OS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES EM TORNO DE SEU CONTEÚDO ECONÔMICO Anelise Coelho Nunes∗ No regime político democrático, os direitos fundamentais, em conjunto com a juridicidade e a constitucionalidade, consistem nos três pilares em que se assenta o princípio do Estado de Direito1, amplamente consagrados ao longo de todo texto da Constituição Federal de 1988, principalmente nos fundamentos do Estado Democrático de Direito, da cidadania e da dignidade da pessoa humana (norma do artigo 1º, incisos II e III). Os direitos fundamentais, mais especificamente os classificados como sociais, necessitam de instrumentalização para sua efetivação, uma vez que promovem a realização de valores sociais através dos componentes da estrutura do Estado Democrático de Direito, ao que Giancarlo Sorrentino2 denomina de “Estado de serviço”. Nesse sentido, a realização de serviços públicos acaba por caracterizar prestações inerentes à garantia dos direitos fundamentais. ∗ Doutoranda em Direito pela PUCRS. Mestre, Especialista e Graduada em Direito pela PUCRS. Pesquisadora e bolsista da CAPES. Professora universitária e advogada. Coordenadora do PPGD da UNIFIN – Faculdade São Francisco de Assis em Porto Alegre/RS. _________________________________________________________________________________ 1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 359 e seguintes. 2 SORRENTINO, Giancarlo. Diritti e participazione nell’amministrazione di risultato, p. 38. Assim, interessante a lição de Umberto Allegretti3 ao relacionar deveres do Estado, serviços públicos e direitos fundamentais dos administrados: “Dever do Estado é o serviço dos direitos e, portanto, dos direitos dos cidadãos derivam as tarefas do Estado e a missão da Administração.” Portanto, independentemente do modo de realização ou da classificação do serviço público, indubitável é seu caráter prestacional aos administrados, enquanto titulares4 dos respectivos direitos fundamentais que a Administração Pública deve assegurar. Acerca do caráter prestacional dos direitos fundamentais sociais, o magistério de Ingo Wolfgang Sarlet5 adverte que existe um “problema específico”, visto que “é precisamente em função do objeto precípuo destes direitos e da forma mediante a qual costumam ser positivados (normalmente como normas definidoras de fins e tarefas do Estado ou imposições legiferantes de maior ou menor concretude) que se travam as mais acirradas controvérsias envolvendo o problema de sua aplicabilidade, eficácia e efetividade”, e, também, trazem eminentes reflexões à tona, como ao que se refere à “reserva do possível”, à “proibição de retrocesso” e ao “mínimo existencial”6. 3 ALLEGRETTI, Umberto. Amministrazione pubblica e costituzione, p. 12. Tradução livre. Vide NUNES, Anelise Coelho. A titularidade dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2007. 5 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 280. 6 SARLET, Ingo W.; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, pp. 11-53, em SARLET, Ingo W.; TIMM, Luciano Benetti (orgs. e co-autores) Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível” . Vide também MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso, pp. 91-120. 4 Nascidos em resposta às desigualdades sociais e econômicas de uma sociedade de matriz liberal, os direitos sociais constituíram-se como núcleo normativo do Estado Democrático de Direito, segundo Vicente de Paula Barreto.7 Na busca pela igualdade política e melhores condições de vida, a luta, sobretudo, da população trabalhadora consistiu no ponto culminante para o surgimento dos direitos sociais, ao que, posteriormente, trouxe a necessidade da assunção, pelo Estado, de várias atividades e encargos que até então não eram funções estatais. Assim, o Estado passou a prestar vários serviços como saúde, educação e assistência social, intervindo, assim, na regulação dos mercados e na garantia dos direitos sociais”8. Influenciados pela igreja e pelos movimentos operários do século XIX, tornou-se necessária a inclusão de direitos sociais sob a órbita dos direitos fundamentais, como forma de prestação estatal aos indivíduos, baseados na igualdade material9. Nesse sentido, como afirma Mariana Figueiredo:10 “Os direitos sociais, destarte, passaram a ser responsáveis pela estipulação de prestações a serem 7 BARRETO. Vicente de Paula. Direitos Fundamentais Sociais: Estudo de direito constitucional comparado e internacional, p.110. 