CONSULTA PÚBLICA CRIAÇÃO DA AGÊNCIA EUROPEIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Contributo da Equipa do Centro de Recursos Anti-Discriminação 17 de Dezembro de 2004 Preâmbulo Sobre o lugar de onde se perspectiva o presente contributo Desde Outubro de 2003, a Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas está envolvida no projecto de criação de um Centro de Recursos Anti-discriminação. O projecto deste Centro de Recursos, mobilizador de um conjunto de conhecimentos no campo das Ciências Sociais e Humanas, Legislação, Participação e Cidadania, Tecnologias de Informação/Comunicação e Edição, pretende construir um espaço independente de encontro e de divulgação sobre a problemática da discriminação social, numa perspectiva integrada, tendo como principal objectivo contribuir para o conhecimento e monitorização da discriminação em Portugal, e para a sua desejável superação. A primeira fase de desenvolvimento do projecto decorre em 2005/2006, com a apresentação pública do sítio do Centro de Recursos Anti-discriminação na Internet. Nesta primeira fase, o projecto privilegia seis áreas estruturantes: • Necessidades especiais e capacitação • Idade e ciclos de vida • Identidade e orientação sexual • Origem étnica e nacionalidade • Relações sociais de género • Religião, crenças e laicidade. Potenciando os conhecimentos adquiridos e a inserção em redes de informação e de colaboração com outras entidades, o projecto tem como principais objectivos: • Dinamizar a produção e divulgação de conteúdos de interesse público, em língua Portuguesa e em formato digital na Internet, de natureza cultural, científica, educativa, formativa e de cidadania, sobre a problemática da discriminação social; • Divulgar conhecimento sobre discriminação social no campo das Ciências Sociais e Humanas; • Reforçar a análise e o estudo dos fenómenos de discriminação em Portugal; • Partilhar informação e divulgar boas práticas, programas, redes e iniciativas de combate à discriminação, em articulação com outras experiências a nível europeu; • Melhorar o conhecimento, sensibilizar e consciencializar sobre as questões e problemas de discriminação em Portugal e sobre os direitos em caso de discriminação. A participação da equipa do Centro de Recursos Anti-Discriminação nesta consulta pública assume o lugar particular que as questões relacionadas com a discriminação social ocupam no presente contributo. A criação da Agência Europeia de Direitos Fundamentais Reconhecendo à partida o mérito da adopção de uma abordagem integrada no tratamento da desigualdade e da defesa de direitos, perspectiva que a criação de uma Agência Europeia de Direitos Fundamentais parece pressupor, a extensão do mandato do European Monitoring Centre on Racism and Xenophobia (EUMC) levanta, no entanto, importantes questões sobre o alcance e aprofundamento do trabalho desenvolvido no campo da discriminação. Cobertura geográfica Defende-se que a Agência deverá privilegiar a escala europeia de actuação, sem descurar que a análise e defesa dos direitos fundamentais convoca regularmente relações e interdependências com países terceiros (como as questões da imigração, asilo e refugiados o atestam, a título de exemplo). Para potenciar uma acção mais aprofundada e consequente nos domínios propostos na carta Europeia de Direitos Fundamentais, a Agência de Direitos Fundamentais deverá actuar preferencialmente a nível da União Europeia. Domínio de acção Se por um lado se reconhece aqui a importância de privilegiar uma abordagem integrada das questões que se colocam no campo da defesa da igualdade de direitos, liberdades e garantias, é importante identificar alguns riscos de generalização e de menor aprofundamento no tratamento dos domínios previstos na Carta Europeia de Direitos Fundamentais, caso a criação da Agência de Direitos Fundamentais não venha a incorporar e multiplicar algumas experiências positivas desenvolvidas no âmbito do EUMC. Assim, tendo em conta a extensão do mandato do EUMC – que se tem dedicado ao estudo e levantamento sistemático de dados e de informação sobre racismo e xenofobia –, a transposição das duas directivas anti-discriminação para os Estados-Membros da União Europeia e o Plano de Acção de Combate à Discriminação (2001-2006), consideramos que a inclusão e aprofundamento de um leque mais vasto de formas e domínios de discriminação a monitorizar deverá ser umas das linhas prioritárias a desenvolver no âmbito da Agência de Direitos Fundamentais. Recolha e análise de informação A recolha e análise de informações objectivas, fiáveis e comparáveis a nível europeu sobre discriminação, em diferentes áreas e espaços de expressão, bem como o estudo das causas dos fenómenos de discriminação social, permitiriam uma necessária monitorização, avaliação e acompanhamento das transformações e resultados introduzidos pela transposição das directivas anti-discriminação, pelo Plano de Acção de Combate à Discriminação (2001-2006) e pela campanha europeia de sensibilização “Pela Diversidade, Contra a Discriminação”. Permitiria ainda, a partir do desenvolvimento deste eixo de actuação, aprofundar futuramente dimensões de discriminação menos privilegiadas nestas medidas, mas a merecer igual tratamento e atenção no campo dos direitos fundamentais. O trabalho de recolha e análise sustentado em metodologias e linhas orientadoras comuns aos países da União Europeia, à semelhança do que tem sido desenvolvido pela Rede RAXEN do EUMC, é um importante passo para assegurar a fiabilidade e comparabilidade das informações recolhidas. Relativamente ao estudo e análise de questões relacionadas com a discriminação, torna-se particularmente importante assegurar a objectividade e independência dos procedimentos de recolha de dados e de informação, uma vez que estamos em presença de questões particularmente sensíveis ao nível das autoridades nacionais e da opinião pública, podendo haver negligência na análise e na monitorização de determinadas formas e expressões de discriminação institucional e