PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Consumo de classe alta e consumo de classe baixa: os dois lados do consumo brasileiro na publicidade contemporânea1 Bruno Pompeu2 Istituto Europeo di Design (IED-SP) Marcia Akinaga3 Ibope Inteligência Resumo Este texto apresenta parte dos resultados de uma pesquisa teórico-empírica realizada este ano, que teve por objetivo compreender e interpretar os valores do consumo cotidiano brasileiro. A partir de uma revisão bibliográfica sobre classificação socioeconômica, tendo por base as teorias antropológicas do consumo e usando como material empírico anúncios publicitários impressos, a investigação chegou a uma esquematização semântica de valores de consumo, como forma de mapear os territórios conceituais em que se situa o discurso publicitário dos bens de consumo diário. O mapa semântico construído pode ser refletido em dois lados de uma mesma moeda: o dos valores de consumo de elite e o dos valores de consumo popular – sem que haja relação de obrigatoriedade entre o discurso publicitário assumido pelo anunciante e a classe social do consumidor efetivo. Como forma de exemplificação, dois valores são apresentados, com seus respectivos desdobramentos nos dois lados citados. Palavras-chave: consumo; publicidade; classe social; valores. Introdução A relevância que o tema do consumo tem alcançado recentemente nos campos científicos da comunicação em geral, da publicidade de forma específica e de áreas 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 – Consumo, literatura e estéticas midiáticas, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 8, 9 e 10 de outubro de 2014. 2 Doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP). Publicitário formado pela ECA-USP. Professor do Istituto Europeo di Design e membro do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo (GESC3). E-mail: [email protected]. 3 Administradora com especialidade em Marketing formada pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Diretora de Pesquisa Qualitativa e Inovação no Ibope Inteligência. Membro da Qualitative Research Consultants Association (QRCA). E-mail: [email protected]. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) adjacentes deve-se, sem dúvida, dentre outras razões, ao fato de que a compreensão da sociedade contemporânea pode se dar, com clareza e com profundidade raras de se alcançar, pelo estudo dos fenômenos de compra. Vivemos hoje em tempos desafiadores, complexos, incertos e em larga medida já distantes da racionalidade reinante e da crença na previsibilidade, de modo que buscar novas estratégias cientificas para se compreender a realidade torna-se imperativo aos que desejam estudar aspectos humanos contemporâneos. Este texto apresenta parte do resultado de uma pesquisa realizada no início deste ano em parceria entre os pesquisadores autores e o instituto de pesquisa Ibope Inteligência, centrada no que o mercado costuma chamar de “bens de consumo diário”. Trata-se de uma empreitada investigativa ousada, ao mesmo tempo teórica e empírica, de certa forma inovadora, consciente de suas limitações e da necessidade de desdobramentos futuros, mas inegavelmente surgida da necessidade de se encontrar novas formas de se compreender o comportamento de consumo na sociedade brasileira contemporânea. A ideia inicial – que logo se revelou inocente e infrutífera – era dividir uma grande quantidade de anúncios publicitários impressos em dois grupos: o de produtos voltados para a classe A e o de produtos destinados à classe C. A partir daí, far-se-iam análises desses dois montantes, para se chegar a uma esquematização semântica de como se articulam os valores ligados ao consumo dessas duas classes sociais. Uma pequena equipe de pesquisadores foi montada e a ordem era ir à campo em busca da maior quantidade possível de anúncios publicitários impressos que oferecessem produtos de consumo diário (alimentação, higiene pessoal, limpeza etc.). Além de selecionar os anúncios, o pesquisador já deveria pré-definir seu grupo: classe A ou classe C. Veio daí, da própria prática empírica da pesquisa em comunicação e consumo, a primeira constatação, que serviu de base para todo o estudo agora apresentado, já devidamente reformulado: não se consegue a partir da instância comunicacional – da publicidade, neste caso – definir de forma clara e objetiva a classe social do público-alvo pretendido. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Ainda que o alto preço de um determinado produto possa servir de barreira para que determinadas camadas mais pobres o comprem; mesmo que o preço baixo ou as facilidades no pagamento sugiram que o consumidor daquilo que se oferece vá ser alguém de baixo poder aquisitivo, essa separação simples entre classe A e classe C não pode ser feita, sob o risco de se estar categorizando o consumo e a sociedade à distância, sem levar em conta que transgressões nesse suposto padrão lógico são mais do que possíveis – são cotidianos. O que impede que, plenamente munido de crédito e de parcelamentos, uma pessoa da classe C compre um produto de alto preço, ou que um indivíduo da classe A prefira gastar pouco e optar por produtos baratos? Indagações como essas vieram à cabeça dos que participavam do projeto e o texto que aqui se apresenta traz um pouco das respostas a que se chegou após o procedimento investigativo. Não são respostas definitivas, mas são respostas alcançadas a partir de pesquisa teórica baseada no consumo, de pesquisa empírica feita estritamente com material publicitário, e que podem trazer contribuições. 1. Classificação socioeconômica e o novo contexto brasileiro Os que trabalham no mercado – seja em agências de publicidade, em institutos de pesquisa ou na indústria – sabem que o critério mais usado no Brasil para se dividir a população em classes sociais é o estabelecido pela ABEP (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa), chamado corriqueiramente de Critério Brasil (ABEP, 2012). Para se classificar uma família entre as sete possíveis classes – A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E –, usam-se diferentes métodos, dentre os quais se destaca a posse de bens de consumo. Ou seja: trata-se de um método classificatório que usa o consumo (ter ou não ter uma geladeira, ter mais ou menos televisores etc.) como parâmetro para se dividir a sociedade (YASUDA & OLIVEIRA, 2012, p. 262). Longe de se estar querendo aqui criticar o Critério Brasil, o que a pesquisa de que decorre este texto não pode se furtar a fazer foi se questionar sobre a relação desse critério com a comunicação publicitária cotidiana brasileira. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Como é fácil constatar, seja com a leitura de qualquer das centenas de notícias publicadas sobre o assunto, seja com um olhar minimamente atento à realidade, o Brasil passou, na última década, por uma profunda transformação socioeconômica, que tem alterado o panorama geral do mercado (NERI, 2011, p. 24). Sem querer discutir aqui a validade dos programas governamentais e das demais iniciativas que provocaram essa transformação, o que precisa ser considerado é a transformação contextual por que passamos. Em 2013, o consumo das famílias cresceu pelo décimo ano seguido. Nesse cenário ainda favorável, a pesquisa do Data Favela atestou que a favela tem mais disposição para efetuar compras do que o resto do Brasil. Nos últimos dez anos, muitas dessas famílias adquiriram o primeiro computador, o primeiro automóvel e o primeiro freezer. Não raro, pela primeira vez, conseguiram matricular um filho em um curso universitário. (MEIRELLES & ATHAYDE, 2014, p. 87) Não se tem como negar que o Brasil vive hoje tempos bastante diferentes daqueles que tínhamos na virada do século. E os métodos de pesquisa de mercado – sobretudo os de classificação socioeconômica, quando usados em pesquisa qualitativa – precisam ser revistos. Duas pessoas, com a mesma pontuação [no Critério Brasil], podem ser muito diferentes no seu padrão de vida, hábitos de consumo, preferências e aspirações, dependendo do local de moradia e grau de instrução. Nesse sentido, fatores ligados ao estilo de vida do entrevistado muitas vezes têm mais peso que a pontuação propriamente dita. (YASUDA & OLIVEIRA, 2012, p. 266) Uma pesquisa recentemente publicada (KAMAKURA & MAZZON, 2013), também ligada à questão do consumo nas diferentes camadas sociais, usa novas bases de categorização e parte de uma outra premissa teórica: em vez de criar um método que classifique a sociedade ao gosto e à necessidade do mercado (classificação mais arbitrária e distanciada), faz uma classificação a partir de grupos latentes na sociedade em si (classificação mais aproximada da realidade). Mas o que mais se destaca nessa pesquisa – que adiciona outros critérios aos usados até agora, sendo mais ampla e profunda em sua forma de dividir a sociedade – é a possibilidade de se chegar a estratos mais homogêneos não apenas em aspectos demográficos, mas também nas PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) motivações e nos hábitos de consumo. Segundo os autores, por exemplo, “as diferenças em alocação [de recursos em diferentes categorias de produtos] entre os estratos socioeconômicos são mais influenciadas pelas diferenças na prioridade de consumo entre os estratos do que pelas diferenças no orçamento total” (KAMAKURA & MAZZON, 2013, p. 186). Ou seja: já não se deve mais pensar apenas no quanto uma família pode comprar, mas também se deve levar em conta o que ela pode consumir, sempre tentando entender o que motiva o seu consumo. Mais importante do que classificar segundo critérios objetivos deve ser entender em profundidade cada estrato encontrado. Partindo também dessa necessidade, de se compreender complexamente a sociedade de consumo em que vivemos hoje no Brasil, o estudo cujo resultado agora se apresenta procurou usar o discurso publicitário como espaço privilegiado para as manifestações de valores ligadas ao consumo. Se, de acordo com o que sugere uma abordagem semiótica do consumo e da publicidade, “o discurso público sobre a mercadoria gera significados que transformam o objeto comercial em signo” (SANTAELLA, & NÖTH, 2010, p. 53); e, se “a publicidade é a narrativa que dá sentido ao consumo, e está, seguramente, entre as principais produtoras de sistemas simbólicos presentes em nosso tempo”, como afirma Everardo Rocha (2006, p. 12), usar propagandas contemporâneas como forma de se compreender a dinâmica simbólico-cultural da nossa sociedade nos parece plausível e até recomendável. E o que semiótica e antropologia têm em comum, que nos permita aproximá-las assim em uma mesma pesquisa? Muito: ambas possuem métodos investigativos próprios para se chegar mais perto da realidade, e ambas pressupõem uma perspectiva interpretativa sobre o mundo ao nosso redor. 2. Um mapa de valores do consumo brasileiro contemporâneo Mantendo fidelidade aos pressupostos básicos da antropologia do consumo, segundo os quais, por exemplo, “a função essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido” (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009, p. 108) e “o consumo usa os bens PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) para tornar firme e visível um conjunto particular de julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos” (idem. p. 115), este texto apresenta uma visão interpretativa da realidade justamente a partir da narrativa do consumo por excelência, que é a publicidade. A publicidade é a narrativa do consumo, ela nos ensina como consumir, confere significado aos bens, lhes atribui valor simbólico, nos ajuda a classificar as coisas e as pessoas, reproduz nossos valores e crenças. A publicidade codifica os bens para o consumo e revela, em suas representações sociais, a nossa cultura. (ROCHA & PEREIRA, 2013, p. 22). Para tal, foram selecionados centenas de anúncios publicitários, veiculados entre janeiro, fevereiro e março deste ano em publicações das mais variadas. E, para se chegar a um panorama minimamente abrangente no que se refere ao tipo de target – incluindo diferentes idades, sexos, áreas de interesse etc. –, anúncios publicados em revistas de segmentos variados foram incluídos na amostra. Foi assim que se selecionaram revistas de conteúdo variado (Veja), de celebridades (Caras), feminina (Claudia), masculina (VIP), elitizada (Joyce Pascowitch), popular (Conta Mais), de conteúdo empresarial (Exame), de curiosidades (Superinteressante), de música (RollingStones), de culinária (Gula), de moda (Harper’s Bazaar), de decoração (Wish Casa) e de comportamento (Vida Simples). E, para facilitar o trabalho operacional, peças correspondentes a alguns dos anúncios encontrados nessas revistas foram procuradas nos sites ou nos perfis dos seus respectivos anunciantes – sem que o conteúdo fosse diferente, é claro. De acordo com Kotler e Armstrong (2007, p. 22), o marketing pode ser resumido como um processo de criação de valor para o cliente. E a comunicação publicitária, sendo uma das ferramentas mais importantes desse processo, acaba seguindo alguns dos seus princípios – como, por exemplo, o que