A fundamentação deficiente das decisões interlocutórias (ou: presentes os pressupostos legais, indefiro
a liminar)
Fabrício Antonio Soares
Assessor de Desembargador Federal
I. A fundamentação como causa da aplicação do direito ao caso concreto, e não
como mera explicação
Os gramáticos, de forma geral, diferenciam com nitidez a explicação, de um
lado, e a causa, de outro, especialmente quando estudam as orações coordenadas explicativas e as subordinadas adverbiais causais. Aí se vê que uma mesma conjunção,
aparentemente numa mesma estrutura sintética, pode traduzir duas idéias diversas:
explicação e causa.
1
JOSÉ DE NICOLA e ULISSES INFANTE ensinam que as orações coordenadas
explicativas “são introduzidas pelas conjunções coordenativas explicativas”, ao passo
que as orações subordinadas adverbiais causais, que são iniciadas pelas conjunções
subordinativas causais, “exprimem a causa, o motivo do que se declara na oração
principal. Causa pode ser definida como aquilo ou aquele que determina um
acontecimento.”
A conjunção “porque” pode introduzir esses dois tipos de orações.
Mas há uma razão para a distinção da classificação dessas orações, distinção
esta que é facilmente demonstrada pela existência da vírgula na explicativa.
2
LUIZ ANTONIO SACCONI explica:
“Às vezes não é fácil estabelecer a diferença entre explicativas e causais, mas
— como o próprio nome indica — as causais sempre trazem a causa de algo que
se revela na oração principal, que traz o efeito. Essa noção de causa e efeito não
existe no período composto por coordenação. Vejamos exemplos:
Elisa chorou porque levou uma surra.
Está claro que a oração iniciada pela conjunção é causal, visto que a surra foi sem
1
NICOLA, José, INFANTE, Ulisses. Gramática contemporânea da língua portuguesa. 5.
ed. São Paulo : Scipione, 1991. p. 301-334.
2
SACCONI, Luiz Antonio. Gramática essencial da língua portuguesa. 4. ed. São Paulo :
Atual, 1989. p. 276.
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dúvida a causa do choro, que é o efeito.
Elisa chorou, porque seus olhos estão vermelhos.
O período agora é composto por coordenação, pois a oração iniciada pela conjunção traz a explicação daquilo que se revelou na coordenada anterior. Não existe
aí relação de causa e efeito: o fato de os olhos de Elisa estarem vermelhos não é
causa de ela ter chorado.”
Esta incursão pelo estudo da língua portuguesa serve para esclarecer que a
fundamentação das decisões judiciais, por ser, como será analisado, expressão da
legitimidade da atuação jurisdicional, imperativo do Estado Democrático de Direito
e direito fundamental do jurisdicionado, que tem amplo acesso à justiça, não deve
ser uma mera explicação, mas sim uma causa, vale dizer, aquilo que determina um
acontecimento, que é o deferimento ou o indeferimento do pedido.
O efeito do preenchimento dos pressupostos legais de uma liminar é o seu deferimento. A causa é o preenchimento desses mesmos pressupostos. Está estabelecida,
portanto, uma relação de causa e efeito. Da existência dos pressupostos legais não
pode decorrer o indeferimento da liminar.
Por isso é que, já mediante o subtítulo do trabalho, procurei assinalar que as
decisões judiciais deferitórias porque presentes os pressupostos legais ou indeferitórias
porque ausentes os mesmos pressupostos são fundamentadas de forma deficiente e
que, quando se diz o óbvio, é o mesmo que não se dizer nada.
Esta a razão primordial de se sustentar que decisão
fundamentada deficiente3
mente não é o mesmo que decisão mal fundamentada , mas equiparada sim à decisão
não fundamentada, uma vez que, seja do ponto de vista gramatical, seja sob o prisma
3
Parte-se, portanto, de uma premissa diversa daquela anotada por várias decisões do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em que se afirma ser a decisão deficientemente fundamentada
equiparada à decisão mal fundamentada e não à não fundamentada. Mas os casos analisados
pela nossa Suprema Corte são, à toda evidência, de decisões em que, efetivamente, havia alguma fundamentação, da qual o recorrente discordava, alegando estar deficiente. Mas, repita-se,
o termo deficiente, nas decisões do Pretório Maior, é utilizado no sentido de fundamentação
pouco desenvolvida, mas existente. Desse modo, não se pode dizer que a tese aqui sustentada
está indo ao encontro de ou, mesmo, de encontro àquela decidida pelo STF. Tão-somente se
fala de coisas diversas. Sustento neste estudo que decisões mal fundamentadas, concisamente
fundamentadas e não fudamentadas são conceitos diversos, e que a deficiente fundamentação
equipara-se à sua ausência. Vejamos, de fato, por outro lado, sobre o que decide o Supremo Tribunal Federal: “Quanto à alegação de nulidade da decisão por deficiência de fundamentação,
pertinente o seguinte trecho do acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 77.792-MG,
rel. Min. Rodrigues Alckmin: ´Somente a falta de fundamentação é que torna a sentença nula.
A fundamentação má ou deficiente não pode acarretar a pretendida nulidade.´ E, ainda, ´O
que a Constituição exige, no art. 93, IX, é que a decisão judicial seja fundamentada; não, que a
fundamentação seja correta, na solução das questões de fato ou de direito da lide: declinadas
no julgado as premissas, corretamente assentadas ou não, mas coerente com o dispositivo
do acórdão, está satisfeita a exigência constitucional.´ (RTJ 150/269, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence).”(RE nº 221.781/RJ, DJ 03.03.2000, Min. NÉRI DA SILVEIRA)
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das nossas garantias constitucionais, seja, ainda, sob o aspecto da justificação histórico-política da fundamentação, efetivamente não há diferença entre o “defiro e ponto
final” e o “defiro porque presentes os pressupostos legais”.
II. A fundamentação como decorrência do Estado de Direito, meio de acesso a
uma justiça justa e fator legitimador da atuação jurisdicional
A motivação deve ser vista como um dever do magistrado, num Estado Democrático de Direito, para a legitimidade de suas decisões, e como uma garantia do
indivíduo, que tem amplo acesso ao Judiciário e amplo direito de defesa, inclusive
com os recursos e meios a ele inerentes.
Passo a citar os melhores textos que encontrei na nossa literatura especializada
nos quais se defendem essas idéias.
4
MANTOVANI COLARES CAVALCANTE confere um enfoque interessante
à necessidade da fundamentação das decisões interlocutórias, relacionando-a com a
justiça dos pronunciamentos jurisdicionais e o duplo grau de jurisdição:
“É preciso, portanto, que se exija do juiz o rigoroso cumprimento dessa disposição
constitucional, uma vez que, na medida em que se obriga a fundamentação de todas
as decisões judiciais, deixa de ter tanta importância o princípio do duplo grau de
jurisdição, pois este princípio tem como fundamento a possibilidade da correção das
decisões injustas, e parece-me razoável concluir que a decisão fundamentada
terá menor possibilidade de ser injusta.”
Também sobre a ordem jurídica justa a que todos têm amplo acesso, diz-nos
5
FLÁVIO RENATO CORREA DE ALMEIDA :
“Ora, se a jurisdição é um poder, também é um dever. Dever de bem julgar. Dever
de não impor a força que possui, sem que aquele contra o qual ela se dirige conheça
as razões por que é obrigado a suportar as conseqüências do julgamento. Dever de
solucionar os conflitos de interesses com Justiça, o que só é possível mediante
a transparência de sua atividade.
[...]
Com a norma constitucional, a fundamentação das decisões tornou-se uma garantia,
inerente à cidadania, já que o direito de acesso ao Poder Judiciário e o direito de
obter um provimento também o são. Se se assegura ao cidadão o direito de obter a
tutela jurisdicional – previsto no inc. XXXV do art. 5º da CF – é lícito concluir
que a fundamentação é, também, uma garantia, e da mesma ordem.”
