SABER FAZER LOCAL E PROFISSIONALIZAÇÃO DE AGRICULTORES (Uma reflexão sobre a formação de agricultores familiares e a comercialização de “produtos coloniais” para o turismo rural no território. São Martinho - SC) TERESINHA BALDO VOLPATO1 WILSON SCHMIDT PESQUISA CONCLUIDA. TEMA: INOVAÇÃO NAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS E CULTURAIS. ESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO FORMAIS. RESUMO Neste artigo apresentamos uma análise do processo de produção de alimentos “coloniais” comercializados, em articulação com o turismo rural, no município de São Martinho (SC). Nele, faz-se uma reflexão sobre o saber fazer/local e os conteúdos dos cursos de profissionalização de agricultores familiares. Se a profissionalização de agricultores possibilitou a melhoria da segurança e da qualidade dos produtos coloniais, ela não provocou uma ruptura completa com o saber fazer local/tradicional. Algumas famílias o mantiveram, permitindo a valorização das especificidades culturais locais e a criação de uma identidade. O referido artigo é fruto da monografia apresentada ao curso de Especialização em Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial, da Universidade Federal de Santa Catarina e contou com a orientação do Professor Dr. Wilson (Feijão) Schmidt. Palavras-chave: Saber fazer local, turismo rural, profissionalização de agricultores, desenvolvimento territorial. ABSTRACT This paper presents an analysis of the process of food production "colonial" marketed in conjunction with rural tourism in the municipality of San Martin (SC). Here, it is a reflection on how / location and contents of the courses of professionalization of family farmers. If the professionalization of farmers has facilitated the improvement of safety and quality of products colonial, it did not cause a complete break with how local / traditional. Some families the kept, allowing the recovery of local cultural specificities and the creation of an identity. Keywords: Learn how local, professionalization of farmers, territorial development. 1 Assistente Social. Especialista em Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial pela Universidade Federal de Santa Catarina. Extensionista Rural da Epagri. Professora do Curso de Administração em Agronegócios e Administração de Empresas do Unibave –Orleans –SC. INTRODUÇÃO O turismo rural tem sido apontado como uma importante atividade para os agricultores familiares, seja pela oportunidade de valorização das belezas naturais das localidades rurais, seja pela comercialização direta de produtos “coloniais” ou, ainda, pela revitalização do campo, especialmente a partir do fortalecimento das suas relações com a cidade. Para Ruchmann (1997, p.15) este avigoramento acorre porque se considera que o turismo rural exerça influência em todos os aspectos do desenvolvimento de um lugar. Na economia, contribui para aumentar a renda familiar, para a geração de novos empregos e de oportunidades de comercialização direta ao consumidor. Nas questões socioculturais, favorece a preservação do patrimônio histórico, da arquitetura, das festas tradicionais, da gastronomia e do saber fazer da população rural. No aspecto ambiental, ele tende a contribuir para a preservação, na medida em que valoriza os recursos naturais e as paisagens. A crescente procura por locais que oferecem comida típica, no espaço rural, tem proporcionado a valorização do trabalho das mulheres e de jovens do campo. Entendese que o turismo rural gera externalidades ambientais negativas, quando não conduzido de maneira planejada. (Ruchmann, 1997. P 19). As conseqüências do fluxo em massa de turistas para localidades rurais devem, necessariamente, ser avaliadas e seus efeitos negativos evitados. O seu desenvolvimento requer, por isso, a sensibilização dos sujeitos e das instituições envolvidas, seguida da formação de parcerias que visem evitar a degradação do lugar. O serviço de assistência técnica e extensão rural têm apontado o turismo rural como uma panacéia e, ao mesmo tempo, indicado a necessidade de “profissionalizar” uma parcela dos agricultores familiares para essa atividade, visando especialmente preparar o agricultor familiar a comercializar produtos coloniais de boa qualidade. Com uma análise focada na educação e no desenvolvimento territorial, busca-se refletir se essa proposta de “profissionalização” implantada partiu do saber fazer tradicional local e se contribuiu para valorizá-lo; e se foi elemento importante na formação de uma nova percepção dos agricultores quanto ao seu espaço de vida, ao seu trabalho, às suas tradições e produtos. Tem como objetivo geral analisar os processos educativos voltados ao turismo rural evidenciando como foram trabalhadas as relações entre o saber fazer tradicional local e os conteúdos de profissionalização. Já os objetivos específicos foram assim delimitados: Identificar os principais atributos territoriais; Identificar os principais produtos coloniais produzidos e comercializados no território antes da implantação do turismo rural; Descrever os principais produtos coloniais – tradicionais – identificados na pesquisa, destacando suas características principais, as formas como é produzido, transformado e comercializado; Recuperar o saber fazer dos produtos típicos do território, destacando como ele vem se mantendo ao longo do tempo; Relatar os processos educativos propostos no território que foram suporte à implantação do projeto de Turismo Rural. Para a consecução desses objetivos, uma pesquisa qualitativa2 foi realizada junto a 30 agricultores familiares do municipio de São Martinho que participaram de cursos profissionalizantes e que comercializam produtos coloniais de forma direta ou indireta nos empreendimentos de turismo rural. 2 “a abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vinculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”. (CHIZZOTTI, 1998 p. 79) O trabalho caracterizou-se como estudo de caso, pois considerou “ um conjunto de dados que descrevem uma fase ou a totalidade do processo social de uma unidade, em suas várias relações internas e nas suas fixações culturais, quer seja essa unidade uma pessoa, uma família, um profissional, uma instituição social, uma comunidade ou uma nação”. (GIL,1991. p. 59) Para a coleta de dados foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, com uso de um roteiro com dezesseis questões abertas e fechadas. Dezenove pessoas foram entrevistadas individualmente em março de 2008 e onze pessoas responderam de forma coletiva, em reunião realizada no dia 29 de abril de 2008. O processo de análise de conteúdo contemplou uma pré-análise; seguida da organização geral do material, da transcrição das entrevistas; da descrição analítica dos dados e da codificação, classificação e categorização das informações. 1.AGRICULTORES FAMILIARES E TURISMO RURAL, RELAÇÕES E EXIGÊNCIAS Inicialmente, por considerarmos que São Martinho é caracterizado pela agricultura familiar, é fundamental precisar como essa noção é utilizada neste trabalho. Trata-se de uma agricultura “em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. “É importante insistir que este caráter familiar não é um mero detalhe superficial e descritivo: o fato de uma estrutura produtiva associar familia-produção-trabalho tem conseqüências fundamentais para a forma como ela age econômica e socialmente”. (WANDERLEI, 1999. p. 25). Nesta perspectiva, “é principalmente em torno da dinâmica reunida nas categorias terra, trabalho e família que os agricultores familiares organizam seus valores, expectativas e representações da vida social”. (STROPASOLAS, 2006. p.132). Herdada das culturas de diversas etnias e raças que formaram o povo brasileiro, aliadas à tradição dos colonizadores europeus que se instalaram na região, a agricultura familiar local continuou a reproduzir costumes e tradições de sua origem. Para Abramovay (1992) ,agricultura familiar é aquela em que a gestão da propriedade e a maior parte do trabalho vem de indivíduos que mantém entre si laços de sangue ou casamento. Stropasolas (2006) acrescenta que “o trabalho, fonte e condição básica para a sobrevivência e reprodução dos membros familiares, é afirmado como um atributo singular do caráter familiar na agricultura, cujas peculiaridades e contornos procuram ser transmitidos para as futuras gerações, embora com representações diversas nas gerações atuais. A ética envolvida nas relações de trabalho, a cooperação e a reprodução da força de trabalho familiar e suas condições objetivas, marcada, muitas vezes, pela divisão social das tarefas entre os membros, pela jornada extensiva, pela constância e esforço físico, são mobilizadas de forma conflituosa no processo de produção mercantil em que a família busca se integrar, visando a reprodução (e, se possível, a ampliação) do patrimônio e sua reprodução social. Com as primeiras discussões sobre globalização da economia, e sobre