8 Idem. 9 NUNES, Anelise Coelho. A titularidade dos direitos fundamentais na Constituição de 1988, p.32. A igualdade material deverá ser entendida como a busca pela igualdade no sentido de “tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais”, na clássica lição de Ruy Barbosa. 10 FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito fundamental à saúde, p.24. fornecidas pelos Poderes Públicos, em favor dos indivíduos, passando a ser compreendidos como “direitos de crédito”, exatamente nesse sentido de outorga de direitos a determinadas prestações”. Foram consagrados primeiramente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, integrando vários ordenamentos jurídicos, como a Constituição de Weimar, porém, segundo Vicente de Paulo Barreto, “apenas alguns Estados protegeram e deram o devido valor fundamental a estes direitos”11. Os direitos sociais não tiveram a intenção de substituir os direitos individuais, mas sim, de “corrigir o paradigma privado”, aparecendo como posições subjetivas, individuais ou coletivas, caracterizando-se como direitos de grupos, de desigualdade e de relações de um determinado grupo12 . Da mesma forma, o magistério de Alexandre de Moraes13: “Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito14, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos 11 BARRETO. Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais p.111. FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito fundamental à saúde, p.28. 13 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p.195. 14 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p.4, 12 dos Estado democrático, pelo art. 1°, IV, da Constituição Federal”. Partindo-se para uma conceituação dos direitos fundamentais sociais, José Afonso da Silva15 determina que “os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade”. No constitucionalismo pátrio, os direitos sociais estiveram presentes na Constituição de 1946, assumindo, entretanto, melhor configuração na de 1988, já que reconstituída a democracia, baseados no princípio da dignidade humana, ora fundamento do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, buscando a igualdade material. Portanto, na caracterização dos direitos fundamentais sociais, pode-se afirmar que assumem função prestacional do Estado, em que o 15 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p.286. particular pretende a satisfação destes direitos, através do ente público ou privado. Ademais, os direitos sociais atuam como limitadores do poder do Estado, quando outorga um direito ao seu titular (indivíduo) contra qualquer ato violatório praticado por aquele ou terceiro16. Da mesma forma, segundo Sarlet17, os direitos sociais como prestações do Estado não estão somente ligados a sua dimensão positiva, como prestação, podendo ser de status negativo (defensivos). Então, os direitos fundamentais sociais devem ser considerados, antes de tudo, direitos à prestação, uma vez que determinam para o sujeito passivo, (o destinatário dos direitos fundamentais – o Estado), o dever positivo de dar ou fazer algo em proveito do sujeito ativo (titular do direito fundamental) em uma relação jurídica de direitos fundamentais; e, em segundo lugar, como direitos contra o poder público, uma vez que é este, por seus órgãos e agentes, quem está na posição de obrigado à atuação positiva normativamente imposta. Em conseqüência, os direitos sociais são situados em oposição aos direitos liberais, em sua maioria classificados como direitos de abstenção, porquanto correlativos de deveres negativos, ou de não interferência em âmbitos existenciais constitucionalmente protegidos, tais como a vida e a liberdade. Em vista disso, os direitos fundamentais sociais visam à proteção e ao equilíbrio das relações sociais e privadas. 