DIGNIDADE DA PESSOA PRIVADA DE LIBERDADE Proibição da tortura, tratamentos desumanos ou degradantes GEORGE SARMENTO Professor de Direito FDA/UFAL Coordenador do Mestrado em Direito/UFAL Doutor em Direito Público/UFPE Promotor de Justiça SUMÁRIO: 1. A CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA. 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO. 2.1. Institucionalização do suplício. 2.2. Humanização da pena. 2.3. Execução da pena com respeito aos direitos fundamentais do condenado: o garantismo penitenciário. 3. A SUPRA-ESTATALIZAÇÃO DO DIREITO PENITENCIÁRIO. 3.1. Convenção das Nações Unidas sobre Tortura. 3.2. Convenção Interamericana contra Tortura. 3.3. Princípios para a proteção de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão. 4. DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA PRESA OU DETIDA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA. 1. A CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA A Constituição de 1988 consagrou o princípio da proibição da tortura, tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III). A matéria foi regulamentada pela Lei n. 9.455/97, que definiu e tipificou os crimes de tortura, que tanto podem ser cometidos por agentes públicos como por particulares. Os crimes de tortura são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Também são considerados hediondos pela Lei 8.072/90. Além das penas privativas de liberdade, que podem chegar a 16 anos sem contar com as circunstâncias agravantes, a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. A Lei 4.898/65 estabelece que constitui abuso de autoridade, as seguintes condutas: a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter a pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa (art. 3º). A Lei de Execuções Penais também traz diversos dispositivos que asseguram a integridade física e moral dos condenados e presos provisórios. Exemplo disso é o uso de celas escuras, a aplicação de sanções coletivas e isolamento por prazo superior a 30 dias. Ela prevê a possibilidade de instauração do incidente de excesso ou desvio de execução, nos casos em que o ato for praticado além dos limites fixados na sentença ou em normas regulamentares. Segundo a Lei 7.210/84, o procedimento pode ser instaurado pelo Ministério Público, Conselho Penitenciário ou pelo próprio sentenciado. 1 Em 1994, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária editou a Resolução 14, fixando regras mínimas para tratamento do preso nos estabelecimentos carcerários brasileiros. Ela proíbe o uso de correntes, algemas e camisas-de-força como formas de punição, exceto em casos excepcionais previstos no art. 29 (precaução contra a fuga, recomendação médica etc.). A sistemática de tratamento dispensado à pessoa privada de liberdade é conseqüência de uma nova postura adotada pelos órgãos de persecução penal após a promulgação da Constituição de 1988. Esse novo paradigma também obriga o Estado a promover políticas públicas no setor penitenciário a fim de assegurar aos presos condições dignas de cumprimento da pena ou da medida cautelar. Este artigo tem o objetivo de analisar criticamente os avanços e retrocessos do sistema penitenciário brasileiro, especificamente a proibição da tortura, dos tratamentos desumanos e degradantes, assegurado a todas as pessoas privadas de liberdade. A efetividade desse direito fundamental absoluto está condicionada à observância de dois pré-requisitos: (a) o respeito às prerrogativas constitucionais do preso e (b) políticas públicas eficientes no setor penitenciário, a fim de assegurar o cumprimento da pena e a ressocialização do detento. 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO A trajetória do direito penitenciário na Europa pode ser subdividida em três períodos históricos: a institucionalização do suplício (Idade Média até o fim do Século XVIII), a humanização da pena (a partir do século XIX até meados do Século XX) e o garantismo na execução da pena (a partir de 1948). 2.1. Institucionalização do suplício O suplício consistia na condenação judicial a sofrimentos físicos insuportáveis que prolongavam a agonia do condenado até o seu último suspiro. Mesmo quando não se tratava de pena de morte, os castigos eram verdadeiros rituais de tortura que maximizavam a dor do condenado deixando seqüelas irreversíveis em seu corpo e em sua alma. O objetivo da pena resumia-se à purgação do crime pelo sofrimento corporal e pela exposição pública da dor, o que exigia grande ostentação na execução das sentenças. Além disso, o suplício judiciário exterioriza-se como um ritual político, uma manifestação do poder estatal sobre o destino das pessoas1. Os instrumentos de tortura iam desde pequenos apetrechos de mutilação (garfos, machados, garras de gato e pêra) até aparelhos mais complexos que provocavam dores lancinantes – a exemplo da roda de despedaçamento, cadeira 1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 41. 2 das bruxas, cadeira inquisitória, esmaga-joelho, esmaga-cabeça, esmaga-seios, garrote, pêndulo, mesa de evisceração, água fervente etc. Para que uma pena fosse considerada suplício era necessária a conjunção de três requisitos: a possibilidade de mensuração do sofrimento infligido ao condenado; a graduação calculada do sofrimento; o detalhamento da execução do castigo. A lógica do suplício consistia na capacidade produzir níveis diferentes de dor física, claramente perceptíveis pela multidão que acompanhava a execução da pena. Além disso, os castigos eram meticulosamente previstos na sentença de forma a abreviar os sofrimentos ou prolongar a agonia até se romperem as últimas resistências do condenado. Daí afirmar Michel Foucault que “o suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento2”. Enquanto a pena de decapitação ceifa a vida num só instante, castigos como a fogueira e o esquartejamento provocam dores insuportáveis que se prolongavam por um longo período de tempo até a morte da vítima. O último elemento caracterizador do suplício consiste na descrição judicial do castigo físico. A sentença especifica minuciosamente o número de chicotadas, a intensidade do estrangulamento, a amputação de membros, a mutilação do corpo da vítima, o tempo de agonia da fogueira etc. Quanto mais medonho o crime, mais cruel a execução da pena. As marcas da execução deveriam se eternizar na memória do povo, desencorajando a prática de novos delitos. O suplício continua mesmo após a morte do condenado. O esquartejamento do cadáver, a destruição do seu patrimônio, a perseguição aos descendentes eram práticas normais na vida judiciária. O acórdão que condenou Tiradentes à pena de enforcamento por sua participação na Inconfidência Mineira é um exemplo disso. Os juízes determinaram que, após a execução, fosse-lhe cortada a cabeça e exposta em lugar público em Vila Rica até sua total decomposição. Ordenou que o seu corpo fosse dividido em quatro quartos e pregados separadamente em postes no caminho de Minas. Estabeleceu que a casa fosse destruída e salgada para que nunca mais fosse edificado imóvel sobre o solo. Por fim, condenou filhos e netos à infâmia, além de confiscar todos os seus bens3. Como se pode ver, a execução da pena era de tal forma articulada que os 2 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 31. 