Ideias e propostas para
avançar em direção a um
Tratado Internacional
dos Povos para o
Controle das Empresas
Transnacionais
Documento para consulta global
Dezembro 2014
Ideias e propostas para
avançar em direção a um
Tratado Internacional
dos Povos para o
Controle das Empresas
Transnacionais
APRESENTAÇÃO l - lV
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Seção A - CONTEXTO E ANTECEDENTES
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Seção B - JUSTIFICATIVA
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Seção C - PREÂMBULO
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Seção D - DIMENSÃO JURÍDICA
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Seção E - DIMENSÃO ALTERNATIVAS
Publicado por Rebrip
Action Aid
Brasil
Tradução: Action Aid Brasil
Dezembro 2014
Para mais informações sobre o Tratado Internacional dos Povos:
Gonzalo Berrón ([email protected]) e Brid Brennan ([email protected])
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Conteúdos
APRESENTAÇÃO l - lV
Seção A - CONTEXTO E ANTECEDENTES
Seção B - JUSTIFICATIVA
Seção C - PREÂMBULO
Seção D - DIMENSÃOJURÍDICA
1 ÂMBITO DO TRATADO
1.1 Empresas transnacionais
1.2 Instituições Internacionais Econômico-Financeiras
1.3
Os Estados
2 PRINCÍPIOS GERAIS
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Direitos humanos, Estados e empresas transnacionais
Direitos humanos e normas de comércio e investimentos
Os Estados e os organismos internacionais: marco normativo general
PREMISSAS E PROPOSTAS JURÍDICAS NO QUE DIZ RESPEITO ÀS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
OBRIGAÇÕES ESPECÍFICAS DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
CRIMES INTERNACIONAIS
5.1 Crimes econômicos contra a humanidade
5.2 Crimes corporativos internacionais
5.3 Crimes ecológicos internacionais
INSTÂNCIAS
DISPOSIÇÃO FINAL
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Seção E - DIMENSÃO ALTERNATIVAS
Introdução: Orientação e alcance
1 REIVINDICANDO A DEMOCRACIA E RESIGNIFICANDO O INTERESSE PÚBLICO:
PRINCÍPIOS E PROPOSTAS PARA A TRANSIÇÃO
1.1 Colocando fim à cooptação empresarial da tomada de decisões políticas
1.2 Afirmando a soberania cidadã e reivindicando o Estado
1.3 Repensando o comércio e o investimento transnacional
1.3.1 Construindo um marco jurídico alternativo aos tratados internacionais de investimento
1.3.2 Para uma nova perspectiva ante o comércio: Mandado de Comércio Alternativo
1.4 Desafiando o poder financeiro: auditorias cidadãs e oficiais da dívida
1.5 Recuperando os serviços públicos e as empresas estatais para o bem comum
1.6 Democratizando o trabalho e a produção: PLADA, Plataforma de Desenvolvimento das Américas
2 CONSTRUINDO A SOBERANIA DOS POVOS E DEFENDENDO OS DIREITOS COLETIVOS:
RESISTÊNCIAS, MEDIDAS TRANSITÓRIAS E ALTERNATIVAS
2.1 Implementando a soberania alimentar, a reforma agrária e a agroecologia
2.2 Lutando pelos direitos de camponesas e camponeses
2.3 Conseguindo a justiça da água e o direito humano à água
2.4 Construindo a soberania energética
2.5 Reconhecendo os direitos dos povos atingidos
2.6 Defendendo os territórios e os direitos das comunidades diante do extrativismo e da ‘economia verde’
2.7 Proclamando o ‘bem viver’ dos povos indígenas para liberar a Mãe Terra do saque capitalista
3 VISÕES DE NOVAS ECONOMIAS ALTERNATIVAS: NA TEORIA E NA PRÁTICA
3.1 Construindo convergências para uma mudança de sistema: economias para a vida
3.2 Avançando nas perspectivas regionais do pós-capitalismo: economias solidárias
3.2.1 A economia solidária como modo pós-capitalista de desenvolvimento
3.2.2 Agricultura sustentada pela comunidade: entre a soberania alimentar e a economia solidária
3.2.3 A economia solidária como parte da alternativa ao poder corporativo
3.3 Colocando a economia a serviço da vida: o feminismo como alternativa
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Chamado à atenção internacional e lista de signatários
Como se elaborou este documento base
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Documento para consulta global
APRESENTAÇÃO
I
Movimentos sociais, povos originários, especialistas, ativistas e comunidades afetas pelas práticas das empresas transnacionais
participaram da elaboração deste TRATADO DOS POVOS PARA O CONTROLE DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS.
O objetivo central desta iniciativa é submeter a arquitetura jurídico-política que sustenta o poder das empresas transnacionais
às normas e regras de proteção dos direitos humanos.
É um tratado desenhado fora da lógica jurídica clássica do Direito Internacional. São numerosas as fontes institucionais, sociais,
sindicais, de tribunais de opinião e das próprias comunidades afetadas, que constataram a persistência das sistemáticas
violações dos direitos humanos em um regime de permissividade, ilegalidade e impunidade generalizada nos comportamentos
das empresas transnacionais.
O Tratado pretende reunir a experiência acumulada das diferentes lutas contra as empresas transnacionais, contra os Estados
e instituições financeiras cúmplices. É um trabalho coletivo.
As propostas dos movimentos sociais e das comunidades devem ter preeminência nos debates jurídicos assim como devem
poder interpretar e propor normas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos “desde baixo”.
O debate entre o técnico e o político é bastante atual na caracterização do controle das empresas transnacionais. A linguagem
dos conhecimentos especializados dos advogados oculta o caráter político de sua intervenção e da representação dos interesses
hegemônicos e tende a rebaixar ou usar de evasivas para a menor participação das organizações sociais, movimentos e
comunidades.
A simplificação da realidade baseada em capacidades técnicas, competências e processos efetivos junto com o controle do
conhecimento não pode determinar o devenir do Tratado. Portanto as propostas alternativas de controle das multinacionais não
podem ser assunto exclusivo de escritórios de advogados, nem de especialistas em questões internacionais, mas, fundamental,
propostas desde a base.
Avançar na direção de um Tratado de controle das transnacionais exige confrontação e uma lógica normativa constituinte muito
diferente, lógica que no Tratado dos Povos se reflete nas seções de contexto, antecedentes e na justificativa do mesmo.
A dificuldade de estabelecer obrigações precisas e de harmonizar em um Tratado as diferentes normas implicadas é evidente: o
Direito Laboral, os direitos humanos, o Direito Humanitário, o Direito referido ao Meio Ambiente, os direitos dos consumidores,
os direitos corporativos; o reconhecimento da obrigação das empresas transnacionais de respeitar as normas internacionais
em matéria de direitos humanos e da sua responsabilidade civil e penal no caso de incorrer em violações aos mesmos; a
responsabilidade civil e penal de seus dirigentes; a primazia dos direitos humanos e do interesse público sobre o interesse
econômico; a obrigação das empresas transnacionais de pagar aos seus provedores e subcontratantes preços razoáveis pelos
seus produtos e serviços; a aprovação de uma Corte Internacional e a regulação da extraterritorialidade... são temas muito
diversos e respondem a lógicas jurídicas.
Não são dificuldades insuperáveis do ponto de vista técnico-jurídico, embora requeiram decisões políticas e uma correlação de
forças a favor dos povos. A atual conjuntura internacional exige que se decida entre dois caminhos ou vias possíveis: aprofundar
um marco radicalmente distinto, onde os povos e as comunidades pressionam para um marco obrigatório de controle das
transnacionais, ou manter a via da voluntariedade condescendente com as transações e apostar em instrumentos como a
responsabilidade social corporativa, o Pacto Mundial (ou Global Compact) e o marco Ruggie, entre outros.
4
Controle das Empresas Transnacionais
II
Tem muita importância a denominação que escolhemos, este documento contém uma série de “Ideias e propostas para
avançar em direção a um TRATADO INTERNACIONAL DOS POVOS SOBRE O CONTROLE DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
(ETNs)”. É um marco no jogo para regular o poder transnacional e, como afirma sua Disposição final, “é um tratado de tratados
ou tratado base”. Muitas das sus disposições requerem um desenvolvimento normativo para sua plena consolidação; este
mandado coexiste com obrigações e direitos de eficácia imediata.
O desenvolvimento não fica exclusivamente nas mãos dos Estados ou instituições internacionais. As organizações, movimentos
sociais e comunidades afetadas são atores e sujeitos dos processos vinculados ao desenvolvimento do Tratado dos Povos.
Por outra parte, o parágrafo final do Preâmbulo afirma: “Proclamamos o Tratado Internacional dos Povos e pedimos à
Assembleia Geral da ONU que o adote como uma regra comum para todos os Estados e instituições em relação às corporações
transnacionais e urgimos que os direitos, responsabilidades e propostas reconhecidas neste Tratado sejam transformados em
novas leis, mecanismos e instituições em nível nacional, regional e internacional e sejam promovidos para sua implementação
entre todos os povos e Estados”.
Diante da arquitetura da impunidade que favorece as empresas transnacionais, é necessário construir a arquitetura dos direitos
humanos a favor das maiorias sociais.
III
A proposta que apresentamos requere a elaboração de uma estratégia para a implementação do Tratado dos Povos em
diferentes etapas: um código de controle das empresas transnacionais que tenha em conta os antecedentes das Normas
sobre as Responsabilidades das Empresas Transnacionais e outras Empresas Comerciais aprovada pela Subcomissão de
Direitos Humanos em 2003 e descartadas no seio das Nações Unidas; um desenvolvimento normativo das diversas instâncias
mencionadas, com especial referência ao Tribunal Mundial sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos; uma regulação
dos crimes econômicos, corporativos e ecológicos; e, por último, diferentes propostas referidas aos Estados e Instituições
Econômico-Financeiras.
IV
Por último, o Tratado dos Povos contém uma seção sobre Alternativas que serve como base para indicar o marco e a
construção de novas relações entre os povos e a natureza, e conduzem à criação de políticas e ideias econômicas novas e
alternativas, que colocam os povos e o planeta, e não as corporações, em primeiro lugar.
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Ideias e propostas para avançar em direção a um
Tratado Internacional dos Povos para o
Controle das Empresas Transnacionais
A CONTEXTO E ANTECEDENTES
A comunidade internacional eludiu até agora sua obrigação de criar normas jurídicas específicas de cumprimento obrigatório
para as empresas transnacionais (ETNs) no marco do Direito Internacional dos Direitos Humanos, apesar da gravidade das
atividades transgressoras de tais direitos que as empresas transnacionais realizam com total impunidade.
Já na década de 1970, a Comissão de Sociedades Transnacionais do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) das Nações
Unidas estabeleceu como tarefas prioritárias, entre outras, investigar as atividades das ETNs e elaborar um código de conduta
internacional para as mesmas. Tal código se discutiu durante dez anos, mas nunca se concretizou, principalmente pela oposição
das grandes potências e do poder econômico transnacional.
No ano de 1974, foram criados a Comissão e o Centro de Empresas Transnacionais nas Nações Unidas. Em 1976, foram publicadas
as Linhas Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico para Empresas Multinacionais e, em 1977,
a Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social da Organização Internacional do Trabalho.
Anos mias tarde, em 1994, se produziu o desmantelamento da Comissão e do Centro de Empresas Transnacionais na ONU.
Em 1998, a Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos adotou uma resolução para criar um Grupo de
Trabalho que estudasse a atividade e os métodos de trabalho das empresas transnacionais em relação ao usufruto dos direitos
econômicos, sociais e culturais e o direito ao desenvolvimento. Em um dos parágrafos de tal resolução se assinalava que um
dos obstáculos que se opõem ao exercício desses direitos consiste na concentração do poder econômico e político nas mãos
das grandes empresas transnacionais.
O Grupo de Trabalho elaborou um projeto de normas para as empresas transnacionais, as Normas sobre a Responsabilidade
das Empresas Transnacionais e outras Empresas Comerciais das Nações Unidas, que foi aprovado pela Subcomissão em 2003.
As empresas transnacionais reagiram vividamente contra o projeto da Subcomissão através de um documento assinado
pela Câmara de Comércio Internacional e a Organização Internacional dos Empregadores, instituições que agrupam grandes
corporações do mundo todo. Nele afirmavam que o projeto de Subcomissão minava os direitos humanos, os direitos e os
legítimos interesses das empresas privadas. Também era ressaltado que as obrigações em matéria de direitos humanos
correspondem aos Estados e não aos atores privados, e exortava a Comissão de Direitos Humanos da ONU a recusar o projeto
aprovado pela Subcomissão.
Em 2005, a Comissão de Direitos Humanos cedeu à pressão do poder econômico transnacional e ignorou por completo o
projeto de normas adotado pela Subcomissão, aprovando uma resolução na qual convidava o secretário-geral das Nações a
designar um relator especial para que se ocupasse deste tema. Assim, o cargo de Representante Especial do Secretário-Geral
para a questão dos direitos humanos e as empresas transnacionais e outras empresas foi assumido por John Ruggie.
Ruggie foi o autor dos Princípios Reitores sobre as Empresas e os Direitos Humanos, aprovados por consenso pelo Conselho
de Direitos Humanos em 2011. Em julho de 2012, foi publicado um relatório da secretaria-geral da ONU que foi apresentado
ao Conselho de Direitos Humanos em suas sessões de setembro de 2012, com o título “Contribuição do sistema das Nações
Unidas em conjunto com a promoção do programa relativo às empresas e os direitos humanos e a divulgação e aplicação
dos Princípios Reitores sobre as empresas e os direitos humanos”. Em tal relatório se faz referência aos Princípios Reitores
assumindo que deles “não se deriva nenhuma nova obrigação jurídica” e além disso reitera seu caráter não vinculativo.
Em 2013, a Declaração liderada pelo Equador, assinada também pelo Grupo Africano, o Grupo de Países Árabes, Paquistão,
Quirguistão, Sri Lanka, Bolívia, Cuba, Nicarágua, Venezuela e Peru, reúne as preocupações dos países do Sul Global a respeito
das flagrantes violações dos direitos humanos provocadas pelas operações das grandes corporações transnacionais que, em
vários países, afetaram gravemente comunidades e populações locais, incluídos diferentes povos indígenas. Em tal declaração
se afirma que os Princípios Reitores não terão nenhuma consequência efetiva a menos que se crie um marco baseado em
instrumentos legalmente vinculativos para que se possam regular e sancionar as ações ilegais das corporações transnacionais.
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BJUSTIFICATIVA
Nos últimos 40 anos, as empresas transnacionais e os Estados que as apoiam -tanto aqueles dos quais são originárias quanto
os Estados receptores – construíram o que se poderia chamar de uma “arquitetura de impunidade”, uma normativa prolixa e
vinculativa que, através dos tratados e dos acordos de comércio e investimentos, das resoluções de instituições internacionais
tais como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e dos mecanismos de
resolução de litígios investidor-Estado, conferiu um enorme poder econômico, jurídico e político às empresas transnacionais.
Contrário a esta arquitetura, o Direito Internacional dos Direitos Humanos é o resultado da luta de milhões de pessoas e milhares
de organizações do mundo todo. E é nessa perspectiva das normas internacionais que o Tratado Internacional dos Povos se
enquadra. Construir e analisar o Direito Internacional “desde baixo”, desde os movimentos sociais e desde as resistências
de homens e mulheres, e não desde as elites econômicas e políticas centradas nos Estados, é a metodologia do trabalho do
Tratado; porque numerosas normas internacionais surgiram da pressão e mobilização dos movimentos locais, nacionais e
globais, e não só da centralidade do poder.
O Tratado dos Povos é uma proposta alternativa de caráter radical, cujos objetivos são, por um lado, propor mecanismos
de controle para frear as violações de direitos humanos cometidas pelas empresas transnacionais e, por outro, oferecer um
marco para o intercâmbio e a criação de alianças entre comunidades e movimentos sociais para tomar o espaço público, agora
ocupado pelos poderes corporativos.
É um projeto normativo e um processo que traça seus principais significados em exemplos concretos e vivos de resistências e
alternativas ao poder corporativo. Neste sentido, é diferente de outras práticas internacionais que tenderam a limitar sua ação
a alternativas normativas concretas. Esta é uma proposta em construção, e um de seus objetivos é o fortalecimento de atores
globais que lutam pela mudança enquanto cobram seu espaço legítimo.
A consolidação deste processo é chave para que, junto com o estabelecimento de mecanismos jurídicos de controle das grandes
corporações, se fortaleça o segundo propósito do Tratado: contribuir para que os movimentos sociais exijam o respeito aos bens
comuns, opondo-se à expansão das companhias transnacionais em setores que deveriam ser controlados pelas comunidades
e a cidadania. O processo do Tratado se une à reivindicação de regras vinculativas para as companhias transnacionais e à
aprovação de normas -por parte dos Governos- que excluam o setor privado das áreas chaves para a dignidade humana e a
sobrevivência das pessoas e do planeta.
Portanto, a reapropriação e reelaboração de instrumentos legais clássicos é um desafio ao paradigma dominante da ordem
jurídico-política. Assim, o direito à consulta dos povos indígenas, regulado no Direito Internacional dos Direitos Humanos, se
ressignifica e se reconstrói em processos de assembleia de consulta permanente. Os povos se caracterizam como sujeitos
constituintes da lei internacional, podendo propor y proclamar novos direitos.
Este será um Tratado Internacional dos Povos do presente e do futuro, baseado na responsabilidade e ética das gerações
presentes e futuras e na obrigação de proteger a Terra e seus povos.
C PREÂMBULO
OS POVOS E AS NAÇÕES:
TENDO PRESENTE que as Nações Unidas, por meio de diversas resoluções de sua Assembleia Geral, tais como as Nº
32/130, 43/113, 43/114 y 43/125, assim como através da Declaração dos Direitos Humanos da Conferência de Teerã (1969) e
Viena (1993), destacaram que todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais são individuais e interdependentes, de
modo que se deve prestar a mesma atenção e urgente consideração tanto à aplicação, promoção e proteção dos direitos civis
e políticos quanto aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Afirmando que as violações dos direitos humanos são uma prática sistemática das empresas transnacionais em sua
expansão global
Afirmando a autoridade moral e legítima dos povos como protagonistas chaves para que se oponham a este estado de
coisas e criar normas e regras que fortaleçam a primazia dos direitos humanos, assim como seu direito de exigir que os
Estados as apliquem em todas as áreas da atividade política, econômica, social, meio ambiental e cultural.
Afirmando que o respeito efetivo dos direitos humanos diante das empresas multinacionais, os Estados e as Instituições
Internacionais Econômico-Financeiras se vincula ao respeito dos povos e leva em consideração a Declaração Universal dos
Direitos dos Povos de 1976.
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Afirmando que os povos têm direito à autodeterminação e a estabelecer livremente seu destino político, econômico, social
e cultural, assim como a acessar livremente o direito ao desenvolvimento autônomo, harmônico, sustentável, autocentrado e
inclusivo das regiões, ao bem viver, aos serviços públicos e aos bens comuns.
Reiterando que a igualdade soberana entre Estados, entre povos e entre homens e mulheres, junto com a repartição
equitativa da riqueza e o respeito à natureza, constituem princípios sobre os quais construir uma nova proposta política,
econômica e jurídica internacional no marco da solidariedade internacional entre os povos e pessoas.
Reiterando que uma proposta internacional democrática e igualitária é consubstancial aos direitos humanos fundamentais.
A Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos, os Pactos Internacionais dos Direitos Humanos e
seus respectivos Protocolos, junto com as convenções internacionais – gerais ou particulares- de direitos humanos, o costume
internacional e os princípios gerais do Direito conformam os pilares básicos sobre os quais construir um novo sistema jurídico
internacional.
Mantendo que resulta imprescindível refundar os textos que compõem os corpos normativos dos direitos humanos e que
se requere um novo processo constituinte que reúna as reivindicações dos homens e mulheres assim como dos movimentos
sociais, e que tutele, ao menos, novos direitos relacionados à paz, à solidariedade, ao bem viver, à natureza, à soberania
alimentar, à democracia e ao Estado, às migrações internacionais, à saúde sexual e à saúde reprodutiva das mulheres, aos
povos originários e aos direitos das minorias.
Reconhecendo a visibilidade e continuidade das resistências das comunidades afetadas pelas violações e a impunidade
com que agem as empresas transnacionais – fatos documentados de forma substantiva por relatórios de movimentos sociais,
ONGs e observatórios, testemunhos de membros e representantes de comunidades afetadas, relatores e relatoras das Nações
Unidas- que foram julgadas em diferentes tribunais de opinião, entre eles o Tribunal Permanente dos Povos, e também foram
sancionadas em diversos tribunais nacionais e cortes internacionais.
Constatando a impunidade crescente e sistemática com que operam as empresas multinacionais, que resultam em ameaças
e ataques aos defensores e defensoras de direitos humanos, sindicalistas, povos indígenas, afrodescendentes, camponeses e
camponesas, meninos e meninas, entre outros coletivos afetados, enquanto ao mesmo tempo acumulam lucros extraordinários.
Reconhecendo que, nos últimos anos, as empresas transnacionais e os Estados que as apoiam - tanto aqueles dos quais são
originárias quanto os que as recebem- fortaleceram uma nova lex mercatoria formada pelo conjunto de contratos, convênios,
tratados e normas de livre comércio e investimentos de caráter multilateral, regional e bilateral e pelas disposições, políticas de
ajuste e os empréstimos condicionados da Organização Mundial do Comércio, do Fundo Monetário Internacional e do Banco
Mundial, assim como pelos mecanismos de resolução de litígios investidor-Estado, conferindo um enorme poder político,
econômico, cultural e jurídico às grandes corporações.
Indignados pela assimetria normativa que existe entre o Direito Corporativo Global, que tutela de maneira imperativa e
coercitiva os direitos das empresas transnacionais, e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Testemunhando que a responsabilidade social corporativa e os sistemas ad hoc de controle das empresas transnacionais —
entre eles, a Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e a Política Social da Organização Internacional
do Trabalho, as Linhas Diretrizes da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico para Empresas
Multinacionais, o Pacto Mundial e os Princípios Reitores das Nações Unidas— são expressões paradigmáticas do Direito mole,
e que o conjunto de códigos de conduta e acordos voluntários, unilaterais e sem exigibilidade jurídica que os constituem está
levando à atrofia, à colonização e à captura corporativa das instituições internacionais.
Reconhecendo a ausência de regulação efetiva das obrigações territoriais e extraterritoriais por parte do Estado em relação
à responsabilidade das corporações transnacionais nos âmbitos nacionais, regionais e internacionais.
Reconhecendo que os Estados matrizes tutelam os interesses de suas empresas transnacionais diante dos direitos humanos
e que os Estados receptores não garantem os direitos dos povos e favorecem os interesses das empresas transnacionais ao
legislar a seu favor ou ratificar tratados de livre comércio e investimento.
Reafirmando o corpus de leis e normas internacionais sobre direitos humanos como ponto de partida e se articulando com
base na opinião de especialistas internacionais, comunidades em resistência, afetados e movimentos sociais, este Tratado
Internacional dos Povos, afirma a primazia dos direitos humanos sobre a construção de paradigmas econômicos, políticos,
sociais e culturais.
Manifestando uma profunda preocupação com a cumplicidade entre Estados e empresas transnacionais e com a
subordinação dos primeiros aos abusos das grandes corporações que impedem a tutela dos direitos dos povos e o acesso à
justiça e ao direito à compensação das vítimas.
Constatando a urgência de iniciar ações coletivas decisivas para desmantelar o poder das empresas transnacionais e parar
a impunidade corporativa.
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Proclamamos o Tratado Internacional dos Povos e pedimos à Assembleia Geral da ONU que o adote como uma
regra comum para todos os Estados e instituições em relação às corporações transnacionais e urgimos que os direitos,
responsabilidades e propostas reconhecidas neste Tratado sejam transformados em novas leis, mecanismos e instituições em
nível nacional, regional e internacional e sejam promovidos para sua implementação entre todos os povos e Estados.
D DIMENSÃO JURÍDICA
1 ÂMBITO DO TRATADO
1.1
Empresas transnacionais
As empresas transnacionais (ETNs) são entidades ou grupos de entidades econômicas que realizam atividades em mais de um
país, qualquer que seja a forma jurídica que adotem, tanto no país de origem quanto no país da atividade, consideradas tanto a
título individual quanto coletivo. Uma empresa transnacional é toda aquela empresa que é constituída por uma sociedade matriz
criada em conformidade com a legislação do país onde se encontra instalada, que se implanta por sua vez em outros países
mediante investimento estrangeiro direto ou outras práticas econômico-financeiras, sem criar empresas locais ou mediante
filiais que se constituem como sociedades locais, conforme a legislação do país destino do investimento.
As empresas transnacionais, como todas as pessoas jurídicas, têm a obrigação de respeitar as normas jurídicas sob pena
de sofrer sanções se não o fizerem, tanto em nível nacional como internacional, que surgem da análise dos instrumentos
internacionais vigentes, e inclui os direitos humanos. O reconhecimento das obrigações das pessoas privadas — incluídas as
pessoas jurídicas— em matéria de direitos humanos, e de sua responsabilidade no caso de incorrer em violações aos mesmos,
está consagrado no Artigo 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e afiançado na doutrina e em numerosos
convênios internacionais, especialmente no referente à proteção do meio ambiente.
1.2
Instituições Internacionais Econômico-Financeiras
Os convênios, os tratados e as normas de livre comércio e investimento, junto com as disposições, políticas de ajuste e
empréstimos condicionados aprovados por Instituições Internacionais Econômico-Financeiras favorecem o poder das empresas
transnacionais.
Como pessoas jurídicas, estas instituições são juridicamente responsáveis, assim como o são os integrantes dos órgãos
—unipessoais ou colegiados— que tomam as decisões, pelas violações que cometam ou ajudem a cometer —por ação ou
omissão— dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais.
O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial são organismos especializados do sistema das Nações Unidas e como tais
suas decisões debem se ajustar à Carta das Nações Unidas. Não obstante, agem da mesma forma que a Organização Mundial
do Comércio (OMC) e os bancos regionais a serviço do grande capital transnacional1.
A OMC não regula unicamente o comércio global de bens e serviços; impõe normas sobre propriedade intelectual e restrições
à regulamentação nacional em muitas outras esferas da política pública, e por isso representa um mecanismo institucional do
modelo neoliberal desregulador, que quebra as funções dos poderes públicos no interior de cada Estado, sua capacidade de
negociação externa e o direito de autodeterminação dos povos.
1.3
Os Estados
Os Estados devem acatar, desenvolver e aplicar os tratados, acordos e normas internacionais de direitos civis, políticos, sociais,
econômicos, culturais e meio ambientais e submeter aos mesmos as regras internacionais pertencentes ao comércio, aos
investimentos, às finanças, aos impostos e à segurança.
As violações aos direitos humanos por parte de atores privados não tira a responsabilidade do Estado de sua obrigação de
garantir, proteger e promover estes direitos, assim como de oferecer o acesso a remédios efetivos e a formas de reparação
para as comunidades afetadas mediante meios judiciais adequados.
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O funcionamento e a tomada de decisões do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial e as orientações que impõem sobre a
política econômica, as políticas de ajuste e sobre a dívida externa se desenvolvem contra o sistema internacional dos direitos humanos; as
privatizações dos serviços públicos, a redução do gasto social, o aumento das tarifas de tais serviços, as reformas laborais, entre outras,
colidem frontalmente com os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais.
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2 PRINCÍPIOS GERAIS
Seção primeira. Direitos humanos, Estados e empresas transnacionais
2.1 Todos os seres humanos, de onde quer que sejam, nascem livres e iguais em sua dignidade e são titulares, sem nenhuma
discriminação, do conjunto de liberdades e direitos humanos, tanto individual como coletivamente, que são inerentes a
eles em sua condição de seres humanos.
2.2 Toda a cidadania e em particular os grupos más vulneráveis, devem participar de maneira determinante das decisões que
afetem suas vidas e seu entorno.
2.3 Todos os Estados têm a obrigação de promover, respeitar, proteger e garantir os direitos humanos, ou seja, os direitos
civis, políticos, sociais econômicos, culturais e meio ambientais, tanto no seu território como fora do mesmo.
2.4 Os direitos humanos e o conjunto de normas para sua aplicação, são universais, indivisíveis e interdependentes.
2.5 O Direito Internacional dos Direitos Humanos se estrutura sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, junto
com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais e seus Protocolos Facultativos —que formam a Carta Internacional de Direitos Humanos—, assim como sobre
as declarações, diretrizes, observações e princípios adotados no plano internacional.
2.6 O sistema de fontes do Direito Internacional vem reunido no Artigo 30 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça e
é constituído pelas convenções internacionais —gerais ou particulares—, o costume internacional, os princípios gerais
do Direito reconhecidos pelos sistemas jurídicos do mundo, tanto de fontes principais e criadoras das normas jurídicas,
e as decisões judiciais e as doutrinas dos juristas de maior competência, como de fontes auxiliares e de interpretação
das normas existentes. No Direito Internacional o costume tem o mesmo valor jurídico que os tratados internacionais
e o Direito Internacional consuetudinário está em vigor e é obrigatório. A Carta Internacional de Direitos Humanos faz
parte do mesmo e é uma verdadeira norma imperativa ou de ius cogens que encarna e protege interesses essenciais da
comunidade internacional e que, segundo o Artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, estabelece
que não é permitida a derrogação de uma norma imperativa e não cabe acordo em sentido contrário por outra norma que
não seja imperativa.
2.7 As empresas transnacionais e as Instituições Internacionais Econômico-Financeiras devem respeitar a soberania dos
povos e Estados coerentes com o respeito ao direito ao desenvolvimento, ao bem viver e aos bens comuns.
2.8 As empresas transnacionais e os Estados devem respeitar e se submeter às prescrições das normas, recomendações e
declarações que configuram o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Seção segunda. Os direitos humanos e as normas de comércio e investimentos
2.9 O Direito Internacional dos Direitos Humanos —incluído o Direito Internacional do Trabalho e o Direito Internacional
Ambiental— são hierarquicamente superiores às normas de comércio e investimentos, nacionais e internacionais, pelo
seu caráter imperativo e como obrigações erga omnes, ou seja, de toda a comunidade internacional e para toda a
comunidade internacional.
2.10 Os tratados e acordos de livre comércio e investimento priorizam os privilégios e lucros dos investidores e das empresas
transnacionais antes dos direitos dos povos e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Entretanto, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, e outros tratados e convenções internacionais de direitos humanos e ambientais possuem caráter de normas
imperativas e de Direito Internacional Geral. Portanto, a nulidade dos tratados e acordos de livre comércio e investimento
se dá ao invocar a preeminência de uma norma hierarquicamente superior.
2.11 Os princípios jurídicos vinculados às normas de livre comércio e investimento —tratamento nacional, nação mais
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favorecida, tratamento mais favorável, tratamento justo e equitativo, o conceito de inversão, o conceito de expropriação
indireta, a limitação a exigir-lhes requisitos de desempenho, a proteção retroativa do tratado, a livre disponibilidade de
divisas, a cláusula guarda-chuva, as cláusulas de estabilização e cláusula de sobrevivência posterior à sua denúncia,
etc.— devem se subordinar às normas nacionais do Estado receptor e às normas internacionais de direitos humanos.
Em nenhum caso se deve permitir que as disputas entre investidor-Estado se submetam à decisão de órgãos arbitrais,
já que implicam um menosprezo à proteção já concedida à soberania dos Estados, aos direitos das pessoas e dos povos
pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.