6
LUIZ GUILHERME MARINONI expõe com grandeza de alma sobre o arbítrio,
4
CAVALCANTE, Mantovani Colares. Regime jurídico dos agravos. São Paulo : Dialética,
1998. p. 133.
5
ALMEIDA, Flávio Renato Correa de. Da fundamentação das decisões judiciais. Revista de
Processo, n. 67, p. 200, jul./set. 1992.
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a efetividade do processo e a legitimação do poder:
“Na verdade, o princípio da motivação assume grande importância no juízo sumário, apresentando-se como mecanismo impeditivo do arbítrio jurisdicional
e, por conseqüência, como elemento possibilitador de uma maior efetividade
do processo.
A proliferação das liminares antecipatórias, de que tanto se fala, bem como o abuso
na concessão de tais liminares, não podem ser desligados da questão da falta de
fundamentação das decisões. É difícil falar em ´abuso´ na concessão de liminares
quando, na verdade, poucas vezes são conhecidos os fundamentos pelos quais
estas liminares são deferidas. A saída, portanto, não é a de proibir a concessão
de liminares, mas sim a de se exigir uma adequada da fundamentação das
decisões. Vale a pena lembrar, aliás, que o princípio da motivação possibilita o
controle da atividade jurisdicional por qualquer um do povo, o que é altamente
importante para a legitimação do poder, principalmente quando a decisão que
concede a liminar é proferida em uma ação que constitui via de participação popular
na gestão do bem comum, como a ação popular ou a ação civil pública.”
MARINONI, além do atinente à legitimação do poder, realça, como visto, aspecto interessante da fundamentação. É que se, de fato, for fundamentada a decisão,
não há que se falar em abuso na concessão de liminar e, portanto, na sua repressão,
que é feita na forma de vedação.
Um belo dia, quando a garantia da fundamentação for socialmente eficaz, veremos que não há mais sentido para vedarmos a liminar em face da Fazenda Pública!
7
INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO explana não somente sobre a fundamentação como fator legitimador da atuação do hermeneuta, mas também do nosso
contexto de Estado de Direito:
“No âmbito da hermenêutica jurídica, por outro lado, esse enriquecimento de
perspectiva (causado pela integração histórica dos horizontes significativos do
texto normativo e o do seu aplicador), porque amplia a capacidade de análise e
de persuasão do intérprete, acentua-lhe, concomitantemente, o dever de prestar
contas do seu trabalho interpretativo, o qual, para ser legítimo, há de ser
racional, objetivo e controlável, pois nada se coaduna menos com a idéia de
Estado de Direito do que a figura de um oráculo despótico ou iluminado, que
esteja acima da lei e dos critérios usuais de interpretação.
[...]
Porque foi produzida segundo o ´devido processo legal´ em sentido amplo
(substantive due process / procedural due process; justificação externa/interna), a
6
MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. Porto Alegre
: S. A. Fabris, 1994. p. 62-63.
7
Anais do curso hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, organizado em cooperação pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela EMARF – Escola da Magistratura
Regional Federal da 2ª Região.
70
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decisão judicial, que assim se obteve, estará revestida de legitimidade e eficácia,
tornando-se insuscetível de desfazimento.
[...]
Em linguagem kelseniana, dir-se-ia que, embora a atividade interpretativa não seja
apenas um ato de conhecimento, mas também de vontade, não é dado ao intérpreteaplicador desconsiderar o marco normativo imposto pela norma de nível superior, da qual deve extrair, por derivação, a decisão para o caso concreto.
[...]
É que, no Estado de Direito, para ser socialmente vinculante, essa construção
deve observar normas e critérios controláveis pela comunidade.”
8
LÚCIA VALLE FIGUEIREDO , em artigo no campo do devido processo
legal, averbou sobre o Estado de Direito:
“No Estado Democrático de Direito, a motivação integra, de maneira inarredável, ainda que possa não estar explícita, o devido processo legal em seu sentido
material.”
Por falar em Estado de Direito, não poderia faltar, neste compêndio de como a
nossa literatura especializada desenvolve o tema, o artigo histórico de JOSÉ CAR9
LOS BARBOSA MOREIRA , que, em março de 1978, na vigência do regime de
exceção, sugere a introdução, após superada a ditadura, na nossa Constituição, da
necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais proferidas em todos os
graus de jurisdição:
“Seja como for, do ponto de vista em que neste trabalho nos situamos, preocupa-nos
menos o exame da garantia da motivação no contexto das instituições políticojurídicas tais como hoje existem do que na perspectica das exigências do Estado
de Direito cuja restauração se almeja. A essa luz, julgamos relativamente pouco
importante indagar se a disciplina desta ou daquela matéria se harmoniza com as
regras superiores em vigor, pela simples e óbvia razão de que as regras superiores em vigor nem sempre se harmonizam, elas próprias, com os postulados
do Estado de Direito.
Nosso olhar dirige-se, neste momento, ao futuro. O restabelecimento do Estado
de Direito, em sua plenitude, é preocupação constante e instante dos advogados
brasileiros. A consecução de tal objetivo exige, sem dúvida, a reforma profunda
das instituições sob que vivemos. Mas a nossa pregação não pode diluir-se em
genéricas e vagas declarações de princípios. Somos convocados a contribuir
com sugestões específicas e concretas para a grande tarefa de reconstrução
de uma ordem jurídica que atenda aos anseios do País. Incumbe a cada qual
8
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Devido processo legal e fundamentação das decisões. Revista
de Direito Tributário, n. 63, p. 216.
9
Trabalho apresentado à VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (maio
de 1978), Revista Brasileira de Direito Processual, v. 16.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
71
trazer o seu adminículo, modesto que seja, para dar forma visível e precisa
ao ideal comum.”
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
10
enfatiza:
“Em face do Estado de Direito, nos dias atuais, se pode estabelecer o porquê desta
exigência num sentido, sob certo aspecto, unívoco.
O Estado de Direito se caracteriza por ser o Estado que se justifica, tendo
como pauta a ordem jurídica a que ele próprio se submete. Assim, quando o Estado
intervém na vida das pessoas, deve justificar a intromissão: materialmente, pois
a intromissão tem fundamento, e formalmente, pois o fundamento é declarado,
exposto, demonstrado.”
Assim, a necessidade de fundamentação independe da impugnabilidade da
decisão, porque esta é um ato do Estado-juiz proferido no âmbito de um Estado Democrático de Direito e intrinsecamente associada a este está a idéia de controle, seja
sob o aspecto interno ao processo (endoprocessual), seja sob o ponto de vista externo
(extraprocessual), para todos quantos direta ou indiretamente interessem a decisão, e
que, por isso, têm o direito de lhe dar ou deixar de lhe dar legitimidade.
Vê-se daí que a idéia de fundamentação como expressão do Estado de Direito
está intimamente ligada à de legitimidade dos atos do Estado.
11
BARBOSA MOREIRA desenvolve conceito já explicado no trecho anteriormente citado de INOCÊNCIO:
“O controle extraprocessual deve ser exercitável, antes de mais nada, pelos
jurisdicionados in genere, como tais. A sua viabilidade é condição essencial para
que, no seio da comunidade, se fortaleça a confiança na tutela jurisdicional – fator
inestimável, no Estado de Direito, da coesão social e da solidez das instituições.”
Precisamos ainda avançar nesse campo, em que pese já havermos alcançado
novamente o patamar de Estado Democrático de Direito!
Não atentamos para quanto uma liminar deferida ou indeferida invade a esfera
do indivíduo, às vezes de forma mais contundente que a própria sentença.