3 Extrato da parte final do Acórdão, publicado em 18 de abril de 1792 na cidade do Rio de Janeiro: “Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas no sitio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas infames práticas e os mais nos sitios (sic) de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens applicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infamia deste abominavel Réu; [...]”. Juízes: Sebastião Xavier de Vasconcellos Coutinho (Chanceler da Rainha); Antônio Gomes Ribeiro; Antônio Diniz da Cruz e Silva; José Antônio da Veiga; João de Figueiredo; João Manoel Guerreiro de Amorim Pereira; Antônio Rodrigues Gayoso e Tristão José.. 3 algozes apenas seguiam as instruções contidas na sentença, promovendo uma demonstração pública da força onipotente do Rei. O suplício também era largamente usado nas investigações e instruções processuais com o objetivo de extrair confissões, testemunhos, esclarecer contradições, revelar cúmplices ou descobrir outros crimes praticados pelo réu4. Em quase toda Europa, o processo era totalmente conduzido pela acusação de forma inquisitória, sem que ao acusado fosse facultado o exercício da ampla defesa e do contraditório. Em todas as situações, a mão da Justiça ou da Igreja mostrava sua face mais perversa e impingia requintados rituais de crueldade contra as vítimas indefesas até obter o resultado esperado pelos acusadores. A pena representava a vingança pública, a purgação do crime pelo sofrimento do criminoso. Essa concepção começou a ser mudada nos finais do Século XVIII. Em 1764, Cesare de Beccaria, publicou o livro intitulado Dos Delitos e das Penas. A obra surpreendeu por ter sido escrita por um nobre italiano de 26 anos de idade, rico e poderoso, mas profundamente influenciado pelas idéias iluministas. Em um dos seus principais capítulos, condena a tortura e a pena de morte, além de propor formas de mais humanas de cumprimento das penas, entre elas o encarceramento do condenado. O repúdio ao suplício não significava o fim da pena, mas a sua transformação: a substituição dos sofrimentos do corpo pelos sofrimentos da alma. Nesse contexto a privação da liberdade, proporcional à gravidade do delito, surge como um grande instrumento de realização da finalidade política da pena – disseminar o terror entre os homens, desencorajando-os a praticar novos crimes5. Em síntese, Beccaria não acredita que a pena anule o crime cometido, mas evita a reincidência do delinqüente e desestimula os cidadãos a cometerem crimes semelhantes. 2.2. Humanização da pena A partir da metade do Século XVIII, muitas vozes se levantaram contra o suplício. Pouco a pouco essa prática tornava-se intolerável pela sociedade européia. A idéia de vingança do soberano e purgação do crime pelo sofrimento foi dando lugar à outra concepção: a defesa da sociedade contra os perigos externos. Além disso, cristalizou-se a idéia de humanização e moderação da pena com a abolição da tortura e aplicação de sanções proporcionais ao crime praticado. O encarceramento do criminoso surge como a grande solução para essa nova ideologia. Era, ao mesmo tempo, o menos cruel e o mais eficaz como elemento de combate à criminalidade. Em 1818, o filósofo inglês Jeremy Benthan publica Teoria das Penas e das Recompensas, obra que exercerá grande influência na fase penitenciária do Direito Penal. O pai do utilitarismo é um entusiasta defensor da pena de prisão por considerá-la um meio eficiente de punição dos criminosos. Sustentava que 4 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 69. 5 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 70. 4 ela era um mal duradouro e temível, pois podia se prolongar por anos suprimindo a liberdade, o convívio social e a cidadania do condenado. Além disso, a publicidade da vida no cárcere também tinha efeito pedagógico e intimidativo no corpo social. Segundo a concepção utilitarista, a pena exercia uma dupla ameaça: a cominação e a execução. A primeira caracteriza-se por ser uma ameaça abstrata – a sanção contida no texto da lei; a segunda é a concretização da pena mediante coação física prevista na sentença condenatória. De um lado tem-se a coação psicológica, que atua como um freio à prática de crimes; do outro, a coação física, que se manifesta com a efetiva privação de liberdade6. A humanização da pena teve como conseqüência a substituição do suplício pela pena de prisão. A noção de vingança dá lugar à defesa da sociedade e à requalificação do indivíduo como sujeito de direito. Essa forma de punir também se legitima pela aceitação dos governos, dos juristas e da sociedade civil, que viam na prisão um meio de superar a barbárie imposta pela tortura. A sacralização do corpo submetido à custódia do Estado passou a ser regra. A pena deslocou a dor física, as marcas no corpo, para o sofrimento da alma e para o treinamento do corpo como estratégias de reintrodução do indivíduo ao convívio social. Daí afirmar Michel Foucault que “no projeto de instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos, ela utiliza processo de treinamento do corpo – não sinais – com os traços que deixa, sob forma de hábitos, no comportamento; e ela supõe a implantação de um poder específico de gestão de pena7” Durante todo o Século XIX até a metade do Século XX, muitas escolas penais debruçaram-se sobre a questão penitenciária. O objetivo político da pena era um dos temas centrais dessa discussão. Além da perspectiva de prevenção e repressão à criminalidade, a readaptação social passou um dos objetivos centrais do ato de punir. A Escola Correcionalista passou a defender aforismos como “reprimir, curando” e “não há criminosos incorrigíveis e sim incorrigidos8”. A ordem era regenerar, readaptar, corrigir os desvios de conduta. A crença na redenção do homem pela aplicação da pena. Além da função retributiva, a pena passou a ser vista como uma medida de ressocialização do criminoso. 