divide os benefícios oferecidos pela marca e consequentemente o conteúdo das mensagens publicitárias em racionais e emocionais (idem, p. 363; YANAZE, 2011, p. 436). De um lado, as propagandas que destacam a qualidade do produto, o seu preço acessível, as suas vantagens perante a concorrência etc.; de outro, as peças que falam de sentimentos, PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) que estimulam as sensações, com uma abordagem mais distante da oferta concreta da empresa. Mesmo sabendo que essa clássica linha divisória entre razão e emoção – entre os dois lados do cérebro, entre Apolo e Dionísio, entre o objetivo e o subjetivo... – é muito mais didática e operacional do que qualquer coisa, o estudo valeu-se dela para organizar o amplo e complexo universo do consumo brasileiro. Eis que, na busca por algum outro critério relevante que pudesse ajudar na organização desse consumo, veio à tona o pensamento antropológico de Roberto DaMatta, que explica muito do imaginário, do comportamento e da cultura brasileira a partir de duas categorias interarticuladas: a casa e a rua. Quando digo que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados” (DAMATTA, 1997, p. 15) Tendo isso em mente e aproximando o pensamento do autor às questões contemporâneas do consumo, do lado da rua ficariam os valores de consumo ligados à coletividade, ao ambiente externo, ao trabalho, à impessoalidade etc.; ao passo que, do lado da casa, estariam os valores mais próximos da família, à individualidade à esfera pessoal. Assim, cruzando em um plano cartesiano as divisões tradicionalmente propostas pelo marketing e sensivelmente desenvolvidas na antropologia de Roberto DaMatta, entrelaçando duas áreas distinta do conhecimento, ambas centradas na questão do valor e do consumo, chegou-se a quatro grandes territórios do consumo brasileiro: PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) 1 – Emocional-Rua: diferenciação social – mostrar ao outro quem eu sou; 2 – Racional-Rua: impacto social – consumir pensando no coletivo; 3 – Racional-Casa: satisfação de necessidades – resolver problemas práticos; 4 – Emocional-Rua: satisfação de desejos – ter prazer e sentir-se bem. O exercício empírico de se tentar associar cada uma das peças publicitárias selecionadas com um dos quadrantes fez ficar evidente que cada um deles era amplo demais para comportar apenas um valor ou apenas um núcleo de valor. A diversidade de produtos e serviços oferecidos, a variedade de possibilidades nas abordagens, a imensa quantidade de argumentos possíveis, tudo isso fez com que a pesquisa caminhasse no sentido de uma especificação maior, chegando a um mapa de valores de consumo mais detalhado e, portanto, mais próximo de um modelo esquemático que servisse para classificar todo o volume de material que a pesquisa envolvia. Pertencimento: aquilo que me conecta afetivamente ao coletivo, que me faz sentir parte de um grupo positivamente avaliado; Autoexpressão: mostrar ao outro a minha identidade, como forma de expressar algo de superior e de conquista; Pátria: espaço geográfico a que me sinto pertencente, que ajuda a definir minhas referências de origem e circulação; Produtividade: tudo aquilo que esteja ligado ao trabalho, às realizações e à minha formação técnica ou intelectual; Conforto: o que eu tenho dentro de casa e que serve para que a minha vida seja melhor, mais fácil e mais prazerosa; PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Comunidade: grupo eletivo de pessoas que fazem parte do meu dia-a-dia, ainda que mais simbolicamente do que concretamente; Família: valores ligados ao círculo familiar, envolvendo confiança, origem, rotina, ambiente doméstico etc.; Indulgência: tudo aquilo que me proporciona um prazer íntimo, ligado ao sensorial, livre das regras. Mais do que uma organização simples de categorias de consumo – o que não seria propriamente uma novidade e tampouco contribuiria para o tipo de discussão que originou a pesquisa –, os quadrantes bipartidos apresentados acima sugerem campos simbólicos, de referencialidade, que vão encapsular (cada um em uma medida, mas sempre de forma integrada) a oferta, a abordagem e o argumento envolvidos na publicidade, de modo que todos os território possuam interfaces entre si, mas que possuam, por outro lado, algo de específico e próprio. Os exemplos apresentados a seguir podem ajudar a comprovar isso. 3. Os exemplos e os dois lados de uma mesma moeda Quando os anúncios publicitários selecionados foram sendo alocados neste ou naquele território e, principalmente, quando já se tinha um volume considerável de peças dentro de cada território, uma hipótese que jazia latente aos pesquisadores se revelou intensamente relevante e o processo de pesquisa aqui relatado talvez só encontre seu verdadeiro fim quando, de fato, comprovar – ou negar, claro – essa possibilidade aventada. É que, dentro de cada território (nação, autoexpressão, família etc.), percebeu-se a existência de uma cisão, de algo que dividia os valores de consumo em dois lados. Em outras palavras: havia sempre dois revestimentos simbólicos diferentes para cada território e o que saltou à vista dos pesquisadores foi o fato desses dois lados serem quase sempre tensionados entre si, mas com algo de intercambiável. Dentro do território família (emocional-casa), por exemplo, percebeu-se que tanto era possível abordar esse universo pela perspectiva cotidiana do que se passa PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) dentro de uma casa – o café da manhã bem cedo, as brigas entre os irmãos pequenos, os afazeres domésticos, as relações entre os pais e os filhos etc. –, como era também recorrente uma visão sobre a família que privilegiava uma temporalidade mais alongada – a herança, as linhagens, o legado, a dinastia etc. De um lado, o corriqueiro e o doméstico; de outro, a nobreza e o hereditário. Enquanto o anúncio da esquerda, para falar da tarefa diária de se separar o feijão, retrata elementos recorrentes no imaginário de cotidiano doméstico brasileiro PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) (filhos brigando, mãe de bobes no cabelo...), o da direita, para destacar os atributos diferenciais de seu produto, usa também o âmbito familiar, mas retratando a tradição de uma família, o círculo fechado que ela representa, o valor que é legado de uma geração a outra. São duas abordagens bem diferentes entre si, apoiadas no mesmo território de consumo, mas que se repetem fartamente em outras dezenas de anúncios. E até as peças publicitárias de abordagens menos estereotipadas acabam pendendo para ou dos lados, talvez comprovando o que aqui neste estudo se apresenta. Mesmo quando a figura masculina assume as funções de cuidado da casa (preparo de refeições, carinho com os filhos, atividades domésticas), rompendo com o previsível e com os padrões pré-estabelecidos, os valores empregados são os mesmos: a rotina, a família do presente, os vínculos de extrema proximidade. Outro exemplo que também permite bem compreender essa dualidade encontrada está no território da produtividade (racional-rua), que se revelou polarizado entre a excelência e o esforço. Enquanto algumas peças retratam o suor, a mão na massa, as mangas arregaçadas, a “ralação” em busca de algo (salário, dignidade, respeito... varia de anúncio para anúncio), outras falam na alta performance, nos melhores resultados, no desempenho admirável. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) As duas peças trazidas como exemplo retratam essa divisão encontrada, entre o esforço e o desempenho, entre a dificuldade e a excelência. O anúncio de cima, das Faculdades Anhanguera, é parte de uma campanha cujo valor central era o da superação, retratando pessoas que tinham vencido desafios com o próprio esforço e que, assim, tinham conquistado algo melhor. Já a peça de baixo, da Business School São Paulo, centra seu discurso no valor da excelência, destacando as conquistas resultantes dessa superioridade qualitativa. Sem poder se alongar em mais detalhes das peças analisadas ou em outros exemplos que reforçassem nossos resultados de pesquisa – o espaço exíguo assim exige –, o que precisa ficar claro é que em todos os territórios encontrados, essa mesma linha divisória se fez presente. E, se o ponto de partida da pesquisa tinha sido a divisão da publicidade em classes sociais (A e C), o processo investigativo mostrou que, dentro do universo discursivo publicitário e, portanto, dentro do universo simbólico do consumo, a divisão se dá de outra maneira. Não há um consumo que se possa dividir simplesmente por classes sociais. Há, isto sim, um consumo que se reflete em dois lados da mesma moeda: o consumo de elite e consumo popular. E cada qual com uma gama de valores que