Prevalece, ainda hoje, algumas vezes, a intuição, a expressão não do Estado
de Direito, mas sim do voluntarismo do ditador; prevalece não a razão que
vence sem o uso da força, mas sim o sentimento que vai e que vem aos sabores
e dissabores do vento.
Ele é de lua. É assim que se diz, nas ruas, de uma pessoa instável.
10
Esquece-se, portanto, de que é justamente a instabilidade que a ordem jurídica
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 4. ed. São Paulo
: Revista dos Tribunais, 1997. p. 248-249.
11
72
MOREIRA, ob. cit.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
visa a precipuamente combater.
III. A fundamentação como garantia constitucional e o princípio da máxima
efetividade
Como se percebe, ainda, no trecho citado de INOCÊNCIO, fala-se em fundamentação como corolário do devido processo legal sob a ótica substantiva.
LÚCIA VALLE também, no trecho citado, enfatiza a idéia, pelo que se pode
sustentar ser a fundamentação uma garantia individual, por ser aspecto do devido
processo legal, em seu sentido material, inserto no art. 5º da Carta.
Todavia, ainda que assim não fosse, e ainda que a fundamentação não se inserisse
no conceito de acesso à justiça justa com os meios e recursos a ela inerentes, sabemos
todos que procede a afirmação de que não importa a localização de uma garantia,
que, no caso, está hospedada no art. 93, IX, da Constituição, para caracterizá-la como
individual e, portanto, fundamental.
12
É de FLÁVIO RENATO CORREA DE ALMEIDA a lição:
“Não é apenas o art. 5º da atual CF, que trata das garantias do cidadão, sob o aspecto processual. Afinal, não é porque o legislador constituinte optou por nominar
um capítulo da Constituição de ´Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos´
que, necessariamente, apenas sob essa rubrica estejam elencados os direitos e as
garantias que a Lei Maior traça aos súditos do Estado. Por óbvio, qualquer norma
constitucional pode trazer garantias individuais ou coletivas, basta que o seu conteúdo assim o indique, inimportando sua posição no corpo da Constituição.
[...]
O conteúdo da norma (do art. 93, inc. IX) é nitidamente uma garantia do
cidadão, apesar de inserido no capítulo referente ao Poder Judiciário, e que,
prima facie, parece apenas uma determinação quase administrativa, destinada
aos órgãos jurisdicionais.
Assim não é.”
Até porque o art. 5º, § 2º, da Constituição ressalta não ser o rol do art. 5º exaustivo, pelo que não se excluem os direitos e garantias individuais inseridos em outro
instrumento, principalmente na própria Constituição.
Importa, portanto, o conteúdo da norma, e não o seu aspecto topográfico.
13
PAULO GUSTAVO GONET BRANCO , citando JORGE MIRANDA, assinala
que o que caracteriza um direito como fundamental é a expressão da consideração
que as pessoas merecem na sociedade; por isso é que, sem dúvida, deve ser reconhecido na necessidade de fundamentação das decisões judiciais esse caráter de direito
12
ALMEIDA, ob. cit. p. 200.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
73
fundamental:
“Fala-se, precipuamente, em direitos fundamentais quando Estado e pessoa se contrapõem, autoridade e liberdade se encontram. Os direitos fundamentais enformam
e limitam o exercício do poder político; expressam, afinal, a consideração que
as pessoas merecem na sociedade.”
14
Mais adiante, PAULO GUSTAVO fala do aspecto de localização, citando
decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
“No STF, na ADIn 939 (RTJ 151/755), deu-se importância ao fenômeno da definição tradicional de uma pretensão como direito fundamental, para que assim seja
reconhecida. No precedente, assentou-se que o princípio da anterioridade, ligado ao
poder de tributar, embora constasse em lugar outro que o catálogo do art. 5º da
Constituição, constitui um direito fundamental, dado que, historicamente, sempre
foi assim tratado, constituindo, por isso, cláusula pétrea – conclusão decisiva para
a declaração de inconstitucionalidade de emenda à Constituição que excepcionava
esse princípio no caso do Imposto Provisório Sobre Movimentação Financeira.”
Com efeito, a natureza jurídica da necessidade de fundamentação possui três
conseqüências básicas importantes: 1º)- o reconhecimento da aplicabilidade imediata,
tendo em vista o art. 5º, § 2º, da Constituição, e, especificamente neste caso, a elevada
densidade normativa do art. 93, inc. IX; 2º)- a inserção no conceito de cláusula pétrea
e, portanto, imodificável até mesmo pelo legislador constituinte derivado reformador
e revisional, pelo que se depreende do art. 60, § 4º, inc. IV, da Carta Política; 3º)- a
aplicação do princípio de hermenêutica constitucional da efetividade.
Em relação a esse último aspecto, extremamente oportuno o ensinamento de
15
GOMES CANOTILHO :
“A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.
É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e
embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas
(Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso
de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos
direitos fundamentais).”
Uma das características dos direitos fundamentais estudadas por PAULO GUS16
TAVO é a da sua vinculação aos poderes públicos, inclusive ao Poder Judiciário,
da seguinte forma:
“A vinculação dos tribunais aos direitos fundamentais leva a doutrina a entender
13
Anais do curso hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, organizado em cooperação pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela EMARF – Escola da Magistratura
Regional Federal da 2ª Região.
14
15
Anais citados.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra : Liv. Almedina, 1991.
p. 233.
74
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que estão eles no dever de conferir-lhes máxima eficácia possível. Sob um aspecto negativo, a vinculação do Judiciário gera o poder-dever de recusar aplicação
a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais.”
17
JOSÉ AUGUSTO DELGADO , com a autoridade de Ministro do Superior
Tribunal de Justiça, doutrinou:
“Defendo que, em face do comando constitucional já referido, não há mais condições
de se sustentar essa posição, pela impossibilidade de se interpretar, restritivamente, qualquer direito ou garantia fundamental do cidadão inserido na Carta
Magna. Ademais, há que se considerar como uma das partes não elogiáveis do
Código de Processo Civil a que permitiu a expedição de sentenças concisas.”
18
GILMAR FERREIRA MENDES leciona:
“De ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção
do núcleo essencial (Wesensgehaltsgarantie) destina-se a evitar o esvaziamento
do conteúdo do direito fundamental mediante estabelecimento de restrições
descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.”
Ainda em relação ao terceiro aspecto de que falava, vale a pena trazer à cola19
ção lição de LUÍS ROBERTO BARROSO , um dos nossos maiores estudiosos não
somente acerca da efetividade das normas constitucionais, tendo elaborado a sua tese
de livre docência nessa área, mas também dos princípios de hermenêutica constitucional, eis que insere o princípio da efetividade no capítulo dos princípios específicos
de interpretação da Constituição:
“A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto
de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos
preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre
o dever-ser normativo e o ser da realidade.”
Para finalizar este capítulo, não se poderia deixar de citar a obra pioneira de
20
JOSÉ AFONSO DA SILVA em que se pontifica:
“Por isso é que se diz que a eficácia jurídica da norma designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações,
relações e comportamentos de que cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito à
aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua
aplicação jurídica. O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta
16
17
Anais citados.
DELGADO, José Augusto. Alguns aspectos controvertidos no processo de conhecimento.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 80, n. 664, p. 32, fev. 1991.
18
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São
Paulo : Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1998. p. 35.
19
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo : Saraiva,
1996. p. 220.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
75
é, portanto, a medida de extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se
ao produto final. Por isso é que, tratando-se de normas jurídicas, se fala em
eficácia social em relação à efetividade, porque o produto final objetivado pela
norma se consubstancia no controle social que ela pretende, enquanto a eficácia
jurídica é apenas a possibilidade de que isso venha a acontecer.”