2.12 Os usos e princípios internacionais universais —tais como: o pactado pelas partes deve ser cumprido (pacta sunt
servanda), os princípios de equidade, boa-fé, abuso de direito, enriquecimento sem causa, a alteração fundamental das
circunstâncias modifica as obrigações das partes (rebus sic stantibus), força maior e estado de necessidade— devem
ser interpretados de maneira conjunta, complementária e a favor dos direitos das maiorias sociais; a segurança jurídica
dos investimentos não debem ser interpretados como equivalente ao princípio pacta sunt servanda, e sim como exigência
de respeito ao conjunto dos princípios mencionados. O princípio internacional de primazia a favor das vítimas deve
prevalecer sobre as normas de comércio e investimentos.2
2.13 A incorporação de cláusulas sociais, laborais e meio ambientais nos tratados e acordos de comércio e investimentos são
disposições mais declarativas que imperativas; são cláusulas subordinadas à proteção do comércio e dos investimentos.
Deve modificar-se seu valor normativo, de maneira que as cláusulas sejam hierarquicamente superiores aos princípios
vinculados às normas de comércio e investimentos e suprimir as normas sobre comércio e investimento incompatíveis
com o pleno respeito de todos os direitos humanos integralmente considerados.
Seção terceira. Os Estados e os organismos internacionais: marco normativo geral
2.14 Os Estados e as Instituições Internacionais Econômico-Financeiras devem respeitar, defender, promover e garantir a
aplicação do Direito Internacional de maneira integral e abandonar as tentativas de eludir as obrigações estipuladas nos
tratados de direitos humanos.
2.15 A responsabilidade dos Estados se estende a atos e omissões de atores não estatais que agem sob instruções, direção
ou controle do Estado.
2.16 Os Estados devem garantir e proteger as comunidades e pessoas afetadas pelas práticas e operações das ETNs que
violem os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais e assegurar o acesso à justiça e o
direito à compensação dos afetados.
2.17 Os Estados são, em muitas ocasiões, responsáveis por não garantir os direitos das pessoas e povos favorecendo com
seus atos as empresas transnacionais. Pode-se denunciar os Estados receptores —por participação necessária— pelas
violações de direitos humanos cometidas pelas grandes corporações ao legislar a seu favor ou ratificar tratados de livre
comércio ou de investimento que facilitam as atividades das empresas transnacionais ou por cumplicidade por não
impedi-las. As obrigações de respeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, —incluídos o Direito Internacional
do Trabalho e o Direito Internacional Ambiental— se estendem às zonas francas de exportação, zonas econômicas
especiais e fábricas maquiladoras.
2.18 Os Estados com sede matriz das empresas transnacionais poderão ser perseguidos por sua responsabilidade criminal
e de direitos humanos quando forcem ou tentem forçar a celebração de tratados comerciais e de investimentos que
não tutelem os direitos da cidadania e dos povos ou não incorporem mecanismos de denúncia quando a aplicação dos
tratados gere tais vulnerações.
2.19 As relações diretas e indiretas dos Estados onde as empresas transnacionais têm sua sede central os obrigam, tendo
em conta o conteúdo do Direito Internacional dos Direitos Humanos —incluído o Direito Internacional do Trabalho e o
Direito Internacional Ambiental—, a que, dentro e fora de sua jurisdição, suas práticas políticas e econômicas não violem
os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais e a garantir que as empresas não contribuam
para a violação de direitos humanos em outros países.
2.20 De acordo com os Princípios de Maastricht sobre Obrigações Extraterritoriais dos Estados em matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, os Estados têm a obrigação de respeitar, proteger e fazer cumprir os direitos civis,
políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais, tanto dentro de seu território como extraterritorialmente,
e a violação desta obrigação pode fazer que fique comprometida a responsabilidade internacional do Estado. Sem o
reconhecimento destas obrigações extraterritoriais, os direitos humanos não podem assumir o papel que lhes corresponde
como bases jurídicas para regular a globalização e garantir a proteção universal dos direitos humanos.
2.21 Os mecanismos de apoio à internacionalização das empresas por parte dos Estados —as agências e bancos de crédito
às exportações, a promoção comercial, a diplomacia comercial, os instrumentos financeiros, os instrumentos de política
de cooperação, o apoio direto logístico e a expansão exterior— devem subordinar-se ao sistema internacional de proteção
dos direitos humanos. Os estados, por meio dos órgãos responsáveis pela cooperação internacional e os direitos
2
Segundo o modelo normativo vigente, toda vantagem concedida aos investidores e empresas nacionais deve ser estendida aos
inverstidores estrangeiros; os investidores e empresas nacionais não podem receber nenhuma ajuda do Estado, já que isso implicaria
quebrar o princípio do tratamento nacional. Entretanto, este princípio não se estende às pessoas migrantes e refugiadas, que são
submetidas a leis migratórias e de refúgio profundamente restritivas. A proposta deveria ser tutelar a todas as pessoas, vivam onde vivam,
por cima das empresas transnacionais.
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humanos, devem estabelecer diretrizes que garantam o respeito dos direitos humanos no marco dos programas de
internacionalização das empresas.
2.22 Deve-se excluir as privatizações diretas ou ocultas de determinados bens e serviços universais e de uso comum, tais
como a alimentação, a saúde, a educação, a cultura, a água, a natureza, etc. Nesse caso, os Estados ficarão obrigados a
estabelecer avaliações participativas e controladas socialmente de impactos sobre os direitos humanos provocados pelas
privatizações e exigir condições como a disponibilidade, acessibilidade —física, econômica e à informação— e qualidade,
que os Estados devem respeitar e garantir no momento de colocar em prática as privatizações.
2.23 Os Estados devem proibir o ingresso e estabelecimento de investimentos contrários aos direitos humanos —a indústria
de armas, a energia nuclear, entre outras—, e limitar práticas que, mesmo sendo legais, possam implicar uma
responsabilidade pelos seus efeitos prejudiciais para o desenvolvimento dos povos e o bem viver das comunidades,
abrindo procedimentos participativos para estabelecer novos parâmetros sobre os conceitos do desenvolvimento, o
comércio e os investimentos.
2.24 Os Estados não devem gestionar crises de natureza econômica e/ou financeira mediante a eliminação, suspensão
ou redução da progressiva efetividade no cumprimento dos direitos econômicos, sociais e culturais; Se for o caso,
poderá limitar a progressividade —versus regressividade— por meio de medidas pontuais, temporais, proporcionais,
não discriminatórias e tendo-se esgotado todas as propostas alternativas possíveis. O conteúdo essencial dos direitos
econômicos, sociais e culturais deve ser respeitado em qualquer caso e os argumentos gerais de disciplina fiscal e
políticas públicas não podem ser alegados como causa da regressividade.
2.25 As políticas de ajuda humanitária dos Estados ou de Instituições Internacionais devem dirigir-se a salvar vidas, aliviar o
sofrimento e manter a dignidade humana; nenhum interesse econômico dos Estados, de tais instituições, das empresas
ou de ambas, podem desenhar ou condicionar as políticas de ajuda humanitária.
2.26 Os Estados, com o objetivo de garantir a liberdade de expressão e o direito a uma informação objetiva e imparcial, devem
proibir a formação de monopólios nos meios de comunicação e a formação de sociedades ou acordos interempresariais,
etc., entre empresas de comunicação e outros setores de atividades industriais, comerciais e financeiras. O Estado deve
garantir uma pluralidade genuína de provedores de serviços.3
2.27 As deslocalizações —as transferências de tarefas a sociedades afiliadas implantadas no estrangeiro ou de forma
indireta mediante compras de serviços e bens intermediários de provedores estrangeiros com os quais têm relações
de dependência— exigem a aprovação de normas internacionais do trabalho que proíbam as demissões que busquem
aumentar os lucros através da deslocalização; proíbam o fechamento e a deslocalização de locais de trabalho com lucros;
dotem de capacidade os representantes dos trabalhadores e trabalhadoras para suspender planos de reestruturação
enquanto se obtém a informação necessária para conhecer a situação econômico-financeira da empresa; outorguem
o direito de veto aos trabalhadores e trabalhadoras, diante de medidas destruidoras de emprego e deslocalização;
imponham gravames fiscais para produtos reimportados de empresas deslocalizadas; exijam o reembolso de ajudas
públicas recebidas por parte de empresas que se deslocalizam e estendam a responsabilidade das ETNs com suas filiais,
provedores, subcontratantes e licenciatários.4
2.28 Deve-se proibir as práticas dos bancos e outras sociedades financeiras direcionadas à especulação e intervenção do
mercado das commodities, ou seja, de matérias-primas e de produtos agrícolas.
2.29 Deve-se proibir os paraísos fiscais e a especulação com a dívida soberana; além disso, a dívida pública que se declare
ilegítima —de acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos— será anulada e se aplicará um desconto
substancial para o resto da dívida dos países sobreendividados.
3
4
12
Apesar da aparente diversidade, existe uma forte concentração na propriedade e no controle dos meios de comunicação que fica nas mãos
de oligopólios ou, inclusive, de monopólios. Definem-se ambas as situações: um oligopólio é um mercado dominado por um pequeno número
de vendedores ou prestadores de serviço. Devido ao pouco número de participantes neste tipo de mercado, podem chegar a acordos entre
eles para criar uma situação de benefício comum e evitar a concorrência, ainda que isso suponha uma piora no serviço para prestado aos
consumidores ou usuários. Por outro lado, um monopólio é uma situação de privilégio total na qual existe um produtor que possui um grande
poder de mercado e é o único em uma indústria dada que possui um produto, bem, recurso ou serviço determinado e diferenciado.
A partir do local de trabalho, os trabalhadores e trabalhadoras veem afetados seus direitos pela modificação da unidade empresarial.
A externalização e a descentralização organizativa acompanham modificações normativas na tutela das e dos assalariados. A
referência legislativa nacional não é capaz de controlar toda a atividade econômica das corporações que agem no marco da globalização
“desterritorializando” sua atividade e se espalhando por diversos espaços regulatórios.
Neste contexto, a aparição dos Acordos Marco Globais implica uma melhora na evolução dos códigos de conduta, já que o caráter unilateral se
desloca em direção aos fenômenos de participação e de negociação coletiva. Os códigos de conduta unilaterais e voluntários são substituídos
por mecanismos de interlocução e de participação sindical. Têm força contratual entre as partes signatárias, mas não efeitos normativos. A
própria empresa é a que se responsabiliza por aplicá-los em concreto. Propõe-se um aprofundamento na exigibilidade jurídica dos Acordos
Marco Globais, e que no caso de sua inobservância se possa exigir —ante a autoridade judicial do Estado receptor da atividade da empresa
transnacional—, o cumprimento dos mesmos, e na sua falta, ante a autoridade judicial do Estado matriz onde se assinou o acordo entre as partes.
2.30 Deve-se proibir as “portas giratórias” —circulação sem obstáculos de altos cargos e representantes políticos entre
o setor público e privado—, a cooptação do processo decisório das políticas públicas— a cooperação regulatória, a
co-escrita de legislação, a elaboração de normas-padrão ou de anteprojetos de leis—, o suborno e outras práticas de
corrupção.
2.31 Os Governos e os Parlamentos consultarão —online e em audiências públicas— as empresas, grupos de pressão,
movimentos sociais, sindicatos, ONGs, povos autóctones entre outros, nas tomadas de decisão que afetem os interesses
dos mesmos.
2.32 Deve-se proibir toda tentativa de patentear as diversas formas de vida presentes na natureza e os organismos
geneticamente modificados e estabelecer um direito de preferência do domínio público em relação aos descobrimentos
fundamentais para a saúde.
2.33 Deve-se regular a complexa rede de bancos, empresas, grupos de investidores, agências, consultoras, comissionistas e
outros atores que operam nos mercados financeiros. Serão aprovadas normas, pelo menos, em relação à transparência
das práticas financeiras; o controle de capitais e dos serviços financeiros; o controle dos fundos de investimento (hedge
funds), a fraude e a evasão fiscal, as agências de classificação de risco, a remuneração dos altos executivos e o sigilo
bancário; a sanção aos fluxos ilícitos de capital. Serão elaboradas regras acerca dos impostos sobre a circulação de
capitais e a tributação progressiva sobre a renda, o patrimônio e os lucros das empresas.
2.34 Deve-se iniciar um processo de transição em direção a um novo mecanismo de regulação do comércio mundial e de
resolução de litígios que substitua a OMC e seus mecanismos. De forma urgente, se deve anular o Acordo Geral sobre o
Comércio de Serviços, os acordos que impliquem a eliminação das pequenas explorações agropecuárias e o campesinato,
o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio celebrado na Organização
Mundial do Comércio (TRIPS, na sigla em inglês) e a Convenção Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais.
Estes últimos, em particular, beneficiam as empresas transnacionais e afetam negativamente, entre outros, o direito à
saúde, o acesso aos produtos farmacêuticos e os direitos e conhecimentos tradicionais dos povos indígenas.
3 PREMISSAS E PROPOSTAS JURÍDICAS NO QUE DIZ RESPEITO
ÀS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
3.1 As normas nacionais e internacionais são obrigatórias para as pessoas naturais e jurídicas.
3.2 As empresas transnacionais são pessoas jurídicas e, como tais, sujeitos e objeto de Direito, de modo que o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, —incluído o Direito Internacional do Trabalho e o Direito Internacional Ambiental—,
também são obrigatórios para estas.
3.3 Os dirigentes das empresas transnacionais são pessoas físicas e as normas jurídicas vigentes são também obrigatórias
para eles. Particularmente em matéria civil e penal, as tendências modernas, que se refletem nas legislações nacionais,
reconhecem a responsabilidade das pessoas jurídicas, admitindo-se a dupla imputação, ou seja, que por um lado é
imputável à pessoa jurídica e, por outro, às pessoas físicas —dirigentes da entidade— que tomaram a decisão incriminada.
Além disso, deve ter-se em conta, se for o caso, a cumplicidade, a colaboração, a instigação, a indução e o encobrimento
para estabelecer a responsabilidade das mesmas.
3.4 Gera-se uma responsabilidade solidária das empresas transnacionais com suas filiais (de jure o de facto), assim como
com a cadeia de provedores, subcontratantes licenciatários, já que compartilham a responsabilidade pelas violações
dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais —ao estarem conectadas mediante as
práticas econômicas— com as ETNs. Tal responsabilidade solidária das grandes corporações com suas filiais provedoras,
subcontratante e licenciatárias é uma questão essencial, tendo em conta a prática habitual das ETNs de externalizar os
custos, os riscos e as conseguintes responsabilidades —assumidas exclusivamente ou quase exclusivamente pelas filiais,
provedores, subcontratantes e licenciatários— enquanto obtêm grandes lucros.5
5
A responsabilidade solidária se fundamenta em uma obrigação objetiva de garantia. A responsabilidade solidária, por ação ou inclusive por
omissão, é gerada entres todos aqueles que participam de uma maneira ou de outra da inflição de um dano. A vítima tem direito à reparação
que pode reivindicar a todos os responsáveis conjuntamente ou um a um ou a algum deles e, se estes são insolventes, ao responsável
solvente. Existem numerosas legislações nacionais e internacionais que abordam e regulam os graus de responsabilidade —em questões
laborais, meio ambientais, financeiras, penais, etc.— na inflição de dano.
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4 OBRIGAÇÕES ESPECÍFICAS DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
4.1 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem reconhecer os
princípios da primazia dos direitos humanos e do interesse público sobre o interesse econômico particular.
4.2 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar os direitos
civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais e cumprir as suas obrigações fiscais para que os Estados
garantam, em particular, o direito ao desenvolvimento, a uma alimentação adequada, à soberania alimentar, à saúde, ao
meio ambiente saudável, à moradia, à educação e à terra.
4.3 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários não cometerão atos —nem
serão cúmplices, nem colaboradores, nem instigadores, nem indutores, nem encobridores— que constituam crimes
de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, tortura, desaparecimento forçado, trabalho forçado ou obrigatório,
tomada de reféns, deslocamentos, execuções sumárias ou arbitrárias e violações do Direito Internacional Humano.
4.4 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar todas as
normas internacionais e nacionais que proíbem a discriminação por motivos de raça, cor, sexo, religião, opinião pública,
política, nacionalidade, origem social, condição social, pertencimento a um povo indígena ou afrodescendente, deficiência,
idade ou outra condição que não guarde relação com os requisitos para desempenhar seu trabalho e devem aplicar as
ações positivas, quando estejam previstas nas normas e/ou nas regulamentações.
4.5 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar as
condições de vida das mulheres e evitar a exploração e a violência contra elas; não incoar denúncias injustificas às
líderes da comunidade; não colaborar na destruição das condições de vida digna das mulheres, dentro de seu âmbito
cultural, incluído o direito à sua língua e às suas referências transcendentais; não impedir a participação políticas das
líderes em assuntos públicos e da comunidade. As indústrias de exportação intensiva —têxtil, floricultura, agroindústria,
maquiladoras, etc.— perpetuam a disparidade salarial, a divisão sexual do trabalho, a invisibilidade e desvalorização das
tarefas reprodutivas e de cuidado.
4.6 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar os direitos
das mulheres regulados no Direito Internacional dos Direitos Humanos, com especial referência à Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW); as declarações e documentos finais das
conferências mundiais sobre a Mulher do México, Copenhague, Nairóbi e Pequim; a Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos de Viena; a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo e as diferentes convenções
nas quais as mulheres compartilham situações de discriminação com outros coletivos sociais.
4.7 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários não devem utilizar a seu
serviço as forças armadas ou de segurança do Estado, nem contratar milícias privadas. No caso de contratação de
serviços de segurança privada, estes deverão se sujeitar a uma estrita regulação que garanta o correto exercício de suas
funções, as condições do uso da força, a necessária supervisão por parte das autoridades e não podem agir fora do
recinto da empresa para a qual trabalham.
4.8 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem abster-se de todo
ato de colaboração —econômico, financeiro ou de serviços— com outras entidades, instituições ou pessoas que cometam
violações dos direitos humanos.
4.9 As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem observar práticas
leais em matéria de operações comerciais e de publicidade e adotar todas as disposições razoáveis para garantir a
segurança e qualidade dos produtos e serviços que proporcionam, inclusive o respeito do princípio da precaução e as
demais normas internacionais e nacionais que têm o mesmo objetivo. Não devem, ademais, produzir, comercializar nem
fazer propaganda de produtos perigosos o potencialmente perigosos —como os cultivos e sementes transgênicas— para
as pessoas, os animais ou a natureza.
4.10 Nos países onde operam, as ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários
devem executar suas atividades em conformidade com as leis do meio ambiente e em conformidade com os acordos,
princípios, normas, compromissos e objetivos internacionais relativos, respectivamente, ao meio ambiente e aos direitos
humanos, à saúde pública e à segurança, bem como à bioética e ao princípio da precaução. O dumping ambiental requer
uma regulamentação do trabalho mínima de caráter universal, imperativo e coercitivo que o proíba.
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4.11As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários são responsáveis pelos
passivos ambientais —como a contaminação da água, o solo e o ar pela exploração de hidrocarbonetos e mineração,
eliminação de ecossistemas a partir da construção de grandes barragens hidrelétricas, emissão de gases acima do
permitido, etc. — devem indenizar os povos e comunidades afetados pelos danos causados a estes e, se for o caso,
repará-los restaurando o meio ambiente às condições prévias à intervenção.
4.12As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem abster-se de
recorrer ao trabalho forçado e ao trabalho infantil; proporcionando ao mesmo tempo um ambiente de trabalho seguro e
saudável; pagar uma remuneração que garanta uma vida digna aos trabalhadores e trabalhadoras e garantir a liberdade
sindical, o reconhecimento efetivo à negociação coletiva e o direito de greve. O dumping social e salarial requer uma
regulamentação do trabalho mínima de caráter universal, imperativo e coercitivo que o proíba.
4.13As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários que desenvolvam alguns
dos crimes descritos na seção 5 deste Tratado em zonas francas de exportação, zonas econômicas especiais ou
maquiladoras devem ser punidas, pois elas devem respeitar os direitos humanos regulados nas legislações nacionais e
internacionais.
4.14As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar os direitos
dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes regulados no Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial a
Convenção relativa aos trabalhadores migrantes (no. 97), a Convenção relativa às migrações em condições abusivas e
à promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento dos trabalhadores imigrantes (no. 143), a Recomendação
relativa aos trabalhadores migrantes (No. 86) e a Convenção internacional sobre a proteção dos direitos de todos os
trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias.
4.15As empresas transnacionais e suas filiais de fato ou de direito devem pagar preços razoáveis a seus provedores e
subcontratantes, que lhes permitam pagar salários dignos para dispôr de um trabalho decente. As regalias recebidas
pelas ETNs dos licenciatários devem manter-se dentro de níveis razoáveis.
4.16As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar os direitos
territoriais dos povos indígenas e afrodescendentes e a propriedade sobre os recursos naturais e de sua riqueza genética
que se encontrem tanto no subsolo como na superfície, sejam renováveis ou não renováveis.
4.17As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem respeitar a
Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Os direitos de consulta
e participação são irrenunciáveis, indelegáveis e vinculativos para a construção de relações com os Estados, empresas e
outros atores, e de acordo com o Artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, não se poderão invocar
as disposições de Direito Interno como justificativa do incumprimento de um tratado.6
4.18As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários deverão cumprir as
disposições legais e regulamentárias de caráter fiscal de todos os países onde exercem sua atividade, contribuindo para
as finanças públicas dos países de acolhida efetuando o pagamento pontual de suas dívidas fiscais.
4.19As empresas transnacionais devem tornar públicos os países onde realizam suas práticas comerciais e/ou financeiras de
qualquer tipo, a identificação de suas filiais, provedores, subcontratantes e licenciatários e a forma jurídica de participação
em outras empresas ou entidades com personalidade jurídica.
4.20As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem subordinar suas
atividades à políticas e planos em matéria de propriedade intelectual, ciência e tecnologia dos países onde exercem sua
atividade e às normas internacionais sobre direitos humanos.
4.21As ETNs, suas filiais de fato ou de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários devem compensar rápida,
eficaz e adequadamente as pessoas, entidades e comunidades que tenham sido prejudicadas por suas práticas e,
mediante a indenização, a restituição, a retribuição e a reabilitação por todo o dano provocado ou todo bem esgotado, e
no mínimo igual ao dano causado.
6
Artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: “Direito interno e observância de tratados. Uma parte não pode invocar
as disposições do seu direito interno para justificar o incumprimento de um tratado”.
15
5 CRIMES INTERNACIONAIS
As práticas das empresas transnacionais —ou daquelas pessoas que ajam em seu nome—, dos Estados e das Instituições
Internacionais Econômico-Financeiras —como das pessoas físicas responsáveis pelas mesmas— que cometam atos ou ajam
como cúmplices, colaboradores, instigadores, indutores ou encobridores e que violem gravemente os direitos civis, políticos,
sociais, econômicos, culturais e meio ambientais poderão ser tipificadas como crimes internacionais de caráter econômico,
corporativo ou ecológico; o elemento internacional se configura quando a conduta delitiva afeta os interesses da segurança
coletiva da comunidade mundial ou viola bens jurídicos reconhecidos como fundamentais pela comunidade internacional. O
Tribunal Mundial, regulado no Artigo 6.5 do presente Tratado será o encarregado de julgar os mencionados crimes internacionais.
5.1
Crimes econômicos contra a humanidade
As práticas das pessoas físicas ou jurídicas que violem os direitos econômicos, sociais e culturais regulados na Carta das
Nações Unidas, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e demais resoluções e declarações
das Nações Unidas qualificadas como ius cogens, serão tipificadas como crimes econômicos contra a humanidade quando
concorram circunstâncias acordes com o artigo 2 c da Convenção para a Prevenção e Repressão do crime de Genocídio,7 e a
destruição dos grupos políticos e o etnocídio.
5.2
Crimes corporativos internacionais
As práticas das ETNs ou de pessoas que ajam em seu nome que possam qualificar-se como corrupção, suborno, crime
organizado, tráfico de pessoas, malversação de fundos, lavagem de dinheiro, fraude fiscal, tráfico de informação privilegiada,
manipulação de mercado, formação de quadrilha, pequenos acionistas e acionistas públicos, demonstrações financeiras falsas,
entre outros, serão tipificadas como crimes corporativos internacionais.
5.3
Crimes ecológicos internacionais
Os conflitos ecológicos distributivos, gerados pelas práticas de pessoas físicas ou jurídicas, incluem a concentração de terra
e territórios, a privatização e contaminação de fontes de água e a destruição do ciclo hidrológico integral, o arrasamento de
selvas e biodiversidade, a biopirataria, a mudança climática, a contaminação massiva dos mares ou da atmosfera, e o ecocídio,
entre outros. A devastação natural se configura a partir dos impactos, a contaminação e o avassalamento dos territórios. Isto
tem relação direta com os direitos da natureza e ao mesmo tempo com os direitos humanos e a possibilidade de gozar de um
ambiente saudável. Esta última premissa é fundamental para a garantia dos demais direitos consagrados nas normas nacionais
e internacionais.
6
INSTÂNCIAS
6.1 Os Estados devem garantir o cumprimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em seu âmbito internacional
e a tutela judicial efetiva das pessoas ante as ETNs. Devem, também, garantir —com apoio político e econômico— o
funcionamento imparcial, rigoroso e eficaz dos tribunais de justiça nacionais e regionais.
6.2 Os Estados devem aprovar normas internas que regulem a responsabilidade extraterritorial pelas práticas das empresas
transnacionais, suas filiais de fato e de direito e seus provedores, subcontratantes e licenciatários, e que permitam que
as comunidades afetadas por tais práticas efetuem demandas nos tribunais do Estado matriz.
6.3 No marco da jurisdição universal, os Estados devem executar ações e receber denúncias relacionadas aos delitos de
genocídio, crimes contra a humanidade e outros regulados no Estatuto de Roma, e cometidos por pessoas físicas e
jurídicas, em seus territórios ou extraterritorialmente.
6.4 Deve-se criar um Centro Público para o controle de Empresas Transnacionais, encarregado de analisar, investigar e
inspecionar as práticas das empresas transnacionais. O Centro será gerido com a participação de Governos, movimentos
sociais, sindicatos e povos autóctones. Sua função primordial será investigar as denúncias apresentadas pelos coletivos
e organizações afetadas pelas práticas das transnacionais. Se as denúncias apresentarem indícios de veracidade,
se produzirá a inversão do ônus da prova, ou seja, as empresas transnacionais estarão obrigadas a provar que não
cometeram violações de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e meio ambientais.
7
16
Artigo 2c da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio: “Na presente Convenção, entende-se por genocídio os
atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como:
c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”.
6.5 Estabelece-se um Tribunal Mundial sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, que complemente os
mecanismos universais, regionais e nacionais, garanta que as pessoas e comunidades afetadas tenham acesso a uma
instância judicial internacional independente para a obtenção de justiça por violações dos direitos civis, políticos, sociais,
econômicos, culturais e meio ambientais, e seja a encarregada de aceitar, investigar e julgar as denúncias interpostas
contra as empresas transnacionais, Estados e Instituições Internacionais Econômico-Financeiras por violações de direitos
humanos e pela responsabilidade civil e penal de crimes econômicos, corporativos e ecológicos internacionais.8
6.6 O Tribunal Mundial sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos dispõe de uma organização e funcionamento
autônomo e totalmente independente em relação aos órgãos executivos das Nações Unidas e dos respectivos Estados.
6.7 As ETNs, os Estados e as Instituições Internacionais Econômico-Financeiras têm responsabilidade civil e criminal pelos
crimes e infrações cometidas por elas mesmas —ou por cumplicidade, colaboração, instigação, indução e encobrimento—,
assim como por seus diretores, gerentes e os integrantes dos órgãos —unipessoais ou colegiados— que tomam as
decisões. Seguindo o princípio da dupla imputação, tanto a entidade legal quanto os indivíduos que realizaram a ação
incriminadora podem ser processados pelas violações pelas quais sejam responsáveis. As sanções contra as pessoas
jurídicas podem ser, entre outras, a multa, a publicação da decisão com condenação, o confisco do instrumento do crime
ou de seu produto e a dissolução.
6.8 As sentenças e sanções do Tribunal Mundial sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos serão executivas e de
cumprimento obrigatório.9
6.9 Os Comitês sobre os Pactos de Direitos Humanos e outras jurisdições quase judiciais e internacionais devem aceitar
em seus mandados a possibilidade de receber queixas, de forma direta, contra corporações transnacionais e Instituições
Internacionais Econômico-Financeiras, e remetê-las para seu tratamento ao Tribunal Mundial sobre Empresas.
6.10 Os conflitos entre empresas transnacionais e Estados não podem ser objeto de recurso em painéis arbitrais. Os tribunais
nacionais são os competentes para resolver os mencionados conflitos. O resto das jurisdições regionais ou internacionais,
excetuando os mencionados painéis arbitrais de comércio e investimentos, agirá de maneira complementária ante o
esgotamento de recursos internos do Estado atuante em cada caso, ou ante uma excessiva demora no julgamento do
mesmo.
6.11 As relações comerciais entre Estado e povos devem ajustar-se, pelo menos, à soberania dos mesmos, à igualdade, à
solidariedade, à reciprocidade e à complementariedade. Em todo o caso, devem satisfazer as necessidades dos povos.
Os conflitos comerciais entre Estados devem ser resolvidos por via diplomática ou com a mediação de terceiros Estados
escolhidos pelas partes.
7 DISPOSIÇÃO FINAL
Esta Dimensão Jurídica do Tratado Internacional dos Povos é um tratado de tratados ou tratado base. Muitas de suas disposições
requerem um desenvolvimento normativo para sua plena consolidação: este mandado coexiste com obrigações e direitos de
eficácia imediata.
O desenvolvimento normativo do presente tratado não fica exclusivamente nas mãos dos Estados ou instituições internacionais.
As organizações, movimentos sociais e comunidades afetadas são atores e sujeitos dos processos vinculados ao desenvolvimento
do Tratado Internacional dos Povos.
A enumeração dos tipos penais e crimes internacionais especificados, assim como os direitos reconhecidos no presente
texto, não são de caráter taxativo, e sim simplesmente enumerativo e exemplificativo, assim implicitamente se reconhecem e
incorporam os demais direitos e crimes existentes.
8
O Tribunal Internacional do Direito do Mar e as propostas apresentadas por solicitação da Iniciativa Suíça —projeto dirigido por Mary
Robinson e impulsionado pelos Governos suíço, norueguês e austríaco por ocasião do 60º aniversário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos— e elaboradas pelo relator das Nações Unidas para os direitos humanos, Martin Scheinin, e o relator para a tortura,
Manfred Nowak, são marcos de referência para o funcionamento do Tribunal Mundial sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos.
9
As sentenças e sanções executivas de cumprimento obrigatório se estabelecem tomando o modelo do Sistema de Solução de
Controvérsias (SSD) da OMC, que é considerado o mecanismo jurisdicional internacional de maior efetividade que existe. A possibilidade
de que suas sanções sejam coercitivas o transforma em uma verdadeira Corte Internacional em defesa dos direitos das corporações.
17
E DIMENSÃO ALTERNATIVAS
INTRODUÇÃO
Orientação e alcance
O Tratado Internacional dos Povos se entende como um marco e um processo em direção à concreção de obrigações e
instrumentos jurídicos vinculativos sobre os direitos humanos com o objetivo de acabar com a impunidade das empresas
transnacionais. O marco regulatório alternativo deve completar-se necessariamente com o fortalecimento das comunidades e
movimentos sociais para reivindicar a soberania dos povos e retomar o espaço público agora ocupado pelos poderes corporativos,
tal e qual se afirmava na justificativa do Tratado. É, portanto, imprescindível refletir a dimensão das alternativas, as medidas
de transição e as resistências que estão se forjando sobre o terreno ante a dominação das transnacionais em quase todas as
esferas da vida e sociedades.
A dimensão abordada pelas alternativas e pelas resistências no Tratado dos Povos é complementária à Dimensão Jurídica
e foi construída também a partir das experiências acumuladas e sustentadas por numerosas lutas contra as corporações
transnacionais em muitas partes do mundo, especialmente no Sul Global. Diante da lógica capitalista, as alternativas e resistências
procuram construir novos espaços e práticas que não sejam regidas pelo lucro máximo, e sim pela cooperação e a solidariedade.