a diminuição da qualidade de vida da população, o município de São Martinho buscou alternativas de comercialização dos “produtos coloniais”, através do desenvolvimento do turismo rural. Turismo é entendido, aqui, como: “um fenômeno social que consiste no deslocamento voluntário e temporário de indivíduos ou grupos de pessoas que, fundamentalmente por motivos de recreação, descanso, cultura ou saúde, saem do seu local de residência habitual para outro, no qual não exercem nenhuma atividade lucrativa nem remunerada, gerando múltiplas inter-relações de importância social, econômica e cultural”. (DE LA TORRE citado por BARRETO 1995 p. 13) Enquanto atividade não agrícola, revela-se como importante atividade geradora de renda e emprego para Teixeira (1998, p.165), isso ocorre, [...] através da valorização dos produtos agrícolas, orientando-os para uma demanda mais específica, mais ecológica, ou a diversificação de atividades no interior do estabelecimento, como por exemplo, fazenda-hotel, pousada, pesque-pague, comida típica, artesanato, industrialização caseira e outras atividades ligadas à recuperação de um estilo de vida dos moradores do campo. O turismo rural tem estreita ligação com os recursos naturais, por isso há uma preocupação com a qualidade destes recursos, especialmente por profissionais, ambientalistas e pelos próprios agricultores que desenvolvem esta atividade. Neste sentido Ruschmann (1997, p.108), enfatiza que para prevenir os impactos ambientais do turismo, a degradação dos recursos e a restrição do seu ciclo de vida, é preciso concentrar os esforços em um desenvolvimento sustentável não apenas do patrimônio natural, mas também dos produtos que se estruturam sobre todos os atrativos e equipamentos turísticos. Entre os atrativos turísticos do meio rural destacam-se os produtos coloniais com identidade cultural. O que o consumidor-turista busca é um produto especifico que ele associe ao local. Flores (2006 p. 7) discutindo certas especificidades regionais de produtos no Brasil, destaca, na Região Sul, justamente os “produtos coloniais”, associados a formas tradicionais de se produzir por colônias de imigrantes europeus, que mantiveram tradições associadas a novos conhecimentos agregados aos processos produtivos. A observância de aspectos culturais e valorização do saber fazer local tradicional são de suma importância para o desenvolvimento de localidade, Flores (2006, p.10) acrescenta, ainda que as sociedades podem ser estimuladas a explorar seu potencial territorial e o saber-fazer local, num processo de construção coletiva, cujo resultado poderia ser a diferenciação de produtos com qualidade para o mercado. Para que estratégias de valorização dos produtos territoriais possam ter efeitos, é fundamental o estabelecimento de articulações entre o saber-fazer local, que é parte da forma de expressão cultural local, e o saber científico. Essa integração de saberes é um elemento essencial na construção do produto territorial. Para o município de São Martinho, o beneficiamento e a transformação dos chamados “produtos coloniais” tornaram-se referência para as unidades familiares de produção, daí a importância de fazer alusão aos debates sobre as Agroindústrias Rurais de Pequeno Porte (AIRPP) ligadas à agricultura familiar. Julga-se que se trata de um meio efetivo de manutenção do homem no campo, desde que elas utilizem tecnologias (equipamentos e instalações) adaptadas e apropriadas pelos agricultores. Além disso, situada na propriedade agrícola ou nas suas proximidades, [a AIRPP] tem a capacidade de aumentar a renda das famílias a ela ligadas pela agregação de valor aos produtos agropecuários; de gerar postos de trabalho no meio rural, de abastecer os mercados locais e próximos. (PAULILO, SCHMIDT, 2003. p. 269). Quando essas atividades se desenvolvem no meio rural, utiliza-se, aqui, o termo turismo rural (ELESBÃO, 2001)3. Destaca-se que mesmo sendo o turismo rural uma prática antiga e comum, foi somente a partir do final da década de 80 que, no Brasil, ele passou a ser considerado como uma atividade econômica. 3 “há estudos onde os termos turismo rural e turismo no meio rural são usados como sinônimos, podendose acrescentar a estes outros, como turismo no espaço rural e turismo em áreas rurais.” (Elesbão, 2001. p. 37) Para melhorar os “produtos coloniais”, em associação com a construção de uma proposta de turismo rural, enfatizou-se, em São Martinho, a “profissionalização” de agricultores. Deve-se considerar, todavia, que em geral a viabilidade deste tipo de segmento de mercado está associada à tipicidade ou identidade dos produtos. O que o “consumidor-turista” busca é um produto específico, que ele associe ao local – no caso, rural – que ele está visitando. Cabe, desta forma, questionar se a profissionalização, ao dar relevância maior aos aspectos da segurança dos alimentos, não levaria a uma padronização destes produtos, desrespeitando os aspectos locais e culturais de cada região. Considera-se que a observância de aspectos culturais e a valorização do saber fazer local tradicional são de suma importância para o desenvolvimento de uma localidade. Neste contexto os estudos de Flores (2006) indicam ainda que: “As sociedades podem ser estimuladas a explorar seu potencial territorial e o saber-fazer local, num processo de construção coletiva, cujo resultado poderia ser a diferenciação de produtos com qualidade para o mercado. Para que estratégias de valorização dos produtos territoriais possam ter efeitos, é fundamental o estabelecimento de articulações entre o saber-fazer local, que é parte da forma de expressão cultural local, e o saber científico. Essa integração de saberes é um elemento essencial na construção do produto territorial. Julga-se, assim, que a fabricação artesanal de produtos coloniais tradicionais, em São Martinho, é um rico patrimônio cultural que precisa ser preservado. O seu desaparecimento é iminente se não forem tomados alguns cuidados no processo de desenvolvimento do turismo rural. Segundo Ruschmann (1997) “para prevenir os impactos ambientais do turismo, a degradação dos recursos e a restrição do seu ciclo de vida, é preciso concentrar os esforços em um desenvolvimento sustentável não apenas do patrimônio natural, mas também dos produtos que se estruturam sobre todos os atrativos e equipamentos turísticos. Ainda tratando de abordagens do desenvolvimento, é necessário destacar, ao mesmo tempo, que a proposta de turismo rural representou a passagem de estratégias de desenvolvimento completamente centradas no município e nas suas localidades – todas rurais – para outras que apontaram para uma integração e interação com os municípios próximos, sinalizando para uma perspectiva territorial. Dizendo de outra forma, a valorização dos recursos específicos, como o caso de produtos coloniais, do saber-fazer tradicional e das festas típicas, impulsionou os atores locais a buscar a integração com a região. Seguindo Pecqueur (2004), citado por Carrière e Cazella (2006 p. 23), optou-se, neste trabalho, pelo termo territorial – ao invés de local, porque ele não induz à idéia de pequena dimensão, ou de menor escala. Mais do que isso, porque o “espaço-território”4 se diferencia do “espaço-lugar” pela sua “construção”, feita a partir do dinamismo dos indivíduos que nele vivem. (REVISTA EISFORIA. 2006. p. 23). As iniciativas que dão lugar à formação e ao desenvolvimento territorial nos direcionam a reflexão sobre o capital social dos territórios. Isso porque a valorização dos produtos 4 - Para o pensamento sobre a construção social do território, destaca-se a consideração de que o espaçolugar como espaço de suporte das atividades econômicas “é substituído pela idéia do espaço-território carregado de vida e de cultura assim como de desenvolvimento potencial”. Desse modo, o território construído passa a ser um espaço de desenvolvimento multidimensional, onde as diferentes racionalidades das sociedades interagem, cujos resultados estão relacionados à potencialidade criada pelo capital social existente, ou que seja mobilizado pela interação com organizações que apóiem o rompimento de impedimentos político institucionais locais. LACOUR (1985 apud Flores 2006, p. 6). com base na força do capital social5 vai permitir o surgimento de parcerias e de cooperação, formando redes sociais com bases na territorialidade (Flores,2006). Esse mesmo autor aponta quatro pontos importantes para a definição de estratégias de valorização das territorialidades: (i) a identificação de unidades territoriais onde seja possível a promoção do empreendedorismo local, com delimitação de seu espaço geográfico baseado em “senso de identidade e pertencimento, senso de exclusividade/tipicidade, tipos e intensidade de interação de atores locais”; (ii) a geração de conhecimentos sobre o território, identificando e caracterizando as especificidades e que representem potencialidades; (iii) a