A IMUNIDADE ABSOLUTA DE JURISDIÇÃO DE ESTADOS: “SÓLIDA REGRA COSTUMEIRA” OU MITO? Aziz Tuffi Saliba* Resumo: O presente artigo trata da aplicação das teorias relativa e absoluta de imunidade de jurisdição pelos tribunais superiores brasileiros. Examina-se, também, a eventual existência de norma consuetudinária internacional atinente à matéria da imunidade. Palavras-chave: Imunidade de jurisdição; Absoluta; Relativa. Sumário: 1 Introdução. 2 Delimitação do tema: imunidade de jurisdição de Estados. 3 A imunidade absoluta precedeu a relativa?. 4 O caso Schooner Exchange v. McFaddon. 5 Caso Bank of the United States v. Planters' Bank of Georgia. 6 O Departamento de Estado e o ofício de Jack B. Tate (The Tate Letter). 7 A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado. 8 A Comissão de Direito Internacional e a Imunidade de Estados. 9 A imunidade absoluta como “antiga e sólida regra costumeira”: tudo que é sólido desmancha no ar. 10 Referências. 11 Anexo - Convenção das Nações Unidas sobre a Imunidade dos Estados e dos seus Bens. “Uma boa sentença é demasiado dura para a mandíbula do tempo e milhares de anos não lograriam devorá-la, ainda que todas as épocas dela se alimentem”. Cartaz afixado na entrada da Defensoria Penal Pública de Valparaíso, Chile. 1 Introdução Em 1976, na cidade de São Paulo, a Sra Geny de Oliveira propôs reclamação trabalhista contra a Representação Comercial da República Democrática Alemã (RDA), pleiteando a anotação na carteira profissional de seu falecido marido dos dados relativos ao contrato de trabalho entre o de cujus e a mencionada representação1. A Representação * Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Itaúna. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Universidade de Arizona, Estados Unidos. Foi pesquisador visitante nas Universidades de Notre Dame, nos Estados Unidos e Cambridge, no Reino Unido. O presente artigo é uma versão atualizada de texto anteriormente publicado pelo autor. 1 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação Cível nº 9696-3/SP. T. Pleno. Relator: Min. Sydney Sanches, julgada em 31.5.1989. DJ, Brasília, 12 out. 1990. Disponível em: <http://portal.in.gov.br/in>. Acesso em: 02 fev. 2004. 2 Comercial da RDA contestou e, preliminarmente, invocou a imunidade de jurisdição. Em sede recursal, o feito foi remetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), sendo julgado em 1989. Após o pedido de vistas, o ilustre internacionalista e então ministro do STF, Francisco Rezek, proferiu voto que foi acatado por todos os demais julgadores. O voto do Ministro Rezek sepultou a aplicação da teoria da imunidade a todos os casos em que Estados estrangeiros estavam envolvidos (teoria da imunidade absoluta), restringindo-a a hipóteses em que o país estivesse agindo como “ente soberano” (teoria da imunidade relativa). Em síntese, argumentou o ministro Rezek que a imunidade de jurisdição de Estados resultava de uma “antiga e sólida regra costumeira”2, que “deixou de existir na década de setenta”3. Desse modo, haveria ruído “o nosso único suporte para a afirmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida – quando ela o era -, e que assegurava a imunidade em termos absolutos”4. Nas decisões subseqüentes do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), consolidou-se, a partir de então, a aplicação da teoria da imunidade relativa de jurisdição dos Estados, revertendo posicionamento anterior, que consagrava a imunidade absoluta, não apenas em decisões, mas também em pareceres da procuradoria-geral da República. O próprio Rezek, na década de setenta, em parecer que proferiu na condição de Procurador-Geral da República (cargo que ocupou antes de ser nomeado Ministro do STF) defendeu, incisivamente, a imunidade absoluta: Tem-se, pois, que a imunidade daquele Estado soberano (Japão) à jurisdição doméstica não resulta da convenção de Viena, mas de uma das mais sólidas regras costumeiras de Direito das Gentes. Nenhum estado ignora a impossibilidade de submeter outra Nação, contra a sua vontade, à condição de parte perante o Judiciário local. Nem poderia fazê-lo a menos que disposto – e apto – a garantir pela força bélica a execução da eventual e esdrúxula sentença condenatória, o que repugna substancialmente ao moderno Direito Internacional, que nossa república ajudou a construir e consolidar5. Normas consuetudinárias têm fundamental importância para a construção do Direito Internacional – mormente, se constituírem uma “sólida regra costumeira de Direito das 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op.cit., 1990. