TUTELA JURISDICIONAL DAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA José Rogério Cruz e Tucci "A mesma tutela geral da personalidade, singularizada no ser do respectivo titular, nos parece valer para qualquer portador de deficiência física ou psíquica." (Rabindranath V. A. Capelo de Sousa. O direito geral da personalidade. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 174) SUMÁRIO: 1 Proporcionalidade e Igualdade Substancial; 2 Positivação dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência; 3 Atribuições Correlatas Processuais e Meios do Ministério Adequados de Público; Tutela; 5 4 Aspectos Considerações Conclusivas; 6 Bibliografia. 1 Proporcionalidade e Igualdade Substancial Segundo o enfático enunciado do art. 5º e seu inciso I, da CF, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Pela incidência do decantado princípio da proporcionalidade, a compreensão da verdadeira igualdade de todos perante a lei deve, necessariamente, considerar as diversidades existentes entre os homens, uma vez que o tratamento igual a pessoas que se encontram em situações diferentes constituiria autêntica iniqüidade. 1 Daí a célebre e difundida doutrinação de Rui Barbosa, ao traçar a discrepância ontológica entre igualdade formal e igualdade substancial: "tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". Com efeito, "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. A igualdade e a desigualdade são ambas direito, conforme as hipóteses e situações...". Dentre as múltiplas "hipóteses e situações" emergentes da vida social, assevera Hugo Nigro Mazzilli que, desde tempos imemoriais, faz parte da inerente condição do ser humano conviver com limitações próprias ou alheias, tanto na área sensorial, motora, intelectual, funcional, orgânica, comportamental ou de personalidade. Na verdade continua -, "constituem contingente muito expressivo da sociedade as pessoas que ostentam alguma forma de limitação, seja congênita ou adquirida. As guerras, a subnutrição, o subdesenvolvimento social e econômico, os acidentes ecológicos, pessoais, de trânsito ou do trabalho, o uso indevido de drogas e a falta de uma política pré-natal ou sanitária adequada - tudo isso contribui para o surgimento de diversas limitações ao ser humano, limitações essas que, infelizmente, acabam tornando-se verdadeiras condições marginalizantes dos indivíduos, afastando-os de uma vida social na sua plenitude" 1. 2 Positivação dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência Na esteira de outras legislações modernas, a nossa Constituição Federal em vigor, em vários dispositivos, conferiu expressa proteção às 1 Cf. Hugo Nigro Mazzilli. O Ministério Público e a pessoa portadora de deficiência. Revista de Direitos Difusos, v. 4, p. 445. 2 pessoas portadoras de deficiência, com o inescondível escopo de integrá-las, tanto quanto possível, no convívio social. O legislador constituinte, como é cediço, norteou-se pelo direito fundamental da dignidade da pessoa humana 2. Em seguida, para reduzir as desigualdades existentes nesse horizonte, foi editada a Lei nº 7.853/89, que regrou o apoio aos deficientes, reconhecendo-lhes o direito à educação, à saúde, à formação profissional e à inclusão no trabalho, e, ainda, disciplinou a respectiva tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos em relação a tais pessoas, inclusive no que concerne à relevante atuação do Ministério Público. Verifica-se, pois, que, acerca desse importante tema, a legislação brasileira coloca-se em perfeita sintonia com as resoluções da Organização das Nações Unidas - ONU referentes aos direitos das pessoas portadoras de alguma espécie de deficiência 3. Cumpre esclarecer, a esse propósito, que o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Decreto nº 3.956/01) 4. 2 V., sobre o tema, Luiz Antônio Rizzatto Nunes. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002. 3 A Resolução XXX/3.447 de 1975 teve a prudência de conceituar a expressão "pessoa deficiente" como sendo aquela "incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais" (apud MAZZILLI, op. cit., p. 447). 4 Consulte-se, sobre esse assunto, Sylvia Helena F. Steiner. A proteção internacional das pessoas portadoras de deficiência. In: Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. Obra coletiva coord. por Luiz Alberto David Araújo. São Paulo: RT, 2006, p. 295 e ss. 3 3 Atribuições Correlatas do Ministério Público Em simetria com a ampliação institucional das funções do MP introduzida pela CF/88, os arts. 3º e 6º da Lei nº 7.853/89 atribuem ao Parquet, no que toca às posições jurídicas subjetivas dos deficientes, legitimidade para instaurar inquérito civil, com poder de requisição de informações a quaisquer órgãos, e,- outrossim, aforar ação civil pública, destinada à proteção de interesses coletivos ou difusos de tais pessoas. Cumpre observar que o regime procedimental