promoção de sociabilidades, buscando “possíveis modalidades de ação coletiva”; e (iv) o reconhecimento e valorização da territorialidade, com o resgate e valorização de imagens e da simbologia local. (FLORES, 2006. p. 7) A perspectiva territorial nos ajuda, também, a compreender as diversas funções dadas à agricultura atualmente, que estão para além da produção de alimentos. A noção de território designa, ainda, o resultado da confrontação dos espaços individuais dos atores nas suas dimensões econômicas, socioculturais e ambientais. No caso de São Martinho, considera-se que a integração entre os atores, a cooperação e as parcerias institucionais estabelecidas contribuíram para a implantação do projeto de turismo rural. Resta, neste quadro, discutir a requalificação do saber local mencionada por Cazella e Carrière (2006). Afinal, para eles, não pode haver dinâmica local caso não exista uma real capacidade de iniciativa dos atores locais. Disso decorre que esse estilo de desenvolvimento é tributário de um processo de educação e de formação, que procura re-qualificar o saber-fazer local, lançando mão de novas tecnologias. Isso impõe incluir nos projetos locais, programas de informação, de formação e de educação. (Revista Eisforia, 2006, p.37). O documento base da etapa preparatória da Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, organizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, aponta na mesma direção ao considerar que: a perspectiva territorial do desenvolvimento rural sustentável permite a formulação de uma proposta centrada nas pessoas, que leva em conta os aspectos de interação entre os sistemas socioculturais e os sistemas ambientais, e que considera a integração produtiva e a utilização competitiva dos recursos produtivos como meios que permitem a cooperação e co-responsabilidade ampla de diversos atores sociais. No caso de São Martinho, desde 1989, as comunidades se mobilizavam na busca de alternativas para os agricultores familiares. O depoimento da extensionista Elza Maria de Souza, responsável pelo trabalho de educação ambiental no município, ajuda a recompor esse contexto. “as atividades ocorridas de 1989, quando não se vislumbrava o turismo rural, da maneira como é praticada hoje, já estavam pautadas em ações que valorizavam a cultura local e a preservação dos recursos naturais. Trabalhos de coleta de sementes de árvores nativas, implantação de viveiro para produção das mudas, recuperação de mata ciliar, organização e venda de produtos coloniais no salto do Rio Capivari e a profissionalização de agricultores, o concurso para a composição do hino do município6, a realização da primeira semana cultural7, foram as principais atividades 5 - Com referência ao capital social observam-se, ainda as contribuições de Putnam (1996, p.177), “o capital social diz respeito às características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade.” 6 A escolha do hino do município foi tomada como uma ação educativa para enfatizar a cultura e as pessoas com raízes no lugar. Para Margarida Marcos Warmeling, vencedora do concurso “o que foi mais importante no concurso, dentro do regulamento, foi a valorização das pessoas do lugar, pois só moradores ou nativos do lugar podiam inscrever suas letras” (Entrevista direta). A valorização dos aspectos da cultura local está muito bem expressa na seguinte passagem: “A primeira semente de vida, que o passado plantou com suor, não ficou sobre a terra esquecida, mas deu fruto e tornou-se maior.” que podem ser consideradas como berço do turismo rural”. (Entrevista direta, em 20/03/2008) Essa abordagem implica para além da produção agrícola strictu senso, no fortalecimento e na ampliação da (...) capacidade da agricultura e produção familiar de produzir bens e serviços que revalorizam o espaço rural e aproveitem atributos relacionados a sua cultura, sua gastronomia, história, musicalidades, religiosidades, meio ambiente, seus processos e produtos agroindustriais e da biodiversidade, que podem gerar postos de trabalho e dinamizar a economia e fortalecer a identidade dos territórios. (Ministério Desenvolvimento Agrário, 2007 p.17) Voltando ao caso de São Martinho, julga-se que a oferta do espaço rural não se limitou apenas aos produtos agrícolas, tendo havido uma revitalização do território com a “comercialização” de amenidades ambientais – incluídas aí a paisagem rural. Seguindo os termos de Pecquer (2004 p. 87), pode-se afirmar, assim, que o próprio território torna-se o produto a ser vendido, na medida em que ele constitui a oferta compositória. Essa perspectiva é reforçada pelo estudo feito no município por Elesbão (2001) “(...) as atividades agropecuárias passam a não ser as únicas atividades realizadas pelos membros da família rural, estes passando a desempenhar outras atividades não relacionadas diretamente à agropecuária, que são realizadas fora ou dentro da propriedade, com o objetivo de completar e aumentar a renda da família. Destaque-se que o debate no território foi influenciado por programas estabelecidos em uma esfera mais ampla, como o de “profissionalização de agricultores”. O depoimento do Prefeito Municipal à época, principal articulador do projeto, reforça essa perspectiva. “Chegou-se à conclusão que a grande saída para São Martinho era investir no turismo rural. Era investir na capacitação, na profissionalização. Por isso, se criou e se construiu o pavilhão do produto colonial. “Sendo os objetivos da „Festa do produto colonial‟: primeiro, divulgar as potencialidades do município; segundo, resgatar a cultura do município; terceiro, dar uma oportunidade para os nossos agricultores comercializarem seus produtos.” (Entrevista direta, em 28/10/2007) Assim, para uma discussão mais consistente sobre a aplicação deste programa de profissionalização, relacionado ao turismo rural e a comercialização de produtos coloniais em São Martinho, é importante, antes, entender o contexto em que se deu sua utilização, considerando, sobretudo, os atributos territoriais – ou, na expressão do então prefeito, as potencialidades para o turismo – deste município. São Martinho e seus atributos São Martinho está situado na região Sul do Estado de Santa Catarina possui uma altitude média de 38 metros e uma área de 236,1 km2. De acordo com o IBGE (2005), sua população é de 3.274 habitantes, sendo 888 residentes na área urbana e 2.386 residentes na área rural, do total 1.713 são homens e 1.561 são mulheres. O município limita-se ao norte com o município de São Bonifácio, e Paulo Lopes, a Oeste com Rio Fortuna e Santa Rosa de Lima, a leste com Imaruí e ao Sul com Armazém. 7 A valorizações das diversas expressões da cultura local já se faziam presentes desde 1989, por ocasião das diversas semanas culturais realizadas. Nelas, aconteciam apresentações de músicas e danças típicas e exposições de objetos antigos. Muitas famílias rurais já guardavam estes objetos para essas exposições. Até que se criou a casa da cultura e muitos desses objetos foram doados para o museu da colonização. Os imigrantes que se estabeleceram na área do atual município eram da região da Westfalia e de Hunsrück8 e eram, em sua maioria, agricultores. (DIRCKSEN, 1995. p. 18). Já instalados, a criação de gado de leite e a produção de seus derivados (especialmente o “queijinho” e a manteiga), junto com a agricultura (feijão, milho, batata) respondiam pelo autoconsumo das famílias. Esta herança histórico-cultural explica o fato da grande maioria dos agricultores se dedicarem à criação de gado de leite. Com o passar dos anos e com as crises econômicas do país, os agricultores tiveram que buscar novas alternativas, destacandose a cana-de-açúcar e a produção de seus derivados, como açúcar mascavo, melado e cachaça. Já o trigo, que era comum na Alemanha e facilmente transformado em farinha, não encontrou as mesmas condições na região. Com isso, o milho foi incorporado à alimentação. Triturado nas atafonas, esse cereal era transformado em fubá, que permitia a produção do “pão de milho”. Essas trocas eram facilitadas pela existência de relações territoriais, através do comércio, já nos idos de 1900, “convergiam para o povoado, pessoas de toda a região para as mais variadas necessidades”.