representa o seu universo referencial, mas que não se prende a uma determinada categoria de produtos, que não se restringe a uma determinada faixa de preço de produtos, que não se percebe nitidamente destinada a este ou àquele extrato social. O universo simbólico do consumo de elite lida com o tempo alongado, com o passado e com o futuro, tem um vetor apontado para o qualitativo (melhorar, especificar, detalhar), apresenta uma relação de proximidade entre os que podem estar longe (física e simbolicamente), sugere estilo e sofisticação. Já o universo simbólico do consumo popular está ligado diretamente com o tempo do agora, com o presente e com a rotina, tem seu vetor apontado para o quantitativo (aumentar, majorar, ampliar), evidencia uma relação estreita com os que estão necessariamente próximos (física e contingencialmente), sugere mistura e experimentação. E nenhum desses universos está obrigatoriamente amarrado a classes sociais. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) 4. Considerações finais O intuito deste texto não foi o de apresentar algo acabado ou que se pretenda plenamente comprovado. Ainda que os procedimentos investigativos tenham sido alicerçados em metodologias legitimadas (pela academia e pelo mercado), trata-se de uma pesquisa de bases teóricas comunicacionais, antropológicas e semióticas, nitidamente filiada ao paradigma interpretativista, portanto mais afeita às elucubrações e às reflexões a partir dos objetos selecionados, do que aquele tipo de pesquisa ligada aos números e às validações estatísticas. Nossa proposta é trazer as contribuições da comunicação publicitária para compreensão da realidade socioeconômica brasileira contemporânea, valendo-se dos preceitos da antropologia do consumo, concordando com o que dizem Everardo Rocha e Claudia Pereira: “a publicidade parece ser um dos novos lugares que passaram a acolher o pensamento mágico na contemporaneidade, em contraponto com a razão como instrumento privilegiado que explica nosso modo de ser” (2013, p. 13). Sim, compreender uma sociedade transversalmente marcada pelo fenômeno do consumo talvez só seja possível se se contar também com o conhecimento que esse tipo de pesquisa, centrada na propaganda, pode produzir. O esforço de se integrar o pensamento investigativo acadêmico às necessidades práticas da pesquisa de mercado também pode ser aqui destacado. Os que trabalham na área sabem da relação cada vez mais próxima entre a universidade e as empresas ligadas ao universo do consumo e da publicidade. Este texto traz um pouco dessa aproximação entre o mercado e a academia e procurou evidenciar quais são os ganhos que esse tipo de pesquisa pode trazer para ambas as esferas. “As pesquisas de mercado ganham novas metodologias, recorrem cada vez mais a estudos acadêmico-científicos e trazem para as salas de reunião discussões que podem contribuir para a compreensão dos fenômenos sociais e culturais presentes nos processos comunicacionais e de consumo.” (ROCHA & PEREIRA, 2013, p. 18) É evidente que ainda há muito para ser feito. Outras pesquisas hão de surgir, nos institutos ou nas universidade, para levar adiante o que aqui foi apenas iniciado. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Há, por exemplo, uma vontade de se compreender melhor como cada um dos territórios de valores de consumo se relacionam com diferentes categorias de produtos. É possível – e até provável – que haja certa relação de proximidade entre determinadas categorias e certos territórios (tecnologia e produtividade, vestuário e autoexpressão, eletrodomésticos e conforto, fartamente recorrentes, por exemplo). Entender como se dá essa relação e buscar exemplos que fujam a essa lógica (medicamentos e família, cosméticos e nação, pontualmente encontrados) pode ser também um exercício interessante e revelador. Que novos estudos venham a contribuir com a pesquisa aqui apresentada. Que cada vez mais o mercado e a academia se relacionem positivamente em busca do conhecimento. E que o contexto sociocultural brasileiro possa ser cada vez mais e melhor compreendido, tendo o consumo como elemento-chave. Com esforço, com suor e com raça, mas também com excelência e alto desempenho. Referências ABEP – Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de Classificação Econômica Brasil. São Paulo: ABEP, 2012. 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