16 FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito fundamental à saúde, p.40. SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, p.15 17 Além disso, há que se referir acerca de dois aspectos. O primeiro, em relação ao fato de que, como direitos fundamentais, indúbita a questão em torno da plena e total eficácia dos direitos sociais, já que considerados como “necessidades” iguais a todos, demonstrando-se assim, seu caráter de universalidade18. O segundo aspecto reside no fato de que os direitos sociais são considerados cláusulas pétreas, na medida em que, diante da norma do Art. 60 § 4°, inciso IV da Constituição Federal de 1988, deve-se fazer uma interpretação sistemática, pois, ali, deverá abarcar todos os direitos fundamentais, ainda que constantes em artigos dispersos do capítulo próprio19. Os direitos sociais, nesta condição, são caracterizadores do limite de reforma da constituição, aplicando-se, assim, sua proteção em amplo e total sentido de direito fundamental20. Todavia, como direitos de segunda dimensão, conforme esclarece Bonavides21, os direitos sociais tiveram eficácia duvidosa, na medida em que exigiram prestações do Estado, sendo então reduzidos a normas programáticas22. 18 CANOTILHO, J J. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 369/379. SARLET. Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais como cláusulas pétreas. Revista da Ajuris n° 89, p.101/121. 20 SARLET. Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais como cláusulas pétreas. Revista da Ajuris n° 89, p.121. 21 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p.564,565. 22 MORAES, Alexandre. Direito constitucional, p.14, 19 Neste sentido, Canotilho23 informa a problemática quanto ao conteúdo desses direitos: “Uma das maiores dificuldades surgidas na determinação dos elementos constitutivos dos direitos fundamentais é esta: os direitos sociais só existem quando as leis e políticas sociais os garantirem. Por outras palavras: é o legislador ordinário que cria e determina o conteúdo da um direito social”. A partir disso, discute-se se os direitos sociais são realmente direitos fundamentais de caráter auto-aplicável ou apenas direitos dependentes de programas de ação estatal que visam à realização de futura e gradual prestação. Assim, Canotilho24 afirma que “A fundamentais função anda de prestação associada a dos três direitos núcleos problemáticos dos direitos sociais, econômicos e culturais: (1) ao problema dos direitos sociais originários, ou seja, se os particulares podem derivar directamente das normas constitucionais pretensões prestacionais; (2) ao problema 23 24 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p.450. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p.384. dos direitos sociais derivados que se reconduz ao direito de exigir uma actuação legislativa concretizadora das “normas constitucionais sociais” e no direito de exigir e obter a participação igual nas prestações criadas pelo legislador; (3) ao problema de saber se as normas consagradoras de direitos fundamentais sociais têm uma dimensão objetiva juridicamente vinculativa dos poderes públicos no sentido de obrigarem estes a políticas sociais activas conduncentes à criação de instituições, serviços e fornecimento de prestações”. Sob este ponto de vista, os direitos sociais dependem da prestação do Estado e de seus recursos financeiros, o que traz implicâncias diretas à eficácia e efetividade desses direitos. Tal motivação ensejou a criação e o desenvolvimento da teoria da reserva do possível, segundo Sarlet25. Os direitos sociais em sua dimensão de prestação estatais possuem custos, enquanto que na sua dimensão de defesa, como direitos subjetivos, são considerados destituídos de necessidade econômica26. Porém, não é de se negar que todos os direitos fundamentais sociais possuem um custo, mesmo aqueles considerados com neutralidade 25 SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, p.27 e 28. 26 Idem. financeira (direitos de defesa), pois são condicionados ao pagamento de tributos27. O grande problema da efetividade dos direitos sociais está em seu objeto, ou seja, se o responsável por cumprir a obrigação possui condições financeiras de arcar com seus custos. Mas é de se frisar neste ponto que a reserva do possível não se limita à precariedade dos recursos financeiros28. Porém, dependendo de sua condição prestacional ou de defesa, os direitos sociais poderão obter eficácia maior ou menor, também de acordo com a função que exercem como defesa ou prestação29. Os direitos de defesa possuem eficácia plena e imediata, inclusive os individuais, porquanto direitos fundamentais. Por outro lado, já entendeu o Supremo Tribunal Federal de que os direitos de defesa são dependentes de concretização legislativa antes de demonstrar sua carga de eficácia30. Os direitos a prestações são realizações de igualdade e distribuição de recursos sociais existentes, dependendo sua concretização do modo como o texto constitucional os concebe, conforme o magistério de Caliendo31. Estes direitos possuem característica econômica superior aos de defesa, relacionando-se a recursos escassos e limitados, tornando-se 27 Ibidem. Ibidem. 