2.3. Execução da pena com respeito aos direitos fundamentais do condenado: o garantismo penitenciário. O Pós-Guerra expôs os horrores perpetrados pelo nazismo nos campos de concentração. O extermínio de judeus, ciganos e homossexuais chocou o 6 Ao comentar a vertente utilitarista, Basileu Garcia sustenta que “Distinguem-se, pois, em relação à pena, duas espécies de coação: física e psicológica. Física, a que se exerce sobre a pessoa do agente. Psicológica, a que, exercendo-se também sobre determinado indivíduo, se volta principalmente contra o ambiente social, em geral. E a psicológica decorre, não somente da fase cominatória da pena, como da própria coação física, porque, ao se verificar que o culpado por um crime vai sofrer coação física, se reaviva no ambiente social a noção de que o crime é punido e de que, portanto, deve ser evitado” (GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, v. 1. São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 68). 7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 108. 8 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, v. 1. São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 72. A última expressão é atribuída à Concepción Arenal. 5 mundo civilizado e provocou profundas mudanças na teoria do Estado de Direito. O positivismo de orientação normativista mostrou-se insuficiente para a proteção dos direitos humanos. Era preciso uma profunda mudança de paradigma no método jurídico para atender às novas demandas de tutela das liberdades públicas e dos direitos sociais. Isso implica a construção de um modelo constitucional garantista comprometido com a efetividade dos direitos fundamentais. Ou seja, um conjunto de garantias gerais, administrativas e processuais capazes de promover a concretização dos direitos humanos positivados nos tratados internacionais e nos textos constitucionais. Luigi Ferrajoli sustenta que os principais pilares do garantismo contemporâneo são: a redução dos espaços de discricionariedade e arbitrariedade estatal; a transparência dos aparatos estatais mediante controle da atividade administrativa; e, sobretudo, um sistema de garantias dos direitos individuais e dos direitos sociais, justiciáveis processualmente9. O fio condutor do garantismo é o crescente alargamento dos direitos fundamentais nos textos constitucionais. A efetividade desses direitos é vista como o principal fator de redução do despotismo nas democracias modernas. E isso só será possível com a construção de um sistema sólido de garantias que tutele as liberdades públicas, os direitos políticos, os direitos sociais, difusos e coletivos. O comprometimento com as garantias é a única forma de combater o crescente neoabsolutismo estatal, marcado por práticas extralegais, repressivas, visíveis, violentas e desestabilizadoras. O Estado detém o monopólio do uso da força para solucionar os conflitos e executar as decisões judiciais e administrativas. Segundo Ferrajoli, o exercício da violência legal deve ser a mínima necessária para prevenir a violência ilegal – sobretudo os atos criminosos. Ele defende a tese de que “a violência das penas só é legítima quando e na medida em que seja capaz de prevenir violências maiores produzidas pelos delitos e pelas reações aos delitos que se cometeriam em sua ausência10”. É a concepção de que a legitimação das penas (incluindo também medidas cautelares) depende de critérios objetivos como legalidade, necessidade e proporcionalidade. Na moderna concepção de Estado Democrático de Direito, a legitimidade não se restringe à legalidade pura e simples, mas está condicionada também à igualdade e à salvaguarda dos direitos fundamentais11. É nesse contexto que o jurista italiano desenvolve o princípio da estrita legalidade, que se manifesta como uma técnica jurídica de limitação ao poder de punir. A estrita legalidade é compreendida como uma norma metajurídica que condiciona a validade das normas penais ao respeito aos seguintes requisitos: tipicidade das condutas criminosas, prova incontestável de autoria do delito, verificação da culpabilidade do réu por um magistrado, respeito ao devido processo legal e todas as garantias da ampla defesa, contraditório, presunção de 9 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofia del derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 91. 10 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofia del derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 92. 11 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofia del derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 94. 6 inocência, entre outras. Ou seja, nessa formulação teórica, a legalidade é, ao mesmo tempo, condicionante da legitimidade e condicionada por mandamentos constitucionais de natureza substancial, a exemplo da vinculação aos direitos e garantias fundamentais12. É nessa perspectiva que o garantismo trabalha com as categorias legitimação e perda da legitimação do direito penal. A legitimidade da norma positivada no ordenamento jurídico depende do nível de adequação aos direitos fundamentais constitucionalizados13. Assim, o garantismo penal propõe um modelo normativo baseado na estrita legalidade, em que o poder punitivo do Estado seja reduzido ao mínimo possível, de forma a minimizar a violência e maximizar as liberdades públicas. Um sistema em que a persecução penal seja limitada por um conjunto de vínculos substanciais que têm como conteúdo central a prevalência dos direitos fundamentais. O garantismo também denuncia a dissociação entre o dever-ser e o ser, presente na maioria dos países democráticos. Para ele, o distanciamento entre validade e efetividade dos direitos fundamentais é um fenômeno cada vez mais perceptível nas sociedades complexas. Um verdadeiro descompasso entre modelos formalmente garantistas e as práticas institucionais despóticas presentes no aparato policial. Como teoria jurídica, preconiza a coerência entre normatividade e eficácia social da norma penal como um dos fatores de legitimação do Estado Democrático de Direito14. Qual a importância dessa teoria jurídica para o direito penitenciário? Limitar a violência institucional no sistema prisional, impondo o respeito à estrita legalidade na execução da pena. As conseqüências disso são a constitucionalização de direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade e a obrigação estatal de desenvolver políticas públicas no setor penitenciário. Por um lado, o Estado deve dotar os apenados de um conjunto de garantias substanciais que lhes assegurem o respeito à dignidade humana e às liberdades fundamentais. Isso implica a proibição da tortura, dos tratamentos desumanos e degradantes e de garantias processuais específicas, como o habeas corpus, a revisão criminal e as ações de indenização por danos morais e materiais. Por outro, o Estado deve destinar recursos orçamentários para as políticas públicas no setor penitenciário. Tais recursos devem ser suficientes para custear as prestações positivas necessárias ao bom funcionamento do sistema prisional – construção de presídios, treinamento de pessoal, cursos profissionalizantes, assistência médica, alimentação dos detentos etc. Assim, o garantismo projeta-se na execução da pena como um método de legitimação do jus puniendi mediante a observância de critérios substanciais como o estrito respeito aos direitos fundamentais e a compulsoriedade das prestações positivas na área do direito penitenciário. A finalidade política da 12 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofia del derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 94. 