(DIRCKSEN,1995. p.109). Destaque para a casa de “Emílio Schmitz”, localizada na comunidade de baixo Rio Gabiroba, mais conhecida como comunidade do Schmitz9. Heranças religiosas Os imigrantes oriundos da região da Westfalia mantiveram a sua tradição católica, enquanto os da região de Hunrück resguardaram suas tradições evangélicas. Em todas as comunidades observa-se a existência de uma escola, que foi construída pelos imigrantes e que era também utilizada como Igreja. No caso da igreja católica, a comunidade de Vargem do Cedro mereceu destaque internacional ao receber o título de Capital Mundial das Vocações10. Festas tradicionais e lazer Entre as principais festas tradicionais destacam-se, na comunidade de Vargem do Cedro, a de São Sebastião, do Colono e dos Filhos de Vargem do Cedro. Na comunidade de Rio São João, é realizada a “Festa do Pato”11. Na Sede do município é realizada a festa de Cristo Rei, da Igreja Católica. O forte dela é a gastronomia local. A festa que interessa mais diretamente este estudo é a “do Produto Colonial”, criada no ano de 1993. Tal festa teve, desde a sua implantação, como principais objetivos: estimular e fortalecer o desenvolvimento integral do município; expor e comercializar os produtos coloniais; demonstrar a capacidade e as habilidades dos agricultores, 8 Westfalia localiza-se no noroeste da Alemanha e faz divisa com a Holanda; e Hunsrück fica mais para o sudoeste, na fronteira com a França. 9 Na década de 50, esse comerciante influenciava toda a economia da região. A residência dele foi cogitada a se tornar a primeira pousada rural de São Martinho. Por dificuldades financeiras, o atual proprietário não pode fazer as adaptações necessárias e tal perspectiva não se concretizou. 10 No distrito da paróquia existem 545 pessoas, 120 famílias, sendo que se formaram 21 padres, 01 diácono e 33 religiosas. Elesbão (2001. p.71) destaca o seguinte trecho do documento: “Agradecidos ao Sagrado Coração de Jesus pelo grande número de vocações: Sagrado Coração de Jesus – Vargem do Cedro e gratos aos pastores que aqui sempre se dedicaram a pastoral das vocações, declaramos a paróquia de São Sebastião de Vargem do Cedro –Santa Catarina, capital das vocações, da Congregação dos Pastores do Sagrado Coração de Jesus. Roma, aos 12 de agosto de 1982”. 11 Segundo uma entrevistada, de setenta e sete anos, que sempre participou desta festa, ela é “do pato” porque se “coloca um pato de madeira no alto de um poste, e quem acertar o tiro nele ganha a coroa de rei da festa. (...) Tem que pagar. É como se fosse uma rifa. Todos pagam o mesmo valor e podem dar um tiro no pato. (...) É uma festa alemã, tradicional dos Evangélicos de Confissão Luterana no Brasil”. resultantes dos cursos de profissionalização executados no município; difundir o turismo rural como alternativa de renda; incentivar a preservação da cultura germânica como sinal histórico dos primeiros colonizadores; divulgar o município regionalmente e nacionalmente. Pode-se afirmar, contudo, que foram poucos os agricultores que levaram produtos, na primeira festa, para serem comercializados12. Os agricultores familiares do município, à época, ainda não acreditavam muito na idéia. Atrativos Naturais Parte do território de São Martinho encontra-se localizado dentro do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Existem, ainda, outras serras como as do Gabiroba, das Capivaras e da Aratingaúba. O município é banhado pelo Rio Capivari. Seus principais atrativos são os Saltos de Cima e das águas, ambos na comunidade de São Martinho Alto; a Cascata Aparecida, na localidade de Baixo Rio Gabiroba; o Salto do Rio Capivara, localizado no caminho para Vargem do Cedro. Há também lagos e açudes, com destaque para o Lago Heinzen Recanto da Natureza. Outros atrativos culturais e religiosos São Martinho conta com vários museus. Merecem relevo os do Engenho Colonial, do Colonizador, de São Sebastião, e da Imigração. Este último possui um acervo de mais de 500 objetos que retratam a cultura e a religião dos imigrantes. Há, também, a Casa da Cultura. São muitas as “grutas” no município, merecendo ser lembradas as da Nossa Senhora de Fátima, da Nossa Senhora de Lourdes e da Serva de Deus Albertina, esta na comunidade de São Luiz. Outro atrativo é “Roda de Luz”, que produz, desde 1953, energia elétrica para a Igreja de São Sebastião da comunidade de Vargem do Cedro. O município possui ainda uma biblioteca alemã. Para viabilizar a comercialização dos produtos coloniais e a formação das famílias rurais para atender à demanda de turistas, recorreu-se ao Projeto de Profissionalização de Produtores e Educação da Família Rural e Pesqueira de Santa Catarina, que visava oportunizar aos atores do espaço rural a educação profissional continuada, buscando o desenvolvimento sustentável. Como foi visto, as perspectivas positivas de São Martinho no turismo rural e na comercialização de produtos estavam diretamente ligadas as suas características rurais e à diferenciação, como colonial ou tradicional de seus produtos. O que é preciso discutir, portanto, é se esse programa de profissionalização fortaleceu ou debilitou tais características. 2 A PROFISSIONALIZAÇÃO DE AGRICULTORES E OS PRODUTOS TRADICIONAIS; REFORÇO OU ENFRAQUECIMENTO DE UM SABER LOCAL? No período compreendido entre 1989 a 2008, quase vinte anos portanto, participaram de cursos de profissionalização oferecidos pela Epagri aproximadamente 250 agricultores familiares (Epagri 2008). O que se busca discutir é qual as repercussões dessa participação sobre a forma de chegar aos produtos coloniais e sobre os seus circuitos de 12 Registros pessoais da autora – que, à época, era extensionista social no município, dão conta que os seguintes agricultores participaram: Zilda Hulse (moradora do bairro Pernambuco) comercializou queijos muzzarela, provolone e colonial; Guido e Alice Milchels (moradores da comunidade de São João do Capivari) comercializaram queijos, licores e biscoitos; Livino e Loreni Laureth (moradores da comunidade de Rio Gabiroba) comercializavam peixes e serviam peixe frito para degustação; Lauro e Mariquinha Senhem (moradores da comunidade de São Martinho Alto) comercializaram pão de milho, pão de trança, rosca, waffer, milho verde, aipim e batata doce. comercialização. Neste caso, interessa mais de perto a ligação entre este tipo de produção e o turismo rural. 2.1.A concepção da profissionalização A capacitação da mão-de-obra dos agricultores e seus familiares estiveram sempre presente nas atividades dos técnicos da extensão rural, chamados de extensionistas, desde o surgimento da extensão rural em Santa Catarina, com o advento do Programa de Profissionalização de agricultores no final da década de 80 e sua institucionalização em 1991, uma nova dinâmica de utilização e funcionamento se instalaria nos diversos centros de treinamento da Epagri, distribuídos estrategicamente em todo o território catarinense. O que se considerava à época é que no espaço rural viviam pessoas que não haviam tido condições de freqüentar a escola formal. Assim, a profissionalização dos agricultores e de suas famílias aparecia como uma possibilidade de acesso à educação via processos alternativos. Dizendo de outra forma, ela é vista como capaz de superar as dificuldades na área da aprendizagem, por parte de agricultores familiares adultos que deixaram a escola muito cedo. Cabe, neste caso, questionar se tal capacitação se constituiu também num objeto de reflexão aos produtores rurais, ou seja, “se permitiu que eles refletissem sobre si mesmos, como sujeitos históricos.” (ZUIN, 2008. p. 143) Os documentos que relatam o surgimento da “profissionalização de agricultores” em Santa Catarina deixam mais claro esse tipo de orientação ao lembrar que: “Para a estruturação do programa tomou-se por base que o ensino deveria essencialmente prático em que o aluno descobrisse o saber pelo ato de fazer. Aprender fazendo foi, portanto a meta pedagógica e, para tanto foi buscado tecnologia e experiência das escolas alemãs – DEULA e material didático deixado pelo SENAR”. (Epagri, 1992. p. 6) O mesmo documento indica as diretrizes do programa. No que interessa mais de perto esse estudo, destaque-se: Estimular as iniciativas comunitárias de trabalho e produção que visem a agregação de valores na produção agropecuária e que contribuam para maior independência dos produtores. [...] Atender as principais atividades formadoras de renda na propriedade familiar, bem como as atividades ligadas à saúde e economia do lar. Priorizar tecnologias que sejam ao mesmo tempo competitivas adaptadas a explorações familiares que promovam independência sócioeconômica e cultural e sejam ecologicamente equilibradas recuperando o meio ambiente. (Epagri, 1992. p. 6). 