da ação civil pública instituído pelo referido diploma legal extravagante autoriza a intervenção incidental de quaisquer outros legitimados (art. 3º, § 5º). Como bem lembra Hugo Mazzilli, "deve, ainda, o MP zelar para que os Poderes Públicos e os serviços de relevância pública observem os princípios constitucionais de proteção às pessoas portadoras de deficiência, como o acesso a edifícios públicos ou o preenchimento de empregos públicos (CF, art. 129, II; Lei nº 8.625/93, art. 27, IV; LC nº 75/93, art. 6º, XX). No exercício dessa atividade de ombudsman, pode a instituição, entre outras providências, realizar audiências públicas e expedir recomendações a respeito" 5. Aduza-se que nas causas, individuais ou coletivas, nas quais são questionados direitos relacionados a portadores de deficiência, consoante o disposto no art. 5º da apontada Lei nº 7.853/89, a intervenção do MP, quando este não figurar como autor, irrompe obrigatória. Não provocada a sua intervenção na condição de custos legis, impõe-se a declaração de nulidade do processo. Foi, aliás, esse entendimento 5 que prevaleceu no julgamento da Apelação nº O Ministério Público e a pessoa portadora de deficiência, cit., p. 457. 4 1999.01.1.029545-6, da 4ª Turma Cível do TJDF e dos Territórios, ao patentear que: "a presença de interesses relacionados à deficiência das pessoas impõe a intervenção obrigatória do MP, nos termos do art. 5º da Lei nº 7.853/89, c/c inciso III do art. 82 do CPC, sob pena de nulidade, que aqui se declara, com base no art. 264, do mesmo diploma processual...". 4 Aspectos Processuais e Meios Adequados de Tutela Não é preciso salientar que o ordenamento jurídico de nosso País confere aos jurisdicionados inúmeras vertentes processuais em prol da proteção jurisdicional de seus respectivos direitos subjetivos. Considerada a intempestividade da jurisdição, que lamentavelmente se tornou res cotidiana entre nós, a ciência processual foi inclusive instada a desenvolver técnicas de tutela de urgência visando a minimizar o dano de indução processual, decorrente da excessiva morosidade. Assim sendo, vale ressaltar, no que ora interessa, que a atual experiência forense dos tribunais pátrios tem demonstrado, de um modo geral, grande sensibilidade no trato das questões jurídicas atinentes aos portadores de deficiência. No que se refere aos mecanismos de tutela jurisdicional das pessoas deficientes, bem é de ver que a antecipação dos efeitos de futura decisão constitui instrumento de extrema eficácia. Infere-se de julgado da 12ª Câmara Cível do TJMG, AI nº 1.0112. 06.062388-4/001, a confirmação de ato decisório de primeiro grau, proferido em ação de obrigação de fazer ajuizada, com arrimo, em 5 particular, no art. 8º do Decreto nº 5.296/04 6, por um deficiente físico contra entidade financeira, na qual pleiteado acesso compatível às dependências de agência bancária. O Tribunal, convencendo-se da coexistência dos pressupostos exigidos pelo art. 273, I, do CPC, manteve o provimento monocrático que deferiu a tutela antecipada, para determinar que a requeridaagravada implementasse as reformas necessárias à adequação do local em que funciona uma de suas agências, mediante a substituição dos degraus por rampa, visando a facilitar o acesso dos portadores de deficiência física; e isso, sob pena de pagar multa diária fixada em R$ 500,00. Ademais, nessa mesma linha exegética, a ação de mandado de segurança tem sido utilizada com absoluto êxito. Realmente, buscando coarctar odiosa discriminação, inúmeras seguranças são concedidas, com arrimo no Texto Constitucional e também no art. 5º, § 2º, da Lei nº 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos), que asseguram ao deficiente a destinação de vaga em concurso público para provimento de cargo 7. A esse propósito, o 4º Grupo de Câmaras Cíveis do TJMG teve oportunidade de julgar procedente o pedido deduzido no MS nº 301.7746/00, no qual portadora de deficiência física, classificada em 62º lugar no concurso a que se submeteu para o cargo de Professor Estadual, foi lotada em escola distante do local no qual reside. Em razão de sua condição física, pleiteou vaga existente em outra escola, mais próxima; 6 Esse dispositivo legal encerra o conceito de "acessibilidade" para deficientes. V., a respeito, Eliana Franco Neme. Dignidade, igualdade e vagas reservadas. In: Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. Obra coletiva coord. por Luiz Alberto David Araújo. São Paulo: RT, 2006, p. 105 e ss.; Maria Magdala Sette de Barros. Portadores de deficiência e o concurso público, Jus Navigandi, p. 1 e ss. 7 6 sendo certo que o pedido foi desconsiderado pelo órgão estadual da educação. De salientar-se que, nesse julgado, a Corte mineira reputou presente o direito líquido e certo da impetrante deficiente, porque, além dos termos da legislação federal específica tanto o art. 28 da Constituição do Estado de Minas Gerais, quanto o art. 1º da Lei Estadual nº 11.867/95 contemplam a reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para pessoas dotadas de alguma espécie de deficiência. Essa mesma orientação sagrou-se vencedora no julgamento do AgRg na Apelação nº 50.326/98, da 1ª Turma Cível do TJDF e Territórios, no qual o voto condutor do Des. Valter Xavier expressou que: "O tratamento diferenciado dispensável ao deficiente físico constitui tema sujeito a interpretação com caráter restrito, sendo lícito considerar como suficiente, para o atendimento do comando constitucional, a reserva de um quantitativo de vagas específico para determinado concurso público, à míngua de legislação no sentido contrário". No acórdão proferido no RMS nº 20.300-PR, a 6ª Turma do STJ, após ter asseverado que: "Segundo o Decreto nº 3.298/99, os concursos públicos devem reservar 5% das vagas aos portadores de necessidades especiais", determinou que: "Nos termos do art. 42 do mesmo Decreto, a Administração, ao promover a classificação dos portadores de necessidades especiais, deve-a realizar segundo a classificação geral e, depois, segundo a classificação apenas dos portadores de deficiência". Enfocando igualmente temática jurídica respeitante aos deficientes, importante interpretação jurisprudencial da 3ª Câmara Civil do TJSC, na Apelação nº 98.012183-3, decidiu que: "A penhora de veículo de devedor deficiente físico, especificamente adaptado para sua 7 locomoção, afronta a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos sobre o qual a ordem constitucional vigente se alicerça, na medida em que lhe retira os mínimos recursos materiais de que dispõe para, como qualquer cidadão, exercer, de modo satisfatório, não só sua atividade econômica, mas, outrossim, garantir sua independência em relação aos que consigo convivem. Tal ofensa se intensifica ainda mais quando o veículo do devedor, diga-se de passagem, antigo e de reduzido valor de mercado, se mostra insuficiente para garantir a pretensão do credor, havendo em nome daquele, ademais, bens muito mais habilitados à satisfação do crédito e que importam em menos gravame ao devedor". Nesse particular, observa-se claramente que o direito fundamental da dignidade humana, de matiz constitucional, sobrepõe-se aos bens passíveis de penhora, não excluídos pela legislação processual (art. 649, CPC). Por fim, dúvida não há - e nem poderia haver - de que os portadores de deficiência infelizmente estão sujeitos a ofensas íntimas e humilhações, que ensejam ressarcimento de cunho indenizatório. Em recente pronunciamento, a 3ª Turma do STJ, ao julgar o AI nº 848.439-SP, prestigiou acórdão do TJSP, que impôs condenação, a título de dano moral, ao ofensor que agrediu a honra de deficiente físico. Lê-se, com efeito, na respectiva ementa: "Ação de indenização por danos morais. Autor deficiente físico impedido de entrar no banco com muletas por terem elas causado o travamento da porta detectora de metais, sendo-lhe sugerido, pelos funcionários do banco, que se arrastasse até o caixa. Dano moral caracterizado. Fixação em 100 salários-mínimos que atende aos parâmetros da jurisprudência de não enriquecer nem empobrecer os envolvidos, e com força suficiente para 8 reprimir ofensas futuras. A sucumbência leva em conta não o montante, mas a existência ou não do dano moral". 5 Considerações Conclusivas No Brasil existem cerca de 24 milhões de pessoas com alguma espécie de deficiência, o que representa 14% da população. No âmbito de uma sociedade justa, democrática e solidária, o ideal seria que fossem cumpridas, mediante ações afirmativas, as regras de direito material instituídas em favor dos deficientes... Não obstante, como essa utópica esperança não se efetiva de forma generalizada, verifica-se que, com o passar do tempo, as pessoas portadoras de deficiência, cada vez mais cientes de seus direitos subjetivos, afluem ao Poder Judiciário em busca de proteção jurídica. Felizmente, como procurei frisar, os Tribunais brasileiros, mostrando sensibilidade a tal relevante matéria, têm, na medida do possível, atendido aos anseios das pessoas portadoras de deficiência. 6 Bibliografia BARROS, Maria Magdala Sette de. Portadores de deficiência e o concurso público. Jus Navigandi, 2006. MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público e a pessoa portadora de deficiência. Revista de Direitos Difusos, v. 4. 9 NEME, Eliana Franco. Dignidade, igualdade e vagas reservadas. In: Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. Obra coletiva coord. por Luiz Alberto David Araújo. São Paulo: RT, 2006. RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002. STEINER, Sylvia Helena F. A proteção internacional das pessoas portadoras de deficiência. In: Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. Obra coletiva coord. por Luiz Alberto David Araújo. São Paulo: RT, 2006. 10