13 FERRAJOLI, Luigi. CHOUKR, Fauzi Hassan. O que é Garantismo. In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002, p. 684. 14 CHOUKR, Fauzi Hassan. O que é Garantismo. In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002, p. 684. 7 pena – retributiva, preventiva, reeducativa15 – é reforçada por outros elementos objetivos propostos por Ferrajoli: predeterminação legal, determinação judicial, certeza, igualdade, proporcionalidade à gravidade do delito, imunidade das consciências frente aos modos e os tempos de sua execução16. Partindo da dupla finalidade da sanção penal – exemplar e disciplinatória –, Ferrajoli apresenta uma série de propostas relativas ao jus puniendi do Estado. Entre elas estão a redução das penas privativas de liberdade até sua total extinção; fixação do limite máximo de 10 anos para o regime de reclusão; instituição de penas alternativas como a prisão domiciliar, a limitação de fim de semana, a semi-liberdade, a liberdade vigiada etc.17. Mesmo reconhecendo a grande importância desse debate para o direito penitenciário, optamos por desenvolver uma reflexão sobre outro aspecto do garantismo: os direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade. 3. A SUPRA-ESTATALIZAÇÃO DO DIREITO PENITENCIÁRIO O garantismo tem apresentado importantes propostas para a constitucionalização e a efetividade dos direitos fundamentais. Uma de suas principais teses é o fortalecimento dos direitos e garantias no direito internacional. Para que eles sejam realmente levados a sério, afirma Ferrajoli, é preciso reconhecer o caráter supra-estatal e universal dos direitos humanos e exercer pressões diplomáticas para que sejam realmente respeitados pelos Estados democráticos18. Os direitos fundamentais são essencialmente supra-estatais. Representam o primado do direito internacional sobre as ordens jurídicas internas. Ao adotálos em suas Constituições, os Estados declaram sua integral subordinação à ordem jurídica supra-estatal e cumprem os compromissos assumidos diante das Nações Unidas ou de outras instituições multilaterais. Daí dizer-se que são direitos declaratórios e executórios, respectivamente. Portanto, o fundamento de existência e validade dos direitos fundamentais não deve ser buscado na norma constitucional, mas na ordem jurídica supra-estatal, nos tratados e convenções internacionais. O direito internacional incide sobre todos os Estados, impondo-lhes a obrigação de reconhecê-los e tutelá-los em seus textos constitucionais. Para Pontes de Miranda, ele aspira efetividade universal, pois é o direito da mais larga esfera da vida jurídica da Terra. Tem a missão de unificar o direito em todo o Planeta. Cada Estado tem o dever de tornar executórias as normas contidas nos 15 As Escolas Penais Clássicas gravitam em torno de três paradigmas: (a) as teorias da retribuição, que vêem as penas como um instrumento de expiação do crime; (b) as teorias finalistas, que defendem sua importância na prevenção geral ou especial do crime; (c) teorias ecléticas, que conciliam o caráter retributivo da pena com a necessidade de regenerar o criminoso para reintroduzi-lo à sociedade. Sobre o tema consultar BRUNO, Aníbal. Direito Penal, tomo I. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito Ltda., 1956, p. 91. 16 FERRAJOLI, Luigi. Teoria e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 382. 17 FERRAJOLI, Luigi. Teoria e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 382. 18 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofia del derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 183. 8 tratados internacionais sobre direitos humanos. Deve, portanto, não só recepcioná-los no ordenamento jurídico como emendas constitucionais, mas também protegê-los na legislação infraconstitucional19. Os direitos fundamentais supra-estatais também desempenham duas funções sociológicas importantíssimas para a evolução civilizatória dos povos: (a) promovem a integração dos Estados mediante a adoção de princípios universalisantes, legitimados pela comunidade internacional; (b) favorecem a diminuição do despotismo estatal (quantum despótico), na medida em que cria um conjunto de garantias que asseguram a efetividade das liberdades públicas e dos direitos sociais. A expansão dos direitos fundamentais no plano internacional foi um importante passo para alcançar o principal objetivo do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana. Para Pontes de Miranda, “a afirmação e o reconhecimento da dignidade humana, o que se operou por lentas e dolorosas conquistas na história da humanidade, foi o resultado de avanços, ora contínuos, ora esporádicos, nas três dimensões: democracia, liberdade e igualdade20”. Essas dimensões dão o substrato axiológico às liberdades públicas, direitos sociais, difusos e coletivos. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) proclamou a proibição da tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante como direito fundamental supra-estatal (art. V). O mesmo dispositivo foi transposto para a Convenção Americana sobre Direitos Humanos21, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que acrescentou no art. 5.2.: “Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”(1969). De fato, a Declaração Universal dos Direitos do Homem foi o marco legislativo da fase garantista do direito penitenciário. A partir dela, as pessoas privadas de liberdade passaram a condição de titulares de direitos fundamentais a serem invocados contra o Estado. Além disso, o Estado assumiu a responsabilidade de assegurar condições dignas ao condenado durante todo o período de cumprimento da pena. Em 1966, as Nações Unidas editaram o Pacto Internacional dos direitos Civis e Políticos22, com a finalidade de regulamentar e garantir o cumprimento da Declaração Universal. Esse documento, ratificado pelo Brasil em 1992, reforçou a idéia de que o objetivo político da pena consistia na regeneração e readaptação social do condenado após o cumprimento da pena. O art. 10.3, estabelece textualmente que: “O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e a reabilitação moral dos prisioneiros [...]”