Definitivamente, se afirmam como diferentes opções que interpelam o paradigma neoliberal corporativo atual e mostram sua
incompatibilidade com a justiça social e os processos que possibilitam a vida no planeta.
O Tratado Internacional dos Povos em seu conjunto foi construído como uma alternativa ao regime do poder corporativo
hegemônico nesta era. Parte do compromisso com uma mudança fundamental do sistema econômico, político, jurídico, social e
cultural, pois somente desta maneira será possível avançar em direção às profundas transformações necessárias para situar os
direitos humanos na cúspide normativa e deslocar as transnacionais da centralidade do sistema.
Assim, os movimentos sociais, camponeses, sindicatos, mulheres, indígenas, ambientalistas, migrantes, setores críticos da
academia, ativistas e comunidades afetadas na resistência às transnacionais articulam suas alternativas em diversos âmbitos.
Exigem e constroem o mundo que os zapatistas chamam de “um mundo onde cabem muitos mundos”
A construção de alternativas representa um desafio e é levada adiante em um ambiente profundamente hostil e de múltiplas
crises e conquistas do poder corporativo. As multinacionais cooptaram as decisões democráticas e estão debilitando gravemente
a soberania. Ao mesmo tempo, através do poder político que possuem, têm à sua disposição a capacidade legislativa e executiva
dos Governos (muitas vezes cúmplices) para priorizar o lucro e os privilégios corporativos sobre suas obrigações de respeito
dos direitos humanos.
Apesar deste contexto, em muitas esferas, as alternativas locais ―muitas em pleno desenvolvimento― se entrelaçam em nível
regional e global, enquanto se efetuam intercâmbios e uma fertilização cruzada entre vários movimentos e redes. Não obstante,
urge intensificar estas alianças de ação transformadora e alcançar convergências significativas de contrapoder ao atual domínio
das transnacionais.
A Dimensão Alternativas apresenta uma pequena amostra de exemplos sobre os princípios e valores que debem reger os
modelos alternativos, projetando também propostas de transição. Práticas e reflexões que se construíram a partir da intensa
confrontação com o poder corporativo em áreas como a democracia e a cooptação empresarial, os alimentos, a água, a energia,
a terra, os territórios e os bens comuns, o trabalho, o investimento e o comércio, e a economia e suas finanças. Trata-se somente
do início de um trabalho que pretende completar-se no futuro, coletando uma pluralidade de enfoques que, em alguns casos, pode
refletir matizes diferenciados a respeito de questões como o papel do Estado, por exemplo. Em alguns casos, se apresentam tal
e qual foram formuladas pelos movimentos que participaram na elaboração do Tratado; em outros, como experiências e práticas
de lutas concretas e alternativas.
A estrutura da Dimensão Alternativas se divide em três grandes blocos. O primeiro deles expõe os princípios e valores que
devem reger uma democracia radical e participativa, e apresenta reflexões e propostas para minar o poder das corporações e
ganhar o espaço público a serviço das maiorias sociais e da natureza. O segundo bloco aborda experiências de resistências,
alternativas e medidas transitoriais para a proteção e priorização dos direitos coletivos e bens comuns. Por último, no terceiro
bloco são projetados paradigmas econômicos alternativos como, entre outros, a economia para a vida, a economia solidária e a
economia feminista.
18
Em qualquer caso, se prevê que durante o processo de consulta do Tratado dos Povos se documentem muitas outras experiências
existentes em outros âmbitos. Tanto na Dimensão Jurídica como na de alternativas e resistências, o processo do Tratado é um
convite aberto a contribuir e participar das lutas que buscam reivindicar a soberania dos povos, desmantelar o poder das
empresas transnacionais, acabar com a impunidade e criar as condições que garantam os bens comuns da humanidade.
Tratado dos Povos – Dimensão Alternativas
1 Reivindicando a democracia e ressignificando o
interesse público: princípios e propostas para a transição
1.1 Colocando fim à cooptação empresarial da tomada de decisões políticas
19
1.2 Afirmando a soberania cidadã e reivindicando o Estado
21
1.3 Repensando o comércio e o investimento transnacional
24
1.3.1 Construindo um marco jurídico alternativo aos tratados internacionais de investimento
24
1.3.2 Para uma nova perspectiva ante o comércio: Mandado de Comércio Alternativo
26
1.4 Desafiando o poder financeiro: auditorias cidadãs e oficiais da dívida
27
1.5 Recuperando os serviços públicos e as empresas estatais para o bem comum
29
1.6 Democratizando o trabalho e a produção: PLADA, Plataforma de Desenvolvimento das Américas 32
1.1 Colocando fim à cooptação empresarial da tomada de decisões
políticas *
A influência política das grandes empresas, tanto no plano nacional como nas instituições e foros de negociação internacionais,
alcançou níveis que debilitam profundamente o processo democrático. Este é o efeito combinado dos enormes investimentos
que realizam as grandes empresas multinacionais para cooptar as decisões políticas e dos privilégios no acesso e a influência
que lhes garantem os Governos. Nos Estados Unidos e em muitos outros países, os resultados eleitorais cada vez mais
se veem influenciados pelas elites corporativas que destinam grandes somas a doações para financiar e promover as
campanhas.(1) Os astronômicos investimentos das grandes empresas em lobby implicam que estas superem com sobras e
marginem outros interesses no processo político. Os governos proporcionam às grandes empresas um acesso privilegiado
aos processos de tomada de decisões, por exemplo permitindo que os grupos que com os quais se assessoram estejam
dominados por lobbies corporativos. A porta giratória cada vez dá voltas mais rápidas em muitos países, o que permite que
os altos executivos de transnacionais assumam cargos públicos com elevada responsabilidade e vice-versa, governantes que
depois de seus mandatos passam a ser assessores e conselheiros de multinacionais. São priorizados assim os interesses
corporativos e lhes são concedidos mais poder. Os parlamentares que desempenham uma atividade complementária no
conselho de diretores de uma empresa são outro exemplo do quão perigoso resulta o desaparecimento dos limites que
separam a política dos negócios.(2)
Movimentos sociais do mundo todo estão reivindicando que se acabe com a cooptação empresarial mediante uma série
de medidas que ajudem a frear a excessiva influência do lobby nas grandes empresas. Normas estritas em matéria de
transparência, por exemplo, facilitam o escrutínio público, ajudam a desmascarar as influências ilegítimas, estimulam o debate
público e fortalecem as dinâmicas que buscam a mudança. Normas éticas ambiciosas podem ajudar a fechar os canais da
influência corporativa. A seguir, apresentamos um resumo com alguns exemplos dessas medidas.
Eliminar o financiamento corporativo das eleições políticas: deveriam ser impostos limites rigorosos ao papel dos fundos
privados nas eleições, com o objetivo de evitar que as grandes corporações e as elites adinheiradas controlem os resultados
eleitorais e “comprem” os cargos elegidos (esperando favores em troca das doações feitas). A alternativa são fundos públicos
para as campanhas eleitorais.
Transparência obrigatória nas atividades de lobby: são necessários sistemas de transparência do lobby obrigatórios e de
qualidade que permitam que a cidadania veja quem está influindo na tomada de decisões, sobre quais temas, em nome de
quem e com quais motivos. Todos os atores que se dedicam ao lobby (incluídos os escritórios de advocacia e os grupos de
estudo) deveriam registrar-se e declarar suas atividades.
19
Transparência proativa sobre as atividades de lobby: além dos registros de transparência (através dos quais os grupos
de pressão informam sobre suas atividades), os Governos deveriam informar de maneira proativa sobre quem lhes está
prestando a assessoria. Isto implicaria, por exemplo, que se publiquem (na internet) as listas de todas as reuniões com grupos
de pressão. No marco das leis de liberdade da informação e do direito a saber da cidadania, os Governos deveriam garantir um
amplo acesso público a todos seus documentos, como as atas das reuniões com os grupos de pressão, entre outros.
Salvaguardas contra a cooptação empresarial de grupos assessores: os Governos devem oferecer plena transparência no que
diz respeito às pessoas que formam os grupos assessores e adotar medidas de salvaguarda que evitem a cooptação destes
organismos.
Fechar a porta giratória entre os Governos e os grupos de pressão das grandes empresas: deve-se estabelecer limites claros e
efetivos para evitar os conflitos de interesses quando ministros e ministras e outros cargos governamentais mudem de trabalho,
entre outras coisas quando estes possam implicar atividades de lobby. Deve-se estabelecer um período de incompatibilidade
de ao menos três anos para ministros e ministras e outros altos cargos públicos (por exemplo, pessoas com responsabilidades
na formulação de políticas) que passem da administração pública a grandes empresas com funções que pressuponham
possíveis conflitos de interesses. Do mesmo modo, são necessárias estritas ‘normas inversas da porta giratória’, para evitar
que se designem para ocupar cargos públicos pessoas que poderiam ter conflitos de interesses.
Normas eficazes sobre conflitos de interesses para os cargos públicos: além de regras mais estritas sobre o trabalho depois
da função pública, os Governos necessitam de normas rigorosas para evitar outra série de possíveis conflitos de interesses,
sobretudo no que diz respeito aos obséquios e às atenções que oferecem os grupos de pressão.
Supervisão e aplicação independentes: para assegurar que a aplicação das normas seja crível, necessita-se de um
assessoramento independente, que pode ser desempenhado, por exemplo, por um comitê de ética independente. Estes
comitês deveriam gozar de competências para investigar e divulgar publicamente qualquer possível conflito de interesses.
Estritas normas de transparência e ética para os Parlamentos com o objetivo de evitar conflitos de interesses: os Parlamentos
necessitam de estritas normas de transparência e ética, por exemplo para garantir que os deputados e as deputadas não
recebam dinheiro, obséquios nem outras atenções especiais das empresas e setores que estão regulando. Os deputados e as
deputadas não deveriam ter nenhum interesse financeiro nos setores afetados pela legislação em que trabalham.
Normas éticas para os grupos de pressão: são necessárias normas estritas para os grupos de pressão, com o objetivo de evitar
atividades pouco éticas, com supervisão externa e sanções fiscais. Estas normas deveriam impedir que os grupos de pressão
exerçam uma influência indevida oferecendo dinheiro, obséquios ou outras atenções especiais não apropriadas às pessoas
responsáveis pela tomada de decisões.
Proteger os processos democráticos das indústrias nocivas: a Convenção Marco da Organização Mundial de Saúde para o
Controle do Tabaco (CMCT), que entrou em vigor em 2005, oferece um importante precedente para limitar a influência
política de indústrias nocivas. Como resposta a várias décadas de lobby enganoso por parte da indústria do tabaco contra
toda a regulação de seu letal produto, a CMCT inclui estritos princípios para limitar a interação entre responsáveis políticos e a
indústria tabaqueira.(3) As diretrizes que acompanham a Convenção da OMS, e mais em concreto, as relativas à aplicação do
artigo 5.3, especificam que as Partes “deveriam interagir com a indústria tabaqueira unicamente quando e na medida em que
seja estritamente necessária para tornar possível uma regulação eficaz da indústria tabaqueira e dos produtos de tabaco”. As
mesmas diretrizes também detalham que “quando seja necessário interagir com a indústria tabaqueira, as Partes deveriam
assegurar-se de que essas interações se realizem de modo transparente”. Isto define um cenário onde só há consulta com
a indústria tabaqueira em audiências formais (quando é inevitável se está sendo preparado um novo pacote legislativo, por
exemplo) que se tornam públicas em sua totalidade (atas e outros documentos). Os Governos deveriam ser lembrados da sua
obrigação de fazer que estas normas sejam plenamente cumpridas. (4)
Além disso, a lógica em que se baseiam as normas da CMCT para regular os contatos com os grupos de pressão da indústria do
tabaco seriam igualmente aplicáveis a muitos outros setores. A indústria dos combustíveis fósseis, por exemplo, tem um longo
histórico de lobby e propaganda enganosa para adiar, diluir ou bloquear leis que são necessárias para frear uma catastrófica
mudança climática. Suas iniciativas, entre as quais o uso de grupos secretos e outras atividades de lobby fraudulento,
provaram ser um grave obstáculo no momento de alcançar políticas climáticas ambiciosas e muito necessárias. Existe
um conflito fundamental e irreconciliável entre o interesse comercial destas indústrias em seguir escavando e bombeando
continuamente combustíveis fósseis e a necessidade de manter estes combustíveis no subsolo para estabilizar o clima. Por
esse motivo, existem sólidas razões para adotar um novo enfoque que limite de forma drástica o papel do lobby da indústria
dos combustíveis fósseis nas decisões nacionais e globais que afetam as políticas em matéria de mudança climática.(5)
20
Democracia cidadã ante a cooptação empresarial: além do tipo de normas que acabamos de esboçar, são necessárias mudanças
muito mais profundas nas práticas de tomada de decisões para evitar o acesso privilegiado e a cooptação normativa por parte
dos grupos de pressão das grandes empresas. Reverter a indevida influência corporativa exige uma maior democratização
que empodere a participação de grupos cidadãos na tomada de decisões.
* Observatório Europeu de Corporações (CEO)
Notas:
(1) Public Citizen é um dos muitos grupos norte-americanos que fazem campanha para que se imponham limites estritos ao dinheiro privado
na política: http://www.citizen.org
(2) Para consultar exemplos destes problemas em Bruxelas, a capital da UE, ver o site do Corporate Europe Observatory (CEO): http://
www.corporateeurope.org ou o livro Bursting the Brussels bubble: the battle to expose corporate lobbying at the heart of the EU (2010),
publicado pela coalizão ALTER-EU: http://www.alter-eu.org/sites/default/files/documents/bursting-the-brussels-bubble.pdf
(3) Ver, por exemplo, este folheto informativo da Corporate Accountability International: http://www.stopcorporateabuse.org/resource/
article-53-flyer-protecting-against-tobacco-industry-interference
(4) A Comissão Europeia, por exemplo, não aplica devidamente estas normas da ONU: http://corporateeurope.org/power-lobbies/2014/07/
ombudsman-investigates-eu-commissions-failure-implement-un-tobacco-lobby-rules
(5) Ver, por exemplo,: Satu Hassi (2013) ‘Stop Fossil Fuels Setting the Climate Agenda - Lessons from international tobacco law: protecting
public policy from vested interests’, dicimebre: http://www.satuhassi.net/wp-content/uploads/2013/11/Stop-Fossil-Fuels-Setting-theClimate-Agenda_Report_Dec2013_FINAL.pdf
1.2 Afirmando a soberania cidadã e reivindicando o Estado *
Recuperar o Estado da cooptação empresarial é uma questão que está fundamentalmente relacionada com a democracia, mas,
ao mesmo tempo, também deveria estar vinculada à renovação urgente ou à radicalização dessa democracia. Pelo simples
fato de que a cooptação empresarial pelas multinacionais é um sintoma do fracasso da democracia tal qual a conhecemos.
A democracia (que literalmente significa “o governo do povo”; o ‘kratos’ exercidos pelo ‘demos’) deveria ter idealmente a
força institucional para proteger-se a si mesma das ameaças do domínio oligárquico ou autoritário. E quando não for assim,
devemos nos perguntar o que falhou e o que se pode fazer para reforçar a democracia.
Uma democracia frágil ante o auge do poder empresarial
Atualmente, mais países do que nunca contam com sistemas de governo formalmente democráticos. Entretanto, ao mesmo
tempo, vive-se uma crescente desilusão com os limites da democracia representativa. A democracia de hoje em dia se reduziu
ao procedimento formal de votar e aos rituais de assembleias legislativas cada vez mais despojadas de poder. As pessoas que
votam enfrentam uma limitada escolha entre elites políticas. Têm pouco acesso à informação, poucas oportunidades para a
deliberação e a reflexão, e um poder insignificante sobre as decisões que determinam suas vidas.
Este esvaziamento da democracia é fruto de muitos processos. O mais evidente é a globalização impulsada pelas grandes
empresas e a perda de poder dos Estados-nação e de outras instâncias de governo mais locais.
O processo teve uma dupla vertente. Por um lado, os Governos foram perdendo cada vez mais a capacidade, especialmente
para arrecadar impostos e, portanto, para financiar a prestação de bens públicos e garantir uma esfera pública próspera e bem
avaliada. O Escritório Nacional de Auditoria do Reino Unido calculou em 2007 que um terço das 700 maiores empresas do
país não pagavam os impostos que lhes correspondiam através da manipulação dos preços de transferências (dois terços das
operações transfronteiriças em escala mundial estão entre as companhias transnacionais) e o uso de paraísos fiscais. Mais da
metade de todos os ativos bancários e um terço do investimento estrangeiro direto das multinacionais são canalizados através
de territórios com uma baixa tributação.
Por outro lado, se produziu um incremento da influência que exercem as grandes empresas sobre os Governos, participando
destes de forma direta ou indireta e, entre outras coisas, fazendo que os partidos políticos dependam do financiamento
das corporações e em troca favoreçam, mais ou menos explicitamente, seus interesses. Esta realidade está extensamente
documentada no Reino Unido e nos Estados Unidos. Trata-se de um fenômeno que também chama a atenção e que talvez
21
tenha especial relevância nas instituições relativamente ‘modernas’ da União Europeia. Segundo um estudo publicado pelo
Corporate Europe Observatory (CEO), as grandes empresas dominam todos os grupos de especialistas que assessoram a
Comissão Europeia. O estudo demonstra que na Direção-Geral Fiscalidade e União Aduaneira (DG TAXUD), quase 80% dos
integrantes representam as pequenas e médias empresas, e apenas 1%, os sindicatos. No Secretariado-Geral da Comissão
Europeia (SG), a porcentagem de interesses corporativos alcança 64%, e na Direção-Geral Empresa e Indústria (DG ENTR),
62%. Em todos os grupos criados recentemente pela Comissão, há mais representantes de grandes empresas que todas as
demais partes juntas. O relatório também destaca as inquietantes consequências que podem ter os grupos de especialistas
dominados por grandes corporações através de vários casos concretos, como o fato de que os sonegadores de impostos se
dediquem a assessorar sobre a reforma fiscal, que os gigantes das telecomunicações controlem o debate sobre a proteção
de dados ou que um círculo fechado de ‘especialistas’ favoráveis às grandes empresas monopolizem as recomendações de
como abordar a crise do euro.
Os limites autoimpostos da social-democracia
Mas estes fatores econômicos objetivos não explicam tudo. Os atores políticos nacionais poderiam ter respondido ao poder
global das grandes empresas de outro modo. Por esse motivo, meu raciocínio também se centra nas mentalidades políticas
dos partidos governantes da social-democracia do pós-guerra para explicar seu beneplácito generalizado ante o mercado
corporativo e a primazia dos acionistas.
Neste contexto, podem se destacar dois aspectos do pensamento social-democrata. Em primeiro lugar, estaria sua presunção
de que a produção de riqueza deve ser deixada nas mãos do capital privado, sobre cujos lucros se cobram impostos para
financiar o Estado de bem-estar. Isto implicou que os partidos social-democratas não fizessem o suficiente para procurar seus
próprios aliados na produção de riqueza e no controle das grandes empresas.
Em segundo lugar, tal e como explica Robert Michels, na cultura dos partidos social-democratas desde sua origem, o socialismo
“não significa tudo pelo povo, mas tudo para o povo”. Uma leitura míope do que representa o conhecimento levou as cúpulas
desses partidos a subestimar os conhecimentos e as capacidades baseadas na experiência de seus partidários. Assim, deram
as costas a uma força potencialmente significativa para apoiar tanto o conteúdo como a forma da democracia: a capacidade
democratizadora do movimento trabalhista, de todos os trabalhadores e trabalhadoras, para governar no nível do lugar de
trabalho. E ainda, eram aos trabalhadores e trabalhadoras, organizados e não organizados, a quem deviam seu poder eleitoral
estes partidos políticos.
Esta ausência de uma base de produção e gestão independente ajuda a explicar por que as instituições da democracia formal
estavam tão vazias e frágeis a ponto de serem aniquiladas pela força arrasadora do poder das grandes empresas.
Como a democracia pode estar à altura do poder empresarial
Diante deste deslocamento da democracia pelo domínio da oligarquia corporativa, a radicalização da democracia implica
uma volta às raízes históricas da democracia na capacidade popular. Exige, portanto, organizações através das quais essa
capacidade se torne efetiva e adquira a força suficiente para formar a base do governo, sem bloqueios e intermediações que
debilitem sua expressão e eficácia. A democracia radical não pode ser concebida a partir de princípios teóricos, mas sim como
o resultado de um processo constante de luta e experimentação no âmbito do controle popular. Deste processo histórico
surgem três condições necessárias da democracia radical:
22
•
Participação popular na aplicação das decisões legislativas, através da participação cidadã no planejamento, nos
orçamentos e no controle administrativo, com o objetivo de superar a incapacidade da democracia representativa para
controlar o aparelho do Estado e todos os interesses privados entranhados neste. Um exemplo deste ponto seriam as
diversas iniciativas de orçamentos participativos em todo o mundo, desde o Brasil até a Europa, passando por Filipinas.
•
Democracia laboral na gestão interna dos serviços e das empresas públicas de modo que os conhecimentos e as
capacidades dos trabalhadores e trabalhadoras do setor público contribuam para maximizar o bem público. Exemplos
disso surgiram de casos de ‘resistência transformadora’ à privatização, nos quais trabalhadores e tralhadoras não só
defenderam o setor público, como também se esforçaram para melhorá-lo. A defesa da água como um bem público é
paradigmática deste processo de democratização do setor público.
•
A criação de uma base alternativa e ‘favorável à democracia’ para a produção e a criação de riqueza, de modo que os
Governos não estejam vulneráveis à cooptação e à chantagem das corporações privadas. Entre os exemplos deste
ponto estaria o desenvolvimento estratégico de empresas públicas como meios para o desenvolvimento econômico e
o cumprimento de objetivos sociais. Neste sentido, seria exemplar a experiência do Uruguai. Outro enfoque, que não é
necessariamente incompatível, é o desenvolvimento da economia solidária através de redes de empresas cooperativas
e sociais, às vezes vinculadas a uma moeda alternativa, e o apoio de um município democrático.
Em conclusão, não é que a radicalização da democracia seja um estado final que pode ser alcançado seguindo um plano. Mas
sim se trata de um processo de transformação, já em andamento, que parte de um contexto global do qual se havia excluído a
possibilidade de alternativas, para tratar de uma situação na qual a ordem mundial dominante se vê constantemente disputada
entre as alternativas fundamentadas na prática imediata e as visões de futuro. Esta ‘resistência transformadora’ tem toda a
riqueza de se derivar da experiência, colocando à prova diferentes fontes de poder que podem alcançar a mudança, em vez
de buscar ‘a forma verdadeira’.
A radicalização da democracia também implica interagir com a democracia representativa, e não ignorá-la, como se não
existisse. Entretanto não depende dela. Baseia os modelos representativos em formas de democracia participativa e direta,
tanto no nível dos governos como do lugar de trabalho, frequentemente formados através de lutas relacionadas às necessidades
sociais e econômicas urgentes.
Por exemplo, em junho de 2014, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas concordou em designar um grupo
de trabalho intergovernamental para desenvolver um tratado vinculante que impusesse obrigações em matéria de direitos
humanos (os quais incluem direitos trabalhistas) às empresas transnacionais. Este foi o ápice de um processo de colaboração
entre o Governo equatoriano e uma aliança transnacional de mais de 500 organizações da sociedade civil e também outros
Governos no marco da campanha global “Vamos desmantelar o poder corporativo”. É uma vitória modesta e sutil, cuja
implementação não pode ser deixada exclusivamente nas mãos do Conselho de Direitos Humanos. A democracia radical
floresce com estas conquistas, que se dão tanto dentro das próprias formas representativas da democracia como contra
estas. Ao mesmo tempo, fortalece as instituições participativas e produtivas autônomas através das quais a capacidade de
autogoverno continua se desenvolvendo para deslocar ainda mais o equilíbrio de poder, distanciando-o das grandes empresas,
e criar espaços para implementar alternativas. É somente baseando-nos desta radicalização da democracia que podemos
recuperar o Estado da cooptação empresarial.
* Reflexões sobre experiências de democracia participativa
Referências:
A radical campanha independentista escocesa e como transformou o “sim” do referendo em uma luta “por outra Escócia”. Ver: http://
reidfoundation.org/common-weal/ e também Adam Ramsey, 42 Reasons to Support Scottish Independence (e-book): http://commonwealthpublishing.com/?p=255
As lutas em torno da democracia participativa no Brasil. Ver: Gianpaolo Baiocchi, Einar Braathen, Ana Claudia Teixeira (2012) ‘Transformation
Institutionalized? Making Sense of Participatory Democracy in the Lula Era’, en Stokke C. y O. Thornquist (eds.) Democratization in the Global
South: The Importance of Transformative Politics, Londres: Palgrave McMillan.
As lutas que combatem a privatização com alternativas democráticas no mundo todo. Ver: Hilary Wainwright (2014) La tragedia de lo privado,
el potencial de lo público, ISP y TNI: http://www.tni.org/es/briefing/la-tragedia-de-lo-privado-el-potencial-de-lo-publico
Para o caso do Reino Unido, ver: http://weownit.org.uk/, uma voz para os que desejam que os serviços públicos britânicos estejam a
serviço das pessoas e não do lucro.
23
1.3
Repensando o comércio e o investimento transnacional
1.3.1 Construindo um marco jurídico alternativo aos tratados internacionais
de investimento *
Enquanto que, por um lado, o investimento é promovido cada vez mais como uma ferramenta de desenvolvimento, ao mesmo
tempo há um crescente reconhecimento internacional de que as atividades empresariais, em particular aquelas dos poderosos
investidores transnacionais, podem ter sérios efeitos negativos, e de longo alcance, nos direitos humanos, no meio ambiente e
no desenvolvimento equitativo, sustentável e inclusivo. Inclusive em muitas ocasiões não geram nem sequer um crescimento
econômico e emprego decente significativo.
Apesar disto, os regimes atuais para a proteção dos investimentos internacionais continuam se expandindo, garantindo direitos
extraordinários, abusivos e proteções de longo alcance para os investidores. Sem se submeterem por outro lado a nenhuma
obrigação vinculante em relação aos direitos humanos, os direitos ambientais e o desenvolvimento socialmente sustentável
e inclusivo.
Os tratados bilaterais (TBI) e os capítulos de investimentos nos tratados de livre comércio e a Organização Mundial do
Comércio (OMC) são parte de uma arquitetura de impunidade que outorga às transnacionais poderes sem precedentes para
disputar a prerrogativa dos Governos de atuar como garantidor dos direitos humanos e garantir que o investimento estrangeiro
direto tenha efeitos positivos dentro de um projeto nacional de desenvolvimento. Os TBIs permitem às corporações evadir
leis, constituições, e cortes locais e nacionais; também avaliza que elas processem Estados soberanos pedindo milhões de
dólares ante tribunais privados associados ao Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI)
do Banco Mundial, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (CNUDMI ou UNCITRAL na sigla em
inglês) e a Câmara de Comércio Internacional (ICC), entre outros.
Estes acordos internacionais fazem parte de um regime jurídico que se desenvolveu paralelamente para toda a comunidade
internacional e que envolve todos e todas (obrigações erga omnes), como é o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este
paralelismo evitou todo o diálogo sobre normas vinculativas a nível internacional, o que serve ao interesse das corporações,
enquanto podem processar os Estados ignorando as jurisdições nacionais mediante as cláusulas dos TBIs, que são
interpretadas como estritas leis aplicáveis. Tudo isso sem que sejam consideradas nem as condições de contratação das
multinacionais, nem a legislação nacional, nem as constituições políticas dos Estados, nem o resto do Direito Internacional
vigente, que sim impõem obrigações aos Estados.
Princípios para um marco alternativo de investimentos
• Os Estados-nação, sem a ameaça de serem processados, devem recuperar a capacidade de implementar legislações
e políticas públicas para que tais investimentos desempenhem um papel positivo dentro da estratégia de longo prazo
em um projeto nacional consensualizado com sua população e garantir o pleno respeito de todos os direitos humanos.
Para isso, é necessário modificar profundamente o regime legal internacional que atualmente representa uma camisa
de força para a atuação dos Estados. A Dimensão Jurídica do Tratado dos Povos responde, entre outros, à necessidade
de romper esta camisa de força.
• Ao mesmo tempo que os Estados recuperam sua capacidade regulatória, também é necessário criar mecanismos de
controle por parte dos povos em relação a seus próprios Estados mediante formas de democracia direta, participativa
e proativa, com mecanismos de revogação de mandatos e que representem as demandas sociais, favorecendo assim o
exercício das soberanias populares de forma democrática. O problema não é somente legislativo ou institucional: sem a
participação real da sociedade, não se pode garantir nada.
• Não basta quebrar ou renegociar os tratados internacionais em matéria de investimento e implementar regulações
nacionais. Atualmente há uma concorrência entre os países para ver quem dá mais concessões e privilégios aos
investidores externos. São necessários um quadro legislativo e regulações internacionais e/ou regionais que evitem essa
concorrência desleal e que logo se concretizem e se especifiquem na legislação nacional.
24
Algumas alternativas concretas
Propõe-se uma lista de propostas concretas para alcançar uma supremacia dos direitos humanos e o cuidado da natureza
sobre os direitos dos investidores, e para estabelecer as obrigações das empresas transnacionais com os direitos humanos:
• É necessário superar a assimetria atual entre os direitos dos investidores e os direitos humanos.
• Os investidores devem prestar contas de seus atos corporativos, tanto em seu país de origem como nos países onde
realizam seus investimentos.
• As propostas de investimento transnacional devem ser precedidas por uma avaliação com participação social e completa
de impacto socioambiental e nos direitos humanos.
Propostas para criar sistemas alternativos de solução de disputas
• É imperativo que se anulem as cláusulas atuais de solução de disputas de investidor estrangeiro-Estado que permitem
que os primeiros impugnem e processem os Estados receptores em arbitragens internacionais por qualquer ação
regulatória governamental que compreendam como lesiva de seus interesses particulares.
• Os novos mecanismos de solução de litígios não só devem garantir os direitos das empresas transnacionais, mas
sobretudo os direitos das comunidades, da cidadania e dos Estados.
• As disputas apresentadas pelos investidores devem dirimir-se ante tribunais nacionais e segundo as legislações do país
receptor.
• É necessário garantir que qualquer aparição ante um tribunal internacional/regional público garanta o acesso e a
participação equitativa às comunidades afetadas, que os procedimentos sejam conduzidos abertamente ao público, e
que não outorguem direitos mais fortes ou amplos aos investidores estrangeiros.
• No caso de violações de direitos humanos das comunidades ou indivíduos por parte de um investidor ou empresa, os
tratados de investimento devem aceitar explicitamente que permanece intacto o direito dos primeiros de, se esgotada
sua demanda no âmbito legal nacional não há castigo e são reparadas tais violações, poder recorrer às instâncias
internacionais correspondentes e que estão previstas no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Propostas para suprimir os privilégios dos investidores estrangeiros
• Garantir aos Estados o espaço para a implementação de políticas públicas e o tratamento especial e diferenciado,
garantindo o princípio de igualdade a favor das prioridades nacionais.
• Eliminar as disposições sobre tratamento nacional, tratamento mínimo e tratamento de nação mais favorecida.
• Eliminar o conceito de expropriação indireta, restringir a definição de investimento e eliminar a cláusula de ultraatividade.
• Eliminar a cláusula de ultra-atividade e retroatividade.
• Permitir a concepção e implementação de controle de capitais e de requisitos de desempenho: impedir o fluxo de
capitais ilícitos e a evasão fiscal e privilegiar os investimentos produtivos, respeitosos com o meio ambiente, acima dos
especulativos.