2.3 Produtos com saber fazer local/tradicional incorporado Entre os costumes e tradições ligados à gastronomia tradicional associada a um saber fazer próprio da população, foram relacionados, a seguir, alguns dos principais produtos e pratos típicos da população local. “Gemüse” – alimento preparado com batata inglesa e folhas de couve manteiga. Após o cozimento esmaga-se. Pode ser acrescentado toucinho frito. Muitos chamam de “guimiss”. “Canja de galinha” – as aves, para produção desta “canja”, são criadas especialmente para tal finalidade. Para as festas tradicionais, as famílias fazem doação destes animais, para que a “canja” não perca seu sabor original. A maneira de fazer consiste em cozinhar a galinha caipira em água, acrescentando os temperos, especialmente o “alho de sopa” e a “cebolinha fina”. É sempre preparada com macarrão caseiro picado bem miúdo. “Rosca de polvilho” – trata-se de um alimento preparado com polvilho, produzido a partir da mandioca. Muitas famílias fazem o polvilho, mas o uso é exclusivamente para consumo doméstico. Faz-se uma mistura do polvilho, fubá, sal, banha, ovos e água fervente. Depois de bem amassada, é dado o formato das roscas que são colocadas sobre folhas de “caeté” , e em seguida, elas são assadas em forno a lenha. “Pão-de-milho” – muito difundido e consumido pelos moradores. Trata-se de uma massa fermentada a base de farinha de milho que, colocada em formas forradas com folhas de “Caeté” ou de bananeira, é assada também em forno a lenha, muito bem aquecido. Ninguém sabe precisar a temperatura adequada (superior aquelas dos outros pães), sendo utilizadas técnicas tradicionais. Em geral, as brasas são afastadas e, no lugar em que os pães de milho vão ser cozidos, coloca-se um pedaço de folha de bananeira ou de milho. Para saber a temperatura do forno a lenha coloca-se uma folha de “caeté” e dependendo do tempo que essas folhas “murcham”, sabe-se se a temperatura está adequada ou não para colocar o pão. “Pão doce ou pão de trança” – comercializado em grande quantidade em eventos no município. Conforme foi relatado por uma agricultora: “O pão doce que nós chamamos de pão de trança, a gente costuma fazer assim: mistura-se o trigo, o fermento a água, sal, açúcar, banha, e deixa crescer. Sova bem, deixa crescer novamente, estica a massa e forma as tranças. E coloca na forma. Depois de crescido, vai ao forno a lenha para assar. Faço e comercializo pães desde 1984”. (Entrevista direta, no dia 19/03/2008). “Queijo Colonial” – Utilizavam-se grandes panelas. Nelas o leite era colocado para aquecer sobre a chapa do fogão a lenha: “Colocava o leite numa panela grande. Misturava bem. Colocava o coalho agir, mexia novamente. Deixava parado até coalhar. A medida do coalho era aquela escrita na embalagem. Deixava talhar e depois cortava a coalhada com auxilio de uma faca ou escumadeira. Mexia bem, separava o soro e acrescentava o sal. Depois colocava nas formas. Essas formas eram pequenas caixas de madeira. Forrava com um pano de “véu”, em cima colocava outra tábua e deixava escorrer o soro. Desenformava. [Os queijos] Ficavam secando alguns dias. Se precisava de dinheiro, entregava [o queijo] para o feirista, sem deixar curar. Ele se encarregava de fazer a cura. (Entrevista direta, no dia 19/03/2008) Sobre o papel dos “feiristas” (comerciantes, muitas vezes também agricultores) que compravam pequenos excedentes de produtos coloniais, junto a muitos agricultores familiares, para depois vender nas cidades próximas. “Bolachas caseiras” – são poucas as famílias que não fazem as bolachas caseiras, com manteiga, e açúcar grosso. Sobre esta produção é interessante o seguinte relato: “Nós temos a bolacha da vovó. Naquele tempo, nós fazia[mos] latas de doce. [Eu] Tinha uma prima irmã lá em Vidal Ramos. Fui visitar minhas irmãs... Elas tinham uma receita de bolacha de mel que precisa descansar a massa oito dias. A mãe fazia doce de mel de minuto. Ela misturava tudo e moldava as bolachas com colher. Nesta receita colocava[se] mel, bicarbonato, sal amoníaco e outros coisas que não lembro direito. A receita eu aprendi com a minha prima irmã. A decoração, não. Ela fazia com bico [de confeiteiro]... Nós usamos colocar o glacê no saco plástico.” (Entrevista direta, no dia 03/04/2008) Fica evidente que, a partir de uma receita tradicional, diversas modificações, originárias de diversas fontes, são incorporadas. Serve de exemplo a “decoração” (formato e cobertura), que é o grande diferencial das bolachas comercializadas: “[...] a decoração... Meu irmão sempre trazia bolachas de São Bento do Sul. Lá havia uma fábrica de bolacha de melado. Eles faziam aquelas bolachas fininhas... produziam um modelo de bolacha com formato de sininho. E nós até hoje temos esse modelo. As bolachas eram feitas com açúcar branco e açúcar mascavo misturado. (Entrevista direta, no dia 03/04/2008) “Lingüiça” – a produção de embutidos feitos artesanalmente, segundo os relatos de uma entrevistada, “é uma tradição familiar trabalhar com embutidos. Sempre trabalhamos com banha, salame e carne de porco. Isto é um ensinamento que vem de pai para filho. Antes eram colocados temperos caseiros, salsa, cebola, alho. Atualmente, isso mudou um pouco”. “Cachaça pura” – um dos alambiques chama a atenção pelo tempo de existência e pela dedicação da família em passar, de geração a geração, este conhecimento. Vale à pena, por isso, recuperar o seguinte depoimento: “Este produto vem sendo feito há muitos anos. Aprendi com o pai, que aprendeu com o meu avô, que fazia cachaça desde 1954. Aprendi observando o meu pai fazer. Mas eu não praticava... [Eu] trabalhava na fábrica de móveis, na praça. Na casa onde meu pai fazia [cachaça], o alambique era instalado dentro do paiol. A cana era produção própria. O processo de produção, depois do corte da cana, é passar a cana na moenda, [e, depois] fazer o melado. Para produzir o melado, a calda deve ferver de quatro a cinco horas. Sobra em torno de 15 a 18%, que é o melado. Esse melado vai ser misturado com água e vai para a fermentação. Para começar a fermentação, faz primeiro um “pé de cuba”. Para fazer esse “pé de cuba”, começa com um pouco: uma lata de caldo de cana ou de melado misturado com água; bem fraquinho, para ele começar a fermentar. E vai acrescentando, aos poucos, caldo de cana ou melado com água. Vai misturar até obter um “brix” de 8% a 10%”. Eu utilizo um aparelho – o refratômetro – para medir o “brix”. [Esse aparelho] é utilizado para saber o teor de açúcar”. (Entrevista direta, no dia 03/04/2008). O entrevistado fez questão de sublinhar que o pai dele, para saber o teor de açúcar fazia de uma forma diferente, utilizando um ovo: “[Meu pai] Coloca o ovo dentro da solução diluída, água e melado. Observava a posição do ovo... Ele deve ficar „boiando‟ com a parte mais grossa para cima, mesmo com a água encobrindo. Se a mistura for muito doce, o ovo vai ficar muito fora da água. Se a concentração de açúcar for baixa, ele vai afundar. Essa técnica nos dá a indicação de que a solução fica em torno de 18 a 19 grau “brix”. Hoje ainda é possível fazer o teste com essa prática, mas eu me utilizo do aparelho.” (Entrevista direta, em 03/04/2008). “Bitter” – considerado artesanal, mantém um saber fazer tradicional do lugar. Não sofreu alteração ao longo do tempo. É um preparado de cachaça com sete tipos de ervas misturados e açúcar mascavo caramelizado. “Schimier” – um doce caseiro em forma de pasta, feito, especialmente, de banana, amendoim e goiaba, para ser colocado sobre o pão. Ao trabalhar todos esses produtos, observa-se que existe uma tendência das famílias a manter as tradições na produção ou transformação dos alimentos, mas que vão sendo feitas, ao longo do tempo, modificações ou adaptações, que têm fontes diversas. Não se trata, portanto, de algo estático. Isso será importante a seguir quando processos atuais e as possíveis inflexões geradas pela “profissionalização” desses agricultores forem considerados. 2.4 O saber codificado da profissionalização e o saber tradicional Para trabalhar a relação entre formalização de receitas, com a possível padronização – ou perda de especificidade – dos produtos, possível resultado da profissionalização, e a comercialização dos produtos, deve-se começar pelos cursos13 de panificação. Neles, o participante recebe informações teóricas sobre a história do pão; o que precisa para fazer pães; composição do grão de trigo; as definições, funções e classificação das farinhas; os fermentos sua definição e funções; as funções de açúcar, água, gorduras e sal para a produção de pães de qualidade. É apresentado, a seguir, um trecho do Boletim didático (número 66), que sistematiza as informações técnicas do curso. Segundo ele, “o resultado satisfatório da culinária depende, em grande parte, da exatidão das medidas. Para tanto, é preciso observar os seguintes itens: medir primeiro os ingredientes secos, depois as gorduras e, por último, os líquidos. Os ingredientes secos - como farinha, açúcar etc. - não devem ficar comprimidos. Sempre que a receita mencionar xícara ou colher rasa, nivelar o conteúdo das medidas com a faca. As xícaras e colheres que são usadas como medidas devem ter tamanhos padronizados. Para medir gordura, deve-se amontoá-la na xícara com auxílio do cabo de uma colher, a fim de eliminar bolhas de ar. As gorduras quando em temperatura ambiente, são mais fáceis de serem medidas do que quando geladas.” (Epagri, 2006. p. 9) Além das medidas, a técnica de fabricação apresentada nos cursos aponta que é imprescindível seguir, sempre, uma determinada ordem14. A leitura dos Planos de aula dos cursos de panificação implantados no município de São Martinho (Epagri Local) indica que se buscava, ao mesmo tempo, “produzir derivados de farinha de boa qualidade; diversificar os