29 CALIENDO. Paulo. Direito Tributário e análise econômica do direito. p.168 e ss. 30 Idem. 31 Ibidem. 28 necessária a decisão de escolher quais serão de maior valor e quais serão sacrificados, a fim de obter-se a satisfação máxima dos direitos fundamentais sociais prestacionais32. Por tais entendimentos, a teoria da reserva do possível acabou por tornar-se o limitador de concretização e eficácia plena dos direitos prestacionais33 . Surgida em meados dos anos 70, na Alemanha, a reserva do possível culminou na real eficácia dos direitos sociais, estando localizada no campo da discricionariedade do orçamento público34. Estas noções nasceram a partir de uma concepção numerus clausus em um caso jurídico, em que seu demandante postulava o acesso ao ensino superior, do que resultou entendido que a prestação deveria seguir o que foi exigido da sociedade, via tributação, no limites da obrigação prestada dentro do razoável35. Deste modo, sustentou-se que a prestação ao indivíduo deveria estar dentro dos limites da disposição do Estado a alguém que realmente fosse necessitado de tal prestação em um dado momento36. Seguindo a lição de Sarlet37, pode-se esclarecer que a reserva do possível apresenta uma 32 Ibidem. Ibidem. 34 SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, pp.29 e 30. 35 Idem. 36 Ibidem. 37 Ibidem. 33 “dimensão tríplice, que abrange: a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva(também) do eventual titular de um direitos de prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também sua razoabilidade”. Há que se frisar que a reserva do possível é limitadora e restritiva dos direitos fundamentais, atuando como forma de garantia destes, desde que observada a proporcionalidade e o mínimo existencial para com todos os outros direitos fundamentais38. A proporcionalidade aplicada à reserva do possível incidirá como proibição do excesso e insuficiência no controle dos atos da administração pública39. 38 39 Idem. Idem. Dessa forma, a conscientização do Poder Judiciário no sentido de não somente existir o zelo pelos direitos fundamentais, mas também, máxima cautela e responsabilidade na concessão da tutela são as advertências de Sarlet40. Ainda, é necessário encarar a reserva do possível com certo resguardo, ao passo que está sendo utilizada como meio de fundamentar o impedimento da intervenção judicial e desculpa para a omissão do ente público em efetivar os direitos de cunho social prestacional41. Assim, afirma Sarlet42 “... a maximização da eficácia efetividade de todos os direitos fundamentais, na sua dupla dimensão defensiva e prestacional, depende em parte significativa (e a realidade brasileira bem o demonstra!) da otimização do direito fundamental a uma boa (e portanto sempre proba e moralmente vinculada) administração”. Verifica-se, portanto, que os direitos sociais a prestações não podem ser limitados ao mínimo existencial, não podendo a reserva do possível prevalecer, ao passo que deverá haver a primazia da vida e da dignidade humana, com a devida alocação de recursos financeiros para tal, 40 Ibidem. Ibidem. 42 Ibidem. 41 não estando assim, a reserva do possível apresentada como argumento da afastabilidade da responsabilização do Estado43. Com as devidas considerações, há de se verificar que ao Estado couberam as responsabilidades de solucionar todos os interesses da sociedade, fazendo-o ser responsável por arcar com todas as atividades e responsabilidades para tal, com o fim de a tudo e a todos prover44. Analisa-se então, a reserva do possível sob sua ótica financeira e orçamentária, diante da inexistência de verbas destinadas ou recursos para a devida prestação social45. Conforme ensina José Reinaldo Lima Lopes46 “Além da impossibilidade jurídica de se criarem ou alocarem recursos contra as regras do orçamento, há uma impossibilidade que se pode compreender. Trata-se da impossibilidade econômica. A impossibilidade econômica diz respeito à escassez e a escassez sempre quer dizer desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos. Requer-se, pois, que sejam distribuídos segundo regras e regras pressupõem o direito igual ao bem e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de uso igual e simultâneo. Há 43 SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, p. 37. 