se
generalizou. Por exemplo, dados de pesquisa lançada pela Rede Nossa São Paulo no
início deste ano indicam que os proprietários de automóveis costumam reclamar do
trânsito, mas os 70% dos paulistanos que utilizam os ônibus aguardam, em média, 21
minutos até que chegue o seu. Só depois deste tempo é que se inicia sua jornada pelas
ruas engarrafadas da cidade.
Os usuários dos serviços públicos de saúde são, em sua grande maioria (86%), pessoas
com renda familiar de até cinco salários mínimos. Estas pessoas aguardam, em média, 66
dias por uma consulta, 86 dias por um exame e 178 por procedimentos mais complexos.
Já os 29% dos paulistanos que possuem planos de saúde privados não aguardam nem um
quarto deste tempo.
Dentre os usuários dos serviços educacionais públicos, 88% tem renda familiar de até
cinco salários mínimos. Estes não avaliam mal os serviços recebidos. No entanto, o
conjunto da população da cidade está insatisfeito com a educação: as famílias estão
apenas medianamente envolvidas na educação, as condições de trabalho dos
profissionais da educação também são apenas medianas. Ruim mesmo é a formação
oferecida para o acesso ao mundo do trabalho, a promoção da cidadania e da democracia.
O paulistano critica a abordagem das instituições em relação aos jovens: na pesquisa da
Rede Nossa São Paulo, em uma escala de 0 a 10, 4,2 foi a nota dada para a forma como
os policiais os tratam e 4,6 foi a nota para o nível de atratividade das escolas. As crianças
e adolescentes não estão em situação melhor. A nota geral sintetiza a insatisfação dos
moradores desta cidade com o funcionamento do sistema de garantias de direitos e a
proteção oferecida a esta população.
O morador está ainda insatisfeito também com seu acesso ao lazer e à cultura, cujas notas
mal passaram de 4. Na cidade com maior oferta do país, lê-se pouco, frequentam-se
poucos clubes e espaços de recreação, viaja-se pouco, menos ainda se vai ao cinema.
Por aqui também é difícil ir a bibliotecas, centros culturais, teatros, shows, museus e
exposições.
A segurança também foi mal na avaliação dos paulistanos, com nota 4,1. Mas, é
interessante notar que a visão da população sobre assunto se sofisticou e já não é maioria
os que simplesmente pedem mais repressão. Entre as medidas sugeridas para diminuir a
violência na cidade, os paulistanos citaram o combate à corrupção na polícia e nos
presídios e as ações voltadas para a criação de oportunidades de trabalho para os jovens.
Estão dois temas muito presentes nas manifestações: corrupção e juventude.
Mas é a na área que recebeu a pior a avaliação que encontramos a maior conexão com o
movimento iniciado em junho: a da transparência e participação política, que recebeu a
nota 3,5. Os moradores daqui não estão satisfeitos com seu nível de conhecimento sobre
os espaços de participação política, o acesso a informações úteis, o nível de participação
nas subprefeituras, o acompanhamento das ações dos políticos eleitos, a transparência
dos gastos e investimentos públicos, a punição à corrupção e com o nível de honestidade
dos governantes.
Enfim, se os governantes nos seus diversos poderes de fato ouvirem as ruas passarão
agora a priorizar agendas referentes a criação ou fortalecimento de espaços de
participação popular, especialmente da juventude, transparência na gestão administrativa,
reforma política, acesso e distribuição das tecnologias da informação e mobilidade urbana.
Os que evitarem esta agenda correm sério risco de precisar continuar escapando pelos
fundos.
*
HELENA SINGER é socióloga, membro fundador do Núcleo de
Psicopatologia, Políticas Públicas de Saúde Mental e Ações Comunicativas da USP e
diretora pedagógica a Cidade Escola Aprendiz.
Fonte:http://espacoacademico.wordpress.com/2013/08/10/ouvir-as-ruas-juventudeparticipacao-politica-e-direito-a-cidade/ em 09/09/2013 – Prof. Cássio
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