produtos a base de farinha visando à melhoria da alimentação familiar; aumentar a renda familiar através da agregação de valor; reconhecer a importância da higiene do manipulador, do local, dos equipamentos e produtos; fazer cálculo de custos e administração de preços na comercialização”. Há desta forma, um duplo objetivo de melhoramento da alimentação da família e de aumento da renda pela agregação de valor e comercialização dos panificados. Os impactos dos cursos e das recomendações podem ser ilustrados por dois relatos, que representam duas posições bastante diferentes. “Fiz curso de panificação. Não costumo fazer as receitas. Só faço alguma coisa pra casa. Os pães que comercializo são as minhas receitas. É muito diferente! Mas o bom do curso é que a gente tem que colocar a mão na massa e fazer os pães, isso ajuda muito. A gente não fica só olhando. (Entrevista direta) Neste caso, as receitas do curso são aproveitadas apenas para o consumo doméstico. O que é comercializado é baseado unicamente nas receitas tradicionais, que são julgadas “muito diferentes”. O depoimento parece indicar, contudo, ganhos nos procedimentos de fabricação. “Faço os pães, para o café colonial. [...] Depois do curso, eu uso exatamente como foi orientado em função das quantidades, peso, medidas. Antes, os ingredientes eram mais ou menos... era na xícara, na colher... E, hoje, vai na balança. E tudo é pesado exatamente. Assim como eu aprendi. A receita é a mesma. O que melhorou foi a decoração, o glacê. Hoje já aperfeiçoamos bastante. Para melhor!” (Entrevista Direta) 13 Os cursos são estruturados por um programa, entregue aos participantes no primeiro dia. Nele constam os objetivos do curso, a lista de receitas que serão elaboradas e recomendações gerais. O “instrutor” (denominação dada ao técnico responsável em ministrar o curso) deve preparar, também, os “planos de aula” contendo o nome, o tempo e os passos da receita que será processada, os procedimentos e os materiais didáticos, assim como a forma de avaliação. 14 A ordem é a seguinte: mistura-se a farinha, o fermento, o açúcar, a gordura, os ovos batidos com um pouco de água, o leite. Acrescenta o sal com um pouco de água e mistura tudo. Mistura bem e deixa a massa descansar cinco minutos. Sovar e cilindrar a massa, deixar descansar mais 20 minutos, moldar os pães e colocar nas formas, deixar crescer e levar para assar. Já neste caso, os conhecimentos codificados trabalhados no curso de panificação foram integralmente mobilizados. O destaque é que a receita tradicional é considerada mantida (“a receita é a mesma”), tendo havido aperfeiçoamentos na decoração. “Se analisarmos como era feito há 10 anos, quando minha sogra fazia, e hoje, evoluiu muito. Especialmente, nos detalhes e enfeites. Mas as receitas... Coisas como esse spritz, que é uma receita que eu trouxe de casa. Esse formato de biscoito em forma de chinelinho é uma marca nossa. A única coisa que nós mudamos é utilizar margarina no lugar de manteiga. Na bolacha de mel, nós mantemos, só usamos manteiga, que compramos dos laticínios. [...] Esse biscoito de amendoim é desde o tempo que eu era menina. Nós temos muitas receitas que são bem antigas. A nossa prática diária nos ensinou muito.” (Entrevista direta em 03/04/2008). Pode ser constatada uma importante fusão de receitas “de família” com ingredientes e equipamentos industriais, sempre procurando manter a imagem de colonial. A forma como a substituição da manteiga pela margarina é mencionada (“a única coisa que nós mudamos”) – como um detalhe de pouco significado, é emblemática desta “mistura”. Analisa-se, agora, a produção de lingüiça, que se expandiu para a de diversos tipos de embutidos de suínos. O relato a seguir traz importantes elementos sobre o processo: “hoje produzem salame defumado, bacon, lombo, torresmo pururuca e torresmo prensado. O comércio local comercializa nossos produtos, além dos empreendimentos turísticos. A nossa maneira de processar é a mesma ensinada pelo pai. No entanto, acrescentamos os condimentos, temperos, sal temperado, adquiridos de viajantes que visitam a unidade. Mudamos muito as instalações. Agora, construímos aqui e temos Inspeção Estadual”. (Entrevista direta, no dia 19/03/2008) À primeira vista, a “profissionalização” não teve importância na ampliação da comercialização, especialmente no que se refere a “maneira de processar” (“é a mesma ensinada pelo pai”). Outro trecho da entrevista muda, contudo, esta percepção, deixando claro a apropriação e mobilização de conteúdos e abordagens trabalhados nos “cursos”. “Participamos do curso de processamento de carne suína. Os cursos ajudaram muito na produção e processamento de produtos. As palestras sobre a qualidade, a higiene, dos produtos, isso fez a diferença na produção. Faz três anos que temos inspeção estadual. Aprendemos a fazer os embutidos com a família. Aperfeiçoamos com o curso. Antigamente, secávamos em uma estufa. Agora, temos um defumador. Faz mais de trinta anos que trabalhamos com isso”. (Entrevista direta) Fica claro, também para esta linha de produtos que são mantidos receitas e processos tradicionais, melhorados com práticas de manipulação e segurança dos alimentos que, aparentemente, foram adequados à pequena escala. Também no caso da produção de derivados de leite podem ser feitas observações interessantes para esta análise. Os conteúdos ministrados no curso de “indústria artesanal de leite” contemplavam a alimentação e a sanidade dos animais, a ordenha higiênica, os aspectos microbiológicos do leite e a conservação dele. Só a partir daí eram abordados os procedimentos para a elaboração dos seus derivados. São ensinados nos cursos os queijos “tipo minas meia cura” – a receita é apresentada como a mais próxima do queijo colonial, provolene, muzzarella, parmesão, minas frescal e prato, além de quark, iogurte, refrescos de soro e outros. A simples leitura do fluxograma de produção do queijo “Tipo Minas meia cura”15 indica uma grande diferença no processamento, em comparação ao queijo colonial, produzido de forma tradicional no município. Apesar dessa disparidade, os depoimentos indicam que a profissionalização teve repercussões positivas sobre o processamento, para aqueles que processam em pequena escala, mas especialmente para aqueles que tiveram importante crescimento. Aprimoramos a nossa receita e aprendemos a fazer outras que foram muito importantes no nosso negócio. Mudamos todo o nosso processamento”. (Entrevista direta) A profissionalização ajudou na propriedade nos aspectos de higiene e no processamento. (Entrevista direta) Note-se que no caso de produtos de origem animal, há a inspeção, feita por veterinários, das condições higiênico-sanitárias das construções, que seguem normas específicas, e dos equipamentos. “Hoje, produzimos queijos tipo colonial, mussarela, provolone, parmesão e temperado. Para preparar os queijos, usamos o seguinte procedimento: aquece o leite até a temperatura indicada para o tipo de queijo que se quer fazer, com auxilio de termômetro, acrescenta-se o coalho, deixa coalhar, faz o corte – hoje usamos a “lira”, antigamente cortávamos com uma faca. Deixa em repouso para liberar o soro e coloca nas formas de acordo com o formato indicado. Praticamente seguimos o que aprendemos no curso de profissionalização”. (Entrevista direta, em 19/03/2008). O aumento da escala e a aproximação dos produtores de circuitos de comercialização mais amplos (que não representem venda direta) e formalizados implicam na adoção quase completa das práticas “aprendidas” nos curso de profissionalização. Os cursos de frutas e hortaliças seguiam as mesmas recomendações dos demais. Sobre o processamento de frutas observa-se os seguintes depoimentos. “Quem processa são os jovens da casa. Temos somente o ensino fundamental, o meu irmão fez até 8ª série [...]. Não contratamos mão-de-obra, pois o lucro é pouco e a atividade é suficiente para manter a família. O curso é a alma do negócio. Já que eu não tenho estudo, preciso fazer cursos e participar de encontros e reuniões. (Entrevista direta, em 19/03/2008). A continuidade desta entrevista deixa mais claro como o processo de produção e transformação sofreu alterações depois da participação nos cursos. Hoje, são comercializados em forma de doces caseiros, compotas, conservas, doces em calda. São embaladas em vidros. As tampas são novas. Não se reutiliza [como antes] as tampas. Depois de prontos, são colocados em caixas de papelão, com divisórias, para facilitar o transporte. Os compradores são os restaurantes, lanchonetes, supermercados, pontos turísticos do município. Todos os produtos são transformados na propriedade. Usamos as técnicas que aprendemos no curso. 