. Sob essa perspectiva, a prisão deixa de ser um instrumento de purgação do crime, de vingança estatal, para tornar-se um instrumento de reeducação do detento para prepará-lo para o retorno ao convívio social. 19 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 218. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo IV. São Paulo: RT, 1967, p. 218. 21 Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 27, de 25 de setembro de 1992. Foi promulgada pelo Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992. 22 Aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991. Foi promulgado pelo Decreto n. 592, de 06 de julho de 1992. 20 9 Além de garantias do acusado no processo penal, o Pacto proclama os seguintes princípios norteadores do sistema penitenciário: Respeito à dignidade da pessoa privada de liberdade; Proibição de trabalhos forçados como cumprimento da pena, salvo anterior previsão legal (art. 8, a e b); Restrição da pena de morte aos crimes mais graves, anteriormente previstos em lei e que não atentem contra normas de direito internacional, sobretudo a Convenção de Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (art. 6.2); Proibição da pena de morte para menores de 18 anos (art. 6.5); Direito subjetivo de o condenado a morte requerer indulto, anistia ou comutação da pena (art. 6.4). Adequação de cadeias e penitenciárias para que haja separação entre pessoas processadas e pessoas condenadas, entre adultos e adolescentes, entre homens e mulheres (art. 10.2, a); Direito à reparação em caso de encarceramento ilegal (art. 9.5). A proibição de tortura, tratamentos desumanos, cruéis e degradantes cristalizou-se na ordem supra-estatal como direito fundamental absoluto, insuscetível de derrogações pelos Estados-Membros. Os países signatários dos tratados estão proibidos de criar restrições, limitações ou suspensões que possam submeter o indivíduo a maus tratos ou infligir-lhe dor física ou psicológica como forma de forçá-lo a confessar crimes, denunciar cúmplices ou purgar atos delituosos. O Brasil está vinculado a dois tratados internacionais de proibição da tortura e maus tratos. Em nível planetário, submete-se à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes (1984)23. Como país integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), também deve executar a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1885). Tais normas de direito internacional fortalecem o direito individual à proteção contra a tortura e maus tratos nos países signatários dos tratados, obrigando-os a criar as garantias necessárias para prevenir e reprimir as violações contra a integridade física, psíquica e moral das pessoas privadas de liberdade. 3.1. Convenção das Nações Unidas sobre Tortura Adotada pela Assembléia Geral da ONU em 1984, a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, 23 Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 4, de 23 de maio de 1989. Foi promulgada pelo Decreto n. 40, de 15 de fevereiro de 1991. Através do Decreto n. 6.085, de 12 de abril de 2007, o Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. 10 Desumanos e Degradantes foi ratificada pelo Brasil em 1991, tendo hoje status de norma constitucional. Ela impõe aos Estados-Membros diversas obrigações destinadas a prevenir e reprimir a tortura em seus ordenamentos jurídicos. Entre elas: a impossibilidade de justificá-la por circunstâncias excepcionais como estado de guerra, instabilidade política ou emergência pública; legitimidade para negar a extradição de acusados, quando houver razões substanciais para quer que existem riscos de serem submetidas à tortura; criminalização da tortura em direito interno; realização de cursos e campanhas publicitárias sobre a proibição da tortura; direito à indenização por danos morais e materiais causados às vítimas de tortura; ilicitude das provas obtidas sob tortura. Em seu art. 1º, a Convenção dá a seguinte definição de tortura: “qualquer ato pelo qual dores e sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores e os sofrimentos que sejam conseqüências unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou dela decorram”. A Convenção não estabeleceu diferença conceitual entre tortura e maus tratos. De fato, os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, restam conceitos indeterminados cujo conteúdo deve ser preenchido em cada caso concreto. Na verdade, os maus tratos estão contidos no conceito de tortura. A diferença está na finalidade. A tortura tem o objetivo de extrair confissões, informações, punir, intimidar, aterrorizar. Os maus tratos nada mais são que a exposição da pessoa a tratamentos desumanos – aviltantes, humilhantes, atentatórios à dignidade humana – sem finalidade específica. Exemplo disso é a superlotação das celas brasileiras, verdadeiros depósitos de seres humanos, desprovidas das condições mínimas de conforto, higiene e condições sanitárias. Esse ambiente favorece rebeliões, fugas, agressões físicas e sexuais entre os detentos. 3.2. Convenção Interamericana contra Tortura A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, editada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), é um tratado regional de direitos humanos que goza de hierarquia constitucional no sistema jurídico brasileiro. O art. 2º traz a seguinte definição de tortura: “ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”. 11 A Convenção Interamericana ampliou o conceito de tortura, incluindo em seu conteúdo não apenas os suplícios físicos, mas também os sofrimentos psíquicos e morais sofridos pela vítima no cárcere. A Convenção também considera a tortura um direito fundamental que se manifesta por um conjunto de prerrogativas que asseguram à pessoa humana proteção à incolumidade física e psíquica mediante o poder de exigir do Estado que não promova qualquer ato definido como tortura pelos tratados internacionais e leis vigentes no país. É, portanto, direito vinculado axiologicamente à técnica da liberdade e impõe prestações negativas (abstenção, não ingerência) no exercício da atividade persecutória policial e judicial. Além disso, a Convenção Interamericana estabelece a responsabilidade penal pelo delito de tortura: Art. 3º - Serão responsáveis pela tortura: a) os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse caráter, ordenem sua execução, instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam. b) pessoas que, por instigação dos funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea a, ordenem sua execução, instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou nele sejam cúmplices. Art. 4º - O fato de haver agido sob ordens superiores não eximirá da responsabilidade penal correspondente. A Convenção também prevê a qualificação dos agentes penitenciários e de outros funcionários públicos que trabalhem no serviço prisional, para que possam desempenhar suas funções com respeito aos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, especialmente para que evitem a tortura e os tratamentos desumanos ou degradantes. 