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op.cit., 1990. 4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op.cit., 1990. 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Agravo de petição nº 56.466-DF. Relator Ministro Bilac Pinto, julgado em 9 de maio de 1973, p. 152-153. 3 Gentes”. Há setores do Direito Internacional que, ainda hoje, são inteiramente regidos por costumes – por exemplo, a imunidade de jurisdição de Estados6. Assim sendo, pretende-se, neste artigo, investigar a configuração da imunidade absoluta como norma consuetudinária. 2 Delimitação do tema: imunidade de jurisdição de Estados A imunidade jurisdicional dos Estados, na feliz asserção do professor Boson, “consubstancia problemática extensa, complexa e apaixonante”7. Por ser vasto e intrincado, o tema reclama delimitação. Destarte, inicialmente, cumpre propor uma conceituação de imunidade de jurisdição e distingui-la de outras figuras. A imunidade de jurisdição cuida da possibilidade e medida em que Estados, seus órgãos ou empresas podem ser submetidos às cortes de outros países. Já a imunidade de execução concerne à possibilidade de adoção de medidas executórias contra os bens do Estado8. Embora a distinção se afigure evidente, nota-se que o mencionado parecer do então procurador-geral da República baralhou os dois institutos, ao afirmar: Nenhum estado ignora a impossibilidade de submeter outra Nação, contra a sua vontade, à condição de parte perante o Judiciário local. Nem poderia fazê-lo a menos que disposto – e apto – a garantir pela força bélica a execução da eventual e esdrúxula sentença condenatória [...].9 A imunidade de jurisdição não deve ser confundida com a teoria do ato de Estado 6 Neste sentido, BENADAVA, Santiago. Derecho internacional público. 7. ed. Santiago: LexisNexis, 2001. p. 27, assevera: “El derecho internacional consuetudinario conserva su importancia como parte del orden jurídico internacional. Sectores tales como la responsabilidad internacional, las inmunidades del Estado y la práctica arbitral continúan regidos por la costumbre.” 7 BOSON, Gerson de Britto Mello. Imunidade Jurisdicional dos Estados. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 22, p. 9, 1972. 8 Neste sentido preceituam REMIRO-BROTÓNS, Antonio et al. Derecho internacional. Madri: McGraw-Hill, 1997. p. 793: “Conforme al [principio de la inmunidad del Estado extranjero] [...], un Estado debe abstenerse, en ciertos supuestos, de ejercer jurisdicción en un proceso incoado ante sus tribunales contra otro Estado (inmunidad de jurisdicción) y de adoptar medidas de ejecución contra sus bienes (inmunidad de ejecución)”. 9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op.cit., 1973, p. 152-153. 4 (act of State doctrine), uma criação do common law anglo-americano. A primeira e mais sucinta noção na jurisprudência dos Estados Unidos está formulada na decisão da Suprema Corte Americana, no caso Underhill v. Hernandez, de 1897: “as cortes de um país não julgarão os atos executados [alhures] por outro governo no seu próprio território”. Mais recentemente, em 1990, no caso W.S. Kirkpatrick & Co., Inc. v. Environmental Tectonics Corp., a Suprema Corte apresentou a teoria como uma regra decisória: “a teoria do ato de Estado [...] requer que [...] os atos de soberanos estrangeiros por eles praticados no âmbito de suas respectivas soberanias deverão ser considerados válidos”10. Em síntese, a “teoria de ato do Estado” concerne a atos praticados por outros países em outras (suas respectivas) jurisdições. Também não se deve confundir a imunidade de jurisdição estatal com as imunidades e privilégios diplomáticos e consulares. Tais garantias são conferidas, respectivamente, aos agentes diplomáticos e consulares e, hodiernamente, regulamentadas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, enquanto a imunidade de jurisdição de Estados se arrima, primordialmente, em costume. A imunidade de Estados perante cortes estrangeiras irrompe do conflito entre dois princípios basilares de Direito Internacional: a igualdade entre os Estados e a jurisdição territorial exclusiva11. 