* Rede pela Justiça Social no Investimento Global (RJSIG)
Referências:
Llamamiento a la construcción de un marco alternativo a los Acuerdos Internacionales de Inversión: Superando la impunidad de las
Corporaciones Transnacionales a favor del interés público: http://justinvestment.org/wp-content/uploads/2014/05/Llamamiento-a-laconstrucci%C3%B3n-de-un-marco-legal-alternativo-a-los-Acuerdos-Internacionales-de-Inversi%C3%B3n-Mayo-2014.pdf
25
1.3.2 Para uma nova perspectiva ante o comércio: Mandado de Comércio Alternativo *
O comércio deveria basear-se no intercâmbio e as distintas regiões —cada uma com suas peculiaridades ecológicas e
culturais— deveriam compartilhar de forma equitativa seus produtos, habilidades e criatividade. Entretanto, nas últimas
décadas, o comércio vem se concentrando cada vez menos em intercambiar bens e cada vez mais em suprimir salvaguardas
sociais e ambientais em busca de benefícios empresariais. O projeto de acordo de livre comércio entre a UE e os Estados
Unidos —a Associação Transatlântica sobre Comércio e Investimentos— é um bom exemplo disso: embora a eliminação das
barreiras comerciais entre Europa e Estados Unidos esteja sendo vendida como uma válvula de escape para a estagnação
econômica em que estão submergidos atualmente esses dois blocos, a realidade é que os direitos sociais, ambientais e
laborais serão gravemente minados.
Neste contexto, não só é possível, como absolutamente necessário, adotar uma nova perspectiva ante o comércio. Essa nova
perspectiva deve basear-se em outros princípios e respeitar os compromissos internacionais e as obrigações jurídicas da
UE de garantir a coerência de suas políticas, sejam em matéria de democracia, cooperação, participação pública, direitos
humanos, justiça social, igualdade de gênero ou sustentabilidade.
Convencidas desta necessidade, mais de 50 organizações europeias —que representam agricultores, sindicatos, defensores
dos direitos humanos, ecologistas, redes de comércio justo e profissionais do desenvolvimento— se uniram para desenvolver
o Mandado Comercial Alternativo.
O Mandado Comercial Alternativo foi desenvolvido através de um amplo processo de consulta à sociedade civil em toda a
Europa. Os grupos que integram e apoiam o Mandado de Comércio Alternativo não concordam necessariamente em todos
os pontos deste documento, mas respaldam suas linhas gerais. Também consideram que é um documento em constante
evolução: um convite para que outros grupos participem do debate sobre o futuro da política de comércio e investimento da UE.
A aliança do Mandado de Comércio Alternativo é formada por grupos de camponeses e camponesas, grupos que trabalham
no desenvolvimento, ativistas do comércio justo, sindicalistas, tralhadores e trabalhadoras migrantes, ambientalistas, grupos
de mulheres, direitos humanos, consumo e de base confessional de toda Europa que procuram desenvolver uma perspectiva
alternativa da política comercial europeia: uma visão que coloque as pessoas e o planeta antes das grandes empresas.
Este advoga por uma revisão do regime comercial que desemboque em alternativas reais e viáveis, e onde o comércio
funcione para todo o mundo e para o ambiente.
Princípios básicos
O Mandado de Comércio Alternativo se baseia em políticas de comércio e investimento controladas democraticamente. Nosso
mandado requer políticas de comércio e investimento que permitam:
· que os direitos humanos, os direitos das mulheres, os direitos indígenas, os direitos trabalhistas e a proteção do
ambiente prevaleçam sobre os interesses empresariais e privados.
· a transformação estrutural, o acesso universal aos serviços públicos de qualidade, a proteção social, normas trabalhistas
e ambientais mais estritas, a democracia e a transparência.
· que os Governos regulem as importações, exportações e investimentos de modo que estas sirvam a suas próprias
estratégias de desenvolvimento sustentável.
· que os países, as regiões e as comunidades possam controlar a produção, a distribuição e o consumo de seus próprios
bens e serviços.
· que a política comercial europeia respeite o direito dos países e das regiões a desenvolver o comércio local e regional
— e lhe dar prioridade— por cima do global, por exemplo, no setor da alimentação.
· que os Governos e os parlamentos europeus possam exigir às suas corporações que prestem contas pelas consequências
sociais e ambientais de suas operações na Europa e no resto do mundo.
· que se respeite a soberania alimentar, e se permita que países e comunidades priorizem os sistemas alimentares locais
e regionais.
· que se fomente uma política industrial que favoreça uma transição justa em direção a outro modelo de desenvolvimento.
· que se fortaleçam as regulações sociais e ambientais, e que se garanta a total transparência das cadeias de valor mundiais.
26
· que se assegure uma distribuição justa da renda nas cadeias de valor mundiais, garantindo rendas estáveis e dignas aos
produtores e trabalhadores, e preços acessíveis aos consumidores, especialmente no que diz respeito às necessidades
como alimentos e medicamentos.
· que os Governos, os parlamentos e as autoridades públicas tenham plenos direitos para regular os mercados
financeiros e o setor dos serviços financeiros com o objetivo de proteger os direitos sociais e o bem-estar, assegurar
a sustentabilidade, salvaguardar o controle democrático e garantir a estabilidade financeira (entre outras medidas,
limitando os movimentos de capital).
· o intercâmbio de conhecimentos e o livre acesso a estes, por exemplo, através de sistemas de código aberto, iniciativas
de intercâmbio de sementes ou patentes mancomunadas, e sistemas de licenças abertas para promover a inovação e
o acesso a medicamentos.
· que certos setores, entre os quais estariam bens públicos como a água, a saúde e a educação ou os serviços financeiros,
sejam excluídos das negociações da UE em matéria de comércio e investimentos.
· que se reconheçam responsabilidades comuns, mas diferenciadas para os países em desenvolvimento e se garanta um
tratamento especial e diferenciado para os mais pobres.
· que se aplique o princípio da precaução (com o qual se assume a responsabilidade de proteger o público de danos
potenciais, ainda que ainda não sejam demonstrados) em todas as regulações e normas de comércio e investimentos.
* Aliança do Mandado de Comércio Alternativo
Referencias:
Por una nueva perspectiva frente al comercio: Mandato de Comercio Alternativo http://www.s2bnetwork.org/cat/issues/alternativetrade-mandate-for-the-eu/ y http://www.alternativetrademandate.org/wp-content/uploads/2014/02/Time_for_a_new_vision-ESJAN14-PRINT.pdf
Outros documentos e recursos:
www.alternativetrademandate.org
1.4 Desafiando o poder financeiro: auditorias cidadãs e oficiais
da dívida *
A dívida pública e o poder financeiro
Segundo Costas Lapavitsas, professor de Economia na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de
Londres, “a presença das finanças nas economias capitalistas contemporâneas é extraordinária em termos de magnitude,
penetração e influência sobre la política”.(1) Esta influência gerou um período de extraordinária exploração e desigualdade, que
está acabando com as conquistas alcançadas em alguns países durante as décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra
Mundial, e que ameaça ainda mais os meios de subsistência e bens comuns de vastas populações sobretudo no Sul Global.
Nos últimos anos, o capital se apropriou de uma parte cada vez maior da produção anual em relação aos salários; apareceram
novas formas de acumulação à medida que a liberalização e diversificação das transações financeiras facilitaram a
transferência das rendas e a riqueza da esfera pública à privada, e diretamente dos lares e outros detentores de riqueza. O
estímulo ao endividamento público e pessoal chegou a desempenhar um papel privilegiado neste processo, contribuindo para
a expropriação financeira dos países e das grandes camadas da população por pequenos grupos de agentes econômicos que
estão localizados estrategicamente dentro das grandes empresas e instituições financeiras.
Este processo foi estimulado, ademais, pelos Estados e instituições financeiras internacionais que criaram um marco normativo
que não só impede que as instituições financeiras participem das atividades que potencialmente poderiam conduzir a uma
27
crise, como também promoveu ativamente tal atividade. Uma vez ou outra, desde a crise da dívida dos anos oitenta à crise
de 2007-2009, estas instituições intervieram de diversas maneiras para garantir a solvência dos bancos privados. Mostrando
perfeitamente os interesses de classe que se escondem atrás da defesa das finanças por parte do Estado, às custas dos
meios de vida dos povos, da soberania e do meio do ambiente. Os Programas de Ajuste Estrutural e a mercantilização e a
privatização dos direitos humanos fundamentais, como a água, a saúde e a educação, junto com as subvenções públicas
massivas aos bancos e outros agentes financeiros, são algumas das políticas que se impuseram sistematicamente para
favorecer os credores e outros interesses econômicos e financeiros transnacionais, em vez dos povos.
Os sistemas de endividamento público foram reconhecidos pelos movimentos populares e organizações em todo o Sul
como mecanismos de dominação por parte dos credores. Foram utilizados para impor políticas e programas que causaram
empobrecimento e perda de direitos econômicos, sociais e culturais, assim como a reestruturação de economias inteiras,
minando os princípios e instituições democráticas e contribuindo para a perda de soberania e o controle sobre os territórios e
os bens comuns. Tais políticas foram decididas, geralmente, sem o conhecimento ou consentimento dos povos e comunidades,
que se veem obrigados a sofrer suas consequências.
O crescente papel das finanças na economia mundial contemporânea estendeu estes impactos e consequências aos países
do Norte. Os cortes no estado de bem-estar, as privatizações, a maior liberalização econômica e financeira são a clara
demonstração de que essas políticas favorecem 1% em detrimento dos 99% restante. Como se isso não fosse suficiente, essas
medidas golpeiam com mais força os setores da população mais vulneráveis, como as mulheres, os migrantes e os pobres, os
grupos mais afetados pelos cortes nos salários e serviços sociais.
Auditorias da dívida
Tendo em vista os custos humanos e ecológicos desta crescente dívida pública e a necessidade de considerar seu cancelamento
ou repúdio, os movimentos populares de distintos países estabeleceram diferentes estratégias, entre elas a realização de
auditorias da dívida participativas e integrais. Estas auditorias, em seus diversos formatos, têm como objetivo evidenciar a
ilegitimidade e ilegalidade da dívida, coletando dados e fortalecendo os argumentos para impugnar a dominação que exerce a
dívida e pensar estratégias de faltas de pagamento do que não se pode reivindicar legitimamente.
Auditorias da dívida oficias, como a que foi realizada no Equador através de um decreto presidencial, ou as auditorias cidadãs
iniciadas no Brasil ou nas Filipinas, concentraram suas atenções no direito de todos os cidadãos à transparência. São uma
resposta à necessidade de conhecer as origens e os impactos da dívida pública, assim como a identificação dos mecanismos,
instituições e pessoas responsáveis desta. Entende-se como um passo fundamental não só para expor o funcionamento
do poder financeiro corporativo e o sistema de endividamento, como também para fortalecer os processos de denúncia e
construção de alternativas para recuperar a soberania financeira.
Nesse sentido, os chamados para a realização de auditorias da dívida, sejam oficiais ou cidadãs, são também um chamado
para uma maior participação da cidadania na tomada de decisões em matéria de política econômica, a partir das decisões em
torno da dívida. Por exemplo, movimentos como a Plataforma Auditoria Cidadã da Dívida (PACD), do Estado espanhol, estão
trabalhando para auditar diferentes setores públicos e assim trazer à tona a informação sobre as causas do endividamento e
seus impactos. Além disso, esta informação é utilizada, ao mesmo tempo, nas lutas em defesa do estado de bem-estar em
cada setor.
Em suma, as auditorias da dívida são uma ferramenta para a recuperação da soberania dos povos, de nossa capacidade
para compreender e decidir acerca dos processos econômicos. Também são uma maneira de exigir o acesso à informação
e empoderar a sociedade para denunciar as irresponsabilidades, ilegitimidades e ilegalidades do poder financeiro e para a
construção de modelos econômicos alternativos que priorizem as pessoas e não os bancos ou as finanças.
Mobilizações em torno das auditorias da dívida
Movimentos e redes contra a dívida veem promovendo durante mais de uma década a realização de auditorias da dívida. Uma
das campanhas mundiais mais conhecidas é a da Rede Jubileu Sul, que denunciou a ilegitimidade das dívidas do Sul durante
anos e apoiou diversas experiências de auditoria.
Mais recentemente, surgiram outras redes, como a Rede Internacional de Auditorias Cidadãs da Dívida (ICAN), que envolve
ativistas e grupos de 12 países, principalmente na Europa e no norte da África, cujo objetivo é compartilhar e coordenar suas
respectivas experiências nas lutas contra a austeridade e a dívida ilegítima.
28
O objetivo destes esforços é promover a identificação e a denúncia das dívidas ilegítimas para provocar seu cancelamento,
abolição ou repúdio. Reconhecendo, ao mesmo tempo, que o cancelamento da dívida é um passo necessário, mas não
suficiente para uma saída da crise que tenha as pessoas como prioridade. Reivindicam, além disso, uma maior participação
dos cidadãos na gestão financeira de suas administrações públicas (cidades, regiões, países), incluída a plena transparência e
a participação cidadã na definição e no controle do orçamento público.
* Rede Internacional de Auditorias Cidadãs da Dívida (ICAN) e Jubileu Sul Américas (JSA)
Notas:
(1) Lapavitsas, Costas (2014) State and finance in financialised capitalism, Centre for Labour and Social Studies: Class
Referências:
PACD (2013) ¿Por qué no debemos pagar la deuda? Icaria: http://www.odg.cat/es/publication/por-que-no-debemos-pagar-la-deuda
ICAN: http://www.citizen-audit.net/ y http://cadtm.org/ICAN
Jubileu Sul Américas: http://jubileosuramericas.net/
Jubileu Sul - Movimento Ásia-Pacífico sobre Dívida e Desenvolvimento: www.apmdd.org
1.5 Recuperando os serviços públicos e as empresas estatais para
o bem comum *
A importância e o peso das empresas estatais e os serviços públicos
Apesar das ondas de privatizações que varreram o mundo desde a década de 1980, o Estado segue sendo o principal
responsável pelo fornecimento de bens e serviços essenciais, tanto no Norte como no Sul. As empresas estatais nos países da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estão avaliadas em cerca de dois trilhões de dólares
americanos, aos que deveriam ser acrescentadas as participações minoritárias em companhias de serviços e outros bens
que detêm os governos locais, avaliados em outros dois trilhões de dólares. Por outro lado, segundo os cálculos do Fundo
Monetário Internacional (FMI), o valor dos ativos ‘não-financeiros’ —como edifícios, terrenos e recursos do subsolo— é de 35
trilhões de dólares em toda a OCDE, uma cifra que equivale a três quartos do PIB médio das economias mais ricas.(1)
De uma perspectiva global, um estudo publicado recentemente se concentra no grau de titularidade estatal entre as 2.000
maiores empresas do mundo —as incluídas na lista Forbes Global 2000— e suas 330.000 filiais. (2) O estudo identifica como
empresas públicas aquelas nas quais o Estado detém, direta ou indiretamente, mais de 50% das ações a nível nacional ou
subnacional. As conclusões são surpreendentes: mais de 10% das maiores empresas do mundo (204 companhias) em 37
países são de propriedade ou controle estatal, com um valor do total de vendas que alcançou 3,6 trilhões de dólares em 2011.
Este faturamento representa mais de 10% das vendas combinadas de toda a lista Forbes Global 2000 e equivale a 6% do PIB
mundial, superando o produto interno bruto de países como Alemanha, França ou Reino Unido.
A crescente importância das empresas públicas reavivou o interesse pela privatização, algo evidente hoje em dia em muitos
países europeus que estão sob pressão dos organismos que formam a chamada ‘troika’ — a Comissão Europeia (CE), o Banco
Central Europeu (BCE) e o FMI—, mas também apresentou uma série de questões relevantes entre pesquisadores e ativistas
progressistas do mundo todo: qual o real significado de “público”? E qual é a sua relevância? Por quê os Estados ainda detém
capital produtivo e se encarregam da prestação de serviços públicos?
A tendência global à recuperação do público
Na década de 1990, em pleno auge do Consenso de Washington, as respostas a estas perguntas não deixavam nenhuma dúvida.
A ideologia hegemônica sustentava que as empresas estatais eram inerentemente ineficientes e deviam ser privatizadas.
Inclusive logo antes que explodissem as crises atuais, um dos economistas mais influentes do mundo continuava insistindo:
“Existem cada vez menos provas de que a maior parte das empresas públicas não contribuem significativamente para o
desenvolvimento ou desempenham suas funções de serviço público de maneira ineficaz ou ineficiente”.(3)
29
Nos últimos tempos, entretanto, presenciamos um aumento no número de autores e autoras que ressaltam os aspectos
positivos da titularidade e da gestão estatal, e reconhecem a relevância das empresas públicas no fomento ao crescimento
econômico e ao desenvolvimento social. Tal como mencionou outro renomado especialista internacional em políticas de
desenvolvimento, “apesar da crença popular, alimentada pelos meios empresariais e a retórica e ideias convencionais de hoje
em dia, as empresas estatais podem ser eficiente e ser bem geridas”.(4)
Nos últimos anos, tanto em países do Norte como do Sul, podemos observar uma tendência à recuperação do controle público
de empresas que antes haviam sido privatizadas,(5) um fenômeno que revela o fracasso das privatizações, as concessões e
outras formas de participação do capital privado no fornecimento de água, eletricidade e outros serviços públicos. Governos
locais e nacionais do mundo todo, em muitos casos como resultado de campanhas cidadãs e da mobilização ativa de
organizações sociais, reconheceram que manter a hegemonia do mercado na prestação de serviços essenciais não era algo
que fosse do interesse público. Isto ficou mais evidente depois da crise financeira e econômica que explodiu em 2007-2008,
quando ocorreu a “nacionalização de emergência” de grandes empresas no Reino Unido e nos Estados Unidos (mesmo que
fossem como medidas excepcionais e temporárias), de forma semelhante à criação de muitas empresas durante a Grande
Depressão na década de 1930.
A recuperação do controle público pode assumir distintas formas, como a remunicipalização (o caso dos serviços de água em
Paris seria o exemplo mais claro) e a renacionalização, como aconteceu na Bolívia, onde o Estado nacional retomou o pleno
controle do sistema elétrico, incluída a geração, a transmissão e a distribuição da eletricidade durante os últimos quatro anos. A
tendência à renacionalização é especialmente visível na América Latina, onde Governos progressistas de esquerda decidiram
revogar a privatização de empresas que operam em atividades industriais, no setor de energia e nos serviços públicos. No
campo da mineração, e apesar das mudanças no perfil ideológico do Governo durante os últimos 50 anos, o Chile sempre
manteve em mãos estatais a tão rentável Corporação Nacional do Cobre (CODELCO). Outros países, entre os quais caberia
destacar Brasil e Uruguai, também intensificaram o processo de recuperação e fortalecimento de suas empresas públicas.
As provas empíricas avalizam as perspectivas mais progressistas a respeito das empresas estatais e dos serviços públicos.
Um novo meta estudo elaborado pelo Projeto Serviços Municipais, uma rede global que trabalha com alternativas para a
mercantilização e a privatização dos serviços de saúde, água e energia, (6) demonstra que não há motivos para considerar
que as companhias privadas sejam mais eficientes que as empresas públicas, e confirma que são necessários estudos novos
e mais detalhados que comparem as consequências/repercussões sobre o bem-estar das entidades da propriedade estatal
ante as de propriedade privada.
O caso do Uruguai
O papel progressista que podem desempenhar as empresas estatais na promoção do desenvolvimento social e do crescimento
inclusivo é patente no Uruguai, uma nação relativamente pequena da América Latina que, em 1992, se transformou no primeiro
país do mundo onde se celebrou um referendo em que a abrumadora maioria da cidadania votou contra a privatização. Em
2005, um Governo de esquerda iniciou o ciclo atual de transformação das empresas públicas. Na sessão de abertura de um
seminário internacional celebrado em Montevidéu em outubro de 2012, organizado conjuntamente pelo Transnational Institute
(TNI) e o Governo uruguaio, o ministro de Indústria e Energia, Roberto Kreimerman, assinalou que “as empresas públicas são
uma oportunidade para o progresso nacional, já que facilitam a inovação e o desenvolvimento em diversos setores”. Também
observou que as empresas públicas devem “ser empresas que devem funcionar, ser eficientes, inovadoras, de qualidade, com
produtividade; mas também são empresas do Estado, que têm que pender para o desenvolvimento nacional, a inclusão social
e outros elementos fundamentais”. Finalmente, Kreimerman apontou que o Governo uruguaio considera que “as empresas
do Estado, além do seu papel fundamental em áreas como as telecomunicações, a energia, a água e algumas outras (…) têm
também que ser parte do instrumento de um projeto de sociedade para a América Latina e para o nosso país”.
No setor das telecomunicações, a empresa estatal ANTEL colocou o país na vanguarda da inovação tecnológica, apesar
de ter que operar em um mercado liberalizado e concorrendo com as duas empresas transnacionais que criaram um
oligopólio no setor das telecomunicações em toda a América Latina: Telefônica, com sede na Espanha, e América Móvil,
com sede no México. Apesar da liberalização do mercado nacional de telecomunicações, a empresa pública continua sendo
o provedor principal e mais eficiente —tanto do ponto de vista econômico como do social—de serviços de telefonia (fixa e
móvel), e de internet. A ampliação a todo o país da rede de fibra óptica, combinada com planos acessíveis para usuários
residenciais e comerciais, permitiu que a ANTEL oferecesse o acesso à internet mais rápido e barato de toda a América Latina.
30
A velocidade média de picos de conexão no Uruguai aumentou 206% no último ano, até alcançar os 45,4 Mbps, colocando o
país na lista dos 10 mais rápidos do mundo, na frente de Holanda (45,2), Estados Unidos (40,6) e Canadá (39,7), segundo dois
relatórios recentes sobre a velocidade, as tarifas e os descontos de preço nas conexões à internet (7,8).
O Uruguai também é reconhecido internacionalmente por ser o primeiro país do mundo onde a cidadania aprovou uma
emenda constitucional, em um referendo celebrado em outubro de 2004, que reafirmou a prestação exclusiva dos serviços
de água e saneamento por parte do Estado e dispôs que o acesso a estes serviços é um direito humano básico. A empresa
pública encarregada do abastecimento de água potável e do saneamento em todo o país, Obras Sanitárias do Estado (OSE), é
uma empresa muito eficiente que proporciona cobertura universal, o que levou à criação da Comissão Nacional em Defesa da
Água e da Vida (CNDAV), um espaço plural onde confluíram várias organizações sociais uruguaias para defender o patrimônio
comum ante os interesses do capital privado.(9)
No setor de energia, a existência de duas empresas de propriedade estatal, UTE e ANCAP, permitiu que o Uruguai colocasse
em prática o que se chamou de uma “revolução renovável uruguaia”.(10) Este país sul-americano, com 3,2 milhões de
habitantes, não tem reservas conhecidas de petróleo nem de gás natural, e se dedicou a fazer grandes investimentos em
infraestrutura para energias renováveis. O Uruguai definiu uma Estratégia Energética Nacional de longo prazo (até 2030),
aprovada por consenso por todos os partidos políticos. Ao dar prioridade às fontes e tecnologias de energias renováveis, como
as hidrelétricas, os parques eólicos e a cogeração de biomassa, o país alcançou uma cota de 46% de energia renovável na
matriz energética de 2011, diante dos 30% em 2005.(11) Graças a isso, o Uruguai potenciou em grande medida sua soberania,
sustentabilidade e segurança energética, e situou o país como um ator que marca tendências no âmbito da transição energética
mundial.
* Reflexões do Projeto Serviços Municipais (MSP)
www.municipalservicesproject.org
Notas:
(1) The Economist (2014) Privatisation. The $9 trillion sale, The Economist, 11 de janeiro
(2) Kowalski, P., M. Büge, M. Sztajerowska y M. Egeland (2013). ‘State-Owned Enterprises: Trade Effects and Policy Implications’. Paris:
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
(3) Rondinelli, D.A. (2008) ‘Can Public Enterprises Contribute to Development? A Critical Assessment and Alternatives for Management
Improvement’. Em Public Enterprises: Unresolved Challenges and New Opportunities. Nova York: Divisão para Administração Pública e
Gestão de Desenvolvimento das Nações Unidas
(4) Chang, H-J. (2007) ‘State Owned Enterprise Reform. National Development Strategies Policy Note’. Nova York: Departamento para
Assuntos Econômicos e Sociais (UNDESA)
(5) Florio, M. (2014) ‘Repensar la empresa pública: la nueva agenda de investigación’, en D. Chavez y S. Torres (eds.) La reinvención del
Estado: Empresas públicas y desarrollo en Uruguay, América Latina y el mundo. Amsterdam e Montevidéu: Transnational Institute (TNI)
e Administração Nacional de Telecomunicações (ANTEL)
(6) Mühlenkamp, H. (2013) ‘From State to Market Revisited: More Empirical Evidence on the Efficiency of Public (and Privately-owned)
Enterprises’. Speyer: German University of Administrative Sciences - German Research Institute for Public Administration
(7) Galperin, H. (2013) ‘Los precios de la conectividad en América Latina y el Caribe’. Buenos Aires: Universidade de San Andrés, Centro
de Tecnologia e Sociedade
(8) Akamai (2014) ‘The Akamai State of the Internet Report. Q2 2014’. Cambridge, MA: Akamai
(9) Spronk, S., C. Crespo y M. Olivera (2014) ‘Modernization and the boundaries of public water in Uruguay’. En D.A. McDonald (ed.)
Rethinking Corporatization and Public Services in the Global South. Londres: Zed Books
(10) Martínez, M. (2014) ‘La revolución renovable uruguaya’, El País, 11 de julho
(11) WEC (2014) ‘Sustainability Index: Uruguay’. Londres: Conselho Mundial da Energia (WEC)
31
1.6 Democratizando o trabalho e a produção: PLADA, Plataforma de
Desenvolvimento das Américas *
A Plataforma reúne as resistências de décadas contra o neoliberalismo e recupera alguns dos processos de construção
de alternativas políticas e sociais e progressistas para identificar e sistematizar os desafios que devemos enfrentar
se queremos que as conquistas sociais não retrocedam; se queremos avançar em direção a uma região onde o
desenvolvimento seja sustentável, socialmente inclusivo, politicamente democrático e baseado no direito inalienável dos
povos de decidir o seu futuro.
A PLADA é a continuação da tarefa iniciada em 2005 com o lançamento da Plataforma Laboral das Américas e com a fundação,
em 2008, da Confederação Sindical de Trabalhadores e Tralhadoras das Américas (CSA), como um amplo espaço unitário
do sindicalismo hemisférico. Mas a PLADA é mais que uma continuação, porque é o resultado de um diálogo continental
do sindicalismo reunido na CSA sobre uma agenda ampla e também um processo de construção junto a organizações
ambientalistas, camponesas e de mulheres da América Latina. A CSA propões estender esse diálogo a novos âmbitos, como
parte de uma agenda de construção coletiva de Outra América Possível.
Dimensão política
O novo ciclo político que propugnamos deve ser marcado pela ampliação e pelo aprofundamento da democracia política. O
longo período de dominação neoliberal foi marcado pelo avanço do poder de decisão das corporações empresariais sobre as
instituições da democracia representativa; sua superação implica o retorno da soberania popular.
Portanto, deve-se estabelecer uma nova relação entre sociedade, Estado e mercado. O Estado deve ser a ferramenta
da participação ativa do povo trabalhador nos espaços públicos para regular o mercado de modo que se satisfaçam as
necessidades sociais atuais e que se proteja as gerações futuras.
Não reivindicamos a tutela estatal paternalista e autoritária. Mas sim um novo Estado democrático e profundamente reformulado
por instrumentos de consulta popular e participação direta.
Isso significa, por um lado, reformar os sistemas políticos e judiciais para impedir a ingerência das corporações em suas
decisões. E, por outro lado, a democratização dos meios de comunicação de massas para evitar que monopólios econômicos
os transformem em instrumentos políticos de defesa e promoção de seus interesses privados.
Este novo ciclo político deve ser marcado pela participação social e sindical na tomada de decisões, tanto em cada país como
nos processos de integração regional. Da nossa parte, enfatizamos que o grande desafio é a autorreforma do sindicalismo
para aperfeiçoar o funcionamento dos próprios sindicatos por meio da unidade, da democracia interna, da ampliação e do
fortalecimento da representatividade em um ambiente de liberdade sindical.
Finalmente, avançar na democracia deve significar o respeito e o reconhecimento de nossa plurinacionalidade e diversidade
cultural dentro dos Estados-nação.
Dimensão econômica
Defendemos o fortalecimento de autênticos processos de integração regional e sub-regional como ferramentas de
desenvolvimento. Para isso é necessário superar a herança deixada pelo período neoliberal de tratados de livre comércio que
aprofundam as assimetrias internacionais e deterioram as condições sociais e ambientais em cada país.
O ciclo de desenvolvimento sustentável que propugnamos deve ser impulsionado pela justa distribuição da renta e da riqueza,
enterrando definitivamente a visão neoliberal de que a concentração da riqueza com o crescimento econômico em algum
momento “derrama” em direção aos setores vulneráveis.
Faz-se necessária uma nova arquitetura financeira regional que se coloque a serviço do desenvolvimento com igualdade
social. Que as infraestruturas se orientem por uma perspectiva de sustentabilidade e promovam a complementariedade entre
nossas economias, favorecendo a integração regional. O investimento estrangeiro deve ser orientado por planos nacionais e
regionais de desenvolvimento. Uma nova tributação progressiva deve capacitar os Estados a impulsionar este novo clico de
desenvolvimento sustentável.
Devemos dedicar atenção especial à conquista da soberania e da segurança alimentares ameaçadas pelo auge da produção de
commodities agrícolas para a exportação sob controle de empresas multinacionais. Uma reforma agrária integral e a progressiva
erradicação do monopólio de empresas transnacionais sobre a agricultura são parte do novo modelo de desenvolvimento.
32
Por último, esta nova economia deve ter como fundamento o desenvolvimento de novas capacidades de pesquisa e transferência
tecnológica orientadas pelas necessidades de nossas nações.
Dimensão social
O sindicalismo regional defende o direito ao trabalho decente, com igualdade entre gêneros, etnias e gerações, sem
discriminação com base na deficiência, orientação ou identidade sexual. E não haverá trabalho decente sem respeito à
liberdade sindical e à negociação coletiva.
O ponto de partida da nova etapa deve ser o reposicionamento de um sistema de segurança social universal e solidária que
elimine a ameaça da miséria na vida dos trabalhadores e trabalhadoras, e garantir que a produção se realize em lugares de
trabalho saudáveis e seguros.
Significa defender os bens públicos do avanço da voracidade do lucro das empresas privadas: saúde, educação, moradia e
transporte urbano são direitos fundamentais que não devem ser mercantilizados. Mas a dimensão social do novo modelo deve
superar as heranças dos sistemas baseados na opressão patriarcal, promovendo também a equiparação de responsabilidades
dos cuidados e do trabalho doméstico entre gêneros.
Dimensão ambiental
A crise ambiental, e sua efetiva e urgente abordagem, é um imperativo da agenda política internacional. Todas as nações têm
direito a um desenvolvimento sustentável e isso hoje exige enfrentar as assimetrias entre Norte e Sul, e dentro de cada país, as
assimetrias entre classes sociais. Implica frear o consumo predatório no Norte Global e nas classes ricas e alçar as maiorias
a novos níveis de consumo e satisfação de necessidades, mas já sob um novo paradigma.
Defendemos que os bens comuns da humanidade, a biodiversidade, a água, as sementes, os bosques, a energia, o
conhecimento, não sejam submetidos aos critérios de lucro privado, mas sim utilizados responsavelmente para o bem comum.
Propugnamos o fortalecimento das relações sociais e econômicas que promovam o equilíbrio socioambiental com participação
social, desenvolvendo tecnologias que evitem a mudança climática e a desertificação.