3.3. Princípios para a proteção de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão. Em 9 de dezembro de 1988, a Assembléia Geral da ONU adotou o Conjunto de princípios para a proteção a todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão, constante da Resolução n. 43/173. A Resolução n. 43/173 faz a distinção entre pessoa detida e pessoa presa. A expressão pessoa detida designa o indivíduo privado de sua liberdade sem que haja sentença penal transitada em julgado. Por sua vez, pessoa presa designa a privação de liberdade como conseqüência de sentença penal irrecorrível. Detenção é a condição dos indiciados ou acusados em ação penal em tramitação; já o vocábulo prisão retrata a condição de condenado em processo criminal. Os princípios supra-estatais têm a missão de orientar os Estados a adotar, em suas legislações internas, um conjunto de direitos fundamentais que 12 asseguram à pessoa presa ou detida prerrogativas constitucionais de defesa contra o arbítrio do aparato repressivo do Estado. A Resolução da ONU reafirma a dignidade humana, a legalidade, a humanidade, a proibição da tortura e de tratamentos cruéis e degradantes como valores supremos no exercício da persecução penal. Também ratifica o direito à assistência jurídica, à presunção de inocência, o direito de não se auto-incriminar, o direito ao duplo grau de jurisdição, o direito à indenização por danos morais e materiais sofridos durante o cárcere, direito à duração razoável do processo, entre outros. A Resolução estabelece que os Estados-Membros devem adaptar suas legislações internas para assegurar: excepcionalidade das prisões provisórias; a separação entre pessoas detidas e presas; habitual; a proximidade do local de detenção ou de prisão ao seu domicílio direito à assistência da família; realização de exame médico quando do seu encarceramento; assistência médica gratuita durante o período de detenção ou prisão; fornecimento de material educativo, cultural e informativo, dentro dos limites dos recursos disponíveis; inspeções regulares das autoridades competentes nos locais de prisão ou detenção; direito de representação às autoridades penitenciárias, administrativas ou judiciais, para denunciar irregularidades relativas ao seu tratamento, particularmente no caso de tortura ou de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. 4. DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA PRESA OU DETIDA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Uma das características mais marcantes do golpe militar de 1964 foi a crescente desfundamentalização dos direitos humanos. O Ato Institucional n. 02/65 instituiu a censura, condicionando a publicação de livros e periódicos à prévia licença do poder público (§ 5º). Em 1968, o Ato Institucional 05 suspendeu a garantia do habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art. 10). Atribuiu poder ao Presidente da República de confiscar bens de quantos tenham enriquecido ilicitamente (art. 8). Também o de suspender os direitos políticos e caçar mandatos por decreto presidencial (art. 4º). No ano seguinte edita o Ato Institucional 13, que assegurou ao Executivo a prerrogativa de banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional (AI-13, art. 1º). A Emenda n. 01/69 restringiu a 13 liberdade de expressão, reprimindo todas as manifestações que supostamente contrária à moral e bons costumes (art. 150, § 8º). Neste cenário, não havia espaço para a proteção dos direitos das pessoas privadas de liberdade. O direito penitenciário não podia avançar. Até porque o poder político acena para o recrudescimento da atividade repressora do Estado, ressuscitando um antigo símbolo dos regimes despóticos: a tortura. A lógica velada do regime militar assentava-se em duas premissas: concepção absolutista de segurança da sociedade e a funcionalidade do suplício24. De um lado, a ideologia dos quartéis pregava uma visão extremada de segurança pública e a defesa da pátria contra seus inimigos, sintetizada em jargões como “tudo pela pátria”, “contra a pátria não há direitos” e “Brasil, ameo ou deixe-o”. De outro, emerge a tortura como instrumento eficaz para combater o terrorismo de esquerda. O resultado dessa conjunção de princípios é simples: o país está acima de tudo, até mesmo da dignidade humana e das liberdades individuais. O terrorista não é considerado um combatente ou um preso político, mas um perigoso inimigo contra quem devem ser usados todos os meios necessários para extrair confissões, inclusive as mais perversas formas de tortura. Por mais paradoxal que possa parecer, essas premissas eram negadas com veemência pelo regime militar. Oficialmente, o Governo condenava a tortura, mas se recusava a investigá-la. Os generais não admitiam sua existência no meio policial, mas rechaçavam qualquer iniciativa externa de apuração das denúncias feitas pela Igreja, movimentos populares ou familiares de presos políticos. Essa “blindagem” assegurava uma verdadeira imunidade aos torturadores que lotavam os porões da ditadura militar – oficiais das forças armadas, oficiais das polícias militares, integrantes da polícia civil, praças, sargentos etc. Ela revestia-se de um sistema de proteção que envolvia juízes, promotores de justiça, médicos e outras autoridades que recebiam recompensas funcionais (promoções, gratificações) em troca de seu silêncio e de sua cumplicidade. A estratégia de sustentação desse modelo foi assim descrita pelo jornalista Elio Gaspari: (a tortura) vaza primeiro para o aparelho judiciário, cuja cumplicidade passa a ser essencial para prevenir denúncias e até mesmo a anulação de confissões. [...] Para funcionar, o porão expande-se além das fronteiras de sua clandestinidade. Ele precisa de diretores de hospitais, médicos e legistas dispostos a receber presos fisicamente destruídos, fraudar autos de corpo de delito e autópsias. [...] Quanto mais duro o regime, mais prestígio tem o promotor, médico ou empresário que colabora com o porão. Ao menor sinal de liberação, toda teia é ameaçada. Primeiro pela perda do poder. Depois – e aí reside o risco temível – pela exposição dos crimes. A rede, assim como o torturador, vale-se da ditadura para amealhar suas 24 GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia de Letras, 2002, p. 17. 