15 Para a preparação do queijo “Tipo Minas meia cura” durante os cursos, segue-se a seguinte ordem: o leite integral passa pela filtração; pasteurização seguida de resfriamento ou aquecimento até que a temperatura alcance 32 graus centígrados; recebe os ingredientes (cloreto de cálcio, fermento lático, coalho, conforme recomendação do fabricante, e corante à base de urucum). Após, há um repouso (para ocorrer a coagulação) em torno de 50 minutos. Fazer, então, o corte, utilizando-se uma lira. O tamanho dos cubos deve ser de 0,6 centímetros. Deixar repousar por 5 minutos e, em seguida, agitar por cinco minutos. Deixar descansar 3 minutos. Continuar esse processo até completar 50 minutos. Deixar em repouso, para ocorrer a separação do soro. Aquecer a 36 graus. Efetuar a pré-prensagem, deixando por 10 minutos. Em seguida, enformar com dissorador e levar para a prensagem. Após a prensagem, o queijo vai para a salga onde deve permanecer por 18 horas em uma salmoura com 20% de concentração. Pronta a salga, o queijo vai para a secagem durante uma a duas horas, numa temperatura de 12 a 15 graus, e segue para a sala de maturação, onde permanece por 20 dias, também na temperatura de 12 a 15 graus. Por último, vai para a sala de embalagem e em seguida à comercialização. Mudamos muita coisa desde o inicio até agora. Hoje, temos rótulo, temos acompanhamento da vigilância sanitária. Isso é muito bom. Aumentou muito as vendas.” (Entrevista direta, em dia 18/03/2008). No que tange à produção de cachaça, pode ser constatado, além do aumento do número de alambiques no município, a ampliação da variedade de “cachaças” (os “tipos”, com diversas misturas de ervas). Sobre os procedimentos, uma entrevista é especialmente esclarecedora. “Mudou muita coisa, de como o meu pai fazia e como eu faço hoje. Para fazer a cachaça precisa deixar fermentar a mistura de água com melado. Parou a fermentação, vai para o alambique e destila. A fermentação termina quando não tem mais doçura. Para saber, deve medir o grau brix. Essa doçura são as moléculas de fermentação que se transformam em álcool. O fermento é o mesmo sistema do fermento de pão. Pode também usar fermento de pão, que é um fungo microscópico, levedura, para começar. É uma bactéria viva que transforma as moléculas de açúcar em álcool. Estando pronta toda essa transformação, vai para o destilador ou alambique. É colocado fogo; quando começar a correr a cachaça, deve-se separar os primeiros dez por cento que se chama “cabeça”. Essa parte tem muitas impurezas, como etanol e outros álcoois superiores, que são prejudiciais a saúde. Esta primeira parte, junta-se depois com os outros dez por cento de calda final, que é chamada calda fraca. Eu utilizo [essa mistura] para fazer a cachaça lima, [...] [com] a casca da lima da pérsia. Após retirar os primeiros dez por cento, os próximos oitenta por cento são a cachaça pura. Hoje eu faço uma média de 30 tipos de cachaça. O meu pai fazia só cachaça pura, cachaça lima e o bitter. (Entrevista direta, em 03/04/2008). Como ficou claro, a concepção de segurança dos alimentos aparece como um componente importante para justificar os cursos de profissionalização. Dizendo de outra forma, considera-se que mesmo produtos tradicionais precisam obedecer a normas relativas aos processos para que não coloquem em risco os seus consumidores. Ao mesmo tempo, o processo mostrou que as normas e leis vigentes, tanto no âmbito nacional como no estadual, por privilegiar instalações de grande escala, dificultaram a implantação dos empreendimentos familiares. Buscou-se, por isso, a integração das instituições públicas para orientar as atividades de beneficiamento e transformação nas unidades familiares de produção. A ação combinada da Vigilância Sanitária, da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola – Cidasc, dos técnicos da Prefeitura Municipal e da Epagri permitiu a implantação do Serviço de Inspeção Municipal para Produtos de Origem Animal – Simpoa. A atuação da vigilância sanitária fica mais nas questões ligadas à instalação, à qualidade da água, ao local onde ela está sendo coletada, à realização de análises. Sendo o faz no sentido de contribuir para que o agricultor familiar profissionalizado melhore as instalações, tome cuidados de higiene e adote medidas de segurança que garantam a qualidade do produto. No esforço de implantação do turismo rural e de comercialização de produtos coloniais participaram outras organizações públicas não governamentais. O Sebrae/SC – Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Santa Catarina, que participou diretamente da implantação do turismo rural no município, efetuou diversos cursos e palestras para agricultores e proprietários de lojas da cidade, visando à sensibilização e à orientação para o bom atendimento dos visitantes. Já o Senar – Serviço Nacional de Aprendizagem Rural realizou cursos práticos na área de alimentos, especialmente de doces e conservas. A Acisma – Associação Comercial e Industrial de São Martinho, por sua vez, contribuiu para a divulgação dos produtos coloniais voltados à comercialização, sendo ela a patrocinadora do primeiro rótulo de identificação dos produtos. Nele, foi impresso o slogan que tornou os produtos coloniais conhecidos na região: “Produto colonial de São Martinho – Melhor não há.” A Acisma foi, também, em 1993, co-promotora (juntamente com a Prefeitura Municipal e outras entidades) da primeira Festa do Produto Colonial. A UNISUL, Universidade do Sul de Santa Catarina, atuou como parceira na pesquisa voltada as potencialidades do município. 2.4.1 O saber colonial, agora seguindo medidas. O quadro-síntese a seguir procura recuperar os principais elementos relacionados aos produtos e processos apresentados neste artigo, procurando tornar mais visível, produto a produto, se os saberes tradicionais continuam a ser utilizados nas atividades de beneficiamento ou transformação e a relação disso com os cursos de profissionalização. Quadro 1: Síntese com a lista dos produtos coloniais anteriormente trabalhados e a relação entre a mobilização atual dos saberes tradicionais e os conhecimentos trabalhados nos cursos de profissionalização Produto Colonial Gemüse Canja de Galinha Rosca de polvilho Pão de milho Pão Caseiro “trança” Queijo colonial Bolachas caseiras Embutidos – Linguiça Cachaça pura Conservas de verduras Doces caseiros “schmieres”, banana e amendoim Relação com Profissionalização Saber Tradicional, Hoje Integralmente mantido Integralmente mantido Integralmente mantido Integralmente mantido Mantido, com pequenas adaptações Mudou amplamente a forma de produzir, do “queijo colonial” para o “queijo tipo minas meia cura” e diversos tipos. Mantido, com adaptações significativas Completamente alterado, incluindo condimentos comprados Mantido, com adaptações muito significativas. Muitos outros sabores foram incorporados Mantido, com adaptações importantes Mantido, com pequenas adaptações Não trabalha esse produto Não trabalha esse produto Não trabalha esse produto Não trabalha esse produto Com exceção de alguns instrumentos e formas de medidas, as técnicas indicadas nos cursos não foram adotadas pelos agricultores. O que é proposto no curso é um fluxograma de produção padrão. As receitas tradicionais são preferidas, em relação àquelas apresentadas no curso Trabalha um procedimento padrão Incorporou o uso de equipamentos de controle de graduação alcoólica. Adotam amplamente as orientações do curso. Algumas receitas não são adotadas As recomendações em relação às proporções (quantidades) e pesos e medidas foram adotadas. Questões que não ficam explicitadas no quadro, mas que apareceram de forma clara nos depoimentos merecem destaque. O primeiro ponto a ressaltar é que o aumento nas vendas dos produtos coloniais – e a mudança nos circuitos de comercialização – foi implicando em uma gradativa ampliação dos empreendimentos dos agricultores entrevistados, o que, por sua vez, os obrigou a se adequarem às legislações e normas vigentes. Isso implicou na adoção de instalações e equipamentos que demandam conhecimentos formalizados. Ou pelo menos, a forte adaptação dos conhecimentos tácitos que eles haviam adquirido anteriormente, em geral com os pais. Outro fator importante a considerar é a padronização das receitas, tanto dos cursos profissionalizantes de panificação16, quanto nos de “indústria artesanal” de derivados de leite e de suínos. Nestes casos, as práticas locais pré-existentes acabam sendo desconsideradas. 