3 A imunidade absoluta precedeu a relativa? A origem da imunidade jurisdicional é objeto de controvérsia 12. Parte considerável da 10 Os trechos relevantes de ambas as decisões aparecem em artigo do prof. Michael Ramsey, que apresenta conceituação própria: “a teoria dos atos de Estado estipula que, sujeito a exceções, as cortes dos Estados Unidos não julgarão a validade de atos oficiais de governos estrangeiros realizados em seu próprio território” (RAMSEY, Michael D. Acts of State and Foreign Sovereign Obligations. Harvard International Law Journal, Cambridge, v. 39, n. 1, p. 1, winter 1998, p. 1). 11 CAPLAN, Lee M. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy theory. American Journal of International Law, Washington, v. 97, n. 4, p. 741-781, Oct. 2003. p. 745. 12 THE AUSTRALIAN LAW REFORM COMISSION. Foreign state immunity. Canberra: Australian Government Printing Office, 1984. n. 24. Disponível em: <http://www.austlii.edu.au/au/other/alrc/publicatio ns/reports/24/>. Acesso em: 15 jan. 2005. 5 doutrina assevera que a imunidade teria suas raízes na independência e na igualdade dos Estados e que, em princípio, seria absoluta13. Se os países são independentes e iguais, um Estado não poderia submeter, às suas cortes, outro país: par in parem non habet imperium14. Atentar-se-ia contra “sua soberania, sua independência, sua dignidade vê-lo como demandado”15. A imunidade cobriria toda a atuação estatal, o que lhe conferiria caráter absoluto. Contudo, a maior participação do Estado em setores que haviam sido, até então, alocados primordialmente para a iniciativa privada, teria levado a um abrandamento da imunidade, já na primeira metade do século XX 16. Passou-se a distinguir entre os atos de império e os de gestão. Os atos de império seriam os próprios do ente soberano, enquanto os de gestão seriam aqueles de natureza comercial ou de direito privado. A dissonância desta versão é mais bem formulada 17 pelo professor Michael Byers, da Duke University. Segundo Byers, é uma crença geral que quando a doutrina de imunidade relativa se tornou uma norma consuetudinária de Direito Internacional, na metade do século XX, alterou-se o costume preexistente em que se garantia imunidade absoluta de jurisdição aos Estados18. No entanto, tal crença seria errônea e a existência de imunidade absoluta não passaria de um mito19. Afirma Byers: [...] um exame da história da imunidade estatal, que é basicamente uma história de julgados de cortes nacionais e de legislação interna, indica que imunidade absoluta não era uma regra estabelecida. Mais propriamente, a história sugere que não havia qualquer norma geral regulando a imunidade de jurisdição antes da imunidade 13 Neste sentido, ver AKEHURST, Michael. Modern introduction to international law. 7. ed. rev. por Peter Malanczuk. Londres: Routledge, 1997. p. 118-119; REMIRO-BROTÓNS, Antonio et al. Derecho internacional. Madri: McGraw-Hill, 1997. p. 799; CARTER, Barry E.; TRIMBLE, Phillip R. International law. 3. ed. New York: Aspen Law e Business, 1999. p. 595-599; SHAW, Malcolm M. International law. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 494; BLAKESLEY, Christopher L. et al. The international legal system. New York: Foundation Press, 2001. p. 505-507; HEß, Burkhard. The international law comission‟s draft convention on the jurisdictional immunities of states and their property. European Journal of International Law, Oxford, v. 4, n. 2, p. 269-282, 1993. p. 269; DEAK, Francis. Órganos del estado en sus relaciones exteriores: inmunidades y privilegios del estado y de sus órganos. In: SORENSEN, Max. Manual de derecho internacional publico. México: Fondo de Cultura Económica, 1994. p. 413-414. 14 Numa tradução livre, “entre pares não há superior”. 15 REMIRO-BROTÓNS, op.cit., p. 793, nota 12. 16 MAGALHÃES, op.cit., p. 128-129, nota 6 e DEAK, op.cit., p. 414, nota 12. 17 BYERS, Michael. Custom, power and the power of rules. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 110-111. Nesse sentido, ver também The Australian Law Reform Comission, op.cit. 18 BYERS, op.cit., p. 110, nota 16. 19 CAPLAN, op.cit., p. 753, nota 10. 