IV. Objetivos da fundamentação
Passo a desenvolver o tema relativo aos objetivos da fundamentação, momento
em que o estudo começará a assumir um cunho mais prático.
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
fundamentar uma decisão judicial:
21
aponta quais são as razões para se
“A primeira destas razões, familiar ao pensamento tradicional, é de ordem técnica.
Seria, sob esse enfoque, necessária a motivação, para poder precisar-se e delimitarse minuciosamente o âmbito do decisum.
A impugnabilidade tem como pressuposto a fundamentação ao objeto impugnado,
principalmente porque se tem por admitido que as decisões não sejam arbitrárias.
Esta, a segunda razão de ordem técnica.
Outro enfoque que pode ser concebido, típico de nossa época, é o que vê na idéia de garantia
a fonte básica de inspiração da obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais.
[...].
A motivação (além disso):
- oferece elementos concretos para que se possa aferir a imparcialidade do juiz;
- poder-se-á dizer, também, por meio do exame da motivação da decisão, verificar
da sua legitimidade;
- por fim, a motivação garante às partes a possibilidade de constatar terem sido
ouvidas, na medida em que o juiz terá levado em conta, para decidir, o material
probatório produzido e as alegações feitas pelas partes.”
22
ROGÉRIO LAURIA TUCCI e CRUZ E TUCCI ensinam:
“Do ponto de vista subjetivo, a motivação da sentença tem por escopo imediato
demonstrar ao próprio juiz, antes mesmo do que às partes, a ratio scripta que
legitima o ato decisório, cujo teor se encontrava em sua intuição.
Visa ela, outrossim, a persuadir o sucumbente ou o condenado da justiça do decidido,
mostrando-lhe que o resultado do processo não é fruto de sorte ou do acaso, mas de
verdadeira atuação da lei sobre os fatos levados à cognição judicial e comprovados,
com a especificação da norma aplicável ao caso concreto.
20
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo :
Malheiros, 1998. p. 66.
21
WAMBIER, ob. cit. p. 248.
22
TUCCI, Rogério Lauria, TUCCI, Cruz e. Constituição de 1988 e processo. São Paulo :
Saraiva, 1989. p. 74-75.
76
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E, por outra vertente, as razões de decidir importam, também, permitir o controle
da sentença, para que se possa estabelecer a exata dimensão do conteúdo da vontade
do juiz e, conseqüentemente, para a verificação dos limites objetivos do julgado”
23
O gênio de ENRICO TULLIO LIEBMAN , em artigo sugestivamente intitulado
“Do Arbítrio à Razão”, concebeu:
“tem-se como exigência fundamental que os casos submetidos a juízo sejam julgados com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e,
para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é
necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que percorreu para chegar
à decisão a que chegou”
V. Implicações práticas do discurso: o que diz a doutrina?
Quando o juiz diz que defere porque estão satisfeitos os requisitos legais, está
dizendo o óbvio, porque somente defere quando há um respaldo na lei.
Por essa razão, é necessário que se diga por que estão presentes os pressupostos
naquele caso concreto posto à sua apreciação.
É preciso, portanto, que o juiz não procure uma explicação que caia num
vazio, num nada jurídico. Como já tentei dizer na primeira parte deste estudo, em
que se analisou o aspecto gramatical do ´porque´, dizer que Elisa chorou, porque
seus olhos estão vermelhos não é fundamentar; não é dar a causa desse efeito.
Mas, mesmo assim, é mais do que dizer que se defere o pedido porque estão
presentes os seus pressupostos. Pode-se chorar sem ficar com os olhos vermelhos,
mas deferir o pedido sem estarem presentes os pressupostos é impossível.
Assim, por ser a fundamentação, sob o aspecto gramatical, causa do direito
aplicado ao caso concreto, garantia constitucional, em que vige o princípio da máxima efetividade, decorrência do Estado de Direito, meio de acesso a uma justiça justa
(às vezes a redundância é necessária), fator legitimador da atuação jurisdicional (o
concurso público legitima apenas o ingresso) e por todos os demais objetivos apontados, aprofundei-me na pesquisa sobre como os nossos doutrinadores vêem a decisão
deficientemente fundamentada, vale dizer, como vêem, em face do art. 93, inc. IX, da
Carta, o defiro ou indefiro porque presentes ou ausentes os pressupostos legais.
24
SÉRGIO FERRAZ afirmou:
“Quando eu estou pleiteando ao juiz que me dê uma liminar, porque senão meu
direito morre e o juiz simplesmente diz não dou — e eles fazem em geral com um
despacho que os senhores sabem que é até carimbo: ausentes os seus pressupostos
da concessão, indefiro a liminar. Quer dizer, isso aí é uma brincadeira, sobretudo
23
LIEBMAN, Enrico Tullio. Do arbítrio à razão : reflexões sobre a motivação das sentenças.
Revista de Processo, São Paulo, n. 29, p. 79.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
77
a partir da Constituição de 88, que manda que todas as decisões sejam motivadas
e dizer ausentes os pressupostos evidentemente não é motivar coisa nenhuma.
Tem que dizer em que eles estão ausentes. Porque não acontece o periculum.
Porque não acontece o fumus. Tem que dizer, fundamentadamente.”
25
LÚCIA VALLE FIGUEIREDO escreveu:
“Como último tópico, somente queríamos enfatizar que as decisões devem ser
necessariamente motivadas. Dizer, por exemplo, que o magistrado motivou sua
decisão quando afirmou não existir periculum in mora, ou não existir fumus boni
iuris ou não estarem presentes os requisitos do art. 7º, inc. II, da lei nº 1.533/51,
significa, na verdade, que o juiz não disse nada. Isso não é motivação. O juiz
tem de explicitar por que não está presente o fumus boni iuris, por que não está
presente o periculum in mora. Remeter-se, apenas, ao texto legal não é motivar,
é ausência de motivação judicial.”
26
Em outra ocasião, assinala, ainda, LÚCIA VALLE :
“Tanto o administrador como o juiz deverão dizer: ´aplico o artigo tal, inciso qual,
porque a hipótese examinada, tais e tais fatos, inserem-se na hipótese legal, por
força de tais ou quais razões.´
É dizer: de alguma forma a alegação de dispositivo legal pode ser considerada
motivação, fundamentação do ato."
Aproveitando o gancho de LÚCIA VALLE, podemos trazer aqui os ensinamentos de ADAUTO SUANNES, que, no seu recente “Fundamento Ético do Devido
Processo Penal”, vai mais longe, colocando que a ausência de amparo legal, por si
só, não pode justificar o indeferimento do pleito, dado não ser a lei a única fonte do
direito. Afirma também o ex-Desembargador do TJ-SP que o “indefiro porque inexiste
o pressuposto legal” é um cacoete irrefletidamente repetido por alguns juízes, eis que
até os governos mais despóticos trataram de justificar os seus atos.
27
NELSON NERY JÚNIOR defende:
“Outro fato comum, que ocorre amiúde no foro, é a ausência de motivação das
decisões concessivas ou denegatórias de liminar, em mandado de segurança, cautelares, possessórias e ações civis públicas. A locução ´presentes os pressupostos
legais concedo a liminar´, ou, por outra, ´ausentes os pressupostos legais denego a
liminar´, são exemplos típicos do vício aqui apontado. O ministro, desembargador ou juiz tem necessariamente de dizer por que entendeu presentes ou ausentes
os pressupostos para concessão ou denegação da liminar, isto é, ingressar no
exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os
24
Conferência realizada no auditório do IRB, em 26/06/97, gravada pelo Centro de Pesquisa
e Atualização em Direito - CEPAD.
25
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de segurança. São Paulo : Malheiros, 1996. p.
143.
26
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Devido processo legal e fundamentação das decisões. Revista
de Direito Tributário, n. 63, p. 215.
78
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
termos da lei, sem dar as razões de seu convencimento.”