44 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível, p.178. 45 Idem, p. 179. 46 Ibidem, pp.180 e181. impossibilidade econômica quando, a despeito de existirem condições de outra ordem para a criação do bem, por motivos variados a provisão do bem não se pode fazer sem o sacrifício de outros bens”. Sendo assim, necessário será o critério de urgência para que alguém desfrute de determinada prestação. Alguns não serão excluídos, mas temporariamente despidos desta possibilidade. A reserva do possível com caráter econômico relaciona-se, mas não deve ser confundida, com a impossibilidade técnica e a escassez, porém, fazem parte da impossibilidade econômica, na medida em que resultará em escolhas de prioridades para qual área serão destinados os recursos. Assim, a impossibilidade econômica importa na eleição e definição de prioridades, resultante de políticas públicas, ressaltando-se que, mesmo que os direitos sociais concebam direitos fundamentais, e, sendo assim considerados, não poderão ser excluídos de apreciação do judiciário, em caso de violação. Em vista disso, a reserva do possível caracteriza-se como a culminância da justificativa da restrição aos direitos sociais fundamentais, tendo como elemento limitador a disponibilidade financeira do Estado. Segundo Caliendo47 existem duas teorias quanto à restrição dos direitos fundamentais, sendo estas chamadas teoria externa e teoria interna, 47 salientando-se que estas restrições somente CALIENDO. Paulo. Direito Tributário e análise econômica do direito, p.173. serão assim consideradas por meios de norma constitucional ou autorização da Constituição Federal. Para a teoria interna não há restrição dos direitos, mas sim, delimitação conceitual, ou seja, a conduta não está protegida pela norma de direito fundamental, devendo ocorrer averiguação entre o conteúdo aparente e o verdadeiro48. Nesta teoria, a restrição está ligada às características normativas como princípios ou regras, concebendo os direitos fundamentais como regras e posições insuscetíveis a restrições. Porém, esta teoria recebe várias críticas, principalmente no que tange à não existência de colisão de direitos fundamentais e a ponderação como meio de solucionar o conflito. Já a teoria externa é defendida como forma de adequação dos direitos individuais e a liberdade com os direitos de outros indivíduos, conjuntamente com o controle das ingerências do poder público na esfera individual49. Existirá a ponderação no conflito, não em abstrato, mas sim, em concreto, sendo a restrição de natureza normativa de princípios, e que, quando um direito prima-facie for afastado, tornar-se-á um não-direito definitivo50. No que se refere à estrutura, a teoria interna prevê os direitos fundamentais como normas definitivas e fechadas, enquanto que, para a teoria externa, são modelos de princípios com ponderação51. 48 Idem, p.174. CALIENDO. Paulo. Direito Tributário e análise econômica do direito, p. 175. 50 Idem. 51 Ibidem, p.176. 49 Quanto à liberdade, a teoria interna verifica que decorre do sistema constitucional, sendo definitiva. Contudo, para a teoria externa a liberdade é dado individual, o que poderá ter confronto na vida social, caracterizada como autonomia52. Já no que diz respeito ao Poder Judiciário e a concretização dos direitos fundamentais sociais, a teoria interna determina que aquele deve se limitar ao máximo, ou seja, minimalista. Todavia, a teoria externa pressupõe que o ente deverá ser ativo ou maximalista na concretização53. Observa-se, conforme o magistério de Paulo Caliendo54, que a teoria externa é a mais adequada para verificar a concretização dos direitos fundamentais sociais, com a máxima intervenção judicial necessária. Porém, alguns esclarecimentos sobre as teorias de eficácias dos direitos fundamentais sociais importam, tais como: teoria da eficácia zero, teoria da eficácia mínima, teoria da eficácia máxima e teoria da eficácia máxima possível. Para os adeptos a teoria da eficácia zero, não existirá concretização dos direitos fundamentais sociais por meio judicial, porquanto carecem de estrutura normativa dos direitos subjetivos, porquanto não existente imperativo jurídico que obrigue o Estado a cumpri-lo, pois não cabe ao judiciário fazer a escolha dos melhores meios de alcançar os fins determinados, 52 Ibidem. Ibidem.. 