14 recompensas, mas precisa que ela persista, quer para encobrir os delitos, quer para disfarçar o rastro de ligações perigosas25. A tese da funcionalidade do suplício baseava-se duas justificativas. Em primeiro lugar era um método que funcionava na prática, pois poucos eram os prisioneiros que resistiam à tortura. A maioria confessava crimes, delatava companheiros, denunciava as ações das organizações políticas a que estavam vinculados. Além disso, o poder de infligir sofrimento físico terminava por levar a total submissão da vítima aos desejos de seu algoz. Completamente incapaz de reagir, anulada psicologicamente, só restava a ela colaborar com o porão na tarefa de desmantelar os “aparelhos terroristas”. Ao contrário do que acontecia nas condenações medievais, em que o suplício era explícito, a tortura praticada após a edição do AI-5 tinha a marca da clandestinidade. Ao invés de assumi-la publicamente, o regime militar preferia assegurar uma rede de proteção que garantisse a impunidade dos torturadores. A tortura era negada publicamente pelas autoridades militares e praticada livremente nos porões, sem qualquer intervenção estatal no sentido de responsabilizar os seus autores. Do ponto de vista formal, o Brasil era um país que repudiava a tortura como prática de investigação policial; mas, na realidade, ela era uma importante peça na estratégia de manutenção das estruturas de poder. A Constituição de 1988 rompeu com o fundamento autoritário e ditatorial de sua antecessora e estabeleceu um catálogo de direitos sociais, cuja concretização depende de prestações estatais positivas, entre as quais políticas públicas e programas sociais setoriais. A boa gestão do sistema penitenciário surge como uma das obrigações mais importantes para o combate à criminalidade e a promoção da segurança pública. Na Constituição Federal, os direitos da pessoa privada de liberdade possuem duas faces indissociáveis e complementares, tendo como fio condutor o princípio da dignidade da pessoa humana. São, ao mesmo tempo, liberdades públicas e direitos sociais. Como vimos acima, as liberdades públicas se manifestam como prerrogativas de defesa da esfera individual daqueles que estão submetidos ao sistema prisional, especificamente no que se refere à incolumidade física e psíquica durante a detenção ou cumprimento da pena. Por outro lado, são direitos que se exteriorizam em forma de prestações positivas que impõem ao Estado o dever jurídico de criar todas as condições objetivas que possibilitem a correta execução da pena privativa de liberdade ou o cumprimento da prisão cautelar. É na combinação desses dois imperativos que reside a efetividade constitucional. O Brasil vive uma crise sem precedentes no sistema prisional. Os 422 mil presos são obrigados a conviver com problemas crônicos como superlotação dos presídios e cadeias públicas, precárias condições higiênicas e sanitárias, alimentação de péssima qualidade, guerras entre facções rivais e morosidade no julgamento dos processos. Só em 2007, 1040 presos foram assassinados no 25 GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia de Letras, 2002, pp. 28-29. 15 interior dos cárceres, o que revela a cifra de 3 mortes por dia. Isto sem falar nas lesões corporais provenientes de agressões, cuja estimativa é bem maior. A ausência de políticas públicas eficientes é a principal causa do apagão carcerário26. A omissão governamental em implementar programas sociais destinados a efetivar os direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade constitui injustificável recusa em cumprir a obrigação prestacional imposta pela Constituição de 1988. Entre todos os direitos sociais constantes da Constituição de 1988, os das pessoas privadas de liberdade são os mais negligenciados pelos órgãos estatais. A principal causa dessa crise de efetividade é, sem dúvida, a omissão dos governantes em adimplir as prestações positivas que possibilitem a correta concretização do binômio execução da pena – ressocialização do condenado. Historicamente, as políticas públicas no setor penitenciário nunca foram prioridade na gestão administrativa. O setor tem de conviver com a escassez de recursos, falta de investimentos, improvisação de ações, inexistência de programas sociais eficientes. A ausência do poder público na organização do espaço de convivência, na promoção de atividades profissionais, educacionais e assistenciais favorece o aumento da periculosidade na população carcerária. O preso se sente abandonado pela sociedade, perde as esperanças de reintegração social, vê sua saúde se degradar a cada dia. Somem-se a isso os longos dias de ócio e o convívio permanente com facções criminosas, preocupadas em controlar o espaço carcerário e organizar fugas. A falta de perspectiva de vida após o cumprimento da pena – fruto do desinteresse dos governos – é a principal causa da violência urbana e dos assustadores índices de reincidência no Brasil. Quando se trata da questão penitenciária, o Brasil está diante de uma situação paradoxal: o total descompasso entre validade e efetividade. A Constituição Federal adotou um modelo garantista que tutela os direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade. Mas os governantes pouco fazem para efetivá-los. Preferem adotar uma postura de inércia em relação às prestações positivas a que estão obrigados. A omissão administrativa viola o direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Gera séria crise de legitimidade do governo no cenário externo, na media em que o Brasil passa a figurar entre os países violadores de tratados e convenções internacionais contra tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Esse fosso entre a norma jurídica e as práticas administrativas vigentes no país, decorre do desinteresse em executar as políticas públicas conseqüentes. A principal justificativa da inércia está na escassez de recursos orçamentários a serem aplicados na melhoria do sistema prisional. Na maioria das vezes esse argumento é utilizado como um álibi para encobrir a falta de vontade em investir em um setor de pouca visibilidade eleitoral. Cada vez mais os governantes querem esconder da população o que se passa nas prisões. Mais do que um mecanismo de readaptação social, os presídios se transformaram em verdadeiros depósitos humanos estrategicamente colocados fora do alcance da opinião pública. O apartheid estimula a canalização de recursos financeiros 26 Expressão utilizada em uma série de reportagens veiculadas pela Rede Globo de Televisão sobre a crise no sistema penitenciário brasileiro. 