17 CONSIDERAÇÕES FINAIS A primeira consideração a fazer é que as iniciativas, tanto na produção ou comercialização de produtos coloniais, quanto no turismo rural, foram endógenas. Ou seja, elas nasceram a partir de ações nas localidades rurais que, depois, receberam apoio do poder público e, inicialmente, pela força de vontade, solidariedade, voluntariado ou seja, o forte capital social e humano possibilitaram o desenvolvimento local. O segundo elemento a destacar é que os procedimentos para elaboração dos produtos são dinâmicos. Primeiro, na medida em que as famílias trabalham com as receitas elas incorporam saberes adquiridos da própria experiência. Ao mesmo tempo, elas vão considerando diversas outras informações, adotando-as, adequando-as ou rejeitando-as. Um critério que parece determinar essa escolha é a condição de manter a imagem do produto como colonial ou “rural”. É preciso realizar, contudo, novas pesquisas que sinalizem, especialmente junto a consumidores, se essas adoções e adaptações no saber fazer não estão transformando, ao mesmo tempo, o sabor dos produtos coloniais, aproximando-os demais daqueles produtos industriais. Com relação à aproximação com o turismo rural – especialmente nos componentes de agregação de valor e comercialização – é necessário ter em conta; primeiro, que falta uma valorização mais ampla do diferencial dos produtos e dos reflexos do seu consumo pelo turista. Apesar da circulação de muitas pessoas18, faltam, por exemplo, “guias turísticos” para acompanhar as excursões que visitam as comunidades e mostrar pontos importantes relacionados à opção por um meio rural vivo, ou “com gente”. Deve-se sublinhar que apesar da grande maioria dos atrativos turísticos estar localizada na área rural e, por conseqüência, a venda de produtos coloniais se dar também aí, nos locais em que eles são comercializados não se encontram, por exemplo, queijos produzidos efetivamente de maneira tradicional. A explicação mais simples está nas leis e normas (de inspeção sanitária) mas, como pode se tratar de venda direta, essa questão merece mais estudos e aprofundamento. Ficou evidente, também, que não há integração entre os agricultores familiares que produzem e comercializam produtos coloniais. Os proprietários de estabelecimentos de 16 Nos boletins didáticos para os cursos de panificação, existem 27 receitas padrão para todo os cursos básicos (chamado de curso I) ministrados em todos os centros de treinamento (Cetre) do estado. Depois, há uma média de sete “receitas regionais”, definidas em cada Cetre, segundo a realidade do seu entorno. 17 Na região de Tubarão, existe uma diferença no que diz respeito aos cursos de indústria artesanal de frutas e hortaliças, que são realizados nas localidades rurais e estão voltados ao beneficiamento de frutas e verduras produzidas no local. Além disso, os “doces caseiros” são preparados com açúcar mascavo. É necessário considerar que esses cursos são itinerantes até porque o Centro de Treinamento de Tubarão não tem unidade didática para esse tipo de curso. 18 Para se ter uma idéia do enorme fluxo de visitantes, a “Fluss Hauss”, uma unidade que fabrica biscoitos e serve “café colonial”, recebe uma média 2000 pessoas por mês. turismo rural comercializam esse tipo de produto, mas não existe uma rede de cooperação entre os diversos atores. Observou-se que as famílias envolvidas na produção e comercialização de produtos coloniais mantém até os dias atuais as características da agricultura familiar incorporando outras atividades não agrícolas, no caso de alguns restaurantes onde a grande maioria da gastronomia servida provem de produtos produzidos na propriedade, como: aipim, batata, ovos, carne de frango, hortaliças em geral. Nestes restaurantes encontra-se a “sopa”de galinha caipira, o gemüse que são alimentos tipicos do lugar. A produção, a transformação, a administração do empreendimeno envolve todos os familiares. No entanto, em outros estabelecimentos que comercializam para o turismo rural, observou-se a geração de empregos, são quarenta mulheres empregadas na comunidade. Produzindo bolachas de mel e de natal utilizando-se de uma decoração feita por processo manual, cujo conhecimento é repassado de mãe para filha. Há que se considerar que a decoração é única, incomparável. Numa análise sócio-cultural houve uma grande valorização da cultura alemã, com a criação do museu histórico e valorização de danças tradicionais típicas e o surgimento de grupos de jovens envolvidos com estas questões. A valorização da gastronomia foi fortemente evidenciada, com grande ênfase nos produtos tradicionais. Constatou-se, também, que na medida em que os agricultores foram aderindo ao projeto as preocupações com a preservação dos recursos naturais parece ter sido voltada mais para a exploração que pela preservação, na pesquisa não se consegue investigar questões pontuais como a destinação dos efluentes domésticos e dos resíduos sólidos. Mesmo o município mantendo uma coleta seletiva, questiona-se, qual o volume de lixo gerado nestes locais por final de semana? Como fica o ambiente quando o turista vai embora? Estes agricultores e agricultoras não estão trabalhando excessivamente para dar conta de toda a demanda recebida? Cabe aqui outras pesquisas voltadas específicamente para as questões ambientais, e relacionadas também com a carga de trabalho da família. Outra questão a ser considerada, especialmente para os estudos do desenvolvimento territorial diz respeito à inexistencia de articulação em redes, tanto para produção, quanto para comercialização dos produtos, poucos são os locais onde se encontram produtos coloniais para comercialização. O capital social e humano tão evidente no surgimento do projeto, por inúmeros conflitos surgidos, deu lugar a atividades individualistas e competitivas. Neste enfoque, pode-se pesquisar ainda, os reflexos destes conflitos e sua influência em processos que expressem mais cooperação que competitividade. No âmbito da requalificação do saber fazer local, a riqueza dos depoimentos mostram a sua importância para a cultura e o desenvolvimento local, sendo que a Escola deveria desenvolver estudos visando salvar esse rico patrimônio cultural do municipio. A profissionalização de agricultores poderia estar criando uma nova linha de cursos envolvendo os produtos tipicos culturais de cada municipio, proporcinando cursos diferenciados valorizando o saber fazer local. Para encerrar, como pesquisadora, procurei valorizar as entrevistas dada a importância dos depoimentos. Outras fontes de pesquisa podem ser realizadas a partir das discussões levantadas neste trabalho, como já mensionado anteriormente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo em questão. Campinas: Hucitec/Anpx. 1992. BARRETTO, M. Manual de iniciação ao Turismo. Campinas. São Paulo: Papirus, 1995. CÉZAR. V. M. Ensino Agrícola e Capacitação de Trabalhadores Rurais – a experiência de Santa Catarina com o Programa de Profissionalização de Produtores Rurais. Gerencia de Profissionalização. Florianópolis: Epagri, 1996. Apostila mimeografada. DIRKSEN, V. Viver em São Martinho: A colonização alemã no Vale do Capivari. Florianópolis : Ed do Autor, 1995. 212p. EISFORIA. Desenvolvimento Territorial Sustentável: Conceitos, experiências e desafios teórico-metodológicos. UFSC. v. 1, n. 1, (jan./junh. 2003) Florianópolis : PPGAGR, 2003. ELESBÃO, I. Turismo Rural em São Martinho (SC): uma abordagem do desenvolvimento em nível municipal. Santa Maria, 2001. 154 f. Dissertação ( Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) – Universidade Federal de Santa Maria, 2001. EPAGRI. Curso Profissionalizante de panificação I: Informações técnicas. Florianópolis, 2006. 50p. (Epagri Boletim Didático, 66). EPAGRI. Estudo de Casos de Processos Educativos no Campo. Florianópolis, 1992. 12 p. Programa Profissionalização Informal de Agricultores Catarinenses. Documento datilografado. FLORES, M. Contribuição para o Projeto Desenvolvimento Territorial Rural a partir de Serviços e Produtos com Identidade. A identidade cultural do território como base de estratégias de desenvolvimento – uma visão do estado da arte. [s.l.]: Rimisp, 2006. 47 p. Disponível em: http://www.rimisp.org. Acesso em: 20 maio 2008. GHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciencias sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1998. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1991, 159 p. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO – MDA. Secretaria de Desenvolvimento Territorial – SDT. Referências para uma Estratégia de Desenvolvimento Rural Sustentável no Brasil. Brasília, 2005. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL - CONDRAF PAULILO, Mª .I.S., SCHMIDT, W. Agricultura e Espaço Rural em Santa Catarina. Florianópolis : Ed. Da UFSC, 2003. 311p. RUSCHMANN, D. V. de M. Turismo e Planejamento Sustentável: A proteção do meio ambiente. 9. ed. Campinas, SP : Papirus, 1997 . 199p. (Coleção Turismo) STROPASOLAS, V. L. O mundo rural no horizonte dos jovens. Florianópolis : UFSC, 2006. 346 p. TEIXEIRA, V. L. Pluriatividade e Agricultura Familiar na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRRJ, 1998. Dissertação de Mestrado (Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Universidade Federal Rural d Rio de Janeiro. WANDERLEI, M. N. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: TEDESCO, J. C. (Org.). Agricultura Familiar: realidades e perspectivas. 2. ed. Passo Fundo: EDIUPF, 1999. p. 23-26. ZUIN. L. F. S; ZUIN, P. B. Produção de Alimentos Tradicionais. Aparecida, SP : Idéias & Letras.