28
MARINONI advoga a tese de que:
“Deverá o juiz precisar as razões pelas quais entende existir ou não o fumus
boni iuris e o periculum in mora. Quando houver o perigo de irreversibilidade
dos efeitos fáticos do provimento, a decisão deverá explicar a razão pela qual
ocorreu a opção (ou não) pela realização antecipada do direito, valendo dizer que
o juiz estará obrigado a fundamentar a sua valoração sobre os bens que devem ser
ponderados.”
29
TEORI ALBINO ZAVASCKI pontificou com enorme simplicidade sobre as
decisões que antecipam ou deixam de antecipar a tutela:
“Como ocorre em relação a todos os demais conceitos indeterminados, também
aqui cabe ao juiz demonstrar, circunstanciadamente, o porquê da relevância e
do risco de ineficácia, e esse deve ser o conteúdo de sua fundamentação.”
30
É de MANTOVANI COLARES CAVALCANTE a lição específica sobre o
efeito suspensivo no agravo:
“Por isso mesmo, a decisão do relator que atribui efeito suspensivo ao agravo deve
ser fundamentada, significando dizer que o relator tem a obrigação de expor
em sua decisão onde ele detectou a relevância do fundamento do recurso e a
possibilidade de dano de difícil reparação no caso de cumprimento da decisão
atacada, não bastando dizer que estão presentes os pressupostos autorizadores
da medida.
A decisão do relator que simplesmente afirma a presença dos requisitos ensejadores
da atribuição do efeito suspensivo do agravo, sem identificar onde tais requisitos
afloram na petição do recurso, é decisão nula, por contrariar a referida norma
constitucional que exige a fundamentação de todas as decisões judiciais.”
31
E sobre a medida cautelar, ainda, de MANTOVANI CAVALCANTE :
“O mesmo já não se pode dizer em relação à decisão que esteja desprovida de
qualquer fundamentação, ou que traga uma fundamentação disfarçada, como é
o caso daquelas concessivas de liminar em ação cautelar, sob a simples justificativa
de que estariam ´presentes os pressupostos autorizadores da medida, quais
sejam, o fumus boni juris e o periculum in mora´, sem, contudo, se dizer onde
restou demonstrado pelo autor da inicial que realmente estão presentes tais
pressupostos.
Aliás, tal decisão se prestaria até mesmo para não se conceder a referida liminar,
27
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de processo civil na Constituição Federal. 4. ed. São
Paulo : Revista dos Tribunais, 1997. p. 172.
28
29
30
MARINONI, ob. cit. p. 62.
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo : Saraiva, 1997. p. 203.
CAVALCANTE, ob. cit. p. 53-54.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
79
bastando o magistrado afirmar que ´não estão presentes os pressupostos autorizadores da medida, quais sejam o fumus boni juris e o periculum in mora.
Observe-se, por isso mesmo, que tal posicionamento é desprovido da fundamentação
necessária para se avaliar a razoabilidade da decisão judicial.”
32
CALMON DE PASSOS , com a ênfase de um verdadeiro mestre, desenvolve
o tema no campo da tutela antecipada:
“Já dissemos muita coisa, precedentemente, sobre o convencimento do magistrado e
seu dever de fundamentar esse convencimento, quando tratamos do pressuposto da
prova inequívoca da alegação do autor. A lei foi enfática, pedindo o que a Constituição pede com muito mais autoridade. Acontece que nós sabemos perfeitamente que
o Brasil é um país em que não valem as regras do jogo, mas sim o querer, mais
ou menos arbitrário, dos que são ´autoridades´ e nos interpelam, constantemente,
com peito inflado e cenho carregado: ´Você sabe com quem está falando?´
A fundamentação só é entendível como clara e precisa quando ela é explícita e
completa quanto ao suporte que o juiz oferece para as suas decisões sobre questões
de fato e de direito postas para seu julgamento. Se o fato não é controvertido, inexiste questão de fato, dispensada a fundamentação, bastando a referência ao fato
certo. Se houver controvérsia, a decisão só é fundamentada quando o juiz aprecia
a prova de ambas as partes a respeito e deixa claras as razões por que aceita uma e
repele a outra. Já as questões de direito, suas decisões são fundamentadas quando
o juiz expõe o embasamento doutrinário, jurisprudencial ou dogmático sério que
o leva a decidir como decide, tendo em vista os fatos já admitidos para formação
de seu convencimento, nos termos precedentemente expostos.
Coisa tão simples e de tão fácil percepção, infelizmente, pouco vale entre nós.
Vamos nos esforçar por fazer da antecipação da tutela um exercício de cumprimento do dever. São os meus votos. Sinceramente espero não ler, no futuro,
imoralidades jurídicas iguais às que tenho lido na fundamentação de certas
cautelares, em que se diz, pura e simplesmente, estar-se deferindo a medida
porque presentes tanto o fumus boni juris quanto o periculum in mora (assim
mesmo em latim, para impressionar) e a parte que consulte uma sibila para
desvendar o pensamento do magistrado.
Decisão sem fundamento ou sem fundamento aceitável como tal, no mínimo que
seja, é decisão nula, que não obriga e deve ser reformada, inclusive via mandado
de segurança, com punição do culpado por essa violência desnecessária a uma
garantia constitucional básica.”
Não sou eu quem estou dizendo que indeferir porque ausentes os pressupostos legais ou deferir porque presentes os mesmos pressupostos, evidentemente,
não é motivar coisa nenhuma, que isso é uma brincadeira, que repetir os termos
31
32
Idem, p. 134.
PASSOS, Calmon de. Reforma do código de processo civil. São Paulo : Saraiva, 1996. p.
205-206.
80
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
da lei é um vício, que é uma fundamentação disfarçada, que, com isso, não se diz
nada, sendo uma decisão judicial sem conteúdo e que é necessário que a parte
consulte uma sibila para consultar o pensamento do magistrado. Quem afirma
tudo isso, como textualmente vimos, são os autores acima citados, muitos dos
quais são, inclusive, juízes.
Assim, vê-se que se é unânime em proclamar a efetividade da garantia da fundamentação das decisões judiciais.
De fato, dizer-se que basta ao juiz fazer referência genérica aos fundamentos e
documentos dos autos, que basta ao juiz indicar genericamente o dispositivo legal em
que se baseia para decidir, é esvaziar ao nada a garantia constitucional da motivação
das decisões judiciais. Afinal, nunca o juiz, pelo menos não é o que se vê na prática,
irá dizer pura e simplesmente que defere ou indefere o pedido e ponto final. É preciso,
porém, dotar o indivíduo de garantias efetivas, substanciais.
Um critério bastante seguro para se averiguar se houve substancialmente uma
motivação, ou se esta é fruto de um mero formalismo, é verificar se a decisão é do
tipo padrão. Como diz SÉRGIO FERRAZ, no trecho citado, se é carimbo, ou mais
modernamente, se é um modelo gravado no computador, que só precisa ser alterado
por causa do nome das partes.
Neste caso, por força da generalidade das suas expressões, a decisão pode
se aplicar a diversos processos, em que a União, o INSS e a Associação dos Jogadores de Xadrez, por exemplo, são partes. Como não parece crível que processos
envolvendo matérias tão diversas e partes tão significativamente diferentes mereçam
exatamente, em termos formais, a mesma fundamentação, identifica-se, assim, de
forma inequívoca, uma deficiência, revelando-se que a hipótese não mereceu uma
análise particularizada do juiz ou relator, como particular foi o caso que se colocou
à sua superior apreciação.
Por vezes, a decisão está revestida de termos bastante rebuscados, próprios dos
formalistas, como assinalou CALMON DE PASSOS. É o que ocorre, por exemplo,
no “em nome dos fundamentos legais e dos fatos colhidos nos autos”, ou “compulsando os autos, verifico estarem ausentes os pressupostos legais”, ou, ainda, “após
examinar detidamente os autos, tenho que o requisito do periculum in mora não se
mostra presente.”
