A arte de flutuar e intervir
Dizem que inventaram a taxa de câmbio para nos manter humildes. Se até o passado é
difícil de explicar, imagine projetar o futuro. Menos de 18 meses atrás o real caiu abaixo
de 1,70 por dólar e no mês passado alcançou 2,45, após uma depreciação intensa. O
Banco Central (BC) anunciou novo mecanismo de intervenção, o que colocou um
pouco de água fria na fervura, mas manteve aceso o (eterno) debate. Para onde vai o
real? Qual a melhor forma de atuar nesta situação?
Divido o atual debate sobre câmbio e intervenção em duas visões (não
necessariamente excludentes). A primeira entende que o câmbio deve ir aonde
precisar. A ideia é reforçar a importância de preservar ao máximo a flutuação da taxa
de câmbio – que faz parte do tripé macroeconômico, junto com a meta de inflação e a
responsabilidade fiscal – para mais rapidamente encontrar o novo câmbio de equilíbrio,
recuperar a competitividade e estimular o crescimento. Esse processo adquire ainda
mais relevância quando a atual depreciação do câmbio parece ter importante
componente global. É, na verdade, o dólar que está se apreciando, agora que as
perspectivas são de recuperação nos EUA, aumento de juros por lá e volta dos fluxos
de capital. De fato, várias outras moedas emergentes também depreciaram fortemente,
sinalizando o novo protagonismo dos EUA, com a volta da força do dólar.
Nesse contexto global, a flutuação do real seria o caminho mais direto ao novo patamar
de equilíbrio e aceleraria o necessário ajuste da economia a essa nova realidade. Se o
futuro requer um câmbio mais depreciado, melhor não retardar o processo e já focar
nas consequências desse novo patamar.
O problema é que o câmbio flutuante está longe de ser perfeito. É apenas o “menos
ruim” dos regimes cambiais disponíveis (como o fixo, o administrado, etc.). Sofre de
alguns males comuns a outros regimes cambiais e de alguns males específicos (claro
que tem várias qualidades específicas também).
O “mal” comum é que nenhum regime cambial é capaz de fazer milagre. Todos
precisam de políticas macroeconômicas (por exemplo, política fiscal) consistentes. A
flutuação só leva a um novo equilíbrio estável se as políticas monetária (juros) e fiscal
proverem âncora para os preços. Caso contrário, a flutuação levará à inflação, que
induzirá mais depreciação (para manter o valor em termos reais), e o risco é de entrar
numa espiral depreciação-inflação. Na ausência de âncora, a flutuação cambial, sem
intervenção, revelará rapidamente os defeitos existentes.
O problema específico desse regime é que pode flutuar em excesso, para além dos
fundamentos. Na realidade pode existir o “overshooting”, termo eternizado pelo
trabalho do professor Rudiger Dornbusch, que se refere a movimentos do câmbio que
vão para além do seu equilíbrio de médio e longo prazos e acabam voltando
(Dornbusch estudou como mudanças na taxa de juros podem levar a “overshooting”,
exercício adequado ao atual contexto). Esses movimentos são hoje amplamente
conhecidos na literatura e na prática.
Para preservar a flutuação, mas ficar alerta a excessos, intervenções têm sido prática
comum. Mas o entendimento é que deveriam restringir-se ao objetivo de evitar
volatilidade excessiva, proveniente, por exemplo, de falta de liquidez (em que não há
mercado devido à incerteza) e processos instáveis (como bolhas).
Mas a dificuldade está na prática. Não há forma segura de separar os excessos de
flutuação daqueles justificados pelos fundamentos. No caso atual do Brasil, quanto da
incerteza doméstica pode estar potencializando o choque global? Em muitos casos,
alguma avaliação sobre aonde o câmbio deveria ir é requerida. Tarefa mais fácil de
enunciar do que de calcular.
No caso do Brasil há pelo menos duas formas de pensar no equilíbrio do real. A
primeira é partir da observação de que o Brasil está caro, quando medido em dólar (ou
outra moeda forte), e calcular qual seria a taxa de câmbio que faria os preços no Brasil
se igualarem aos preços internacionais. É uma vertente da teoria da Paridade do Poder
de Compra (PPC), que diz que os preços vão acabar convergindo ao longo do tempo.
Nesse caso o câmbio no Brasil ainda teria de depreciar um bom pedaço. No entanto, a
evidência empírica mostra que esse tipo de desvio dos preços só é corrigido ao longo
de muito tempo, décadas, não anos, muito menos meses. A segunda é calcular qual a
taxa de câmbio que ajustaria nosso déficit em conta corrente para níveis consistentes
com a nova realidade mundial. Um ajuste do déficit em conta corrente dos atuais 3,5
do PIB para algo em torno de 1,5% em alguns anos requer um câmbio em torno de
2,30 por dólar.
A segunda visão sobre intervenção acredita nos benefícios de suavizar o atual choque
ao longo do tempo. Nos últimos anos, o Brasil valeu-se de intervenção e acumulou
reservas (US$ 370 bilhões) custosas de manter (paga-se a diferença dos juros altos no
País, dos baixos recebidos pelas reservas depositadas no exterior), mas vistas como
um seguro para amortecer choques. Nessa visão, o sinistro está ocorrendo e o seguro
deve ser utilizado. A intervenção é a forma de financiar ao longo do tempo o déficit em
conta corrente (e o ajuste de portfólio dos investidores) até que a nova taxa de câmbio
estimule as exportações e reduza as importações. O risco aqui é o clássico: que a
intervenção em vez de suavizar, substitua a necessidade de outros ajustes econômicos
(fiscal, monetário, estrutural).
Há que se buscar evitar artificialismos no câmbio, que levem à paralisia e à falta de
ajuste na economia. Mas, também, é necessário evitar processos perversos (bolhas e
“overshootings”), assim como buscar a melhor trajetória de ajuste usando as reservas
disponíveis. Alcançar o balanço adequado é tanto ciência quanto arte.
Ilan Goldfajn é economista-chefe e sócio do Itaú Unibanco.
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