6 relativa se tornar uma norma de Direito Internacional e uma crença equivocada em tal regra pré-existente serviu para retardar o desenvolvimento [da imunidade relativa].20 Como esteio à sua tese, Byers aponta casos anteriores em que já se aplicava a teoria relativa de imunidade: os tribunais belgas utilizaram-na já em 1857, os italianos em 1886, os suíços em 1918. Além disso, cortes argentinas e francesas, em 1924, egípcias, a partir de 1926, gregas, desde 1928, irlandesas, a datar de 1941 e alemãs, a partir de 1949, distinguiam atos de império dos de gestão21. Byers aponta que nos países do sistema common law é que se consolidou a prática de garantir imunidade absoluta, mormente nos Estados Unidos, onde tal práxis estaria “entrincheirada” a partir da célebre decisão de autoria do presidente da Suprema Corte Americana, John Marshall no caso Schooner Exchange v. McFaddon. Mas mesmo tal enraizamento da imunidade jurisdicional absoluta de Estados nos E.E.U.U. é, no mínimo, dubitável. No estudo que mais minuciosamente analisou o desdobramento da imunidade jurisdicional nos Estados Unidos, o professor Murray, da Universidade de Illinois, apresentou conclusão distinta, que transcrevemos: Meu entendimento é que a teoria da imunidade relativa de jurisdição foi adotada e aplicada pelas cortes dos Estados Unidos já no início do século XIX, começando com três marcantes decisões da corte (presidida pelo juiz Marshall) e que somente por breve período, de 1926 a 1938, é que a Suprema Corte americana adotou posição ambígua concernente à teoria da imunidade absoluta, que contrastava com o posicionamento esposado pelo Departamento de Estado e pelo Executivo, na mesma 20 BYERS, op.cit., p. 110-111, nota 16. Tradução do autor. A versão original é a seguinte: [However], an examination of the history of State immunity, which is primarily a history of national court judgments and national legislation, indicates that absolute immunity was not an established rule. Rather, history suggests that there was no general rule regulating State immunity from jurisdiction prior to restrictive immunity becoming a rule of customary international law, and that a mistaken belief in such a pre-existing rule served to retard that later development. 21 BYERS, op.cit., p. 111, nota 16. Também o professor Joseph W. Dellapenna, da Villanova University, informa a existência de julgados, ainda no século XIX, adotando restrições à imunidade de Estado. Ver DELLAPENNA, Joseph W. Foreign State Imunnity in Europe. New York International Law Review, New York, p. 51-62, summer 1992. especialmente p. 56. 7 época.22 As três decisões da Suprema Corte a que se refere o professor Murray são a já mencionada Schooner Exchange v. McFaddon, mais Santíssima Trinidad e, por fim, o decisum no caso Bank of the United States v. Planters' Bank of Georgia. Abordaremos o primeiro e o último, tendo em vista a maior atenção que receberam da jurisprudência subseqüente. 4 O caso Schooner Exchange v. McFaddon O decisum do juiz Marshall no caso Schooner Exchange v. McFaddon23 é apontado por substancial número de doutrinadores como o primeiro ou, ao menos, a mais clara formulação da doutrina da imunidade de Estados até então 24. Em 1810, a escuna Exchange, até então utilizada para fins comerciais e de propriedade de dois nacionais norte-americanos, foi aprisionada pela marinha francesa. Por ordem de Napoleão Bonaparte, foi transformada em navio de guerra - o “Balaou”. Dois anos depois, forçada a aportar em Filadélfia, nos Estados Unidos, para que se realizassem reparos em decorrência de uma tempestade, os ex-proprietários americanos moveram ação possessória para reaver a escuna. O governo francês contestou, argumentando que, como navio de guerra, a Exchange constituía-se em longa manus do imperador e tinha direito à imunidade, tal como 22 MURRAY, Michael D. Jurisdiction under the foreign sovereign immunities act for nazi war crimes of plunder and expropriation. New York University Journal of Legislation and Public Policy, New York, v. 7, issue 2, p. 223-286, 2004. p. 225. Tradução do autor. A versão original é a seguinte: “It is my position that the principles of the restrictive theory were adopted and applied by the united States courts early in the nineteenth century, starting with three landmark decisions of the Marshall court, and that only for a brief period from 1926 to 1938 did the United States Supreme Court send a mixed message concerning the absolute theory of sovereign immunity that contrasted with the more restrictive message being espoused by the State Department and executive branch during the same period”. 