Nestes casos, ninguém possui a capacidade de desvendar o mistério consistente
no porquê o juiz visualizou que não havia o periculum in mora, ou no porquê de
entender inexistir o fumus boni iuris. É necessária, como disse, ainda, CALMON
DE PASSOS, uma sibila para desvendar o pensamento do prolator do ato decisório
travestido de fundamentação.
Assim, como já afirmei, fundamentação sucinta não se confunde com fundamentação deficiente.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
81
A fundamentação deficiente é, em outras palavras, aquela inclara, seja por
sua parte conclusiva não ser compatível com a motivação, seja pela motivação
fática não ser adequada ao caso dos autos, seja, ainda, na hipótese enfocada,
pelos motivos de direito não estarem explicitados.
Sabe-se que o nosso princípio de apreciação das provas é o do livre convencimento motivado, em que o magistrado usa de silogismo, pelo qual os fatos são a premissa
menor, o direito é a premissa maior, e a conclusão, a parte dispositiva. Assim, as
premissas devem ser compatíveis entre si e compatíveis com a conclusão. Mas para
isso é necessário que ambas as premissas e a conclusão estejam explicitadas.
Como vimos, fundamentação deficiente, que, pelos motivos expostos, se equipara
à não fundamentação, não se confunde com má fundamentação.
E esta, de sua vez, também não se confunde com fundamentação sucinta,
que não é necessariamente má, posto que pressupõe exteriorização da análise
do caso concreto em breves palavras, como sói acontecer, e com razão, em boa
parte dos gabinetes de juízes que conduzem milhares de processos.
33
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER desenvolveu tese em monografia
sobre o tema das nulidades das sentenças, mas que se aplica também às decisões
interlocutórias:
“Pode dizer-se, que há, grosso modo, três espécies de vícios intrínsecos das sentenças, que se reduzem a um só, em última análise: 1) a ausência de fundamentação;
2) a deficiência de fundamentação; 3) a ausência de correlação entre fundamentação e decisório. Todas são redutíveis à ausência de fundamentação e geram
nulidade da sentença. Isto porque ´fundamentação´ deficiente, em rigor, não é
fundamentação (...)”
VI. O que diz a jurisprudência?
Em caso estudado no âmbito do Tribunal Federal da 2ª Região, havendo sido
pedida a nomeação de outro perito para novo exame de livros e documentos, por
causa de alegado erro na interpretação dos lançamentos contábeis, o indeferimento
do juiz federal de 1ª instância foi impugnado, inclusive sob o ponto de vista da deficiência de fundamentação, o que, segundo o recorrente, teria acarretado a nulidade
do decisum.
Assim se manifestou o juízo agravado:
“Improcede o pedido de nomeação de outro perito, vez que a perícia foi realizada
com a observância dos requisitos legais.
Expeça-se alvará para levantamento dos honorários.
33
82
WAMBIER, ob. cit. p. 257.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
Digam as partes se têm outras provas a produzir”
Como argumentado acima, este é um exemplo típico de decisão cuja fundamentação está vazia de conteúdo. Mas a tese que prevaleceu na Primeira Turma do
TRF, felizmente com um voto vencido, foi a de mantê-la, baseando-se no fato de as
decisões interlocutórias poderem ser fundamentadas concisamente, segundo o preceito
inscrito no CPC, art. 165, 2ª parte.
34
CELSO RIBEIRO BASTOS , no entanto, escreveu:
“Contudo, permite a lei processual que em determinadas hipóteses as decisões
possam ser concisas. Isto não significa dizer ausência de fundamentação, o que
ensejaria a nulidade da sentença ou do acórdão, mas, sim, no sentido de que ela
seja externada de forma breve, sucinta, lingüisticamente falando. Mesmo assim,
há de ser suficiente para demonstrar as razões que levaram o magistrado a
formar sua convicção. A falta de motivação da sentença acarreta a nulidade do
ato decisório.
[...]
Sentenças e acórdãos terminativos, sem julgamento do mérito (art. 459, CPC),
e decisões interlocutórias (art. 165, 2ª parte, CPC) permitem fundamentação
concisa.”
Em outras palavras: as decisões interlocutórias, como aquela que foi proferida
na vertente hipótese, necessitam sempre ser fundamentadas, por força do disposto no
art. 93, inc. IX da Constituição da República, o que não obsta a que a lei processual
civil, na forma do CPC, art. 165, 2ª parte, trace graus diferentes de fundamentação,
sem que, com isso, se estabeleça a vedada intermediação infraconstitucional.
Assim, tanto a sentença de mérito, como a decisão interlocutória precisam ser
fundamentadas, mas é inegável que a primeira deva ser mais lastreada do que a segunda, pelo que o ponto nevrálgico da questão é saber qual o limite entre a decisão
concisa mal fundamentada e a não-fundamentada.
Com efeito, outro critério para verificarmos a deficiência da fundamentação é
vermos quais são os motivos pelos quais as decisões devem ser fundamentadas, para
que possamos constatar, no caso concreto, se a finalidade da norma constitucional
foi alcançada, ou seja, se houve fundamentação, mesmo que concisa, e se foram
demonstradas as razões que levaram o magistrado a formar sua convicção.
Tendo em mira todas essas observações, a Desembargadora Federal VERA
LÚCIA LIMA, que à época integrava a Primeira Turma do TRIBUNAL REGIONAL
FEDERAL DA 2ª REGIÃO, no voto vencido a que aludi, referente ao caso do indeferimento de nova perícia com base na ausência dos pressupostos legais, entendeu
34
BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1997.
v. IV, t. II, p. 51.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
83
que a finalidade perseguida pela norma inserta na Carta Maior não foi alcançada, por
duas razões. Assim está o voto da Magistrada:
“A) não se mostrou ao sucumbente a atuação da lei sobre os fatos levados à cognição judicial, uma vez que não fez o juízo agravado nenhuma menção sequer
acerca de uma ou algumas das peculiaridades dos fatos que ensejaram a aplicação
do direito da forma como lhe pareceu correta, ou seja, não se pôde averiguar por
quais motivos vislumbrou que os requisitos legais da primeira perícia realizada
foram atendidos;
B) não se permitiu, pela remissão genérica aos requisitos legais da primeira
perícia, um controle dos motivos da decisão, para que se pudesse estabelecer a
exata dimensão do conteúdo da vontade do juiz e, conseqüentemente, para que se
verificassem os limites objetivos do julgado, ou seja, a parte não pôde rebater os
argumentos do juízo, no intuito de convencer o órgão ad quem de que os requisitos legais, ao contrário do afirmado, foram atendidos, por causa de tais ou quais
contra-argumentos, eis que, se não há argumentos, é óbvio que não possa haver
também contra-argumentos.”
E continuou a Desembargadora:
“O que fez Sua Excelência, o MM. Juiz a quo, foi dizer que observou o perito do
juízo os requisitos legais. Mas, por quê? Qual(is) o(s) motivo(s) que acarretou(aram)
o entendimento segundo o(s) qual(is) a “perícia foi realizada com a observância
dos requisitos legais”?
Que o MM. Juiz entendeu que foram observados os requisitos legais parece irrefutável, tanto que indeferiu o pedido. Mas, por que ele entendeu dessa forma e
não de outra?
Destaque-se aqui, mais uma vez, que não se exige uma fundamentação erudita,
mas somente uma exposição concisa de um ou alguns dos motivos que levaram
o juiz a entender dessa forma, para que as finalidades acima mencionadas sejam
alcançadas.