inter-individual. É quase um truísmo reconhecer que a acção contra a discriminação pressupõe a existência, e, portanto, a produção, de informação objectiva sobre onde, quando, quanto e entre quem ocorrem fenómenos de tipo discriminatório. Neste sentido, parece-nos fundamental que a Agência Europeia de Direitos Fundamentais garanta, em estreita parceria com os organismos Europeus vocacionados para a investigação em ciências sociais e humanas, a produção de informação fiável sobre este assunto. Importa, mais precisamente, romper com metodologias de investigação que se limitam a reproduzir as narrativas criadas pelos grupos que potencialmente são sujeito ou objecto de discriminação – e neste grupo encaixam quase todos os inquéritos por questionário – e reforçar metodologias de maior objectividade, tais como as que envolvem observação directa de situações criadas. Assim, um procedimento que preveja a recolha e análise de informações, bem como a elaboração de relatórios, a partir do cruzamento de fontes de informação e de uma auscultação próxima das associações, ONGs e centros de investigação, parece reunir condições para uma abordagem mais fiável dos fenómenos de discriminação. A título de exemplo, identificamos aqui algumas situações que justificam uma atenção particular relativamente à recolha e análise de informação neste domínio: A salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos afectados por doença que, de forma permanente ou duradoura, se revele incapacitante, terá que ser uma prioridade nas políticas da UE. A recolha de dados e tratamento de informação proposto como objectivo da Agência de Direitos Fundamentais terá que ter em conta realidades sociais e fenómenos que perturbam o acesso aos dados e a simples recolha a partir das fontes já existentes. Os motivos para optar por uma via activa na recolha da informação são particularmente evidentes no caso de pessoas afectadas por doenças que, além da incapacidade que provocam, são motivo para a discriminação, para a humilhação – tantas vezes auto-infligida – para o medo de que a condição de doente (ou de portador da doença!) possa provocar rejeição nos outros. A carga moral e simbólica de muitas doenças (pensemos só nos exemplos da sida ou do cancro) induzem ainda à ocultação da própria doença, à sua negação perante a comunidade e os mais próximos, quantas vezes ao afastamento dos necessários cuidados médicos. Esta realidade perturba necessariamente a produção e sistematização da informação a partir dos organismos de saúde, da rede associativa e das instituições de solidariedade que aí actuam. Por outro lado, o direito à reserva de dados e o sigilo médico, sendo inalienáveis questões de cidadania, reforçam a dificuldade na obtenção de informação. Só a utilização de várias opções metodológicas, com o cruzamento de fontes e a opção por uma pesquisa activa para a produção e obtenção da informação, poderá completar o quadro das realidades particulares destas pessoas. No caso da discriminação em função da identidade/orientação sexual, independentemente das especificidades nacionais, para se obter uma noção aproximada da actuação e amplitude dos mecanismos discriminatórios, há que ter em conta que a homofobia, em todas as suas variantes, se expressa frequentemente no domínio público – por exemplo em discursos de ódio, ridicularização ou insulto por parte de opinion makers –, mas que, pela sua natureza, esta forma de discriminação tem muitas vezes uma actuação sub-reptícia, através de regras implícitas e exclusoras, da mera omissão ou de subterfúgios. Por outro lado, ainda hoje, a falta de legislação específica, a persistência de legislação discriminatória em alguns países e a dimensão do estigma que recai sobre as minorias sexuais remetem as vítimas ao silêncio, não sendo, muitas vezes, apresentadas queixas nem às autoridades nem às associações que actuam nesta área. Uma abordagem de investigação passiva que pretendesse documentar as situações de agressão, perseguição, assédio ou discriminação em função da identidade/orientação sexual, resultaria numa evidente escassez de dados e de fontes de informação. A extensão do mandato do EUMC não deve fazer diminuir a atenção que este vem dando aos fenómenos racistas, xenófobos, anti-semitas e islamofóbicos, sob pena de se perder o esforço que até agora tem sido despendido na monitorização contínua dessas formas de discriminação, por parte dos Pontos Focais Nacionais da rede RAXEN. O trabalho da rede RAXEN representa aliás um bom exemplo dos méritos que pode ter uma metodologia activa de recolha de dados, com uma auscultação contínua da sociedade civil, tanto ONG’s como centros de investigação. Esta monitorização permitiu ao EUMC um acompanhamento constante tanto da evolução das tendências racistas e xenófobas nos países-membros, como das diversas estratégias, seguidas tanto pelos governos como pelas organizações da sociedade civil, na luta contra estas tendências discriminatórias. Para mais, com o aumento da imigração para a Europa e o consequente aumento da diversidade cultural no espaço europeu, torna-se indispensável manter sobre apertada vigilância qualquer desenvolvimento de tendências de intolerância face a imigrantes e minorias étnicas. Do mesmo modo, começam a aparecer sinais preocupantes, em vários países da Europa, de re-emergência do anti-semitismo e de crescimento de sentimentos islamofóbicos, muitas vezes em resposta à conjuntura política internacional. Em conclusão, defende-se a via activa de recolha de informação como a mais adequada para garantir a objectividade, fiabilidade e comparabilidade da informação e dos dados recolhidos, sublinhando a importância de abarcar fenómenos de discriminação institucional, manifestos nas relações entre indivíduos e instituições dos Estados-Membros e da União Europeia, e fenómenos de discriminação inter-individual, manifestos nas relações sociais entre indivíduos. 17 de Dezembro de 2004 Equipa do Centro de Recursos Anti-Discriminação Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas