O protagonismo das pessoas vivendo com
HIV/Aids no combate à epidemia
Por Nelio José de Carvalho
Desde o início da epidemia no Brasil, no inicio da década de 80, as pessoas vivendo
com HIV/Aids (PVHA) tiveram importante papel no combate à epidemia.
Sem levar em conta a constatação óbvia de que se não houvessem pessoas
infectadas não haveria um programa brasileiro de combate a essa epidemia, em
seus primórdios as pessoas infectadas tinham sua morte social decretada porque
provinham das populações mais vulneráveis, à época, destacadas como “grupos de
risco”. Eram homossexuais masculinos, profissionais do sexo de todos os gêneros e
usuários de drogas injetáveis, cuja estigmatização levada ao paroxismo pela
ideologia moralizante que refloria risonha e franca, sob a égide neo-liberal
globalizante e conservadora de R. Reagan, Margareth Thatcher e João Paulo II, e
que “elevavam” essas pessoas à categoria de “culpados” pela infecção do/ao HIV,
ao lado de outra categoria, a das “vítimas”, que eram os hemofílicos, as crianças
nascidas soropositivas, os transfusionados de sangue nas intervenções cirúrgicas, e
profissionais de saúde acidentados. Essa separação entre “vítimas” e “culpados”,
além de reforçar e originar toda sorte de preconceitos ocultou para toda sociedade
a possibilidade de infecção de outros segmentos significativos da população.
Qualquer pesquisador, qualquer sanitarista e/ou infectologista, com um mínimo de
honestidade acadêmica ou científica, sabia que o HIV, como todo e qualquer vírus,
não “escolhe” infectar suas vítimas baseado em critérios morais socialmente
hegemônicos, e os modos pelos quais a epidemia avançava na África subsaariana e
no Haiti já comprovavam que, em princípio, o conceito de “grupos de risco”
descambava para a ideologia moralizante que acabava por prejudicar ações efetivas
de prevenção em outros segmentos populacionais: mulheres, adolescentes, terceira
idade, etc...
Em meados da década de 80, soropositivos famosos como Betinho, Herbert Daniel
entre outros já alertavam para o fato de que viver com o HIV/Aids não era apenas
um problema a ser enfrentado pelas pessoas infectadas, mas uma busca por
soluções que deveria ser debatida amplamente por toda a sociedade, porque dizia
respeito a todos e todas.
Atuando nas várias ONGs que surgiram (Pela Vidda, Gapa, entre outras) esses
soropositivos, juntamente com o Programa Nacional de DST/Aids, profissionais da
saúde e voluntários comovidos com a sorte das pessoas infectadas, procuravam
alertar que a epidemia de Aids só poderia ser combatida se deixássemos de lado as
questões morais mais conservadoras e partíssemos para a abordagem franca e
despida de preconceitos, mais objetiva, portanto, levando-se em conta que
tínhamos o SUS aprovado na Constituição de 88, que poderia vir a garantir um
tratamento mais digno e humano aos infectados.
Nesse contexto proliferaram ONGs que não só prestavam assistência aos infectados
como realizavam trabalhos de prevenção nas populações mais vulneráveis.
O programa brasileiro de combate à Aids do Ministério da Saúde, subsidiado com
financiamentos do BID, Banco Mundial, Unesco dentre outros agentes
financiadores, começa então a repassar financiamentos às ONGs que executavam
ações de apoio aos infectados, ações de prevenção em populações específicas e
também ações de defesa de direitos humanos dessas populações. Esses
financiamentos possibilitaram uma gama de ações nas quais o programa brasileiro
de combate à Aids estruturou-se, possibilitando a configuração de um amplo
movimento social que abarcava além dos órgãos governamentais, a sociedade civil
organizada em ONGs, em sua maioria constituídas de pessoas infectadas e
voluntários abnegados que passaram a lutar pelos direitos de cidadania das
pessoas infectadas e de pessoas que pudessem vir a ser infectadas: homossexuais,
usuários de drogas, mulheres, adolescentes, idosos, presidiários, motoristas de
caminhão, profissionais do sexo, profissionais de saúde, populações de baixa renda
etc. exercendo um efetivo e gigantesco trabalho de promoção de direitos humanos,
civis e sexuais de toda a população.
Em que pese a existência da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério
da Justiça, na história recente pós-ditadura militar, é o movimento social da Aids
aliada ao Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, dentro dos
princípios do SUS, nos âmbitos federal, estaduais e municipais quem efetiva ações
em defesa dos direitos humanos da grande parte da população.
Para que não se perdesse de vista as ações específicas de assistência voltadas para
as pessoas infectadas pelo HIV/Aids, em 1995 surgiu a RNP+ (Rede Nacional de
Pessoas Vivendo com HIV/Aids) que entre tantas outras vozes decide relembrar aos
integrantes desse movimento social mais amplo que as PVHA tinham capacidade
própria para reivindicar suas exclusivas necessidades, sem desconsiderar outros
atores do movimento mais amplo.
Suas lideranças, em grande parte, vinham da luta política contra o regime militar e
tiveram contato com as redes existentes nos países desenvolvidos, notadamente a
rede de homossexuais que se solidarizava com as pessoas infectadas em San
Francisco, Califórnia, EUA.
Essa atitude afirmativa que partiu das PVHAs continha, de um lado, a postura
negativa de atitudes exclusivamente beneméritas/caritativas recusando-se a ser
tuteladas até a morte física e postulava uma presença mais marcante das PVHAs no
mercado de trabalho que se configurava no terceiro setor pela proliferação contínua
de ONGs/Aids; de outro lado, assentava seus pilares nos grupos de ajuda-mútua
que, enquanto grupos de apoio de soropositivos para soropositivos busca a inserção
e/ou reinserção psico-social das pessoas infectadas, a troca de experiências, etc.
Muitos desses grupos tornaram-se núcleos de PVHAs que atuavam informalmente
nos ambulatórios e até mesmo nas casas de alguns de seus membros.
Com o surgimento dos antiretrovirais o movimento social mobiliza-se com intensa
participação das pessoas soropositivas e a distribuição gratuita desses
medicamentos na rede pública, a partir de 1996, trouxe alento e maiores
perspectivas de sobrevida com qualidade: a RNP+ passa, juntamente com os
fóruns estaduais de ONGs, voluntários e gestores de saúde, a integrar esse amplo
movimento social que caracteriza o programa brasileiro de combate à epidemia de
Aids no país.
Em 1997/1998 realiza encontros de PVHAS em todas as regiões do país buscando
maior capilarização e desenvolvimento. Em 98 surge o primeiro núcleo
institucionalizado da RNP+ na cidade de Campinas, seguido do núcleo do Rio de
Janeiro.
Em 2005 realiza seu I Encontro Nacional em Florianópolis com 400 delegados
oriundos de todas as regiões do país, cujo lema “Antes nos escondíamos para
morrer, hoje nos mostramos para viver”, ilustra a capacidade de seus membros em
dar visibilidade às suas ações, além de contemplar em sua nova Carta de Princípios
a luta pela prevenção contínua de toda a população.
Nesses quase onze anos de existência, a RNP+ Brasil possui núcleos de PVHA
espalhados por todo o país e tem representações em todas as instâncias decisórias
e consultivas das políticas públicas de saúde em DST/Aids nos níveis federal,
estaduais e municipais e algumas representações no exterior: reconhecida pelo
Programa Nacional de DST/Aids na Cnaids (Comissão Nacional de DST/Aids); CAMS
(Comissão de Articulação com os movimentos sociais ) do Ministério da Saúde e
Programa Nacional de DST/Aids; Comitê de Vacinas; GT Unaids; GT Comunicação,
Comissão de Preservativos, GT OG/ONG, Conselho Nacional de Saúde, Conselhos
Estaduais de Saúde, Conselhos Municipais de Saúde, etc. e filiada a REDLA+ (Rede
Latino-americana de Pessoas Vivendo com HIV/Aids) a RNP+ Brasil continua a
desenvolver seu trabalho em busca de uma melhor qualidade de vida às PVHA.
O exercício pleno da cidadania e do controle social das verbas públicas para
DST/Aids faz da RNP+ Brasil a rede de PVHA que luta junto com o movimento
social do qual é membro integrante, um exemplo de articulação política que deve e
pode ser seguido por portadores de outras patologias em particular e de usuários
do SUS em geral e de parceria com outros movimentos sociais e populares:
movimento de mulheres, GLBTT, movimento negro, adolescentes, idosos, usuários
de drogas, deficientes físicos e outros.
Seu primeiro encontro estadual ocorreu em Campinas, em 1998, onde nos dias 02,
03 e 04 de junho de 2006, no Hotel Vila Rica, estará realizando seu IV Encontro
Estadual.
Nelio José de Carvalho é representante estadual da RNP+ SP.
Fonte: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=13&id=109
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