Se essa exposição concisa ficasse inclara, incompleta, contraditória ou injusta,
dir-se-ia que a decisão estaria mal-fundamentada; porém, como não há exposição
nenhuma dos motivos ensejadores do indeferimento da nova perícia, diz-se que a
decisão não está fundamentada.”
A Quarta Turma do mesmo Tribunal Federal da 2ª Região, ao contrário da Primeira, decidiu, à unanimidade, pela relatoria do Desembargador Federal ROGÉRIO
VIEIRA DE CARVALHO, em outro caso a respeito da fundamentação deficiente:
“A r. decisão recorrida foi assim concebida: ´Indefiro a antecipação dos efeitos
da tutela, pois não vislumbro a presença dos requisitos que autorizam a sua
concessão.´
Entendo que não serve de fundamentação à decisão, que defere, ou nega, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, pretendida no pedido, a só afirmação,
ou negação da prova inequívoca, da verossimilhança das alegações. Doutra
sorte, bastaria a invocação do dispositivo legal que autoriza a antecipação dos
efeitos da tutela jurisdicional, e que enuncia seus pressupostos, para se ter por
84
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
fundamentada a decisão que defere ou nega a tutela antecipada.
[...]
Sem motivação, nula é a r. decisão recorrida (art. 93, inc. IX, da Constituição
Federal).”
Estes são votos proferidos no âmbito, repita-se, da assoberbada Justiça Federal
do Rio de Janeiro, pelo que se conclui que não é motivo para não fundamentar ou
fundamentar deficientemente o excesso de trabalho.
Bem recentemente, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em expressão
de grande sintonia com as necessidades e os anseios dos advogados, estudiosos e da
população em geral, acolheu a tese, pela lavra do Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA:
“Uma das maiores garantias do jurisdicionado é a fundamentação das decisões
no âmbito do Poder Judiciário. Por meio da motivação é que se tem ciência se a
decisão foi calcada na lei, se arbitrária ou praticada com abuso de poder.
[...]
No caso, o Juiz concedeu a liminar em decisão assim lançada, na linha de tantas
outras que irregularmente são proferidas no País:
´R. A.
Presentes os elementos autorizadores da medida liminar pleiteada.
Vê-se que, vislumbra-se no pleito formulado o fumus boni iuris e o periculum in
mora.
Desta forma, defiro a liminar perseguida, determinando que, desde logo, expeça-se
mandado para seu fiel cumprimento e citação válida.´
Não poderia o Juiz assim decidir, sem explicitar em que consistiria, na espécie,
o fumus boni iuris e qual o perigo da demora, ainda que de forma concisa.
Com efeito, era direito da parte contrária, até porque a liminar foi concedida sem
a sua participação, que fossem explicitados os fundamentos da decisão, inclusive
para que pudesse embasar futuro recurso.”
Portanto, não se vislumbra o error in judicando na decisão não fundamentada,
até porque este seria de difícil apreciação, mas sim o error in procedendo, pelo que
dá ensejo à nulidade, devendo o juízo prolator do decisum pronunciar-se no que
tange à fundamentação,
podendo até mesmo alterar seu anterior posicionamento não
35
fundamentado .
Combate-se a ausência ou deficiência de fundamentação, como é óbvio, seja por
meio de embargos declaratórios, que também incidem na decisão interlocutória, não
obstante a letra fria da lei, seja por recurso de agravo de instrumento, seja, ainda, por
intermédio do mandado de segurança, já que, pelos motivos expostos, há um direito
líquido e certo do indivíduo juridicamente interessado em obter os fundamentos pelos
quais se decidiu desta ou daquela forma.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
85
VII. O que diz a oposição?
Por fim, vale comentar que há uma corrente que diz que, se a decisão é indeferitória do pedido do autor e este interpôs o agravo com pedido de atribuição de efeito
suspensivo ativo, por exemplo, não se imporia óbice a que o relator negasse o efeito
suspensivo, por não estarem presentes os pressupostos autorizadores.
Argumenta-se que quando o relator nega efeito suspensivo, está tomando
emprestada a fundamentação da decisão agravada. Estaria, desse modo, mantendo
decisão judicial pelos seus próprios fundamentos.
Entretanto, como defendido por GILMAR MENDES no trecho citado, essa
construção, apesar de engenhosa, viola às escâncaras o princípio da proteção do núcleo
essencial, já que estabelece uma limitação incabível a um direito fundamental.
Diferente há a hipótese de o juiz lastrear seu julgamento em algum trecho
das razões recursais, da decisão recorrida, de algum outro julgado, do parecer
do Ministério Público, ou ainda, e principalmente, em algum trecho de doutrina.
Desse modo, o juiz concretiza e exterioriza o que está decidindo com base naqueles
argumentos.
Do contrário, seria necessário que o juiz reproduzisse o trecho, por concordar com ele, mas em outros termos, o que poderia configurar, além de uma
inutilidade, um verdadeiro plágio.
VIII. Espécie de nulidade absoluta
A nulidade que ocorre nesta hipótese é de ordem pública, pois, em verdade,
quando o juiz deixa de fundamentar uma decisão é o Estado de Direito e a legitimidade
da função jurisdicional, como expus, que estão sendo tangenciados.
Como conseqüência, mesmo que o recorrente não ventile esse ponto, o Tribunal
pode se pronunciar ex officio.
Foi o que decidiu a Quarta Turma do Tribunal Federal da 2ª Região, que já
se manifestou
nesse sentido pela lavra do Desembargador Federal CARREIRA
36
ALVIM :
“Não se vislumbra na espécie mera fundamentação sucinta, mas deficiência de
fundamentação atentatória aos preceitos legal e constitucional. Tal matéria é de
ordem pública, prescindindo até mesmo de alegação da parte.”
37
JOSÉ DELGADO escreveu:
“Com razão, portanto, Lopes da Costa quando afirmou que o preceito da motivação da sentença é de ordem pública, por colocar a Administração da Justiça
a coberto de suspeita dos dois piores vícios que possam manchá-la: o arbítrio e a
35
O princípio da proibição da reformatio in pejus indireta, que, doutrinariamente, é criticado
no processo penal, não pode ser invocado no processo civil.
36
86
Ap. Cív. nº 44496/RJ, j. 05-10-93.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
parcialidade.”
38
TERESA ARRUDA WAMBIER pondera:
“Numa imagem matemática, dir-se-ia que o conjunto de matérias examináveis de
ofício é maior do que o das matérias de ordem pública. Portanto, toda matéria de
ordem pública é examinável de ofício, mas nem tudo o que pode ser examinado
de ofício consiste em matéria de ordem pública.”
Inclusive, se é pedida, em vez da nulidade, a reforma da decisão agravada, pode o
39
Relator, com base na ausência ou deficiência de fundamentação, de plano , ou a Turma
ou Câmara, dar parcial provimento ao recurso, já que a reforma nada mais é do que
a desconstituição de um pronunciamento jurisdicional e a constituição de outro, ao
passo que a nulidade é somente a desconstituição para que outro seja constituído.
40
TERESA ARRUDA WAMBIER defende a tese de que é absoluta a nulidade
na hipótese de falta da fundamentação da decisão:
“A falta ou o vício de motivação, como se disse, são causas de nulidade da sentença. Taruffo inclina-se a considerar como inexistente a sentença a que falte um
‘conteúdo mínimo’, indispensável, de motivação, para que nela se reconheça o
exercício legítimo do poder jurisdicional. Trata-se de um vício particularmente
grave, e que, por isso, deveria ter sido tratado de forma especial pelo legislador, de
maneira que ficasse claro não se poder aplicar a este vício o princípio da sanatória
geral da coisa julgada.
[...]
