Endividamento e cartões Gilmar Mendes Lourenço Cálculos do Banco Central (BC) revelam que as famílias brasileiras despendem 35,0% da renda com a cobertura dos fluxos de endividamento, formados por prestações e juros, e que 40,0% possuiriam dívidas superiores a R$ 5,0 mil. Isso significa que, se forem incluídos todos os passivos, em média, o cidadão brasileiro registraria o comprometimento de dois anos de rendimentos para a quitação plena dos débitos. Em idêntico sentido, pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) demonstra que, no começo de maio de 2010, 58,7% dos brasileiros possuíam prestações, sendo que 25,1% estariam em atraso nos desembolsos. Os passivos com cheque especial e com cartões de crédito representariam 8,5% e 71,2% do total, respectivamente. Tal processo ainda não implicou o aparecimento de um surto de inadimplência (atraso nos pagamentos superior a 90 dias), em virtude da vigorosa recuperação dos níveis de emprego, sobretudo com carteira assinada, e salários reais, durante o manejo dos efeitos da crise financeira no país, desde o final de 2008, e do expressivo incremento da oferta de crédito. Prova disso foi a devolução de cheques por insuficiência de fundos ter atingido, nos quatro primeiros meses de 2010, o menor patamar desde 2005, conforme o indicador Serasa Experian. Na mesma linha, segundo BC, a inadimplência das famílias estaria em 6,8% dos débitos totais em abril de 2010, o menor nível desde dezembro de 2005. Na verdade, a recuperação da normalidade no fluxo de caixa dos consumidores, ao lado da perspectiva de viabilização da realização de compras parceladas para o dia das mães, dia dos namorados e copa do mundo, induziu a regularização das pendências financeiras no quadrimestre, incluindo os cheques sem fundos, sendo 7,0 milhões devolvidos para 374 milhões compensados. Porém, o afrouxamento do crédito veio acompanhado de flagrante subavaliação do risco, pelas instituições financeiras, quando da concessão dos financiamentos a famílias e empresas, negligenciando a possibilidade de deterioração das carteiras, em um ambiente de ainda reduzida relação crédito/Produto Interno Bruto (PIB) no Brasil, situando-se em 45,0% contra mais de 100,0% da média internacional. Outros dois atenuantes articulados compreendem a constatação de acentuada mobilidade social nos anos recentes, proporcionada por levantamentos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fundação Getúlio Vargas (FGV), e de aumento da participação dos empréstimos habitacionais nos portfólios dos bancos. O crédito habitacional representa menos de 4,0% do PIB no Brasil, contra 12,0% na China, 34,0% na África do Sul e 60,0% na Espanha. A ascensão social carrega mutações nos orçamentos domésticos, com a diminuição do peso dos produtos básicos e o avanço de itens mais sofisticados, sobretudo aqueles ligados à tecnologia da informação, ao entretenimento e ao bem estar, inclusive planos de saúde. Já a 1 Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.3, n. 4, junho 2010 | maior presença da demanda por crédito para moradia, configura potencial de multiplicação de renda e de consumo e poupança, pela positiva permuta entre aluguel e incorporação e valorização patrimonial. Contudo, constatou-se incremento de 250,0% na utilização de crédito pessoal no Brasil entre 2002 e 2009, passando de 5,0% para 15,0% do PIB (contra 17,2% nos Estados Unidos – EUA), acompanhado do alargamento dos prazos de pagamento de 312 dias para 526 dias. Com isso, o serviço das dívidas, formado por amortizações e juros, representam 15,0% do PIB nos EUA contra 18,0%, para patamares de renda per capita 5 vezes maiores. Houve também apreciável elevação do consumo a prazo de outros bens duráveis e semiduráveis, com expressiva utilização de cartões de crédito, como forma de pagamento, movido a juro alto e vencimento curto. A propósito disso, a década de 2000 foi marcada por notável incremento do pagamento das operações de consumo das famílias no Brasil com o chamado dinheiro eletrônico, materializado no uso dos cartões de débito e de crédito. Tanto é assim que os valores envolvidos nessas transações passaram de R$ 65,0 bilhões em 2000 para R$ 440,0 bilhões em 2009, ou de 5,5% para 14,0% do PIB. A par disso, assistiu-se à proliferação de um conjunto nada desprezível de distorções, em um mercado dominado pelo duopólio formado pelas marcas Cielo e Redecard, que vem registrando elevada rentabilidade, decorrente principalmente da cobrança de tarifas acima da capacidade de suporte dos usuários e da média internacional para tipos semelhantes de operações. As duas empresas abarcam mais de 90,0% do segmento de credenciamento de cartões, considerando o processamento, a liquidação financeira dos negócios de débito e crédito das bandeiras (Visa e Mastercard) e a emissão, efetuadas pelas entidades bancárias, que representam o elo com os tomadores finais. O faturamento do credenciador equivale a 1,5% e 0,75% do montante monetário contabilizado nas transações a crédito e a débito, respectivamente, bastante superior ao auferido nos EUA, inferior a 0,5%. A receita dos bancos emissores é igual a dos credenciadores, acrescida dos juros cobrados no crédito rotativo. O apreciável grau de oligopolização do credenciamento, controlado pelas instituições emissoras dos cartões (Itaú, para a Redecard, e Bradesco e Banco do Brasil, para a Cielo), resulta em confrontos de interesses e ausência de transparência nos negócios e, por extensão, elevadas despesas financeiras para estabelecimentos varejistas e consumidores. Por conta isso, com alguma frequência, alguns comerciantes de pequeno e médio porte oferecem descontos no pagamento das compras a vista com dinheiro. Tal cenário precipitou discussões acerca da necessidade de regulação setorial, capitaneadas pelo Banco Central (BC), e encampadas em projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, levando a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito (ABECS) a sugerir uma autorregulação para incitar a competição, principalmente se for levado em conta que a partir de junho de 2010 a Cielo perderá a exclusividade da marca Visa, abrindo flancos para o ingresso de novos credenciadores e bandeiras. 2 Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.3, n. 4, junho 2010 |