Plataforma de um novo modelo
O neoliberalismo, as grandes corporações multinacionais e o capital financeiro internacional colocou o mundo na beira do
abismo da crise econômica e ambiental e os trabalhadores e trabalhadoras na miséria social. Nossos povos responderam com
uma longa resistência e depois, ainda em um contexto econômico de grande diversidade, avançando eleitoralmente em direção
a projetos pós-neoliberais.
A PLADA parte desse ponto onde chegou a luta da classe trabalhadora para tornar-se uma ferramenta do sindicalismo
continental e avançar em direção à definitiva conquista de um novo modelo de desenvolvimento sustentável. A chave para a
vitória é ampliar e aprofundar a democracia, superando as chantagens das corporações e dos mercados.
* Confederação Sindical das Américas (CSA)
Referências:
Texto integral em espanhol, inglês, francês e português em: http://www.csa-csi.org/index.php? option=com_docman&task=cat_view&gid=
382&Itemid=181&lang=pt
33
Tratado dos Povos – Dimensão Alternativas
2 Construindo a soberania dos povos e
defendendo os direitos coletivos: resistências,
medidas transitórias e alternativas
2.1 Implementando a soberania alimentar, a reforma agrária e a agroecologia 34
2.2 Lutando pelos direitos de camponesas e camponeses
36
2.3 Conseguindo a justiça da água e o direito humano à água
38
2.4 Construindo a soberania energética 40
2.5 Reconhecendo os direitos dos povos atingidos 42
2.6 Defendendo os territórios e os direitos das comunidades diante do extrativismo
e da ‘economia verde’ 2.7 Proclamando o ‘bem viver’ dos povos indígenas para liberar a Mãe Terra
do saque capitalista
44
47
2.1 Implementando a soberania alimentar, a reforma agrária
e a agroecologia *
Hoje em dia, os alimentos e os bens comuns necessários para produzi-los estão concentrados em pouquíssimas mãos: menos
de 50 corporações controlam quase toda a produção de sementes do mundo, de insumos para a agricultura e a distribuição
dos alimentos por todo o planeta. No caso do Brasil, por exemplo, as 50 maiores corporações estrangeiras e brasileiras
controlam praticamente o comércio das matérias-primas agrícolas e indiretamente este tipo de produção em todo o país.
Diante da destruição massiva do mundo rural por parte das políticas neoliberais, do acaparamento de terras, do deslocamento
por parte do extrativismo corporativo, da intoxicação da terra e da água, do desmatamento e da depredação da biodiversidade,
se ergueram a nível global uma multidão de movimentos campesinos e de pequenos agricultores para reivindicar a devolução
da terra através da reforma agrária e da soberania alimentar. As décadas passadas foram testemunhas das lutas agrárias
contínuas pela terra e pela justiça que marcaram os estados mais antigos da história da humanidade. Os produtores de
mais da metade dos alimentos do mundo —camponeses, produtores familiares e pequenos— batalharam não só contra a
dominação corporativa dos agronegócios e a cadeia de alimentos, como também desenvolveram uma plataforma de soberania
alimentar e reforma agrária como sua plataforma política.
Em sua VI Conferência Internacional, celebrada em junho de 2013, A Via Campesina (LVC) reiterou sua posição fundamental
de oposição à dominação das transnacionais no sistema de produção de alimentos e em todas as esferas da vida, destacando
a necessidade de fortalecer a resistência global em campanhas coordenadas sobre diversos temas: o extrativismo, a soberania
alimentar, as sementes, os serviços públicos e as corporações financeiras, entre outros. Denunciou, também, o maior poder
que os tratados de livre comércio e investimento e a Organização Mundial do Comércio (OMC) conferem às empresas
transnacionais, e questionou as narrativas retóricas da economia verde e da responsabilidade social corporativa.
Em seus 20 anos de existência, a LVC realizou grandes contribuições para o desenvolvimento de alternativas ao modelo
econômico neoliberal com seus três pilares chaves: soberania alimentar, reforma agrária e agroecologia.
Soberania alimentar
O novo conceito de soberania alimentar foi introduzido pela LVC em 1996 para substituir o conceito oficial anterior, que se
referia à segurança alimentar (formulado pelos Governos e a FAO; Montecinos 2010). Inclui a convicção de que a produção
e a distribuição de alimentos é uma questão de soberania. Além da noção de acesso aos alimentos, o conceito de ‘soberania’
acrescenta o direito a produzi-los de forma respeitosa com o meio ambiente e apropriada para a vida e as necessidades
nutricionais das comunidades. Como afirma a Declaração de Nyéléni (2007): “A soberania alimentar é um direito dos povos
a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de
decidir seu próprio sistema alimentício e produtivo. Isto coloca aqueles que produzem, distribuem e consomem alimentos no
coração dos sistemas e políticas alimentárias, por cima das exigências dos mercados e das empresas.”.
34
A soberania alimentar é uma visão para a mudança social e, de uma perspectiva social e comunitária ampla, uma alternativa
às políticas neoliberais. É o direito da cidadania de determinar as políticas alimentárias e agrícolas, e de decidir o que e como
produzir, e quem produz; é o direito a recursos públicos como a água, a terra e as sementes. A soberania alimentar induz
ao desenvolvimento de políticas baseadas na solidariedade entre a população e entre produtores e consumidores. Demanda
a regulação dos mercados porque é impossível manter políticas agrárias sustentadas pela liberalização dos mesmos. Além
disso, reúne movimentos do Sul e do Norte Global, assim como do campo e da cidade. A soberania alimentar é hoje uma
demanda integral de vários movimentos sociais do mundo todo que constroem alianças para a ação transformadora.
Reforma agrária
A nova reforma agrária deveria ser um pilar fundamental não só da construção da soberania alimentar, como também
da transformação democrática da sociedade para desenvolver novas civilizações que acabem com a fome e a pobreza, e
respeitem e protejam a Mãe Terra. É contra a atual mercantilização e privatização da terra, e coloca as comunidades como
protagonistas da tomada de decisões sobre a terra.
Deve-se evitar as apropriações influenciadas pelos Estados, influenciados por sua vez por instituições financeiras (como
credores e provedores de insumos). Estas políticas, baseadas na ideia de “pegar ou largar”, obriga os agricultores a obter
créditos deixando-os endividados, resultando na expropriação de suas terras e abrindo caminho para que as grandes empresas
agroindustriais ampliem seus territórios e empobreçam as comunidades. Os Governos devem garantir que a produção nacional
de alimentos e a soberania alimentar de seus cidadãos e cidadãs seja promovida através da reforma agrária.
No princípio de 2014, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) propôs a noção de ‘reforma agrária popular’, uma
nova concepção da reforma agrária situada em um novo momento do mundo:
a) Necessitamos defender agora um novo projeto de reforma agrária, que seja popular. Não basta ser una reforma agrária
clássica, que apenas divida a propriedade da terra e integre os camponeses como provedores de matérias primas e
alimentos para a sociedade urbano-industrial.
b) Diante do poder do agronegócio, é necessário construir alianças entre todos os movimentos campesinos, com a classe
trabalhadora urbana e com outros setores sociais interessados em mudanças estruturais, de caráter popular.
c) A luta pela reforma agrária se insere agora na luta contra o modelo do capital. É uma fase da nossa luta, com desafios
mais altos e complexos, diferente do período do desenvolvimento industrial (1930-80), quando os assentamentos da
reforma agrária em áreas improdutivas para a produção de alimentos se somavam à agricultura patronal dirigida,
prioritariamente, para a agroexportação.
d) Os enfrentamentos com o capital, e seu modelo de agricultura, partem das disputas das terras e do território. Mas se
ampliam para as disputas sobre o controle das sementes, da agroindústria, da tecnologia, dos bens da natureza, da
biodiversidade, das águas e dos bosques.
Agroecologia
A agricultura camponesa agroecológica é um elemento fundamental na construção da soberania alimentar. Também é
fundamental para a resistência em nossos territórios e a defesa destes. Está amplamente provado que a agricultura ecológica,
baseada na agroecologia, na recuperação e no uso de conhecimentos ancestrais, e nas sementes camponesas, ajuda as
famílias e comunidades agrícolas a construir uma autonomia em relação a essas forças do mercado que as ameaçam, e
permite escapar da armadilha da dívida agrária, nos ajuda a viver em harmonia com a Mãe Terra, nos faz mais resistentes à
mudança climática e outras alterações externas, ajuda a esfriar o planeta, restaura os solos degradados, nos ajuda a produzir
alimentos saudáveis para nossos povos, e pode ser muito mais produtiva que a agricultura industrial, sem ter que recorrer a
agroquímicos tóxicos e organismos modificados geneticamente.
A agroecologia é particularmente importante na agenda da soberania alimentar e da reforma agrária. A mesma tem sido
promovida dentro da LVC como um paradigma para alcançar a soberania alimentar. “A agroecologia pode duplicar a produção
alimentar de regiões inteiras em 10 anos, reduzindo ao mesmo tempo a pobreza no campo e reduzindo a mudança climática”,
segundo concluiu Olivier de Schutter, relator especial da ONU para o Direito à alimentação, na apresentação de seu relatório
em março de 2011. Em seu texto, de Schutter insta os Estados a adotar políticas ambiciosas para apoiar esta forma de
produção.
* A Via Campesina
Referências:
Relatório da VI Conferência Internacional da Via Campesina, celebrada em junho de 2013 em Jacarta: http://viacampesina.org/downloads/
pdf/sp/ES-VITHCONF-2014.pdf
Documentos políticos da Via Campesina: http://www.viacampesina.org/downloads/pdf/policydocuments/POLICYDOCUMENTS-SP-FINAL.pdf
Programa Agrário do MST, aprovado no seu VI Congresso nacional, em fevereiro de 2014: http://mstbrasilien.de/wp-content/
uploads/2014/02/Cartilha-Programa-agr%C3%A1rio-do-MST-FINAL.pdf
35
2. 2 Lutando pelos direitos de camponesas e camponeses *
Introdução
A maior parte da população mundial é formada por camponesas e camponeses. Inclusive em um mundo altamente tecnificado,
as pessoas comem alimentos produzidos por agricultores. A agricultura camponesa não é só uma atividade econômica,
mas é também o sustento vital de todas as pessoas. A segurança da população depende do bem-estar do campesinato e da
agricultura. Para proteger a vida humana é importante respeitar, proteger e fazer que se cumpram os direitos das camponesas
e camponeses. Na realidade, o atual número de violações aos direitos de camponesas e camponeses ameaça a vida humana.
Violações aos direitos das camponesas e camponeses
· Milhões de camponesas e camponeses foram forçados a abandonar suas terras de cultivo devido a usurpações de terra
propiciadas por políticas nacionais ou por forças militares. Toma-se a terra do campesinato para o desenvolvimento de
indústrias, minas ou grandes projetos de infraestruturas, centros turísticos, zonas econômicas especiais, supermercados,
plantações para cultivos comerciais. O resultado é que a terra se concentra cada vez mais em poucas mãos.
· Os Estados não se preocupam com o setor agrícola e o campesinato não recebe as rendas adequadas à sua produção
agrícola.
· Estão sendo promovidas as monoculturas para a produção de agrocombustíveis e outros fins industriais a favor dos
agronegócios e do capital transnacional com um impacto devastador sobre os bosques, a água e o entorno natural,
assim como na vida econômica e social das camponesas e camponeses.
· Há uma crescente militarização e uma série de conflitos armados nas áreas rurais com graves efeitos sobre o
cumprimento dos direitos civis das camponesas e camponeses.
· Há uma perda de identidade, livre determinação e autonomia das camponesas e camponeses.
· Os alimentos são utilizados cada vez mais para fins comerciais e especulativos.
· A luta do campesinato é criminalizada.
· O trabalho escravo, os trabalhos forçados e o trabalho infantil ainda existem nas zonas rurais. As mulheres e as
meninas e meninos são os mais afetados. As mulheres são vítimas de violência psicológica, física e econômica. Sofrem
discriminação no seu acesso à terra e aos recursos produtivos, assim como na tomada de decisões.
· Hoje em dia, as camponesas e camponeses perderam muitas sementes locais. A biodiversidade é destruída pelo uso
de fertilizantes químicos, das sementes híbridas e dos organismos geneticamente modificados (OGM) desenvolvidos
pelas empresas multinacionais.
· O acesso aos serviços educativos e de saúde é limitado nas zonas rurais e se enfraquece o papel político do campesinato
na sociedade. Como resultado destas violações aos direitos do campesinato, hoje em dia milhões de camponesas e
camponeses vivem em condições de fome e sofrem de subnutrição. Isto não se deve à falta de alimentos no mundo, e
sim ao controle que exercem as empresas multinacionais sobre os recursos alimentares. As agricultoras e agricultores
são forçados a produzir com fins de exportação em vez de produzir alimentos para suas comunidades.
· A crise no setor agrícola provoca a migração e a desaparição massiva do campesinato e da população indígena.
As políticas neoliberais pioram as violações dos direitos das camponesas e camponeses
As violações dos direitos das camponesas e camponeses aumentam devido à aplicação de políticas neoliberais fomentadas
pela Organização Mundial do Comércio (OMC), os tratados de livre comércio (TLC), outras instituições e muitos Governos do
Norte assim como Governos do Sul. A OMC e os TLCs forçam a abertura dos mercados e evitam que os países protejam e
apoiem sua agricultura doméstica. Pressionam para desregulamentar o setor da agricultura.
Os Governos dos países desenvolvidos e as empresas multinacionais são responsáveis pela prática do dumping. Os produtos
alimentícios baratos e subvencionados inundam o mercado e forçam as agricultoras e agricultores a abandonar o negócio.
A OMC e outras instituições forçam a inserção de alimentos como os OGMs e os hormônios de crescimento para a produção
de carne que não seguros. Enquanto isso, proíbem os produtos saudáveis das camponesas e camponeses com barreiras
sanitárias.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) implementou programas de ajuste estrutural que originam cortes massivos nas
subvenções à agricultura e aos serviços sociais. Os países se viram obrigados a privatizar empresas estatais e a desmantelar
mecanismos de apoio ao setor agrícola.
36
As políticas que foram desenvolvidas direta ou indiretamente priorizam as companhias multinacionais para a produção de
alimentos e o comércio. As empresas multinacionais praticam ademais a biopirataria e destroem os recursos genéticos e a
biodiversidade que pertence ao campesinato. A lógica capitalista de acumulação desmantelou a agricultura camponesa.
As lutas das camponesas e camponeses para manter e proteger seus direitos
Enfrentando estas realidades, o campesinato do mundo inteiro lutou pela vida. Milhares de dirigentes camponeses são detidos
e levados aos tribunais de forma injusta por lutar pela proteção dos seus direitos e seu sustento. Matanças, assassinatos
extrajudiciais, prisões arbitrárias e detenções, assim como a perseguição e o assédio políticos, são frequentes.
A crise global alimentar de 2008, precipitada e exacerbada pelas políticas e pelas corporações transnacionais (que agem
unilateralmente de acordo com seus próprios interesses) demonstrou claramente o fracasso em fomentar, respeitar, proteger
e fazer que se cumpram os direitos do campesinato. Isto afeta todos os povos do mundo, tanto em países desenvolvidos
como em países em vias de desenvolvimento. Enquanto o campesinato trabalha duro para assegurar a sustentabilidade das
sementes e dos alimentos, a violação dos direitos deste setor prejudica a capacidade do mundo para alimentar-se.
A luta dos camponeses e camponesas é plenamente aplicável ao conjunto de instrumentos internacionais de direitos humanos,
incluindo os procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos, que lidam com o direito à alimentação, à moradia,
ao acesso à água, à saúde, os defensores em direitos humanos, os povos indígenas, o racismo e a discriminação racial e os
direitos das mulheres.
Estes instrumentos internacionais da ONU não cobrem nem previnem completamente as violações dos direitos humanos,
especialmente os direitos das camponesas e camponeses. Comprovamos as limitações do Pacto sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC) como instrumento para proteger os direitos das camponesas e camponeses. Além disso, a Carta
do Campesino, criada pela ONU em 1978, não foi capaz de proteger o campesinato das políticas internacionais de liberalização.
Os outros pactos internacionais, que também são responsáveis pelos das camponesas e camponeses, tampouco puderam ser
aplicados. Estes pactos incluem: Convenção OIT 169, Cláusula J-8 da Convenção de Biodiversidade, Ponto 14.60 da Agenda 21
e o Protocolo de Cartagena. Inclusive a ONU executa políticas controvertidas que se adaptam aos interesses das corporações
transnacionais, e não aos interesses das camponesas e camponeses no mundo.
O campesinato necessita uma Convenção Internacional sobre os Direitos das Camponesas
e Camponeses
Dadas as limitações destas convenções e resoluções, é importante criar um instrumento internacional que faça que se respeite,
se proteja, se cumpram e se defendam os direitos do campesinato: a Convenção Internacional sobre Direitos das Camponesas
e Camponeses, CIDC. O lógico é fazer pressão sobre a ONU para que crie esta CIDC. Já existem convênios para proteger
grupos de população vulneráveis, como povos indígenas, mulheres, crianças e trabalhadores migrantes. A CIDC articulará os
valores dos direitos das camponesas e camponeses, que deverão ser respeitados, protegidos e cumpridos pelos Governos e
as instituições internacionais. A CIDC será complementada por protocolos opcionais que assegurem a sua aplicação.
Durante a Conferência Regional sobre Direitos das Camponesas e Camponeses em abril de 2002, a Via Campesina formulou a
Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses mediante o processo de uma série de atividades, incluindo a Oficina
sobre Direitos das Camponesas e Camponeses em Medã, norte do Sumatra em 2000, a Conferência sobre a Reforma Agrária
celebrada em Jacarta, em abril de 2001, a Conferência Regional sobre Direitos das Camponesas e Camponeses, celebrada em
Jacarta em abril de 2002, e a Conferência Internacional da Via Campesina também celebrada em Jacarta, em junho de 2008.
Esta Declaração sobre os Direitos das Camponesas e Camponeses deveria ser a base da CIDC, a ser elaborada pela ONU, com
a total participação da Via Campesina e outros representantes da sociedade civil.
Esperamos o apoio das pessoas preocupadas com as lutas das camponesas e camponeses e com a promoção e proteção de
seus direitos.
* A Via Campesina
Referências:
Texto completo da Declaração que deveria ser a base da Convenção Internacional sobre Direitos das Camponesas e Camponeses: http://
viacampesina.net/downloads/PDF/SP-3.pdf
37
2.3 Conseguindo a justiça da água e o direito humano à água *
O estrepitoso fracasso das privatizações da água em grandes cidades do Sul evidencia claramente que o acesso ao
abastecimento e saneamento da água não deveria ser deixado nas mãos dos que só se guiam pelos lucros, ou seja, das
empresas transnacionais. Quase sem exceção, as corporações globais da água fracassaram em cumprir as melhorias
prometidas e, por outro lado, aumentaram as tarifas da água a ponto destas serem inalcançáveis para os lares pobres. O
surgimento de campanhas populares contra as privatizações em muitos países permitiu levar os fundamentalistas do livre
mercado às cordas.
Diante da gestão da água por grandes corporações e por empresas públicas frequentemente muito burocratizadas e
ineficazes, alternativas são desenvolvidas em todo o mundo. Sua construção adquire diversas formas, dependendo do
contexto sociopolítico, mas em muitos casos existem princípios compartilhados sobre o sentido do ‘público’, baseados na
gestão sem fins lucrativos e em pró do bem comum, a equidade e o controle democrático. A participação genuína de cidadãos
e comunidades é essencial na provisão democrática da água. Esta gestão alternativa da água conduz ao desenvolvimento da
comunidade, no qual as mulheres têm um papel importante e se apropriam do processo. A conservação dos aquíferos e rios
é prioritária em relação às onerosas soluções de alta tecnologia.
Associações público-públicas
As associações público-públicas, público-comunitárias e comunitário-comunitárias (APP), surgem como uma alternativa
melhor para o desenvolvimento de capacidades e para conseguir proporcionar água de forma universal, diante da gestão
privada ou por associações público-privadas. Além de uma definição estreita do público, as APPs são descritas como uma
ferramente concreta para conectar atores diferentes e compartilhar experiências e conhecimentos para melhorar os sistemas
públicos da água. Embora as APPs sejam diversas e flexíveis, compartilham algumas características claras, tais como servir
ao interesse público e, ao mesmo tempo, serem estritamente sem fins lucrativos. O público deveria ser central no espírito
das associações para garantir que conduzam ao desenvolvimento econômico. O desenvolvimento da comunidade não é algo
que se decida a partir de fora, mas é algo que deve ser discutido a nível local e de forma genuinamente democrática. As
associações falam de solidariedade, ausência de lucro e colaboração; não de concorrência. De confiança e abertura; não de
sigilos. De criação de oportunidades reais para a transferência de conhecimento e intercâmbio de experiências.
Por ser uma empresa devastada, a Autoridade de Abastecimento de Água de Phnom Penh (PPWSA) é considerada hoje
uma das empresas públicas destacadas da Ásia, com uma crescente reputação devido à sua excelência organizativa, por seu
serviço orientado pelos usuários e por uma prestação de serviços de alto nível. Entre 1993 e 2010, aumentou a cobertura do
serviço de água de 20% para 90% da população. Estas espetaculares melhorias foram alcançadas através de uma série de
projetos de associação público-pública.
Remunicipalização
A remunicipalização se converteu em uma tendência normativa crescente, não só no setor da água, mas também no elétrico e
em outros serviços essenciais na Europa e em outras regiões. Mais de 180 cidades do mundo inteiro remunicipalizaram seus
serviços de água nos últimos 15 anos.(1)
Depois de décadas de privatizações, o abastecimento de água em Paris passou com sucesso para a gestão pública entre 2009
e 2010, com resultados notáveis em vários aspectos: transparência crescente, redução de custos e preservação das fontes de
água. Trata-se da maior remunicipalização na Europa até o momento, e, sem dúvida, não foi fácil, em parte porque o serviço
de água em Paris dependia de duas companhias privadas (Suez e Veolia), cada uma delas cobrindo metade da cidade. Graças
à remunicipalização, a cidade economizou aproximadamente 35 milhões de euros no primeiro ano, e pôde reduzir a tarifa de
água em 8%.
Direito Humano à Água, Iniciativa de Cidadania Europeia e o Projeto Comunidade Azul
A campanha para o reconhecimento do direito humano à água é um exemplo de vitória coletiva. A Resolução da Assembleia
Geral da ONU sobre o direito humano à água e ao saneamento (A/64/292), aprovada em 2010, foi uma conquista significativa,
embora continuem a luta e os conflitos sobre a água.
38
O sucesso da Iniciativa de Cidadania Europeia sobre o direito à água (Right2Water)(2) é outro exemplo onde o direito à água se
aplica como ferramente jurídica para empoderar as pessoas, além de instrumento político. Em novembro de 2013, Right2Water
concluiu com sucesso a primeira Iniciativa de Cidadania Europeia, ao coletar 1,66 milhões de assinaturas válidas em 28 países
da UE.
O projeto Comunidade Azul nasceu no Canadá e é outro exemplo onde as municipalidades declaram que reconhecem o direito
humano à água e se comprometem a torná-lo efetivo.(3) Neste caso, 15 governos municipais do Canadá se declararam como
‘comunidades azuis’. E a iniciativa cruzou fronteiras: a cidade suíça de Berna se converteu na primeira comunidade azul na
Europa e a cidade de Cambuquira, no Brasil, na primeira da América Latina.
Alguns exemplos de democratização do abastecimento público de água
Gestão colaborativa e comunitária da água na Colômbia: A Rede Nacional de Aquedutos Comunitários na Colômbia foi
estabelecida com sucesso faz alguns anos. Os aquedutos comunitários são essenciais para as comunidades empobrecidas,
pois estão ocupando o vazio na distribuição do serviço de água em áreas rurais onde não chega a cobertura das empresas
ou da administração pública. São uma referência fundamental para a defesa dos territórios e diante das empresas mineiras
respaldadas pelo Governo, que contaminam e privam as comunidades do acesso aos aquíferos. A participação das mulheres
nestas iniciativas não é meramente simbólica, mas sim uma mostra do sentido de compromisso que estas têm com a sua
comunidade.
Companhia Estatal de Água de Tamil Nadu: Na Índia, a Companhia Estatal de Água de Tamil Nadu (TWAD) se comprometeu no
começo da década de 2000 a melhorar o acesso à água em cerca de 500 populações rurais que haviam sido marginalizadas
durante décadas.(4) A TWAD envolveu ativamente as comunidades nas decisões sobre as soluções para o problema da
água e apoiou o processo financeira e tecnicamente. Desta maneira, possibilitou que os povoados pudessem recuperar e
proteger seus recursos aquíferos, introduzindo tecnologia de fácil manutenção e baixo custo, e priorizando o acesso aos povos
indígenas e a outros usuários da água marginalizados. Seus esforços contribuíram também para que a região pudesse mitigar
as consequências da mudança climática. Mais de 3.695 associações de usuários de água elegidas democraticamente (que
representam 1,85 milhão de camponeses e camponesas) desempenham um papel fundamental para a reabilitação do sistema
de canais, a reinvenção de sistemas para armazenar água e sistemas de irrigação com economia de água, assim como ajudar
na diversificação das plantações.
* Reflexões sobre as lutas pela justiça da água – Red Reclaiming Public Water (RPWN) e
Transnational Institute
Notas:
(1) Satoko Kishimoto, Emanuele Lobina e Olivier Petitjean (2014) Llegó para quedarse: La remunicipalización del agua como tendencia global.
Unidade Internacional de Investigação de Serviços Públicos, Multinationals Observatory e Transnational Institute (TNI): http://www.tni.org/
es/briefing/llego-para-quedarse-la-remunicipalizacion-del-agua-como-tendencia-global
(2) Iniciativa de Cidadania Europeia sobre o direito à água: http://www.right2water.eu/es
(3) Projeto Comunidade Azul: http://www.canadians.org/bluecommunities
(4) Para mais informações: http://www.tni.org/es/work-area/water-justice
39
2.4 Construindo a soberania energética *
O atual sistema energético, entendido como um conjunto de relações que vinculam o sistema humano entre si, à natureza
e que é determinado pelas relações de produção existentes, é muito mais amplo que a estrutura ou matriz energética de
produção e consumo de energia. Inclui também um conjunto de relações entre as quais podemos citar as diferentes políticas
públicas, os conflitos setoriais, as alianças geopolíticas, as estratégias empresariais, as demandas setoriais, os oligopólios,
a relação entre energia e distribuição da riqueza, os desenvolvimentos tecnológicos e as relações com o modelo produtivo,
entre outras.
Diante das características do sistema energético mundial, como:
· alta concentração em relação à propriedade e gestão dos recursos energéticos convencionais;
· altos níveis de conflito referentes ao acesso às fontes energéticas;
· fortes impactos sobre as populações afetadas por toda a cadeia de exploração, extração, transformação e uso da
energia;
· altos impactos ambientais sobre a biodiversidade nas zonas rurais e urbanas;
· a utilização das fontes convencionais de energia causam dois terços das emissões de gases de efeito estufa,
causadores do processo de aquecimento global e mudança climática;
· os impactos das grandes obras de infraestrutura energética, em todos os elos de sua cadeia, sobre os territórios, a
biodiversidade e as comunidades afetadas;
· as iniquidades relacionadas às características da apropriação da energia e seus benefícios em toda a cadeia produtiva;
· a apropriação privada e com fins lucrativos dos bens e serviços energéticos;
· a mercantilização das cadeias energéticas em todas as suas etapas;
· a ausência da participação cidadã na construção das políticas energéticas e sobretudo na possibilidade de decidir
sobre os usos do território são uma característica inerente ao sistema energético vigente;
A mudança da matriz energética para uma matriz que dependa muito menos dos combustíveis fósseis e mais de fontes de
energia renováveis é só uma condição necessária para responder à alucinante situação climática, mas também claramente
insuficiente.
Disputar o conceito da soberania energética superando as visões que o vinculam só à segurança energética ou a visões
nacionalistas excludentes requer uma abordagem mais ampla do problema e tratar, entre outros, dos seguintes temas.
Desconstruir
Trata-se de disputar a ideia de que a quantidade de energia que necessita a sociedade deve ser sempre crescente. Desarticular
a ideia do crescimento material e energético infinito disputando os mecanismos culturais de satisfação de necessidades e o
imaginário da felicidade humana.
Desprivatizar e desconcentrar o sistema energético
É indispensável avançar em um processo de desprivatização dos espaços ocupados pela atividade privada para que sejam
ocupados pelas diferentes formas de propriedade pública. Somado a uma forte desconcentração e descentralização do setor,
propiciando o desenvolvimento de sistemas de geração de energia distribuídos.
Desmercantilizar o sistema energético
A lógica de mercado imposta ao setor, aprofundada sobretudo no período de maior embate do neoliberalismo, é o principal
entrave para deixar de considerar a energia uma mercadoria e transformá-la em um direito parte dos direitos ampliados, que
a configura não como um fim em si mesmo, mas sim como uma ferramente para melhorar a qualidade de vida dos povos. É
indispensável construir uma lógica de direitos em torno da energia.
40
Democratizar o sistema energético
Existem poucos setores na atualidade mais distanciados da decisão dos povos. As disputas em torno das obras agressivas
de infraestrutura são alguns exemplos. Mas em toda a cadeia de decisões em torno das políticas, os projetos e as opções
estão fortemente centralizados e com baixa participação das sociedades. Requer-se um forte processo de democratização
das políticas energéticas.
O desenvolvimento de políticas energéticas locais
A apropriação deste tipo de políticas pelas comunidades locais parece ser uma alternativa a esta forte centralização. Aqui
tem um forte peso o desenvolvimento de políticas municipais e comunais em torno da energia. A apropriação deste enfoque
alternativo pelas comunidades, embora possa apresentar um limite na disputa por outro sistema energético, também pode
gerar uma melhor correlação de forças para a disputa em maiores escalas.
Impulsionar a eficiência e o uso de fontes renováveis sustentavelmente
É indispensável modificar a matriz energética, substituindo os combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia. Hoje,
as condições de maturidade tecnológica e econômica podem facilitar a adoção destas fontes renováveis. Mas as fontes
renováveis não são uma panaceia e devem ser analisadas em cada passo para desenvolver aplicações sustentáveis não só
do ponto de vista ambiental, como também social e político. Neste caminho, a eficiência energética deve ser considerada uma
fonte de energia e, portanto, deve ser buscada e implementada.
Disputar o futuro
Os cenários futuros são neste momento o monopólio das agências de energia vinculadas às empresas transnacionais e
aos Governos. É necessário encontrar os mecanismos para desenvolver cenários alternativos aos cenários tendenciais das
empresas e Governos que só enxergam mais fósseis, mais concentração, mais negócios e mais pobreza energética.
Definindo a soberania energética
Em tempos de indignação com os abusos de poder de uma oligarquia, a sociedade demanda no mundo da energia (da
mesma forma que em outros âmbitos) uma nova onda democratizante. Se soberania se refere a poder, soberania energética
é falar de onde reside o poder no âmbito das energias. Diante de um enfoque como o da soberania do Estado, centralizado
na legitimidade dos Estados —não importando se foram cooptados por elites extrativistas—, a soberania dos povos defende o
direito de indivíduos, comunidades e povos para decidir sobre os assuntos que os afetam, para fazer política cotidianamente.
A soberania energética a que nos referimos se distancia da defesa das fronteiras e de interesses alinhados com as elites,
denuncia a cultura que promove a delegação das decisões em uma suposta neutralidade dos especialistas, seu planejamento
tecnocrata e a tomada de decisões de cima para baixo. Opõe-se à exclusão dos conhecimentos tradicionais e promove a
participação da cidadania ativa e a corresponsabilidade.