Não há, portanto, na terminologia que propomos, sentenças eivadas de ‘nulidade
relativa’. Elas só terão herdado do processo em que foram proferidas nulidades
absolutas (as outras estarão preclusas) e os vícios intrínsecos, como há pouco vimos, consubstanciam-se, sempre, em nulidades absolutas. São, pois, sempre
decretáveis de ofício.”
Vale somente lembrar que a doutrina de TERESA ARRUDA, embora esteja
essencialmente voltada para a sentença, conforme indica o próprio título do livro,
aplica-se também, perfeitamente, às decisões interlocutórias, porque, como disse, não
37
38
39
DELGADO, ob. cit. p. 32.
WAMBIER, ob. cit. p. 137.
Por força da lei nº 9.756/98, permite-se ao relator, adiantando o entendimento do colegiado,
sem excluir a viabilidade do agravo interno, dar procedência ao recurso, se a decisão agravada
confrontar jurisprudência dominante de Tribunal Superior. De fato, no capítulo da jurisprudência, há julgado firmemente acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, que, por outro lado,
nunca, ao menos que eu conheça, manifestou entendimento em sentido contrário, ou seja, no
sentido de que a fundamentação deficiente nessas hipóteses não gera a nulidade da decisão. É
firme, portanto, a jurisprudência.
40
WAMBIER, ob. cit. p. 258-269.
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
87
há diferença ontológica entre a fundamentação das decisões incidentes ao processo
e daquelas que o encerram. A dessemelhança básica reside apenas na extensão do
decisum. É que a interlocutória e a terminativa podem ser concisas, ao passo que as
definitivas não.
Desse modo, a nulidade, por todas as razões desenvolvidas nos capítulos
precedentes e neste, é absoluta.
41
CELSO BASTOS defende opinião diversa:
“A nulidade contemplada no preceito ora comentado (art. 93, IX) coloca a dúvida
quanto a saber-se se na expressão está incluída a necessária determinação de que
a falta de fundamentação venha a ser fulminada com a nulidade absoluta ou se ela
se compadece com uma nulidade meramente relativa ou anulabilidade. Ao que
nos parece, levando em conta preceito de interpretação constitucional, os termos
técnicos utilizados pela Constituição não devem ser interpretados com o mesmo
rigorismo que eles possuem na legislação infraconstitucional. Destarte, a Constituição está utilizando a expressão nulidade dentro do contexto de uma teoria geral
do ato inválido, do ato viciado, não se comprometendo, necessariamente, com uma
ou outra formulação específica. O que é necessário é que seja respeitada a vontade
constitucional que vê no ato uma invalidade, como algo que o vicia, portanto, que
o torna passível de uma forma qualquer de desfazimento por vício. Às leis processuais incumbirá dizer, em cada caso concreto, se se trata de nulidade absoluta
ou de nulidade relativa conforme a gravidade da própria decisão ou levando
em conta outras realidades processuais. Não se poderia aplicar a Constituição
por cima de toda a validade do processo a ponto de se decretar nula uma decisão
interlocutória não fundamentada depois de o processo ter ultrapassado a fase própria
para tanto, sob o fundamento de que a Constituição fala em nulidade. Quer-nos
parecer que, nesse caso, trata-se de nulidade relativa e desde que não argüida em
tempo hábil o ato se convalida.”
E CELSO arremata:
“Em síntese, portanto, o termo nulidade contemplado no texto constitucional
abrange tanto a nulidade absoluta, quanto a nulidade relativa, dependendo
da gravidade do vício que macule o ato. A forma correta para dosar o teor dessa
nulidade é dada pelas leis processuais tendo em vista o bom andamento do
processo.”
Não posso concordar com esse posicionamento baseado no bom andamento
do processo.
Assim, diz CELSO, não se poderia decretar a invalidade de todo um processo
caso a nulidade de uma decisão interlocutória não fosse argüida a tempo.
41
BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1997.
v. IV, t. III, p. 52 -53.
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O argumento é sedutor e, não obstante revestido de muito “bom senso”, devemos dele desconfiar.
Primeiramente, é contraditório dizer que às leis incumbirá dizer se a nulidade
é absoluta ou relativa e, mais à frente, afirmar que deve levar o juiz em conta outras
“realidades processuais”. Ou é a lei ou são as realidades processuais.
Creio que, desse modo, o sistema ficaria quebrado e se voltaria a decidir com
base em sentimento, intuição.
A intuição é boa, não se nega, mas desde que respaldada em algo mais concreto
e estável, ao menos em termos ideais, que é a lei. E a lei processual, efetivamente,
não prevê se a nulidade, nessa hipótese, é relativa ou absoluta.
Mas por todas as razões defendidas neste trabalho e, sobretudo, porque a própria
Constituição comina a sanção processual, deve-se defender, a meu ver, a existência,
neste caso, de uma nulidade absoluta.
Além do mais, o argumento de “bom senso” do professor paulista, com todas
as vênias, não procede, uma vez que a nulidade da decisão interlocutória não implica
necessariamente a nulidade de todo o processo.
É que, conforme principiologia estudada por TERESA ARRUDA, vê-se que
vigora entre nós o princípio da conservação ou aproveitamento, que é a outra face do
princípio da causalidade ou concatenação. É dizer: o vício do ato somente se propaga
aos atos ulteriores que sejam dele dependentes, o que não ocorre necessariamente com
a nulidade da decisão interlocutória, ainda mais se já proferida sentença. TERESA
escreveu:
“Serão originárias as nulidades que se referirem ao ato viciado, e derivadas as que
disserem respeito aos atos que, em si mesmos, nada têm de viciados, mas, por causa
do princípio da interdependência, acabaram por contaminar-se da nulidade do ato
que os terá antecedido. A nulidade, no processo, como se disse, se propaga.
Nessa propagação serão atingidos os atos subseqüentes e que guardem vínculo
de dependência com o antecedente viciado.”
A sentença não guarda necessariamente vínculo de dependência com a decisão
interlocutória.
Com efeito, aquele indivíduo atingido exclusivamente por esta pode impugnar
sua nulidade por falta de fundamentação a qualquer tempo.
Ao fim e ao cabo, ainda discordando da doutrina do Professor CELSO RIBEIRO BASTOS, ainda que vista a ausência de fundamentação sob o prisma puramente
formal, há formalidades que não podem ser superadas, pelo que trago ao debate três
ensinamentos para a nossa vida, citados pela Professora TERESA ARRUDA ALWIM
42
WAMBIER :
“JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: Confiar ao juiz papel mais ativo não
Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000
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implica forçosamente instaurar no processo civil o domínio do autoritarismo ou
do paternalismo.
SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: A eliminação das formalidades apresentase geralmente como fonte geradora de despotismo.
JOÃO BATISTA LOPES: É muito difundida a idéia de que o magistrado deve
libertar-se das formalidades legais e procurar a verdadeira justiça. Os riscos dessa
orientação são evidentes. Não há confundir formalidade com formalismo. Só este
deve ser evitado, não aquela.”
Para encerrar, num dos trechos de BARBOSA MOREIRA citados, diz o Professor Titular da UERJ que somos convocados a contribuir com sugestões específicas
e concretas para a grande tarefa de reconstrução de uma ordem jurídica que atenda
aos anseios do País e que incumbe a cada qual trazer o seu adminículo, modesto que
seja, para dar forma visível e precisa ao ideal comum.
Foi isso que tentei fazer nessas minhas modestas e concretas sugestões, em que
pese o contexto de o nosso País se haver modificado de 1978 para cá.
Encerro, portanto, não sem antes dizer que respeito muitíssimo todas as opiniões
em contrário, porque isso também é sinal de que estamos num Estado Democrático
de Direito, e me desculpar pela ênfase do discurso, sinal da jovialidade do autor, e
pelo excesso de citações, sinal de falsa erudição.
42
90
WAMBIER, obra citada, p. 136 e 138.
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A fundamentação deficiente das decisões interlocutórias