Teoria do Delito
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§ 09 – ESTADO DE NECESSIDADE
João Paulo Arrosi1
Sumário: 1 Referência Jurisprudencial. 2 O Caso. 3 Os fundamentos da decisão. 4 Problematização; 4.1 Direito e Moral; 4.2 A Situação de Perigo; 4.3 A Ação Necessária; 4.4 O Critério da Razoabilidade; 4.5 O
Aspecto Subjetivo da Ação Necessária; 4.6 Deveres Especiais; 4.7
Responsabilidade Civil. 5 Referências.
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REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
11ª Câmara do (extinto) Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo – Apelação
501.597-2 – Rel. Juiz Gonçalves Nogueira – Publicado no Jutacrim 96/156.
2
O CASO
Na periferia de Dois Córregos, João R. foi esfaqueado no peito
pela própria esposa. Sangrando gravemente e em busca de assistência médica, saiu com seu veículo em direção ao centro da cidade, pois não havia ninguém próximo para lhe socorrer. João estava em alta velocidade, perdeu os
sentidos e o controle do carro e subiu na calçada, atropelando José Mariano,
que veio a falecer.
João foi processado por homicídio culposo, por ter supostamente
sido imprudente já que dirigia em excesso de velocidade e perdera o controle
de seu veículo. Este caso foi julgado pelo então Tribunal de Alçada Criminal
de São Paulo que confirmou a sentença de absolvição, com base no argumento de que João teria agido em estado de necessidade.
1
Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela UFPR; Professor de História do Direito
e de Filosofia do Direito da UniCuritiba.
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João Paulo Arrosi
OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO
Vejamos os termos em que a ementa do acórdão foi redigida:
Se o agente, ferido à faca no peito e com sangramento preocupante – sem
ter ninguém a lhe prestar socorro – utiliza-se do próprio veículo em busca de assistência médica, age justificadamente sob estado de necessidade,
não lhe sendo de imputar culpa por atropelamento, devido à imprudência
(excesso de velocidade) ou à imperícia (desgoverno do conduzido), máxime em virtude de sofrer perda dos sentidos no momento do acidente. E
se sacrificar o próprio semelhante, sem qualquer provocação, para salvar-se, pode não ser moral, certamente é jurídico, pois o Direito não
pode desconhecer o instinto de conservação.
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PROBLEMATIZAÇÃO
O art. 23 do Código Penal dispõe que “não há crime quando o
agente pratica o fato” em determinadas e específicas situações. Uma delas,
inscrita no inc. I, prevê a exclusão da antijuridicidade (ou ilicitude) em situação de “estado de necessidade”. Por sua vez, o caput do art. 24 esclarece o
que constitui agir em tal situação, apresentando suas características e seus
requisitos: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato
para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia
de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
João foi absolvido da acusação de homicídio culposo com base
nesses dispositivos legais, ou seja, foi excluída a antijuridicidade de sua conduta com amparo no fundamento legal do estado de necessidade.
Antes de se analisarem em pormenor os critérios e os elementos
constituintes do estado de necessidade, não é desarrazoado que comecemos
nos questionando: a decisão que absolveu João da imputação por homicídio
foi acertada? É lícito que João mate outra pessoa ao tentar salvar a própria
vida? José Mariano nada tinha que ver com a situação de emergência em que
João se encontrava; ainda assim foi atropelado por este e morreu. João viveu.
É justo que João não seja condenado e punido mesmo tendo matado José? A
necessidade de salvar-se autoriza matar outra pessoa?
Teoria do Delito
4.1
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Direito e Moral
Talvez não haja outro tema tão polêmico e instigante e que ponha
tão a descoberto a relação e o conflito entre direito e moral quanto o do estado de necessidade. O italiano Giuseppe Bettiol chega a mencionar que “realmente, se há um ponto de atrito entre o direito penal e a moral, este é fornecido precisamente pelo estado de necessidade”2.
Segundo a fórmula cunhada pelo jurisconsulto romano Paulo, recolhida no Digesto, “nem tudo que é lícito é honesto” (non omne quod licet
honestum est)3, o que significa que nem tudo aquilo que é conforme ao direito é conforme à moral4 ou a um dado senso de justiça. Daí a incompatibilidade e o conflito entre direito e moral.
Conquanto seja proibido matar alguém (CP, art. 121), a morte de
uma pessoa inocente pode, em certas circunstâncias, ser admitida pelo direito. Do ponto de vista moral, por outro lado, pode ser que matar um indivíduo, em qualquer circunstância, seja considerado um ultraje ou uma heresia,
que seja imoral. É ético ou moral5 matar para sobreviver, sacrificar uma vida
para proteger outra? Não seria melhor ou mais acertado sacrificar a própria
vida em vez de fazer perecer outra? Não seria correto que João não dirigisse
seu carro – pois não estava em condições para fazê-lo adequadamente e,
portanto, poderia atropelar e matar alguém (o que de fato aconteceu) –,
mesmo que isso custasse sua vida?
Outros casos de estado de necessidade, correntes na vida real6, podem ser mencionados para evidenciar essa relação de mútua interferência
entre direito e moral. Veja-se, por exemplo, a permissão de “aborto necessário” ou terapêutico para salvar a vida da gestante (CP, art. 128, I), de “aborto
no caso de gravidez resultante de estupro” (art. 128, II) também chamado de
aborto ético, humanitário ou sentimental – caso em que o conflito se instala
entre duas ou mais vidas (gêmeos, por exemplo), a autorização de constrangimento para evitar suicídio de outrem (art. 146, § 3º, II), ou mesmo casos
mundialmente famosos como o chamado “Sociedade da neve”7 e o recente
2
3
4
5
6
7
Direito penal, p. 433.
Digesto 45, 1, 73, pr. (libro sexagensimo secundo ad adictum).
Cf. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 8.
É indiferente, ao menos nesta sede, tratarmos “ético” e “moral” como equivalentes.
Inclusive reproduzidos na literatura de ficção, como por exemplo, o estado de necessidade famélico da personagem Jean Valjean de Os miseráveis, de Victor Hugo.
O caso da “sociedade da neve” aconteceu na década de setenta, quando um avião que
levava um time de rugby caiu nos Andes entre a Argentina e o Chile. Aqueles que não
haviam morrido na queda apenas sobreviveram porque se alimentaram com a carne dos
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Teoria do Delito
Organizador: Paulo César Busato
ISBN: 978853623982-8
Número de Páginas: 368
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