Assim, inspirada na definição alimentar da Via Campesina, a soberania energética poderia ser definida como o direito dos
indivíduos conscientes, das comunidades, e dos povos a tomar suas próprias decisões a respeito da geração, distribuição e
consumo de energia, de modo que estas sejam apropriadas às circunstâncias ecológicas, sociais, econômicas e culturais,
desde que não afetem terceiros negativamente.
Da mesma maneira, enquanto do ponto de vista da soberania estatal se falaria de independência e segurança energética
para referir-se à utilização de uma quantidade indeterminada de recursos que são considerados necessários para manter ao
máximo a economia doméstica (satisfazendo todos os tipos de consumos sem atender à sua origem), para a soberania dos
povos a soberania energética significa que todas as pessoas tenham direito ao acesso às energias em condições dignas e em
quantidade suficiente e equitativa.
Do ponto de vista da ‘cultura de especialistas’, pretende-se alfabetizar a população para que esta entenda a energia —ente
abstrato, homogêneo e especulável— por meio de uma relação vertical hierárquica e unidirecional. Por outro lado, do ponto
de vista da soberania energética, a realidade é vista como complexa, multidimensional e assimétrica, e deve compreender
41
os enfoques de todos os agentes afetados. Portanto, é necessário desmonopolizar a especialização, gerar uma comunidade
estendida de iguais composta por todos aqueles e aquelas que desejem entrar em diálogo e decidir. Os participantes deste
processo devem contribuir com seus feitos, que incluam conhecimentos imprescindíveis para que as energias necessárias
para as pessoas sejam satisfeitas. Trata-se das energias concretas e diversas ante a energia mercantilizada e oligopólica.
Além disso, alcançar a soberania energética também pressupõe que os povos possam decidir sobre as questões energéticas
sem interferências e escravidões, como as que representam a perseguição de lucros crescentes e a prestação de contas a
acionistas, às quais estão sujeitas as empresas privadas atualmente, e fruto da atual mercantilização da energia. Para priorizar
o controle dos povos sobre o bem comum energético deve-se transcender a disjuntiva entre o setor público e o privado,
ancorada também, em uma lógica onde outras visões, nem estatais nem privadas, sejam excluídas. Pelo contrário, deve-se
tender a fomentar estruturas e atores econômicos que nos liberem de tais escravidões e que permitam que a população tome
decisões livremente e entre iguais, seguindo o exemplo das atuais cooperativas comercializadoras de eletricidade.
A soberania energética (dos povos) é a que defende também a soberania de todos os povos que são. E em consequência,
o respeito à soberania de todos os povos implica a economia e a racionalização no uso dos bens comuns para que não se
interfira negativamente na soberania energética de outras comunidades nem das futuras gerações, seja mediante a geração
de problemas ambientais (tais como a mudança climática ou a geração de resíduos altamente radioativos) ou mediante o
acaparamento de bens de alguns povos sobre outros, às vezes por meio de guerras.
Para isso, deve-se relocalizar os processos de geração e distribuição energéticas em um duplo sentido: aproximando-os dos
pontos de utilização e facilitando a participação das pessoas nos processos de tomada de decisões. A soberania energética é
o caminho de empoderamento social que transforma as estruturas do poder oligopólico e cria novas realidades desde baixo,
pelos de baixo e para os de baixo. Na energia também.
* Coletivo editorial da revista Energia y Equidad - Pensar y agir (sobre) la energia
e Xarxa per la Sobirania Energètica
www.energiayequidad e www.xse.cat
Referências:
Definiendo la soberanía energética (2014) em El Ecologista, revista de Ecologistas en Acción, nº 81, verão de 2014: http://www.
ecologistasenaccion.org/article81.html
Pablo Bertinat e Eduardo D’Eloa, Observatório Petroleiro Sul, Roberto Ochandío, Marsitella Svampa y Enrique Viale (2014) 20 Mitos y
realidades sobre el fracking. Editora El Colectivo.
Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas para o Desenvolvimento – Pablo Bertinat (2013) ‘Un nuevo modelo energético para la
construcción del buen vivir’, em Alternativas al capitalismo/colonialismo del siglo XXI. Ediciones Abya Yala e Fundação Rosa Luxemburgo
2.5
Reconhecendo os direitos dos povos atingidos *
A definição de ‘atingidos pelas empresas’ e seus direitos
Ao longo de sua história, os movimentos sociais dos atingidos pelas empresas transnacionais e nacionais (trabalhadores e
trabalhadoras, camponeses e camponesas, povos indígenas, mulheres, pessoas atingidas pelas barragens, a mineração, as
indústrias extrativas) protagonizaram muitas lutas e alcançaram numerosos êxitos. Entretanto, os êxitos e avanços frutos de
décadas de mobilização e luta não se converteram em direitos, o que ocasionou que ‘os mesmos atingidos’ sejam tratados de
maneira distinta em diferentes Estados por ‘diferentes empresas’ (que muitas vezes são ‘as mesmas’) que cometem graves
violações dos direitos humanos.
No Brasil, por exemplo, a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) reconheceu
que “a despeito das garantias legais dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais aos atingidos por barragens, sua
42
efetivação, quando alcançada, tem ocorrido mais pela enorme pressão exercida pelos movimentos sociais’. O relatório assinala
que ‘os estudos de caso permitiram concluir que o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira
recorrente, graves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades
sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação familiar e individual’.(1)
A definição restritiva e limitada do conceito de “atingido pelas empresas” e as distintas reparações em cada caso são explicadas
porque as conquistas das pessoas não têm sido reconhecidas como direitos, já que não existe um marco jurídico nacional ou
internacional para garanti-los. Utilizando de novo o exemplo das barragens no Brasil, cabe destacar que a única lei existente
sobre os direitos dos atingidos é o Decreto-Lei N° 3365 de 1941, que só reconhece como pessoa atingida os proprietários de
terras que foram expropriados para o projeto, e que estabelece que o direito exclusivo destes é a compensação econômica
em dinheiro. Além disso, o Decreto não garante a negociação coletiva de preços, o reassentamento, nem o direito de livre
escolha. Também nega os direitos daqueles que não são proprietários e de todos os demais atingidos pela obra ou projeto:
professores, comerciantes, ocupantes, indígenas, pescadores e municípios, para citar alguns. Desta forma, se reconhece o
direito dos proprietários e são negados os direitos econômicos, sociais e culturais dos demais.
Por outro lado, encontramos a cooptação corporativa do Estado em completa assimetria: as empresas têm todos e cada um
dos seus direitos perfeitamente regulados, tanto a nível internacional (tratados de investimento, OMC) como a nível nacional
(onde as leis asseguram o financiamento dos bancos públicos, as subvenções às empresas transnacionais e o poder da
polícia). Por este motivo, os movimentos sociais atingidos por empresas transnacionais em todas as regiões do mundo se
mobilizam pela reparação de violações de seus direitos econômicos, sociais e culturais, e para que as legislações nacionais
incorporem o conceito dos direitos dos atingidos pelas empresas.
Portanto, é essencial que um Tratado dos Povos tenha um capítulo dedicado a abordar este conceito, as formas de reparar as
violações e os direitos já conquistados nas lutas em vários países. Os direitos se constroem socialmente, mas ainda não foram
incorporados ao marco jurídico nacional e internacional. A criação de um marco jurídico que reconhecesse os direitos das
pessoas atingidas (seja pelas barragens, a mineração ou outras atividades extractivas) representaria uma grande conquista
dos movimentos sociais locais e internacionais, embora seja evidente que é preciso ter em conta que o reconhecimento de
uma lei não significa que esta seja eficaz. A criação de um marco jurídico que reconhecesse os direitos das pessoas atingidas
(seja pelas barragens, a mineração ou outras atividades extractivas) representaria uma conquista de vários movimentos
sociais locais e internacionais. Em alguns países, já existem movimentos sociais que demandam o reconhecimento legal de
suas conquistas sociais como direitos.
O reconhecimento dos direitos dos atingidos em uma lei nacional seria algo de vital importância, já que representaria uma
grande conquista dos movimentos. Entretanto, somos conscientes de que o reconhecimento de uma lei não significa que esta
seja eficaz.
A proposta do Movimento dos Atingidos por Barragens é que o Tratado dos Povos contemple o conjunto de experiências e
lutas sociais desenvolvidas até o momento, incluindo os seguintes aspectos:
* definição do conceito de atingido
* definição das formas de reparação
* definição dos direitos dos atingidos
* reparação por violações passadas
A mobilização e o apoio de todos os aliados e aliadas na construção do Tratado dos Povos para a incorporação deste capítulo,
convertendo em marco jurídico as conquistas locais de lutas nas diversas partes do mundo, forma assim parte de um novo
tipo de conquista: a conquista de direitos.
* Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) / Via Campesina
Notas:
(1) Movimento dos Atingidos por Barragens (2011) ‘Relatório da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
2010’: http://www.mabnacional.org.br/content/relat-rio-da-comiss-especial-do-conselho-defesa-dos-direitos-da-pessoa-humana-2010
43
2.6 Defendendo os territórios e os direitos das comunidades diante
o extrativismo e da ‘economia verde’ *
O atual modelo capitalista financeiro exige um crescimento ilimitado das taxas de extração para alimentar a cobiça das
grandes empresas: extração de lucros, da força do trabalho e dos direitos trabalhistas, de combustíveis fósseis convencionais
e não convencionais, crescimento da infraestrutura para distribui-los e utilizá-los, maior extração de minerais e energia para
processá-los, maior extração de matérias-primas agrícolas e água para produzi-las. Mas isto não é o suficiente. Além do
negócio atual do extrativismo, fomentado pelos mercados especulativos em torno das reservas de recursos, se desenvolvem
novos mecanismos financeiros para gerar maiores fluxos financeiros e sustentar o sistema econômico dominante, assim como
para financiar ou justificar os assim chamados projetos de ‘desenvolvimento’.
Rotulamos de falsas soluções da perspectiva da justiça climática e ambiental, são verdadeiras soluções para o sistema
financeiro, especialmente após a crise recente de 2008. Com o selo de ‘economia verde’ ou com uma infinidade de nomes para
enfoques e mecanismos sofisticados, as empresas transnacionais abrem caminho como “atores chave do desenvolvimento
sustentável”.(1) Estas grandes empresas têm um papel central no desenho de políticas ambientais de mercado para encobrir
ou compensar sua contaminação, e necessitam de Estados a seu serviço que lhe garantam seus direitos e privilégios como
investidores, enquanto criminalizam os defensores ambientais, militarizam os territórios e debilitam os direitos dos povos e
as políticas sociais.
Tanto para o extrativismo como para o financiamento da natureza, a terra é um elemento essencial. E é precisamente a terra
o que os povos defendem em todo o mundo: resistindo aos acaparamentos de terras e construindo estratégias para liberar
territórios, fortalecendo os direitos coletivos e protegendo os meios de subsistência e os bens comuns que são fundamentais
para o bem viver da humanidade e de todos os seres vivos, com justiça e dignidade.
Liberar territórios
As lutas pela justiça ambiental e em defesa dos territórios contra o acaparamento de terras em mãos de grandes empresas
articulam a resistência, seja das comunidades atingidas que se opõem a projetos de grande escala, à energia suja, às
plantações ou à exploração de recursos minerais, ou a expressada em mobilizações nacionais e mundiais a favor de políticas
públicas e acordos internacionais Amparados nas disposições da legislação internacional como a Convenção 169 da OIT, os
povos indígenas, outras comunidades tradicionais e autoridades locais defendem a soberania dos povos sobre seus territórios
e o direito de decidir seu próprio caminho de desenvolvimento. Na Guatemala, mais de 40 municípios se declararam livres da
mineração e de ‘projetos de desenvolvimento’. Mediante uma lei nacional, a Costa Rica foi declarada em 2010 como um país
livre de megamineração. Existem 15 países e muitos estados, províncias e municípios livres de transgênicos em todo o mundo.
A legislação francesa de 2011 prevê a proibição da exploração de gás de xisto, e numerosas regiões na Europa, Estados Unidos
e Austrália fecharam as portas para esta atividade, declarando áreas livres de fratura hidráulica como resultado da luta das
comunidades locais. Frente de Organizaciones Populares Unidas declarou Chicomuselo, em Chiapas, México, território livre de
mineração e barragens durante uma grande manifestação em novembro de 2014.
Defensores e defensoras ambientais
A representante especial do Secretário-Geral da ONU sobre a situação dos defensores de direitos humanos reconhece o
vínculo existente entre o ativismo ambiental e os direitos humanos tais como os direitos à terra e aos recursos naturais, que
estão estreitamente ligados ao direito à saúde, à alimentação, e à água. Estes direitos estão esboçados no Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembleia Geral da ONU em 1966.
Global Witness contou 711 pessoas assassinadas entre 2002 e 2011 por defender os direitos humanos ligados ao meio
ambiente, especificamente a terra e os bosques, em fatos vinculados a enfrentamentos entre comunidades e as forças de
segurança do Estado. Os desaparecimentos registrados logo se transformaram em assassinatos confirmados, mortes na
prisão, ou assassinatos seletivos pontuais e múltiplos. Em um período de dois anos, entre 1º de novembro de 2011 e 31 de
outubro de 2013, Amigos da Terra Internacional (ATI) registrou mais de 100 ataques contra defensores/as ambientais em
27 países. Mais da metade das mortes registradas pelos ATI foram causadas por assassinatos intencionados de líderes
camponeses e por enfrentamentos violentados por conflitos relacionados à terra que muitas vezes implicam a proteção de
territórios camponeses contra projetos de desenvolvimento contaminantes tais como barragens hidrelétricas, plantações de
monoculturas ou a extração de petróleo, gás e minerais.
44
Não se trata de cifras isoladas. Os riscos que enfrentam os/as defensores/as ambientais ao defender seus direitos e territórios
formam um panorama alarmante que exige ações urgentes para erradicar as fontes de violência: -a violência institucional
e empresarial contra as comunidades e a natureza e a violência contra os defensores dos direitos humanos, incluídos os
da natureza, e do direito a defender os direitos. Os Estados devem promover e aprovar normas sobre direitos humanos de
cumprimento obrigatório para as empresas transnacionais e mecanismos de aplicação legalmente vinculantes para obrigar
as empresas transnacionais a respeitar os direitos da natureza, a população e os defensores de direitos. É de importância
crucial que as instituições multilaterais mantenham sua independência dos interesses empresariais e cumpram sua missão de
proteger os que são vulneráveis a violações de direitos.
Questionar o modelo neoliberal de produção e consumo agenciado pelas empresas transnacionais e fomentar um ambiente
favorável para que as comunidades e nações possam exercer seu direito à autodeterminação e trabalhar a favor dos meios
de vida sustentáveis, faz parte das alternativas para garantir a vigência dos direitos humanos e o respeito aos direitos da
natureza. São necessárias campanhas internacionais mais potentes para enfrentar essas tendências mundiais, e vincular as
fontes de poder empresarial e institucional às violações que se cometem nos territórios para assim transformar o sistema
e conseguir justiça social e ambiental. Também se requer, e já está crescendo rapidamente entre diversos movimentos e
setores da sociedade civil, uma rede de proteção mais robusta sustentada na solidariedade internacional para manter a salvo
os defensores ambientais.
Direitos comunitários diante das injustiças empresariais: gestão comunitária dos territórios
O respeito e a aplicação dos direitos das comunidades é promovido como um meio de resistência ao poder empresarial e
gerador de mudança social. A mobilização e a resistência contra a globalização agenciada pelas empresas transnacionais
geram espaços para o desenvolvimento de demandas e práticas mais progressistas.
Os direitos das comunidades são ferramentas que fortalecem a governança comunitária dos bosques (GCB), que faz referência
às normas e práticas utilizadas por muitas comunidades para a conservação e o uso sustentável dos bosques com os quais
coexistem. Este tipo de governança e gestão da terra é comunitária e tradicionalmente tem sido associado à proteção dos
bosques, em contraposição ao uso industrial e comercial dos mesmos. O mesmo está associado ao conhecimento tradicional
como uma alternativa à ‘ciência florestal’, que se baseia em modelos simplificados que assumem que a destruição é ‘reversível’
e que permitiram múltiplos casos de devastação dos bosques, assim como graves injustiças sociais. A governança comunitária
dos bosques é um conceito que abre novos horizontes e espaços para que as comunidades exerçam controle político sobre
seus territórios e recursos mediante a tomada de decisões horizontal e mecanismos transparentes.
As comunidades que se organizaram e governaram com sucesso seus bosques de maneira sustentável compartilham uma
série de características — tais como delimitação clara da área do bosque comunal—, o que garante um nível de confiança
maior em relação à propriedade comunitária da terra, e conhecimento local sobre o planejamento e o uso sustentável dos
bosques e da biodiversidade; níveis elevados de envolvimento participativo da comunidade, tanto das gerações jovens como
das mais velhas que apoiam a regulamentação do uso dos recursos naturais e seu respeito; capacidade de resolução de
conflitos, incluindo mecanismos que incentivam o diálogo, a monitoração e a prestação de contas, que em conjunto contribuem
para que a comunidade esteja em melhores condições de resolver conflitos internos de maneira criativa e transparente.
O reconhecimento legal pelo Estado e pela legislação nacional não são condições necessárias para a GCB, mas são importantes
quando garantem a propriedade da terra e dos direitos humanos consuetudinários e que a governança seja descentralizada
envolvendo as comunidades em modelos público-comunitários para o uso sustentável dos recursos e meios de subsistência.
Construir poder popular para desmantelar o poder das grandes empresas: alguns exemplos
Muitos dos exemplos de comunidades locais que conseguiram vencer as transnacionais se sustentam no poder popular que
construíram para defender seus territórios e práticas de gestão comunitária de bosques e terras. As comunidades indígenas
subanon em Mindanau, Filipinas, com o apoio de grupos eclesiais e outras organizações da sociedade civil, conseguiram
frear uma concessão mineira e a militarização associada a ela em suas terras ancestrais. Em Sarawk, as comunidades
indígenas deslocadas por uma mega barragem conseguiram que a sua demanda fosse considerada graças ao apoio de uma
assessoria legal constante. Na Indonésia, as medidas de conservação excludentes e as taxas alarmantes de desmatamento,
principalmente impulsionadas pela expansão das plantações de óleo de palma, foram enfrentadas com práticas e propostas de
gestão comunitária de bosques. A Shell vem sendo expulsa de Ogoni, no Delta do Níger, desde 1993, quando houve protestos
massivos, e suas violações de direitos humanos e ambientais históricas e atuais estão sendo denunciadas mediante ações
judiciais interpostas pelas comunidades afetadas. Em Camarões, as comunidades indígenas bagyeli foram expulsas de suas
45
terras e lhes foram negados os direitos à caça, à colheita e a seus locais sagrados para dar lugar a um parque nacional de
onde foram excluídas. Atualmente, sofrem novas ameaças como consequência da expansão das plantações, mas ainda assim
continuam reivindicando seus direitos e estão trabalhando para demarcar seus territórios ancestrais. Desse modo, ganharam
o direito a caçar e colher em certas áreas ‘protegidas’, e também lhes foram abertas novas oportunidades para negociar
diretamente com o Governo e garantir seus direitos consuetudinários.
Proteger os bens comuns contra o acaparamento verde empresarial: resistir à financeirização
da natureza
A financeirização pode ser considerada uma das respostas possíveis à crise de acumulação de capital, por isso a necessidade
de criar diferentes ativos físicos —mediante novos cercamentos e a privatização do que costumavam ser bens comuns— e
novos ativos financeiros associados nos quais investir. Ainda se trata de um processo em andamento, que requer fortes
intervenções estatais para construir, dar forma e pôr em funcionamento, mercados de capital suficientemente grandes que
possam associar-se a infraestruturas de mercados spot e possibilitar assim a extração de mais-valia adicional.
Nesse sentido, foram criadas novas mercadorias que respondem à lógica da financeirização desde o momento em que
foram concebidas. É o caso do ‘carbono’ e dos ‘serviços ecossistêmicos’ criados por lei. Embora possam ser percebidos
como ‘virtuais’, sua criação e comércio têm efeitos reais a nível local, já que, mediante a assinatura de contratos, privados as
comunidades transferem seus direitos a usar ou não usar sua própria terra às corporações e bancos que comercializam títulos
e bônus para compensar ou possibilitar a contaminação e a degradação ambiental.
Estas experiências foram até agora sumamente polêmicas e não muito bem-sucedidas desde uma perspectiva de longo prazo
como demonstra o colapso do sistema de comércio de emissões na Europa, mas a curto prazo permitiu gerar novos lucros
extraordinários a alguns poucos atores, principalmente dentro do setor financeiro. Mas tal como propõe Jutta Kill, não se trata
de um processo linear ou irreversível: “As formas históricas de mercantilização da vida foram abolidas ou foram socialmente
impugnadas, entre elas a escravidão e a prática de vender cartas de indulgência”.(2)
A resistência crescente à financeirização da natureza foi incorporada com maior ênfase na agenda política de diversos
atores e movimentos sociais a partir da convergência de movimentos sociais contra a mercantilização da natureza e em
defesa dos bens comuns na Cúpula dos Povos da Rio+20, e inclusive antes, a partir da crítica aos mercados de carbono pelo
grupo de Durban e como resultado da Cúpula dos Povos de Cochabamba em 2010. Também geraram iniciativas regionais
que se articulam a nível mundial, como as campanhas ‘É hora de desmontar o ETS’ e ‘A natureza não está à venda’ contra
as práticas europeias para compensações de carbono e biodiversidade, a Rede Contra o REDD na África e o Grupo Carta de
Belém no Brasil. Derrotar a financeirização da natureza faz parte da luta contra o poder financeiro e empresarial, e só poderá
ser construída desde baixo, por quem defende que os bens comuns e os direitos das comunidades se mantenham fora dos
mercados financeiros e em harmonia com a natureza, e construindo poder popular para desmantelar as transnacionais.
* Amigos da Terra Internacional
Notas:
(1) Os mecanismos ou enfoques da economia verde incluem: mercados de carbono, Redução das Emissões por Desmatamento e
Degradação dos Bosques (REDD), pagamentos por serviços ambientais (PSA), compensações de biodiversidade e outros enfoques
’sem perda líquida’, contabilidade do capital natural, bônus verdes, bancos de mitigação em biodiversidade, etc. Atualmente, existem 45
programas de mitigação compensatória no mundo todo e outros 27 programas em diferentes etapas de desenvolvimento ou pesquisa.
No interior de cada programa de compensação ativo existem numerosos locais de compensações específicos, incluindo mais de 1.100
bancos de mitigação a nível mundial. O mercado mundial anual alcança entre 2,4 e 4 bilhões de dólares no mínimo, e possivelmente
muito mais, já que 80% dos programas existentes não são suficientemente transparentes para estimar o tamanho de seu mercado,
segundo Madsen Becca, Nathaniel Carroll, Daniel Kandy e Genevieve Bennett (2011) 2011 Update: State of Biodiversity Markets.
Washington, DC: Forest Trends: http://www.ecosystemmarketplace.com/reports/2011_update_sbdm
(2) Jutta Kill (2014) Economic Valuation of Nature: the price to pay for conservation? A critical exploration, Rosa Luxemburg Foundation, p. 13
Referências:
Amigos da Terra Internacional (2011) Derechos comunitarios, injusticias empresariales: http://www.foei.org/wp-content/uploads/2011/10/
derechos-comunitarios.pdf
Amigos da Terra Internacional (2014) Defendemos el medio ambiente, defendemos los derechos humanos: http://www.foei.org/es/
recursos/publicaciones/publicaciones-por-tema/defensores-de-los-derechos-humanos-publicaciones/we-defend-the-environmentwe-defend-human-rights/
Textos de Re:common, com contribuições para a reunião de Amigos da Terra sobre financeirização da natureza (Paris, maio de 2014)
46
2.7 Proclamando o ‘bem viver’ dos povos indígenas para liberar a
Mãe Terra do saque capitalista *
O modelo de exclusão e saque dos bens comuns
Os povos indígenas a nível mundial são mais de 5.000 e representam uma população aproximada de 370 milhões de pessoas;
particularmente na América Latina somam mais de 45 milhões de indígenas. Nós, os povos, resistimos e continuaremos
resistindo a partir de nossos territórios e modos de vida particulares, que desejam o bem viver ante a exclusão histórica pelos
Estados e as sociedades dominantes e a sistemática vulneração de nossos direitos coletivos. Enfrentamos a partir do bem
viver o modelo econômico neoliberal que atualmente é o único paradigma no qual a maioria dos Governos vem apostando e do
qual outros não podem escapar. Este modelo nos impõem políticas de desapropriação e saque dos bens comuns em nossos
territórios (terras, água, bosques, biodiversidade, ar e conhecimentos) mediante mecanismos jurídicos como os tratados de
livre comércio (TLCs) e os tratados bilaterais de investimento (TBIs), contratos jurídicos com as empresas multinacionais.
Observamos atualmente que o projeto econômico neoliberal através dos Governos de plantão radicalizaram sua política
econômica extrativista em aliança com as empresas multinacionais respaldados pelas oligarquias nacionais, dando continuidade
ao modelo capitalista. Além disso, os territórios foram militarizados, os protestos criminalizados e as mobilizações dos povos
indígenas e setores sociais penalizadas com ações de repressão, perseguição e acusações judiciais às autoridades e líderes
indígenas e sociais, como uma política do Estado com a única finalidade de garantir o saque e a depredação de nossos
recursos coletivos. O modelo depredador e de exploração irracional colocou em risco a vida e a vigência de todos os seres
do planeta, e os Governos até o momento não possuem políticas nem estratégias para neutralizar os impactos da mudança
climática e seus efeitos. Ademais, suas soluções a suas próprias crises incluem transladar os impactos a nossos territórios:
entram em acordo sob o conceito de ‘economia verde’ para comercializar até a beleza de nossos páramos, bosques, rios,
lagoas, conhecimentos tradicionais e os espaços de conservação como o território dos povos isolados. Desta forma, vulneram
com maior facilidade nossos territórios e meios de vida de todos os seres, sem a consulta de nossas comunidades nem o
consentimento de nossos povos.
A alternativa indígena ao mundo: o bem viver
O modelo de exclusão e saque encontrou resistência em nós, comunidades e povos indígenas, que consideramos que estas
atividades vulneram nossos direitos e atentam contra os modos de vida que é representado no ‘bem viver’. Esta alternativa
é assumida como uma prática cotidiana de busca de respeito, harmonia e equilíbrio com tudo o que existe dentro de seu
território e além, pois nós, os indígenas, concebemos que nos territórios tudo está inter-relacionado e ao mesmo tempo é
interdependente. Este modo de vida nos permitiu viver em harmonia com o território e garantir a sobrevivência de nossos
povos, onde ademais se destaca a reciprocidade dentro do modo de vida coletivo que caracteriza os homens e mulheres
indígenas. Neste sentido, a lógica do desenvolvimento centrada no extrativismo impulsionado pelos Governos destrói o modo
de vida das comunidades e povos indígenas que dependem do território para viver.
A CAOI concebe que no bem viver “nos desenvolvemos em harmonia com todos e tudo, é uma convivência onde todos nos
preocupamos com todos e com tudo o que nos rodeia”. Também reafirma que o modo de vida baseado no bem viver “é viver
em comunidade, em irmandade e especialmente em complementariedade. É uma vida comunal, harmônica e autossuficiente.
Bem viver significa complementar-nos e compartilhar sem competir, viver em harmonia entre as pessoas e com a natureza. É
a base para a defesa da natureza, da própria vida e de toda a humanidade”. Neste sentido, nós, os povos indígenas, apostamos
na reafirmação da vida comunitária em harmonia e complementariedade como o caminho para a realização do bem viver em
contraposição à lógica individualista e competitiva do capitalismo como o modelo dominante na atualidade. Da mesma forma,
o bem viver se contrapõe à lógica de mercantilização ou sobreexploração dos recursos coletivos em territórios indígenas e
dos países do Sul ao conceber que a harmonia é também com a natureza. Portanto, as atividades humanas devem respeitar
o ciclo da natureza e sua capacidade para reestabelecer-se.
A concepção do bem viver baseado na cosmovisão dos povos indígenas busca romper as estruturas e valores do modelo
dominante atual e consegue chamar a atenção de movimentos sociais do mundo para que o adotem como o novo paradigma
a ser seguido. Em sociedades em constantes crises (econômica, ambiental, climática, energética), o modelo de vida dos
povos indígenas baseado no bem viver é uma opção para transitar do nível comunitário ao nível nacional e global como uma
alternativa para superá-las. O bem viver deve ser uma proposta de inspiração e resposta às crises que estão conduzindo o
47
modelo dominante atual. Nós, os indígenas, trazemos ao mundo moderno uma proposta baseada em nossa forma de vida
ancestral e cotidiana de respeito, harmonia e equilíbrio com tudo o que existe na Mãe Terra. Acreditamos que o modelo de vida
ocidental e de crescimento econômico infinito chegou ao seu limite e que para curar a Mãe Terra é necessário voltar à cultura
da vida, ao bem viver dos povos indígenas.
Nós, os povos indígenas, nos comprometemos e incentivamos outros movimentos à realização de uma Reunião Global pelo
Bem Viver e Vida Plena, a avançar na unidade dos processos organizativos e no governo dos povos e nacionalidades em
nossos territórios, a nível nacional, continental e global para fortalecer e reinventar estratégias de resistência diante do
modelo econômico neoliberal e extrativista. A continuar e radicalizar as ações de luta em defesa e recuperação dos territórios
desapropriados por medidas e atividades extrativistas, os conflitos armados e os megaprojetos de infraestrutura que afetam a
integridade de nossos territórios e rompem a harmonia e os sistemas de vida dos povos indígenas. A implementar o modelo
do bem viver como alternativa a partir dos povos indígenas para toda a humanidade. Neste marco nos comprometemos a
construir planos de vida e bem viver em cada um de nossos povos e nacionalidades (território, educação e cultura, saúde,
economia e produção, desenvolvimento institucional, organização e resolução de conflitos).
Da mesma forma, reconhecemos o papel ativo e decisivo da mulher na resistência ao extrativismo e fortaleceremos sua
participação no exercício da livre determinação dos povos, nas estruturas de governo próprio dos povos indígenas de tal
maneira que a sua participação seja paritária/dual/complementária (homem-mulher), visto que consideramos que a realização
do bem viver está fundamentada na reconstrução da complementariedade entre mulheres e homens e com todos os seres que
habitam os territórios para revitalizar nossos valores e princípios como povos indígenas.
Estados Plurinacionais, direitos coletivos e da Mãe Terra
Exigimos aos Estados o reconhecimento e a implementação dos Estados Plurinacionais, o que implica a convivência de povos
e nacionalidades indígenas com seus próprios sistemas de vida e que se respeitem os direitos individuais e coletivos. Neste
marco, os Estados devem desenvolver políticas que reconheçam a diversidade, a autonomia e a livre determinação, e que se
declare a Mãe Terra e a água e os demais elementos do território como seres vivos e sujeitos de direito. Simultaneamente,
pedimos que os povos indígenas exijam e exerçam todos os nossos direitos reconhecidos pelos Estados no mundo, em
particular os estabelecidos nos tratados internacionais como a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos
dos Povos Indígenas.
* Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas (CAOI)
Referências:
Este documento se baseia na Declaração de La María Piendamó, lançada na V Cúpula Continental dos Povos Indígenas do Abya Yala e na
II Cúpula Continental de Mulheres Indígenas do Abya Yala, celebrada de 10 a 16 de novembro de 2013 no Resguardo indígena La María –
Piendamó, Cauca Colômbia. Os documentos da Cúpula podem ser consultados em: www.coordinadoracaoi.org
48
Tratado dos Povos – Dimensão Alternativas
3 Visões de novas economias alternativas:
na teoria e na prática
3.1 Construindo convergências para uma mudança de sistema: economias para a vida
49
3.2 Avançando nas perspectivas regionais do pós-capitalismo: economias solidárias
51
3.2.1 A economia solidária como modo pós-capitalista de desenvolvimento
51
3.2.2 Agricultura sustentada pela comunidade: entre a soberania alimentar
e a economia solidária
3.2.3 A economia solidária como parte da alternativa ao poder corporativo
3.3 Colocando a economia a serviço da vida: o feminismo como alternativa
53
55
57
3.1 Construindo convergências para uma mudança de sistema:
economia para a vida *
A visão
Nossa visão é construir uma ecosociedade que persiga a equidade na humanidade e um equilíbrio com a natureza. Desejamos
uma economia que se baseie no reconhecimento dos seres humanos como parte da Mãe Terra, e não que estejam por cima
dela. O futuro depende da capacidade que tenhamos de recuperar nossa humanidade e preservar os ciclos vitais do sistema
da Terra.