54 Ibidem, p.177. 53 autorizando-o somente no que diz respeito a inconstitucionalidade; também não pode exercer escolha de valores e, ademais, sua atuação poderia violar a autorização orçamentária55. Ainda nesta teoria, verifica-se que o argumento se perfaz no sentido de que os atos administrativos não sofrem apreciação judicial. Assim, o Judiciário fica restrito à separação dos poderes56. Para a Teoria da eficácia mínima, as normas constitucionais são de eficácia plena, porquanto são aquelas de aplicação imediata independente de outras, eficácia contida, enquanto existente margem do legislador para estabelecimento de sentido, e, eficácia limitada, sendo aquelas que o legislador apenas traçou linhas gerais de competência, atribuição e poderes para que posterior seja a ação do legislador infraconstitucional. A intervenção estatal se restringe ao mínimo existencial, uma vez que somente os necessitados de prestações são protegidos, estando os demais, direcionados aos meios privados, o que não alcança a totalidade do direito social fundamental57. Quanto à teoria da eficácia máxima, a atuação do poder judiciário ocorre em seu grau máximo, desde que respeitada a limitação da reserva do possível, fazendo com que a concretização das normas constitucionais e programáticas seja eficaz plenamente58. 55 Ibidem, pp.180 -181. Ibidem, p.182. 57 Ibidem.p.184. 58 Ibidem, p. 187. 56 A atuação do juiz não consiste em restrição aos direitos fundamentais sociais. A previsão orçamentária cabe a administrador, não ao judiciário, não podendo a segurança jurídica prevalecer sobre a dignidade humana ou a vida59. Assim, ensina Caliendo60 [nem todos que defendem a máxima eficácia dos direitos fundamentais entendem do mesmo modo a sua aplicação. Para alguns a idéia de máxima eficácia significa sem limites ou sem qualquer outra consideração. Para outros significa que o Judiciário pode, sob certos limites, agir para proteger efetivamente os direitos fundamentais sociais.] E, finalmente, a teoria da eficácia máxima possível determina que a proteção dos direitos fundamentais sociais deve ser realizada entre a reserva do possível e a complexidade. Há que se reconhecer a proibição de insuficiência do fornecimento e a preservação do mínimo existencial necessários à dignidade humana61. Não se limita a atuação do Poder Judiciário com garantia ao mínimo existencial, mas se exige da Administração Pública que explicite as razões da impossibilidade, devendo o administrador buscar a máxima eficácia 59 Ibidem, p..190. Ibidem, p..192. 61 Ibidem, p. 193. 60 possível, com os limites da reserva do possível, proporcionalidade e complexidade62. Por tudo isso, entende-se que a reserva do possível está atrelada à concretização dos direitos fundamentais sociais, porquanto é justificativa para limitar financeiramente o Estado. Todavia, há que se pensar na fundamentalidade destes direitos e não apenas considerá-los como normas carecedoras de implemento. Diante da dificuldade de efetivação dos direitos sociais, porquanto dependentes de recursos financeiros do Estado, condicionados pela reserva do possível, necessária foi a fixação da jusfundamentalidade dos direitos sociais, criando-se assim, o direito ao mínimo existencial63, que para Sarlet64, é chamado de “direito-garantia ao mínimo existencial”, o qual nasceu com a doutrina alemã, como garantia digna à existência humana. Reconhecido com status de direito pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, fundamenta-se na dignidade da pessoa humana65. Segundo a lição de Sarlet66 “de qualquer modo, tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garantia de mera sobrevivência física, situando-se, 62 Ibidem, p.194. LEAL,, Ana Luiza Domingues de Souza. O direito fundamental ao mínimo existencial como conceito normativamente dependente, p.16. 64 SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações,p.18 65 Idem, p.19. 