16 para outras áreas sociais de maior densidade política. Para justificar a falta de efetividade das políticas públicas, os governos invocam o princípio da reserva do possível. A inexistência de dotações orçamentárias para custear as despesas necessárias ao custeio das despesas do sistema prisional com infra-estrutura e manutenção termina sendo a principal tese contra as denúncias de omissão. Quando as demandas por prestações positivas são judicializadas, o Estado se lança mão de argumentos falaciosos para se esquivar do cumprimento das obrigações constitucionais. Na maioria dos casos, alega insuficiência de recursos orçamentários para atender às necessidades do sistema prisional. Em seguida rebela-se contra a indevida ingerência do Judiciário na atividade discricionária do Executivo, colocando em risco a independência e harmonia entre os poderes. Embora reconheça que os direitos sociais possuem graus diferentes de efetividade, pois dependem de condições econômicas e administrativas específicas, o Supremo Tribunal Federal tem exigido provas objetivas da impossibilidade financeira para implantar políticas públicas setoriais. A simples menção de reserva do possível não é suficiente para justificar a inércia do poder público. Ao julgar o Recurso Extraordinário n. 410.715AgR/SP27, o STF enfatizou que “a cláusula da reserva do possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação dos direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”. A Corte tem reafirmado a dimensão política da jurisdição constitucional, o que a legitima a compelir os entes federativos a tornar efetivos os direitos sociais, econômicos e culturais. No referido Acórdão, o STF sublinha que “tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade dos direitos dos direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional [...]”. Além disso, o poder discricionário do gestor público está inexoravelmente vinculado aos limites estabelecidos pelas normas de direitos fundamentais, e não em meros juízos de oportunidade e conveniência. Quando se trata da questão penitenciária, o administrador está obrigado a promover políticas públicas destinadas a assegurar condições dignas a presos e detentos. O Judiciário pode (e deve) intervir sempre que a omissão do poder público impedir a adequada execução penal, sem que isso implique intervenção indevida do Poder Judiciário na atividade administrativa do Estado. A ausência de políticas penitenciárias eficientes constitui inaceitável violação ao direito à vida e à dignidade humana. O Estado tem responsabilidade objetiva sobre os danos morais e materiais sofridos pelos presos que estejam sob sua custódia. Está obrigado a assegurar as condições necessárias à integridade 27 STF – Segunda Turma – Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 410.715/SP – Rel. Min. Celso de Mello – julgado em 22/11/2005. 17 física e psíquica dos indivíduos submetidos aos imperativos das prisões cautelares ou da execução penal. E não é só isso. É preciso que o poder público promova prestações positivas adequadas à efetividade dos direitos sociais, sobretudo no campo da educação, cultura, saúde e trabalho – requisitos imprescindíveis à reintegração social após o cumprimento da pena. A renúncia ou recusa do Executivo em adimplir a obrigação constitucional justifica a constrição concretizadora dos direitos fundamentais promovida pelo Judiciário. Com relação à integridade física e psíquica do preso, o poder público está vinculado à observância da proibição do excesso. Esse princípio se projeta para evitar que a autoridade penitenciária se exceda no cumprimento de suas atribuições disciplinares, colocando em risco a vida dos presos. Mais do que isso, impõe ao Estado o dever de obediência à legalidade, sobretudo em relação às normas constitucionais que tutelam a liberdade física e psíquica. Também vincula os juízes à proporcionalidade, equidade e bom-senso no julgamento das ações penais. A persecução penal deve ser severa, mas a jurisdição deve assegurar ao acusado todas as garantias processuais para o exercício de sua defesa, evitando julgamentos açodados ou conduzidos pelo clamor público ou pressão da mídia. Algumas proposições: a prisão só deve ser decretada como último recurso à repressão ao crime; as penas devem ser proporcionais à gravidade do delito; as medidas disciplinares não podem ser humilhantes; degradantes ou desumanas; deve-se evitar que integrantes de facções criminosas rivais dividam a mesma cela; a ocupação das celas deve levar em consideração o uso racional do espaço vital, evitando-se a superlotação das celas; substituição das penas privativas de liberdade por medidas alternativas em caso de crimes de pequeno potencial ofensivo. Mas quando se trata do direito às condições dignas de vida durante o cumprimento da pena ou da detenção provisória, sobreleva-se o direito ao mínimo existencial. Tal direito consiste no poder de exigir do Estado um conjunto de prestações materiais indispensáveis à fruição de uma vida digna. Esse princípio se desdobra em duas dimensões: o mínimo fisiológico e o mínimo sociocultural28. A primeira consiste na obrigação estatal de garantir a cada pessoa as condições básicas de sobrevivência, a exemplo da segurança alimentar e da assistência médica. A segunda reveste-se de um conjunto de prerrogativas constitucionais destinadas a criar oportunidades para a reinserção social após o cumprimento da pena. O seu conteúdo comporta formação profissionalizante, educação religiosa, programas de assistência social etc. Além do caráter imperativo de que são revestidos, a proibição do excesso e o mínimo existencial são parâmetros racionais para a efetividade dos direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade. Asseguram, ao mesmo tempo, integridade física e condições dignas de sobrevivência durante a execução da pena. Justificam a intervenção do Judiciário para compelir os gestores públicos a cumprir as prestações positivas a que estão constitucionalmente vinculados. 28 SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: Direitos Fundamentais, orçamento e reserva do possível. Org. Ingo Sarlet Wolfgand e Luciano Benetti Timm. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 21. 18 Nesse contexto, instituições como o Ministério Público, comissões pastorais e a sociedade civil organizada passam a ter importância fundamental na luta pela dignidade da população carcerária: seja denunciando os abusos à imprensa, seja propondo ações civis públicas contra as omissões governamentais. A proibição da tortura, tratamentos desumanos e degradantes, enquanto direito fundamental assegurado à pessoa privada de liberdade, ainda são atingiu um nível satisfatório de efetividade no Brasil. O despreparo das autoridades policiais e as péssimas condições do sistema penitenciário são as principais causas desse estado de coisas. A solução do problema é urgente e passa pela qualificação profissional da polícia militar e judiciária em matéria de direitos humanos, bem como pela execução de políticas públicas eficazes no sistema penitenciário que assegurem o cumprimento da pena em condições adequadas e condizentes com a dignidade do detento. Só assim o país dará um grande passo para a redução da criminalidade e da reincidência. 19