Para alcançar este objetivo, a humanidade necessita de um novo tipo de sistema e de economia que se fundamentem nos
direitos humanos e nos direitos da natureza. Uma economia para a vida em nossa comunidade deve superar o sistema
capitalista, patriarcal, produtivista e extrativista que ameaça a natureza e os seres humanos como meros componentes para
a exploração.
Os povos são guardiões, não proprietários, da Mãe Terra. Os rios, os glaciais, as montanhas, os mares, os bosques e a
biodiversidade têm o direito de viver, regenerar-se, de estar livres de contaminação, de interagir e de preservar sua integridade.
Para a sua subsistência, os seres humanos necessitam e podem servir-se da Mãe Natureza, mas devem fazê-lo respeitando
os ciclos vitais da natureza. Podemos cortar uma árvore, mas não destruir o bosque inteiro; podemos nos alimentar de plantas
e animais, mas sem exterminar toda a espécie; podemos utilizar tecnologias para facilitar nossa vida sem ter que prejudicar a
integridade da natureza. Em outras palavras: a atividade econômica humana nunca deveria ultrapassar os limites, a capacidade
para regenerar-se e os ciclos vitais da naturaleza. Esta é a essência dos direitos da natureza.
A humanidade só pode prosperar se aplica de forma plena e universal os direitos humanos: direitos econômicos, sociais e
culturais; direitos civis e políticos; direitos das mulheres; direitos dos meninos e meninas, e dos idosos; direitos dos povos
indígenas, camponeses, trabalhadores, migrantes, pescadores e artistas, e direitos de todas as comunidades.
A economia para a vida é uma economia na qual se garantem as necessidades fundamentais de todos e cada um dos seres
vivos e da Mãe Terra para promover a criatividade, a humanidade e a felicidade da vida. Uma economia na qual a solidariedade,
a complementariedade, a diversidade, a paz e o bem-estar da comunidade Terra em seu conjunto ocupem o lugar da cobiça,
da ambição, da concorrência, do individualismo, da discriminação, da violência e da destruição de nossa Mãe Terra que geram
a lógica do capital.
49
A transição
Para alcançar uma economia para a vida, devemos adotar diversas medidas em distintos níveis:
Redistribuição e complementariedade
Substituir o paradigma do desenvolvimento pelo paradigma da redistribuição e da equidade. Para atender as necessidades
básicas de mais da metade da população do mundo e colocar fim ao transtorno dos ciclos vitais do sistema da Terra, as
economias nacionais e globais devem redistribuir a riqueza com o objetivo de reduzir as assimetrias dentro dos limites
da natureza. Alguns setores e países ainda devem melhorar seu bem-estar, enquanto outros devem reduzir seu consumo
excessivo e resíduos. O bem-estar de todos e todas só será sustentável quando compartilhemos o que é possível e o que está
disponível. O verdadeiro desafio não é só eliminar a pobreza, mas mais importante ainda é eliminar a concentração de riqueza
e poder, e alcançar uma justiça econômica e social baseada em direitos.
Assumir o controle, de forma democrática e consciente, dos principais meios de produção, finanças e comércio, e estabelecer
mecanismos de complementariedade, solidariedade e redistribuição que penalizem a sobreacumulação de riqueza e a destruição
de ecossistemas.
Aproximar os que produzem bens, aos que prestam serviços e às pessoas, fomentando a autogestão, a autoemancipação, a
solidariedade, e a interação social em harmonia com a natureza. Quanto mais perto seja a relação entre produção e consumo,
maiores possibilidades teremos de desenvolver o controle e a participação democráticos das pessoas na economia. Portanto,
devemos promover a produção e o consumo locais de bens duradouros para satisfazer as necessidades fundamentais das
pessoas e evitar o transporte de mercadorias que possam ser produzidas a nível local.
Colocar fim ao sistema de consumo excessivo, luxo e desperdício que alimentam as grandes empresas. A economia para a vida
não tentará vender mais para criar consumidores viciados, mas sim satisfazer as necessidades fundamentais e de qualidade
de todos e todas com bens duradouros que utilizem menos recursos naturais e que sejam reutilizados ou reciclados, seguindo
uma abordagem de “resíduos zero”. A publicidade deve se submeter ao controle da sociedade para acabar com o consumo
excessivo.
Transformar o comércio em um veículo para a complementariedade e não para a concorrência e o lucro. O comércio deveria
ser regido pelas necessidades das pessoas e não pela cobiça das transnacionais, intercambiando no mercado o que uma
comunidade, região ou país produz em excesso, depois de satisfazer suas próprias necessidades locais ou em busca daquilo
que não podem produzir localmente. Isto implica priorizar o valor de uso de todos os bens produzidos por cima de seu valor
de troca. Para alcançar este objetivo, as regras do comércio devem ser assimétricas: mais benéficas para os atores mais fracos
e mais exigentes para os mais fortes. O mundo hoje em dia é extremamente desigual. Por esse motivo, aplicar regras justas
nesta realidade só beneficia os mais poderosos. O ‘tratamento especial e diferenciado’ é totalmente insuficiente. Os acordos
comerciais deveriam ser assimétricos e permitir que as economias menores e mais desfavorecidas usassem diferentes
medidas comerciais para atender necessidades de sua população mais marginalizada. Neste sentido, podem ser aplicadas
distintas medidas, como por exemplo:
• voltar a aplicar tarifas alfandegárias e impostos sobre as importações de bens de luxo e outros bens já produzidos
localmente como forma de aumentar a base fiscal do Estado, apoiar a produção local e reduzir o esgotamento da
natureza.
• estabelecer restrições sobre as exportações e as importações, impostos à exportação, maiores tarifas alfandegárias,
subsídios e incentivos para os produtos de produção local, os bens duradouros e o baixo consumo.
• criar programas e políticas locais, regionais e nacionais de compra do setor público, pois são fundamentais para
incentivar as pequenas e médias empresas, as cooperativas e as empresas sociais locais de distintos setores.
• eliminar esferas como a agricultura, a água, a educação, a saúde, as comunicações, o financiamento, a propriedade
intelectual, a contratação pública, o investimento e os mecanismos de solução de conflitos investidor-Estado, entre
outras, de todos os acordos comerciais, com o objetivo de recuperar o espaço que necessitam as sociedades para
definir as melhores políticas possíveis para as pessoas e para a natureza.
Os mercados devem servir para intercambiar o que se necessita para o benefício comum da comunidade Terra.
A sociedade deve possuir e controlar democraticamente o sistema financeiro. Estabelecer mecanismos internacionais,
permanentes e vinculantes de controle sobre os fluxos de capital. Colocar em funcionamento um sistema monetário
50
internacional baseado em um novo sistema de reservas, incluída a criação de moedas de reserva regionais com o objetivo
de acabar com a supremacia do dólar e garantir a estabilidade financeira mundial. Socializar o dinheiro que atualmente é
controlado pelos bancos centrais que respondem a interesses privados e não a demandas sociais. Instaurar um mecanismo
global de controle público e cidadão dos bancos e das instituições financeiras. Proibir os fundos especulativos, os instrumentos
derivados e outros produtos tóxicos. Criar instituições bancárias baseadas nas pessoas e fortalecer as formas populares
de empréstimo existentes que se fundamentam na reciprocidade, nas cooperativas e na solidariedade. Institucionalizar a
transparência total do sistema financeiro tornando públicos todos os dados relevantes. Priorizar os empréstimos, com uma
taxa de juros mínima, que se definem mediante processos democráticos para satisfazer necessidades sociais e ambientais.
Estabelecer impostos progressivos como meio para garantir a redistribuição e acabar com a concentração da riqueza em
algumas poucas mãos. Estas medidas deveriam implicar, entre outras coisas, impostos sobre as altas rendas, os movimentos
de capital, os bens de luxo e os lucros, impostos sobre as transações financeiras, impostos sobre os combustíveis fósseis e
outras atividades contaminantes, e a eliminação dos paraísos fiscais.
Fomentar os processos de orçamentos participativos em todos os níveis e setores para redistribuir os impostos e as rendas do
Estado/da sociedade, assegurando assim que se satisfaçam as necessidades das pessoas.
Cancelar a dívida dos países que se impuseram a seus povos servindo interesses empresariais e privados. Estabelecer
sistemas de empréstimo e empréstito democráticos, responsáveis, justos e soberanos que estejam a serviço das pessoas e
da natureza. Abolir as condicionalidades sobre os créditos e sobre a ajuda com o objetivo de respaldar o direito soberano dos
povos a decidir. Os Governos e os Estados deveriam deixar de assumir a responsabilidade das dívidas de grandes empresas
e bancos.
Equidade
Desmantelar o poder das empresas transnacionais para alcançar a equidade e a justiça. Para conseguir um mundo sem
empresas transnacionais, devemos ativar várias medidas para limitar seu poder, impedir sua conivência com os Governos e
colocar fim à sua impunidade. Entre as medidas transitórias, poderiam enumerar-se:
• reduzir e eliminar seu poder: limitar o tamanho que podem alcançar; aumentar os impostos que devem pagar; medidas
contra a distorção de preços; controle de condutas especulativas e oligopólicas; nacionalização e socialização para
submeter as transnacionais ao controle democrático do povo e facilitar a aparição de atores médios e pequenos.
• impedir sua conivência com os Governos: estabelecer mecanismos sólidos e independentes de regulação, transparência
e prestação de contas entre o pessoal da função pública e representantes das empresas; garantir a participação social
no processo de regulação; transformar o Estado e a democracia para servir o povo.
• colocar fim à sua impunidade: incorporar os delitos das empresas ao nosso sistema judicial; introduzir códigos
internacionais vinculantes; estabelecer mecanismos tais como tribunais internacionais e regionais para julgar e
sancionar as violações dos direitos humanos e ambientais perpetradas pelas empresas transnacionais.
Devolver à sociedade a propriedade privada controlada por elites, transnacionais, grandes bancos e grandes empresas nacionais
e subnacionais. Reorientar o gasto público para garantir rendas básicas e segurança social, e financiar projetos em pró das
pessoas e da natureza.. Acabar com os resgates e os subsídios dos Governos às grandes empresas e aos bancos, e apoiar
por outro lado aquelas pessoas que estão perdendo seus lares, terras, oficinas e pequenos negócios.
Democratizar a gestão das empresas públicas de propriedade estatal. Fomentar a colaboração entre gerentes, pessoal,
sindicatos e consumidores e consumidoras/organizações sociais dos serviços públicos com este fim, e castigar as práticas
de corrupção e nepotismo.
* Movimentos Sociais por uma Ásia Alternativa (SMAA)
Referências :
Este artigo é parte do documento aberto que está sendo elaborado através de um amplo processo encabeçado pelos Movimentos Sociais
por uma Ásia Alternativa (SMAA), Gerak Lawan, A Via Campesina e os grupos que apoiam a campanha #EndWTO
Site dos SMAA: www.smaa.asia
51
3.2 Avançando nas perspectivas regionais do pós-capitalismo:
economias solidarias
3.2.1 A economia solidária como modo pós-capitalista de desenvolvimento *
Um mundo pós-capitalista só pode surgir de dois vetores que se entrelaçam: por um lado, as contradições do capitalismo, um
sistema que afasta os seres humanos, as comunidades as nações de si mesmas e de seus vizinhos, voltando uns contra os
outros mediante a cobiça, a voracidade e a concorrência; por outro lado, a ‘vontade coletiva nacional-popular’ (Gramsci) que
expressa a consciência crítica dos povos, quando estão maduros em um movimento massivo para a transformação.
Ao longo dos séculos, desde que o sistema do capital começou a se impor na história humana, os trabalhadores e as
trabalhadoras empregados e desempregados buscaram formas alternativas para organizar o consumo, a produção, o
comércio e o acesso e a gestão de bens e recursos produtivos. É o que podemos chamar de ‘uma economia do trabalhado
emancipado’, em contraposição à ‘economia do capital’. No passado floresceram experiências célebres como a Comuna de
Paris e a cooperativa de Rochdale, para citar alguns casos. Nelas foram praticados modos inovadores no âmbito do comércio,
da produção, da distribuição e, mais tarde, do consumo e das finanças. O desafio para as classes trabalhadoras foi, durante
mais de dois séculos de opressão, exploração e alienação, não só transformar a empresa no nível micro, como também
descobrir como criar entornos que propiciem o desenvolvimento de formas de organização sistêmica da economia nos níveis
macro e intermediário, baseado na premissa de que a vida e sua evolução, na forma de seres autopoiéticos, e cosmopoiéticos,
é o verdadeiro sentido do saber, do trabalho e da criatividade humanos. Por esse motivo, os povos trabalhadores devem
tornar-se o sentido e protagonista das relações e das práticas socioeconômicas. O empoderamento econômico de homens e
mulheres trabalhadores representa a base de seu empoderamento político e representa, portanto, uma dimensão essencial
da verdadeira democracia.
Experiências na América Latina
O movimento da economia solidária na América Latina e no Caribe bebeu tanto das formas de organização da vida e do
trabalho dos povos indígenas como das formas europeias de organizar a produção e os fluxos econômicos de bens e serviços
sobre a base da autogestão, da cooperação e da solidariedade. Segundo um cálculo conservador, no Brasil são quase 20.000
as cooperativas, associações e entidades de consultoria solidária que trabalham de maneira colaborativa, gerando uma renda
anual que equivaleria a no mínimo 3 bilhões de dólares americanos. Desde 2003, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (1)
consegue promover a organização autônoma da sociedade civil para estabelecer fluxos socioeconômicos e manter um diálogo
dinâmico com a Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.
Em outros países da América Latina e do Caribe foram desenvolvidas articulações parecidas. A interação entre ativistas,
pesquisadores e pesquisadoras, e pessoas dedicadas à assessoria da economia solidária resultou na criação da Rede
Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS) (2), que atualmente está organizada em seis
continentes, entre os quais América Latina e o Caribe.
A economia solidária em todo o mundo
A economia solidária em todo o mundo é um movimento plural, que aglutina pessoas que o consideram simplesmente um
mecanismo social para compensar o desemprego e as desigualdades de renda e riqueza, mas que também mobiliza pessoas
e organizações que promovem o potencial da economia solidária como una forma pós-capitalista de conceber e organizar a
produção, o desenvolvimento e a reprodução da vida no planeta, no equilíbrio harmônico com os ecossistemas.
* Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS)
Notas :
(1) O Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) está presente em todo o país, com mais de 160 fóruns municipais, microrregionais
e estatais, onde participam diretamente mais de 3.000 iniciativas de economia solidária, 500 organizações de consultoria solidária,
12 governos estatais e 200 governos municipais através da Rede Nacional de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidaria:
www.fbes.org.br
(2) Ver: http://www.ripess.org/?lang=es
Referências:
Arruda, Marcos (org.) (2008) ‘Exchanging Visions of a Responsible, Plural and Solidarity-based Economy’, PACS/ALOE/FPH, documento
que resume o trabalho coletivo do grupo de trabalho sobre Visiones (ALOE)
Arruda, Marcos (org.) (2009) ‘A Non-Patriarchal Economy is Possible – Looking at a Responsible, Plural and Solidarity-Based Economy
from Different Cultural Facets: Asia – Latin America – North America - Europe’, PACS/ALOE/FPH, manual que apresenta quatro estudos
continentais com distintas visões de uma Economia Responsável, Plural e Solidária, com o objetivo de estimular o diálogo intercultural
Arruda, Marcos (2009) Education for a Love Economy: Praxis Education and Solidarity Economy, Aparecida do Norte, São Paulo: Ideias&Letras
52
3.2.2 Agricultura sustentada pela comunidade: entre a soberania alimentar
e a economia solidária *
O final do século XX pode ser caracterizado pela aparição de formas extremas tanto na globalização do comércio como dos
movimentos sociais. Os espaços onde floresceram estes últimos não só giraram em torno do Fórum Social Mundial, mas
também se tornaram evidentes nos movimentos temáticos que nasceram dos problemas gerados pelos impactos mais graves
e negativos da globalização e da industrialização sobre o terreno nas décadas de 1970 a 1990. Muitos destes movimentos se
articularam em torno dos direitos humanos, como o direito a uma alimentação saudável e adequada.
Teikei, o movimento japonês da agricultura sustentada pela comunidade (ASC; também conhecido como ‘agricultura apoiada
pela comunidade’), nasceu na década de 1970.(1) O movimento surgiu do afã das donas de casa japonesas de assegurar-se
de que podiam alimentar suas famílias com alimentos seguros e saudáveis, e evitar as terríveis consequências da doença
de Minamata, provocada pelo envenenamento por mercúrio industrial. Segundo a definição da Associação Japonesa de
Agricultura Orgânica: “Foi uma ideia de criar um sistema alternativo de distribuição que não dependesse do mercado
convencional. Embora existam distintos modelos de teikei, trata-se basicamente de um sistema de distribuição direta. Para
implantá-lo, produtor(es) e consumidor(es) dialogam e estão em contato para melhorar seu entendimento mútuo: ambos
proporcionam horas de trabalho e capital para apoiar seu próprio sistema de abastecimento (…) O teikei não só é uma ideia
prática, mas também uma filosofia dinâmica para fazer que as pessoas reflitam sobre uma melhor forma de vida, seja como
produtor/a ou como consumidor/a através da interação mútua”.(2)
O movimento se estendeu aos Estados Unidos e à Europa no início do século XXI, e, no ano de 2004, foi criada em Urgenci
França, a Rede Internacional da Agricultura Apoiada pela Comunidade. Segundo os estatutos da associação, a missão de
Urgenci consiste em “expandir em escala internacional as alianças locais e baseadas na solidariedade entre produtores
e consumidores. Definimos a aliança baseada na solidariedade como um compromisso equitativo entre agricultores e
consumidores, no qual os agricultores recebem una remuneração justa, e os consumidores compartilham riscos e benefícios
da agricultura sustentável”. Atualmente, existem iniciativas e redes de ASC na maioria dos países e em todos os continentes,
embora estejam mais difundidas na Ásia, na Europa e na América do Norte.
Por definição, uma rede deste tipo tem uma dupla afiliação, a primeira das quais seria o movimento pela soberania alimentar. O
termo ‘soberania alimentar’ foi alcunhado pela Via Campesina (LVC) em 1996 e afirma o direito dos povos de determinar seus
próprios sistemas alimentares. Segundo o fórum internacional que se celebrou na cidade de Nyéléni, em Mali, em 2007: “A
soberania alimentar é um direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma
sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentício e produtivo. Isto coloca aqueles que produzem,
distribuem e consomem alimentos no coração dos sistemas e políticas alimentárias, por cima das exigências dos mercados
e das empresas”.(3) Urgenci, portanto, se considera um movimento social que faz parte da ‘família’ da soberania alimentar.
Urgenci se encarregou de impulsionar o processo de Nyéléni Europa, dedicado aos sistemas alternativos de distribuição de
alimentos, desde a importante reunião europeia que foi realizada em Krems, Áustria, em agosto de 2011.(4,5) Neste encontro
houve o encontro de delegações de 35 países, que trabalharam conceitos e estratégias para gerar políticas e ações relativas
a todos os aspectos da soberania alimentar na Europa. Como resultado desta primeira reunião de Nyéléni Europa, Urgenci
desenvolveu atividades sobre sistemas alternativos de distribuição de alimentos em mais de 20 países europeus. Desde então,
Nyéléni Europa também organizou outros dois grandes encontros: um em Milão, em 2012,(6) e outro em Villarceaux, em uma
granja agroecológica que também funciona como centro de reuniões da Fundação para o Progresso da Humanidade (FPH)
(7) perto de Paris, em março de 2014.(8)
O objetivo era desenvolver as atividades de fortalecimento das redes europeias, difundir o conceito da ASC e compartilhar
boas práticas. Este trabalho abriu caminho para vários projetos conjuntos financiados pela União Europeia. As conclusões da
reunião de Milão podem ser consultadas no site de Urgenci.(9)
A segunda afiliação lógica das alianças locais e baseadas na solidariedade é a economia solidária.
A ideia e a prática de uma ‘economia solidária’ surgiu na América Latina em meados da década de 1980 e prosperou em
meados e no final da década de 1990 como resultado da confluência de, pelo menos, três tendências sociais. Em primeiro
lugar, a exclusão social sofrida por cada vez mais setores da sociedade, gerada por uma crescente dívida e os conseguintes
programas de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional, obrigaram muitas comunidades a desenvolver
e fortalecer formas criativas, autônomas e locais de satisfazer necessidades básicas. Entre estas, estavam iniciativas como
cooperativas de trabalhadores e produtores, associações de bairro e comunitárias, associações de poupança e empréstimo,
53
cozinhas coletivas e organizações de ajuda mútua entre desempregados ou trabalhadores rurais sem terra. Algumas destas
iniciativas, como as cooperativas, existem há mais de um século. Entretanto, em resposta às crises econômicas, na maioria
dos países surgiu uma série de novas iniciativas transformadoras.
Em segundo lugar, a crescente insatisfação com a cultura da economia de mercado dominante fez que grupos de pessoas
mais privilegiadas economicamente buscassem novas formas de gerar meios de vida e de prestar serviços. A partir de uma
‘contracultura’ em grande medida protagonizada pela classe média —parecida com a surgida nos Estados na década de 1960—
emergiram projetos como as cooperativas de consumo, as iniciativas para o cuidado cooperativo de meninos e meninas e
a atenção à saúde que são complementárias aos sistemas nacionais de saúde existentes, atualmente corroídos pela crise,
cooperativas habitacionais, comunidades intencionais e ecovilas. Entre estes dois grandes grupos existiam frequentemente
importantes diferenças culturais e de classe. Entretanto, as iniciativas que geraram compartilhavam um conjunto comum
de valores operativos: cooperação, autonomia de autoridades centralizadas, e autogestão participativa por parte de seus
integrantes.
Uma terceira tendência vinculou estes dois grandes movimentos de base da economia solidária, tanto entre si como ao
contexto socioeconômico mais geral: os emergentes movimentos locais e regionais começavam a forjar conexões globais
diante das forças da globalização neoliberal e neocolonial. Buscando uma alternativa democrática à globalização capitalista
e ao socialismo de Estado, estes movimentos identificaram os projetos econômicos de base comunitária como elementos
fundamentais de uma organização social alternativa.(10) A Fundação para o Progresso da Humanidade (FPH) apoiou a Aliança
para um mundo responsável, plural e solidário (também conhecida como Aliança 21) em suas pesquisas e projetos.(11)
* Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS)
A Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS) foi fundada em Lima, Peru, em 1997, e hoje em dia é a
principal rede global do movimento da economia solidária, sendo reconhecida pelas Nações Unidas como tal.(12)
Notas:
(1) http://www.joaa.net/english/teikei.htm
(2) Associação Japonesa de Agricultura Orgânica: In the beginning there was «teikei»
(3) http://www.nyeleni.org/spip.php?article291
(4) http://vimeo.com/37734507
(5) http://www.nyelenieurope.net/en/
(6) http://www.gartencoop.org/tunsel/system/files/final%20report_FINAL_AKorzenszky.pdf
(7) http://www.fph.ch/?lang=fr
(8) http://www.urgenci.net/en-gb/content/2nd-european-meeting
(9) http://blog.urgenci.net/?p=1139
(10) «Other Economies Are Possible!»: Building a Solidarity Economy, Ethan Miller, GEO Collective
(11) Este artigo foi escrito originalmente para ser publicado na China, em um livro elaborado no marco de uma oficina internacional
sobre circuitos curtos para o abastecimento de alimentos e sistemas locais de alimentação sustentável, organizado pelo Instituto de
Desenvolvimento Rural da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
(12) http://www.ripess.org/?lang=es
54
3.2.3 A economia solidária como parte da alternativa ao poder corporativo *
Atualmente nos encontramos em um contexto em que o investimento tem uma dinâmica separada da economia real da
vida e das necessidades cotidianas. Trata-se de um contexto em que as grandes empresas investem seu dinheiro nos
mercados monetários, tirando dinheiro do dinheiro, em vez de empregar pessoas para que produzam coisas e serviços úteis.
Enfrentamos Governos que cedem a prestação de serviços a empresas privadas que só perseguem lucros garantidos. Diante
desta realidade, muitos milhões de pessoas do mundo todo estão auto-organizando sua própria criatividade para satisfazer
necessidades práticas e, além disso, fazê-lo em harmonia com a natureza e em condições de trabalho humanas. O resultado
é a aparição de uma lógica econômica baseada na reciprocidade ou na solidariedade, em contraposição à corrida competitiva
para gerar e acumular lucros.
Vale a pena explorar a ideia da economia solidária para tentar elucidar se esta pode oferecer um conceito no qual enquadrar
o desenvolvimento de uma alternativa ao poder corporativo. Trata-se de um conceito que enquadra uma grande variedade de
formas organizativas. Esta variedade se deriva do fato de que os princípios de reciprocidade foram objetos de experimentos
em distintos momentos históricos e se veem mais favorecidos por certos tipos de tecnologia que por outros.
Estamos em um momento particular da história da tecnologia que nos proporciona ferramentas que potenciam a criatividade
das pessoas e a colaboração direta entre elas, e, ao mesmo tempo, ampliam as possibilidades de cooperação e coordenação
em escala global. O uso futuro destas tecnologias será controvertido: algumas grandes empresas privadas já veem uma mina
de ouro no patrimônio comum de conhecimentos que se produz com as tendências habituais das pessoas a se comunicarem,
socializar e compartilhar informação. Mas o cerne da questão é que foram criadas ferramentas tecnológicas influenciadas em
grande medida pelos ambiciosos valores cooperativos da geração de 68 e que elevam potencialmente a economia solidária
a um novo nível, permitindo que seu enraizamento na reciprocidade local abrisse caminho para uma alternativa global. Em
outras palavras: enquanto a produção é local, as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) tornam possível que
a organização social, política e econômica seja global, e capaz de criar um contrapoder nessa mesma escala.
Para entender e pensar as possibilidades ao nosso alcance, cabe situar o desenvolvimento da economia solidária em seu
contexto histórico. A busca prática de alternativas ao lucro privado baseadas na reciprocidade é tão velha como o capitalismo.
Desde o século XIX, esta dinâmica social gerou uma variada tradição de produção cooperativa. Estas formas de produção
baseadas na solidariedade têm históricos distintos, mas temos suficientes experiências de sucesso sustentado, mesmo sob
a pressão do mercado capitalista, para concluir que as cooperativas são um elemento da economia solidária alternativa ao
poder corporativo.
Um elemento vital para difundir as formas cooperativas de produção é o nível de comunicação e tecnologia da informação. A
forma como a tecnologia digital foi desenvolvida, através da rede web global, possibilitou que as pessoas que compartilham
valores de cooperação igualitária e aberta levem a produção cooperativa, em particular a produção cultural, a um novo nível de
escala e relevância econômica através do que se conhece como produção entre pares (o P2P). Globalmente e localmente, as
comunidades produtivas de cidadãos e cidadãs estão criando grandes reservas comuns de conhecimento, código (software)
e design, que estão à disposição de qualquer pessoa, empresa e autoridade pública caso se deseje seguir trabalhando nela.
Muitas vezes, este patrimônio comum de conhecimento produtivo é gestionado por fundações democráticas e organizações
sem fins de lucro, que protegem e facilitam a infraestrutura produtiva comum de cooperação, e preservam a reserva comum
de conhecimentos de qualquer tentativa de apropriação, privada, geralmente usando licenças abertas. Segundo um recente
relatório dos Estados Unidos sobre o que se conhece como a ‘economia do uso justo’ —ou seja, atividades econômicas baseadas em conhecimentos abertos e compartilhados—, o peso econômico desta economia nesse país equivale a um sexto do PIB.
Entretanto, frequentemente foram as grandes empresas capitalistas que viram este potencial, rentabilizando-o e
transformando-o em uma fonte de lucros. Sem instituições cidadãs sólidas e comprometidas com a ideia do patrimônio
comum e do bem público, os sistemas de conhecimento aberto são vulneráveis à apropriação e posterior mercantilização das
empresas capitalistas, tal como ocorre hoje em dia com a internet. A recente sentença da Comissão Federal de Comunicações
(FCC) dos Estados Unidos que corrói a neutralidade da rede representa um avanço substancial na privatização do que até
agora foi um patrimônio comum e global de informação acessível para todos e todas. Basta observar a capacidade do Google
e da Apple de lucrar com o trabalho social voluntário de desenvolvedores de software e membros de redes sociais para
compreender que este mundo do intercâmbio P2P é um mundo muito disputado. Ou podemos recordar a reação defensiva
dos monopólios corporativos da indústria musical na década de 1990, ameaçados pela aparição espontânea do intercâmbio
de arquivos P2P, e recorrendo ao Estado para que este apoiasse seus interesses corporativos diante do forte movimento para
compartilhar e criar um espaço cultural público.
55
Mas o que estamos vendo, sobretudo a partir de experiências na América Latina, é que o Estado não necessita ser o guardião
dos interesses corporativos. Pode ser sócio dos movimentos e iniciativas que defendem o patrimônio comum. A experiência
do Uruguai, depois do sucesso do movimento contra a privatização da água e do referendo para que a Constituição garantisse
a proteção da água como um bem público, demonstra que um Governo pode proteger e ao mesmo tempo expandir um bem
comum natural como é a água. Na mesma linha, mas esta vez em relação a um patrimônio comum imaterial, o Governo do
Equador embarcou em um ambicioso plano para desenvolver o patrimônio comum de conhecimentos como base para uma
economia híbrida baseada nos valores do bem viver. Sua visão é a de um Estado sócio explícito. Em vez de se concentrar na
colaboração público-privada, que exclui a participação da sociedade civil, um Estado sócio que apoie o patrimônio comum
perseguirá o desenvolvimento de parcerias público-sociais ou público-bens comuns. É muito provável que uma vez que
o Estado se comprometa a apoiar uma economia cidadã e ética baseada nos bens comuns na esfera do conhecimento,
também busque o desenvolvimento de bens comuns institucionais na esfera física. Por exemplo, desenvolver as políticas de
desenvolvimento habitacional baseadas no patrimônio comum e que mantenham a habitação social fora da esfera especulativa.
Tal como ilustra de forma especialmente nítida a experiência da América Latina, a economia solidária emerge em parte
do conflito e não existe nenhum âmbito onde isto seja mais patente que nas lutas pelos serviços públicos e as empresas
públicas em todo o mundo. O Estado de bem-estar e a criação de empresas de serviços públicos na era do pós-guerra
foram uma tentativa dos Estados social-democratas de criar serviços e empresas com objetivos sociais em vez de objetivos
privados ou empresariais. Entretanto, as relações sociais destes Estados de bem-estar tendiam a ser um pouco paternalistas
e tecnocráticas em suas formas de gestão e provisão. Os valores da solidariedade raramente eram vistos no funcionamento
cotidiano destas instituições, embora houvesse algumas poucas exceções, como o Serviço Nacional de Saúde (NHS) do Reino
Unido.