66 Ibidem, p.21. 63 portento, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência”. Há que se esclarecer que o mínimo existencial não deverá ser confundido com o mínimo vital ou de sobrevivência, pois não são condições físicas de sobrevivência, mas de uma vida com qualidade67. Este direito-garantia possui dupla dimensão, ou seja, negativa e prestacional, porquanto o Estado está obrigado a proteger a dignidade humana através de prestações estatais, buscando a vida com dignidade68. Deste modo, o mínimo existencial independe de previsão constitucional, visto que decorre da dignidade humana e da proteção à vida, o que o inclui diretamente nos direitos sociais - devendo ser analisado o mínimo existencial em cada caso particular, com a intenção de se criar um roteiro ao intérprete69. Conceituando o mínimo existencial, Sarlet70 escreve “Compreendido como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma 67 Idem, p. 22. LEAL, Ana Luiza Domingues de Souza. O direito fundamental ao mínimo existencial como conceito normativamente dependente, p.18. 69 SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, 24,25. 70 Idem, p.25. 68 saudável, constituindo o núcleo essencial dos direitos sociais”. No direito comparado, a Constituição do Canadá fez referência ao mínimo existencial de forma indireta, a do Japão vincula à cultura e a saúde, na da Alemanha foi instituído como “mínimo existencial ao impostos71. Porém, em nossa Constituição Federal de 1988, nada foi proclamado expressamente quanto ao mínimo existencial, senão o que se depreende dos objetivos fundamentais do Estado quanto à erradicação da pobreza e das desigualdades sociais. Diante destas considerações, pode-se afirmar que o mínimo existencial encontra também guarida na temática dos direitos fundamentais sociais. Quanto ao fundamento do mínimo existencial, eis a importante lição de Ricardo Lobo Torres72 : A proteção ao mínimo existencial, sendo préconstitucional, está ancorada na ética e se fundamenta na liberdade, ou melhor, nas condições iniciais para o exercício da liberdade, na idéia de felicidade, nos direitos humanos e nos princípios da igualdade e da dignidade humana. Não é totalmente infensa à idéia de justiça e ao 71 72 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial, p.8. Idem, p.13. princípio da capacidade contributiva, Mas se extrema dos direitos econômicos e sociais. Quanto à extensão, afirma-se que o direito ao mínimo existencial pode alcançar qualquer direito, se considerado essencial, existencial e de inalienabilidade, podendo ser utilizado em vários ramos do direito73. Diante da importância do direito ao mínimo existencial, criou-se, à luz dos direitos fundamentais, a “teoria do mínimo existencial”, a qual conta com diversas características e seus respectivos desdobramentos, tais como, normativa, interpretativa, dogmática e vinculada à moral. Normativa no sentido de preocupar-se com a eficácia e validade do mínimo existencial, já que consiste em uma teoria jurídica normativa; interpretativa porque projeta conseqüências aos direitos fundamentais; dogmática, uma vez que o que lhe interessa é a concretização dos direitos fundamentais. E, por fim, vinculada à moral, eis que os direitos fundamentais estão intimamente ligados aos princípios morais, no sentido de ser o mínimo existencial o caminho para a legitimação daqueles 74. Assim, observa-se que o mínimo existencial inclui-se no cerne dos direitos fundamentais sociais como meio de proteção de constrições por parte do Estado e de terceiros, carecendo de prestações positivas e garantido pela eficiente atividade judicial. 73 74 Ibidem, p.13. Ibidem, p.26-27. Em vista disso, o mínimo existencial não poderá ser reduzido a mero valor ou princípio jurídico, mas sim, deverá ser entendido como regra e conteúdo essencial dos direitos fundamentais, como limitador da atuação do Estado, sendo assegurado pela tributação, como forma democrática de financiamento dos custos do Estado. REFERÊNCIAS ALLEGRETTI, Umberto. Amministrazione pubblica e costituzione. Padova: CEDAM, 1996 BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais. In: SARLET, Ingo W. (org.) Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2003 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27a. ed. 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