Em muitos casos, quando os meios de vida e a satisfação laboral dos trabalhadores e trabalhadoras dos serviços públicos se
viram ameaçados por Governos que buscam, com frequência sob pressão corporativa, privatizar o serviço que prestavam estes
trabalhadores, transformando seu trabalho de utilidade social em uma mercadoria para o lucro empresarial, os trabalhadores e
trabalhadoras do serviço público resistiram. Esta resistência, entretanto, também acarretou propostas para reformar o serviço,
de maneira que este se baseie em relações de solidariedade ativa, em vez de se limitar a defender a ordem estabelecida de
prestação burocrática formal.
Esta resistência transformadora através de alianças entre usuários e produtores é outra das esferas da economia solidaria,
que alguns, como o ativista da água Tommaso Fattori, chamam de luta pela ‘comunificação’ do Estado.
Efetivamente, um crescente leque de lutas em defesa de atividades e recursos que são considerados essenciais para uma vida
plena enquadra sua visão de autogoverno cooperativo em termos de bens comuns. Em consequência, está ocorrendo um rico
processo de fertilização cruzada entre distintas esferas da vida —a gestão da água, a produção e a difusão de conhecimentos,
a organização de serviços de reprodução como a saúde, o saneamento e a reciclagem de águas residuais— que busca as
regras mais eficientes do ponto de vista prático na tomada de decisões que seja autônoma da elite pós-democrática e que a
supere. O resultado é uma rede cada vez mais densa de experimentos em direção a uma economia solidária.
A economia solidária está surgindo claramente como uma possível ecologia de diferentes formas econômicas que compartilham
valores comuns: um potencial sistema híbrido. Esta possibilidade influi na natureza de nossas lutas e alianças, assinalando a
importância das alianças que juntam as campanhas de oposição com alternativas práticas que já estão gerando benefícios
positivos no aqui e agora. Estas alianças já se manifestam em movimentos que trabalham com alimentação, água e energias,
que denunciam o poder corporativo e se opõem a eles, e ao mesmo tempo constroem um tipo de contrapoder que demonstra
que uma alternativa não só é possível, como também já está em construção e com ânimo construtivo.
* Reflexões sobre a economia solidária em distintas regiões do mundo
Referências :
Satgar Vishwas (ed.) (2014) The Solidarity Economy Alternative: Emerging Theory and Practice, Pietermaritzburg, África do Sul:
University of KwaZulu-Natal Press
56
3.3 Colocando a economia a serviço da vida:
o feminismo como alternativa *
A igualdade em todos os âmbitos da vida como o princípio fundamental da sociedade que desejamos construir é a contribuição
do feminismo às alternativas ao modelo capitalista, patriarcal e racista, fortalecido pelas empresas transnacionais. Este modelo
se baseia em uma divisão sexual do trabalho que separa e estabelece uma hierarquia entre o trabalho realizado por homens e
mulheres, dando maior valor às atividades desempenhadas pelos homens. O trabalho e os cuidados domésticos, que garantem
a reprodução da vida e implicam tarefas como o cuidado das pessoas, a alimentação e a limpeza, são atribuídos às mulheres, e
os chamados trabalhos ‘produtivos’ são atribuídos aos homens. Entretanto, na realidade, as mulheres conciliam as atividades
produtivas e reprodutivas, já que estão presentes em ambas as esferas ao mesmo tempo.
A divisão entre o trabalho produtivo e reprodutivo corresponde a uma separação entre o espaço público e privado, e entre
as atividades comerciais e não comerciais. As atividades que não podem ser mercantilizadas não são valorizadas e não são
consideradas como trabalho. Este é o caso do trabalho reprodutivo que realizam as mulheres no âmbito doméstico, ao que
dedicam uma grande quantidade de tempo e energia, e que muitas vezes se torna invisível.
A economia feminista dá uma maior visibilidade à contribuição à economia e às experiências das mulheres, e demonstra como
a produção comercial (os bens e serviços que são vendidos no mercado) está inter-relacionada com a reprodução social, ou
seja, com a produção de pessoas e de vida. Isto abarca tudo aquilo que vai desde a gravidez até o parto, passando pelo cuidado
de meninos e meninas, pessoas doentes e idosas, e inclusive homens adultos, para que estejam saudáveis e com disposição
para trabalhar no mercado. Quando falamos de ‘cuidado’, não só nos referimos a cozinhar, limpar, lavar e passar a roupa,
mas também a proporcionar afeto, segurança emocional e preservar a rede social que mantêm unidas as famílias, vizinhos
e comunidades. Nós, as mulheres, geramos uma riqueza não monetária que redistribuímos diretamente (sem passar pelo
sistema financeiro formal). Desde uma idade muito precoce, as mulheres dedicam uma quantidade significativa de seu tempo
para satisfazer as necessidades da sociedade, suas famílias e suas comunidades.
A economia feminista coloca a sustentabilidade da vida humana e o bem-estar coletivo no centro da organização econômica
e territorial. Questiona a sociedade de mercado onde as relações das pessoas com outras pessoas, com elas mesmas e
com seu corpo, e com a natureza, é vista como um negócio onde o mais importante é o lucro. Da perspectiva da economia
feminista, propomos uma mudança no que se entende por ‘economia’, dando visibilidade ao conjunto de processos que são
necessários para a produção da vida e questionando os paradigmas da economia dominante. A economia dominante só
reconhece a produção comercial, que é entendida como o resultado das ações de atores econômicos ‘livres e iguais’, que
priorizam os interesses individuais e buscam maximizar os lucros ao menor custo possível. Estas premissas correspondem a
um homem branco que tem cerca de trinta anos que goza de boa saúde e de uma boa posição econômica, mas não à maioria
da humanidade. Embora não se baseiem na realidade, estes são, os paradigmas que regem as políticas econômicas ditadas
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a maioria dos
Governos do mundo todo.
Reconhecer a interdependência entre as esferas da produção e da reprodução não só é necessário porque é nesta última
onde se produz a força de trabalho para a produção capitalista, como também porque este conjunto de tarefas satisfaz funções
vitais para garantir o bem-estar da população em geral. Na sociedade de mercado, se estabeleceu uma linha divisória ente
‘o econômico’ e ‘o social’. O pensamento neoliberal acentua esta divisão, como se fosse possível que as políticas sociais e
econômicas seguissem caminhos separados. Enquanto as políticas macroeconômicas são guiadas por critérios de mercado
e objetivos de eficiência, a política social é utilizada como compensação. Portanto, em muitos países, as políticas neoliberais,
tentaram e ainda tentam privatizar e incorporar ao mercado áreas vistas como sociais, como a saúde, a segurança social e a
educação.
Ameaças à vida
As estratégias de sobrevivência usadas pelas mulheres em diferentes espaços e territórios estão constantemente ameaçadas
pelos interesses econômicos das grandes empresas e do capital. Estes interesses exacerbam as desigualdades, já que as
grandes obras de infraestrutura —como represas hidrelétricas e estradas— priorizam a circulação de capitais e mercadorias
em detrimento das condições de vida das comunidades. O acesso à água, à energia e à terra para a produção de alimentos e
biodiversidade são elementos que garantem o sustento da vida. São de interesse das mulheres, já que elas são as primeiras
que sofrem quando há escassez.
57
Enquanto as políticas de criação de emprego priorizam o emprego dos homens, nos contextos de pobreza e crise econômica
são aplicadas políticas sociais que conduzem à ‘desativação’ implícita das mulheres. Em tempos de crise econômica e
desemprego, as políticas neoliberais de ajuste estrutural impõem rigorosos cortes orçamentários aos bens e serviços sociais,
incrementado assim a precariedade destes e fomentando sua privatização e a redução da cobertura social. Como resultado
de tudo isso, mais uma vez, grande parte do trabalho de cuidado deve ser proporcionado no lar, uma responsabilidade que
recai principalmente sobre as mulheres. As devastadoras consequências desta realidade ficaram mais que demonstradas na
América Latina, durante a crise asiática e, mais recentemente, na crise que afeta a Europa.
A produção de vida também se vê afetada pela violência, a ameaça de violência e a guerra. A guerra destrói os meios de
subsistência, deixa populações inteiras sem emprego, mantém mulheres, homens e meninos e meninas prisioneiros em suas
próprias casas, e provoca toda classe de fundamentalismos. As guerras são impulsionadas pela indústria militar transnacional
ou por interesses pelos recursos naturais dos povos.
A sustentabilidade da vida como paradigma
A economia feminista, com seu conceito da ‘sustentabilidade da vida’, propõe deslocar a tônica da análise econômica,
passando-a do mercado às pessoas, e substituir a geração de lucros pelo cuidado da vida e a satisfação das necessidades
humanas como objetivo da organização econômica e social.
Na experiência das mulheres, o trabalho e a vida estão profundamente inter-relacionados, já que é através do trabalho que se
criam as condições adequadas para o desenvolvimento da vida. Recuperar a experiência histórica das mulheres na produção
de vida —seja no cuidado das pessoas ou no estabelecimento de uma relação harmoniosa com a natureza— volta a colocar
no horizonte a possibilidade de reorganizar a sociedade para que esta se centre na satisfação das necessidades de homens
e mulheres. Isto supõe a existência de relações de igualdade, liberdade e autonomia. Refletir sobre a sustentabilidade da vida
implica dar visibilidade às necessidades que devem ser satisfeitas com o objetivo de garantir as condições para uma vida digna,
em contraposição a uma sociedade que promove a capacidade de consumo como referência para determinar o bem-estar de
uma pessoa.
Acreditamos que nunca será possível alcançar a igualdade entre homens e mulheres no sistema capitalista, cuja verdadeira
razão de ser se baseia na exploração das pessoas e do meio ambiente. Os objetivos de nossas ações e propostas são
distribuir a riqueza e garantir o direito de todas as mulheres e homens a um emprego, condições dignas para a produção e a
comercialização, e oportunidades para o crescimento pessoal, assim como o direito a dispor de tempo livre.
Queremos uma sociedade com pleno emprego para mulheres e homens, na qual os/as jovens não devam começar a trabalhar
precocemente para ter rendas. Queremos uma sociedade onde as pessoas disponham de tempo livre suficiente para si
mesmas e para participar da comunidade. Queremos uma sociedade onde as mulheres e homens que desejem viver da
agricultura, do artesanato, das pequenas empresas ou dos grupos produtivos associativos possam se manter sem se verem
esmagados por bancos e grandes empresas, especialmente as transnacionais que buscam concentrar os recursos em suas
mãos. Queremos que o Estado tenha políticas que garantam as rendas em caso de doença, desemprego, maternidade e
paternidade, e aposentadoria (proteção social universal). Queremos que o trabalho e os cuidados domésticos se reorganizem
de maneira que a responsabilidade deste trabalho seja dividida entre homens e mulheres dentro da família e da comunidade.
Para que isto se torne realidade, exigimos a adoção de políticas públicas que apoiem a reprodução social, como centros de
atenção diurna, centros coletivos de lavanderia e refeitórios, atenção aos idosos, entre outros, assim como uma redução da
jornada laboral sem que os salários sejam diminuídos. Também queremos colocar fim à militarização de nossos países e
nosso planeta, ao imperialismo, e aos conflitos e guerras intermináveis que estouram pelo controle de territórios, recursos
naturais, povoados e poder público.
As lutas pela soberania alimentar, as práticas de resistência da agroecologia historicamente encabeçadas por mulheres, a
politização feminista da relação com o corpo como uma construção da autonomia da mulher, e a centralidade do cuidado da
vida e da natureza geram convergências políticas capazes de construir um paradigma diferente para a sustentabilidade da
vida baseada na igualdade.
* Marcha Mundial das Mulheres
58
Chamado à ação internacional
Pela soberania econômica, política, cultural
e ambiental de nossos povos
Coloquemos fim à impunidade das transnacionais
Chegou a hora de unir as centenas de lutas, campanhas, redes, movimentos, e organizações que combatem de diferentes formas
a apropriação de nossos destinos, patrimônio cultural e direitos, o desmantelamento dos serviços públicos, a destruição dos bens
comuns e a ameaça à soberania alimentar por parte das grandes corporações transnacionais em cada canto do mundo.
A globalização neoliberal abriu as portas para a exploração selvagem do mundo por parte dos grandes poderes econômicos e
financeiros. Estes se apoderaram paulatinamente de nossas vidas e do planeta, criando um manto de impunidade através do
desmantelamento e da violação sistemática das legislações e dos tratados internacionais de comércio e investimentos que assegura
mais direitos aos “investidores” e ao capital que aos cidadãos. Assim, os direitos dos povos têm sido sistematicamente violados, a
Terra e seus recursos destruídos, saqueados e contaminados, e as resistências criminalizadas, enquanto as empresas continuam
cometendo seus crimes econômicos e ecológicos com total impunidade. Impulsionadas pelo seu imperativo de maximizar os lucros,
as empresas transnacionais levam ao confronto os trabalhadores e trabalhadoras das diferentes regiões no que é uma corrida ao
fundo do poço para os trabalhadores e trabalhadoras do mundo.
A governança e as políticas das instituições multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC) têm servido aos interesses corporativos,
enquanto as instituições da ONU e da UE estão sendo capturadas cada vez com maior força pelas empresas transnacionais, como
se evidencia nas políticas formuladas para satisfazer os interesses do capital e no fato que essas instituições se negam a impor-lhes
limites.
Na grande maioria dos países, os governos estão a serviço de seus interesses e contra nós, as maiorias. Contra os princípios
democráticos, usurpam as instituições e, atuando com a cumplicidade das elites nacionais, conseguem alterar leis e políticas que
lhes permitem continuar saqueando a riqueza das nações e a manter sua relação depredadora com a natureza. Desenharam
ferramentas como a Responsabilidade Social Empresarial para limparem sua imagem diante das diversas denúncias sobre suas
ações contra as populações e coletivos afetados para poderem seguir aumentando seus lucros. Além disso, controlam os grandes
meios de comunicação, os quais têm um papel-chave para assegurar a continuidade de sua hegemonia.
Com particular crueldade nos países do Sul Global, mas também nos países ricos de onde são originárias —e crescentemente
também nos países “emergentes”, como Brasil, Índia, China e Rússia—, as grandes corporações se apropriam cada vez mais de
nossas riquezas e direitos. Seu crescente monopólio econômico, poder político e controle da justiça, destroem nosso direito a uma
vida digna, dominam os hábitos culturais e de consumo de nossos povos e nações.
As transnacionais mercantilizaram a vida e seguem apoderando-se de nossos territórios, bosques e água, transformando as relações
sociais e humanas. Hoje em dia, por exemplo, a saúde e a educação são consideradas privilégios de que tem dinheiro e não direitos
universais de todos os povos. Nos EUA e em vários países da UE, os bancos se apropriaram das casas de milhares de pessoas. Na
Europa foram impostas as chamadas medidas de austeridade que são réplicas dos programas de ajuste estrutural que há tempos
se implementam nos países do Sul para enfrentar a chamada “dívida externa”. Hoje estamos diante de ataques sem precedentes
aos serviços públicos, direitos trabalhistas, e aos programas sociais, enquanto os governos usam o dinheiro para salvar os excessos
dos mercados e instituições financeiras.
As transnacionais operam de forma global, se movem de um país a outro, mas em todos aplicam a mesma receita de lucro a
qualquer custo. E o custo somos nós que pagamos, os 99%. As resistências crescem diariamente em todo o mundo: existem cada
vez mais comunidades, movimentos e povos lutando contra as transnacionais, que enfrentam empresas ou setores específicos e
vêm obtendo importantes vitórias. Ainda assim, não conseguimos frear o avanço das transnacionais, pois quando são derrotadas em
um lugar refazem suas estratégias e se movem a outro território, voltando a enfrentar qualquer obstáculo.
É por isso que para enfrentar o poder corporativo e o sistema que o protege e beneficia, é necessário e urgente dar uma
resposta sistemática. Devemos unir nossas experiências, lutas, aprender coletivamente de nossas vitórias e nossos fracassos,
compartilhar estratégias e análises para frear a impunidade das transnacionais. As lutas concretas de nossas comunidades contra
uma transnacional podem ser ainda mais triunfadoras se pudermos uni-las com a de outros povos em outros países, regiões ou
continentes.
Compartilhar nossas experiências de modos de vida distintos à cultura de produção transnacional imposta desde o capitalismo
que quer disfarçar-se de verde também é fundamental para podermos construir uma sociedade alternativa na qual, nós, os povos,
sejamos os protagonistas e soberanos.
Nós, as organizações e os movimentos aqui signatários, lhes convidamos a se juntar e construir conjuntamente este processo de
mobilização e campanha global contra o poder das corporações e seus crimes contra a humanidade. Desmantelar por asfixia o
sistema de poder das transnacionais requer uma ação coordenada a nível mundial, de luta em muitos âmbitos, da combinação da
mobilização nas ruas e territórios, da educação popular, e de ações em parlamentos, mídias, fóruns e organizações internacionais.
Criando um poderoso movimento de solidariedade e ação contra as transnacionais, seus defensores e artífices, construiremos um
mundo livre do poder e da cobiça das transnacionais.
Desmantelemos o poder corporativo! Pelo fim da impunidade das Empresas Transnacionais!
60
Coloquemos fim à impunidade das empresas transnacionais!
Campanha com apoio de:
internacional
Articulação Internacional dos Atingidos
pela Vale
Amigos da Terra Internacional
Blue Planet Project
CADTM Internacional
Corporate Accountability International
Food & Water Watch
Fórum Mundial das Alternativas (FMA)
A Via Campesina Internacional
Marcha Mundial das Mulheres
Escritório Internacional dos Direitos
Humanos Ação Colômbia (OIDHACO)
Rede Birregional UE-ALC Enlaçando
Alternativas
Transnational Institute – TNI
World Rainforest Movement
regional
African Uranium Alliance, África
Aliança Social Continental, Américas
Amigos da Terra América Latina e Caribe
– ATALC
CADTM – AYNA, Américas
Coordenadoria Andina de Organizações
Indígenas – CAOI, Região Andina
Focus on the Global South, Índia/Tailândia/
Filipinas
Food & Water Watch Europa
International Alliance of Natural Resources
in Africa (IANRA)
Jubilee South - Asia Pacific Movement on
Debt and Development
Jubileu Sul Américas
Plataforma Interamericana de Direitos
Humanos, Democracia e Desenvolvimento
(PIDHDD), Américas
Rede Latino-americana pelo Acesso a
Medicamentos
Rede Latino-americana sobre Dívida,
Desenvolvimento e Direitos (LATINDADD)
Rede Vida
Social Movements for an Alternative Asia
(SMAA)
Southern Africa Faith Communities
Environmental Initiative (SAFCEI)
Third World Network Africa
Transnational Migrant Platform, Europa
Young Friends of the Earth Europe
nacional
ACSUR – Las Segovias, Estado espanhol
Action from Ireland (AFRI), Irlanda
African Women Unite Against Extractives
Natural Resource Extraction (WoMin),
Sudáfrica
Aliança Mexicana pela Autodeterminação
dos Povos (AMAP)
All India Forum of Forest Movement
(AIFFM), Índia
Alliance of Progressive Labour (APL),
Filipinas
Alternative Information Development Center
(AIDC), África do Sul
Alyansa Tigil Mina (ATM), Filipinas
ANPED, Bélgica
Anti-Apartheid Wall Campaign (Stop the
Wall), Palestina
Arlac, Bélgica
Associação Brasileira Interdisciplinar de
AIDS (ABIA)
ATTAC Argentina
ATTAC Áustria
ATTAC Espanha
ATTAC França
ATTAC Suíça
ATTAC Flanders
Bench Marks Foundation, África do Sul
Beyond Copenhagen (BCPH), Índia
Biowatch, África do Sul
Both ENDS, Holanda
Campaña de Afectados por Repsol,
Catalunya
Campaña Explotación a Precio de Saldo,
España
Campanha Mesoamericana Por Justiça
Climática, El Salvador
Censat Água Viva – Amigos da Terra
Colômbia
Centre for Natural Resource Governance,
Zimbábue
Centre for the Development of Women and
Children (CDWC), Zimbábue
Centro de Documentação em Direitos
Humanos “Segundo Montes Mozo S.J.”
(CSMM), Equador
Centro de Estudios para la Justicia Social
Tierra Digna, Colombia
Centro de Pesquisa e Documentação Chile e
América Latina (FDCL), Alemanha
Centro de Investigaciones e Información en
Desarrollo (CIID), Guatemala
CIVICUS, África do Sul
COECOCeiba, Costa Rica
Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo
(CCAJAR), Colômbia
Coletivo de Mulheres Hondurenhas
(CODEMUH), Honduras
Colibri, Alemanha
Comissão Interclesial de Justiça e Paz,
Colômbia
Comissão Nacional de Enlace (CNE), Costa
Rica
Comité pour le respect des droits humains
“Daniel Gillard”
Commission for Filipino Migrant Workers –
International Office, Filipinas
Common Frontiers, Canadá
Coordenação pelos Direitos dos Povos
Indígenas (CODPI), Espanha
Council of Canadians, Canadá
Corporate Europe Observatory (CEO),
Bélgica
Cristianos de Base, Espanha
CSAAWU, África do Sul
Democracy Center, Bolívia
Derechos Humanos sin Fronteras, Perú
Eastern and Southern Africa Farmers
Forum (ESAFF) - Zâmbia
EcoDoc Africa
Ecologistas em Ação-Ekologistak Martxan –
Ecologistes en Acció, Espanha
Economic Justice Network of FOCCISA,
África do Sul
¿Economia Verde? ¡Futuro Impossível! –
Alianza por una alternativa ecológica, social
y urgente al capitalismo, Espanha
Enginyeria sense Fronteras, Catalunha
Entrepueblos, Espanha
Environmental Monitoring Group, África
do Sul
Environmental Rights Action/Friends of the
Earth Nigeria
FAVM, Catalunha
FASE, Brasil
Friends of the Earth Scotland
France Amérique Latine (FAL), França
Fresh Eyes- People to People Travel
Friends of the Earth, Finlândia
Friends of the Landless, Finlândia
Fundação para la Cooperação APY –
Solidariedade em Ação, Estado espanhol
Fundação Solón, Bolívia
Fundação de Estudos para a Aplicação do
Direito (FESPAD), El Salvador
Fundação de Pesquisas Sociais e Políticas
(FISYP), Argentina
Global Change Factory, Alemanha
Grassroots Global Justice, Estados Unidos
da América
Grassroots International, Estados Unidos da
América
Groundwork - Friends of the Earth South
Africa
Swiss Working Group on Colombia
Grupo Sur, Bélgica
Hegoa, Instituto de Estudios sobre el
Desarrollo y la Cooperación Internacional del
País Vasco, País Vasco
India FDI Watch, Índia
Indian Social Action Forum (INSAF), Índia
Indonesia for Global Justice, Indonésia
Engenharia Sem Fronteiras, Astúrias
Innovations for Change, Nigéria
Institute for Policy Studies (IPS) - Global
Economy Project
Instituto de Ciências Alejandro Lipschutz
(ICAL), Chile
Instituto Eqüit – Gênero, Economia e
Cidadania Global, Brasil
Instituto Latino-americano para uma
sociedade e um direito alternativos (ILSA),
Colômbia
Instituto Mais Democracia, Brasil
Janpahal, Índia
Jubilee Debt Campaign, Reino Unido
Justiça Global, Brasil
KRuHA, Indonésia
Koalisi Anti Utang (KAU) - Anti Debt Colition
Indonesia
Labour Research Service (LRS), África do
Sul
A Via Campesina África 1 - Moçambique
Mahlathini Organics, África do Sul
Marcha Mundial das Mulheres Chile Coletivo VientoSur
Mesa Nacional frente à Mineiração Metálica,
El Salvador
Milieu Defensie – Friends of the Earth,
Holanda
Mining Affected Communities United in
Action (MACUA), África do Sul
MiningWatch Canadá
Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), Brasil
Movimento Rios Vivos, Colômbia
Movimiento Social Nicaraguense – Outro
Mundo É Possível, Nicarágua
Multiwatch, Suíça
National Garment Workers Federation
(NGWF), Bangladesh
North East Peoples Alliance, Índia
Observatório da Dívida na Globalização
(ODG), Espanha
Observatório de Multinacionais na América
Latina (OMAL), Espanha
Observatório Petroleiro Sul (OPSur),
Argentina
Otramerica, Paraguai
Instituto Políticas Alternativas para o Cone
Sul (PACS), Brasil
Palenke del Alto Cauca (PCN), Colômbia
Partido de la Rifondazione Comunista/
Izquierda Europea, Itália
Pax Romana, Suíça
Philippine Rural Reconstruction Movement
(PRRM), Filipinas
Plataforma Alternativa para o
Desenvolvimento do Haiti (Papda)
Plataforma DHESC, Brasil
Plataforma Rural – Alianza por un Mundo
Rural Vivo, Espanha
Polaris Institute, Canadá
Rede Brasileira pela Integração dos Povos
(REBRIP), Brasil
Recalca, Colômbia
Red Internacional de Derechos Humanos
(RIDH), Suíça
Rede Mexicana de Ação frente ao Livre
Comércio (RMALC), México
Red Muqui Sur, Perú
Red Nacional Género y Economía Mujeres
para el Diálogo, AC, México
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos,
Brasil
RETS - Col·lectiu de Respostes a les
Transnacionals, Catalunha
Revuelta verde/Rising Tide, México
SEATINI, Zimbábue
SETEM Catalunha
SIEMBRA, AC, México
Sindicato de Trabajadoras de la Enseñanza
de Euskalherria – STEE-EILAS, País Basco
Soldepaz Pachakuti, Espanha
Solidaridade Suécia – América Latina (SAL)
/ Latinamerikagrupperna, Suécia
Solifonds, Suíça
SOMO – Centre for Research on
Multinational Corporations, Holanda
South African and Allied Workers Union
(SATAWU), África do Sul
South African Water Caucus (SAWC), África
do Sul
South Asian Dialogues on Ecological
Democracy (SADED), Índia
South Durban Community Environmental
Alliance, África do Sul
Southern Africa Green Revolutionary Council
(SAGRC), África do Sul
Spaces for Change (S4C), Nigéria
Students and Scholars Against Corporate
Misbehavior (SACOM), Hong Kong, China
Sustaining the Wild Coast (SWC), África
do Sul
Terra de Direitos, Brasil
Toxics Watch Alliance (TWA), Índia
Trust for Community Outreach and
Education (TSOE), África do Sul
Unidade Ecológica Salvadorenha (UNES),
El Salvador
União de Atingidos e Atingidas por
Operações da Petroleira Texaco (UDAPT),
Equador
UNISON, Reino Unido
Veterinários sem Fronteiras, Estado
espanhol
Xingu Vivo para Sempre, Brasil
War on Want, Reino Unido
Junte-se à
campanha!
61
Como se elaborou este documento base
Depois de uma longa rodada de consultas sobre como construir e adotar normas que obriguem as empresas transnacionais a
prestar contas por seus crimes a nível global, e diante do ceticismo que gera a eficácia das organizações internacionais para
fazê-lo, a Campanha decidiu criar o que chamamos de ‘Tratado dos Povos’. Este ‘Tratado’ sistematiza as propostas sobre
regulações e políticas que surgiram das lutas de organizações e movimentos sociais e povos afetados para colocar fim à
impunidade e desmantelar o poder corporativo. Deste modo, começamos um processo para elaborar um primeiro rascunho
que serviria de base para uma consulta global às organizações e movimentos sociais que será feita ao longo de 2015.
Desde que foi lançada a Campanha em junho de 2012, vários de seus integrantes tinham desenvolvido um documento intitulado
‘Propostas’, que reunia uma série de ideias para lutar contra o poder das transnacionais, controlá-lo e limitá-lo. Da nossa parte,
trabalhamos na Dimensão Jurídica do Tratado, mas vimos que também era necessário incluir uma introdução ou preâmbulo
com nossos princípios, assim como uma seção sobre as alternativas dos povos à mercantilização da vida perseguida pelo
poder corporativo. Assim, depois de concordar com esta estrutura, embarcamos na elaboração destes outros textos.
Para empreender esta tarefa, a Campanha criou um grupo de trabalho específico, chamado ‘Tratado’. Em fevereiro de 2013,
foi apresentada uma primeira versão do preâmbulo e da Dimensão Jurídica, e o grupo de trabalho iniciou uma rodada de
consultas com mais de 20 especialistas/ativistas. Dois meses mais tarde, foi concluída uma segunda versão, mais elaborada,
do projeto. Nos meses seguintes, um subgrupo assumiu a tarefa de reunir propostas sobre alternativas elaboradas por
movimentos e organizações sociais vinculadas à Campanha, que posteriormente configurariam a Dimensão Alternativas. Em
junho de 2014, o grupo de trabalho consultou toda a Campanha e foi aprovado o primeiro rascunho do texto, que apresentamos
durante a semana de mobilização “Paremos o crime corporativo e a impunidade’, que foi celebrada em Genebra de 23 a 27
de junho desse mesmo ano.
Entre julho e novembro de 2014, foram adicionados novos textos a Dimensão Alternativas, e em uma reunião da Campanha
em Genebra, celebrada em 28 de novembro de 2014, finalizamos o documento base para a consulta global.
Agradecimentos
Reconhecemos as lutas e campanhas dos movimentos e das comunidades atingidas, e agradecemos às numerosas pessoas
que participaram deste processo. Gostaríamos também de agradecer a todas as pessoas que colaboraram na elaboração
deste texto, que entendemos como um documento sempre aberto e em constante evolução:
Alberto Arroyo (RMALC), Alberto Villarreal (REDES Amigos da Terra Uruguai), Alejandro Teitelbaum, Antoni Pigrau (CEDAT),
Brid Brennan (TNI), Carlos López (ICJ), Cormac Cullinane (Sudáfrica), Daniel Feierstein (CEG-Argentina), David Fig (BioWatchÁfrica do Sul), Dilberto Trujillo Dussán (RIDH), Erika González (OMAL), Fernando Prioste (Terra de Direitos), Gianni Tognoni
(Tribunal Permanente dos Povos), Gonzalo Berrón (TNI), Henk Smith (LRC-África do Sul), Irene Victoria Massimino (UBA),
Javier Echaide (Attac-Argentina), Javier Mujica (PIDHDD), Juan Hernández Zubizarreta (Hegoa–UPV/EHU), Judith Chomsky
(Center for Constitutional Rights-Estados Unidos), Lúcia Ortiz (FOEI), Manoela Roland (UFJF), Marco Aparicio (UdG), Marcos
Orellana (CIEL), Mikel de la Fuente (Hegoa- UPV/EHU), Olivier Hoedeman (CEO), Pedro Ramiro (OMAL), Renata Reis, Richard
Girard (Polaris Institute), Rolf Künnemann (FIAN).
As seguintes pessoas contribuíram para a Dimensão Alternativas: Alessandra Ceregatti (Marcha Mundial das Mulheres),
Annelies Schorpion (LVC), Beverly Keene (Jubileu Sul Américas), Brid Brennan (TNI), Daniel Chavez (TNI), David Llistar
(ODG), Erika González (OMAL), Hilary Wainwright (TNI), Iván Gonzalez (CSA), Judith Hitchman (Urgenci), Julia Martí (RETS),
Lúcia Ortiz (FOEI), Luis Vittor (CAOI), Manuel Pérez Rocha (IPS), Marcos Arruda (PACS), Marina dos Santos (LVC), Mary Lou
Malig (Equipo de LVC-Ásia), Pablo Bertinat (Taller Ecologista), Satoko Kishimoto (TNI), Themba Chauke (LVC).
Tradução, revisão e maquetização
Obrigado a Amélie Canonne, Beatriz Martínez, Braulio Moro, Celina Lagrutta, Karen Lang, Obey Ament, Pierre-Yves Serinet e
Renata Molina pelo seu apoio na tradução e revisão das versões em inglês, espanhol e francês deste documento.
E muito obrigado também a Ricardo Santos, o dedicado designer que preparou este e outros documentos da Campanha.
Grupo de trabalho do Tratado dos Povos
Dezembro de 2014
62
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E COLOQUEMOS
FIM À
IMPUNIDADE!
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Tratado Internacional dos Povos para o Controle das Empresas