23 A decisão pode ser encontrada na íntegra em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/a1_8_11s 14.html>. 24 Neste sentido, ver: THE AUSTRALIAN LAW REFORM COMISSION, op.cit.; REMIRO-BROTÓNS, op.cit., p. 797, nota 11; CAPLAN, op.cit., p. 745, nota 9; SHAW, op.cit., p. 492, nota; BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 5. ed. New York: Oxford University Press, 1998. p. 328; BUERGENTHAL, Thomas; MAIER, Harold M. Public international law in a nutshell. St. Paul: West Publishing Co., 1990. p. 222; GAILLARD, Emmanuel; PINGEL-LENUZZA, Isabelle. International organisations and imunnity from jurisdiction: to restrict or to bypass. International e Comparative Law Quarterly, Oxford, v. 51, part 1, p. 1, Jan. 2002; BLAKESLEY, op.cit., p. 506-507. 8 o próprio Napoleão Bonaparte25. Merecem transcrição alguns pontos do mencionado decisum: A jurisdição de uma nação em seu território é necessariamente exclusiva e absoluta. É insusceptível de qualquer limitação que não seja imposta por si mesma. [...] Sendo o mundo composto de soberanias distintas, possuidoras de iguais direitos e independência, cujo mútuo benefício é promovido pela relação com o outro e por troca daqueles bons ofícios que a humanidade dita e seus desejos requerem, todos os soberanos consentiram, na prática, em certos casos em circunstâncias peculiares, com um relaxamento daquela jurisdição absoluta e completa no âmbito de seus respectivos territórios, que a soberania lhes confere.26 Essa plena e absoluta jurisdição territorial, sendo igualmente um atributo de cada soberano e sendo incapaz de conferir poderes extraterritoriais, não sendo um soberano em qualquer aspecto submisso a outro e estando compelido por obrigações da mais alta natureza a não degradar a dignidade de sua nação, ao colocar a si mesmo ou a seus direitos soberanos sob a jurisdição de um outro, se presumirá que só entrará em território estrangeiro sob uma licença expressa ou na confiança que as imunidades pertinentes à sua posição de soberano independente, embora não expressamente estipuladas, estão reservadas por decorrência e serão estendidas a ele.27 Essa perfeita igualdade e absoluta independência de soberanias e esse interesse comum, que as impele a manter relações mútuas e a trocar bons ofícios umas com outras, fez surgir uma classe de casos em que se entende que cada soberania renuncia ao exercício de parte daquela complexa jurisdição exclusivamente territorial, que se declara ser um atributo de cada nação.28 Como se vê, Marshall não fez referência à imunidade absoluta. Aliás, em outro 25 Cf. HARRIS, D. J. Cases and materials on international law. 5. ed. Londres: Sweet e Maxwell, 1998. p. 308 e CAPLAN, op.cit., p. 745-746, nota 10. 26 The world being composed of distinct sovereignties, possessing equal rights and equal independence, whose mutual benefit is promoted by intercourse with each other, and by an interchange of those good offices which humanity dictates and its wants require, all sovereigns have consented to a relaxation in practice, in cases under certain peculiar circumstances, of that absolute and complete jurisdiction within their respective territories which sovereignty confers. 27 This full and absolute territorial jurisdiction being alike the attribute of every sovereign, and being incapable of conferring extra-territorial power, would not seem to contemplate foreign sovereigns nor their sovereign rights as its objects. One sovereign being in no respect amenable to another; and being bound by obligations of the highest character not to degrade the dignity of his nation, by placing himself or its sovereign rights within the jurisdiction of another, can be supposed to enter a foreign territory only under an express license, or in the confidence that the immunities belonging to his independent sovereign station, though not expressly stipulated, are reserved by implication, and will be extended to him. 28 “This perfect equality and absolute independence of sovereigns, and this common interest impelling them to mutual intercourse, and an interchange of good offices with each other, has given rise to a class of cases in which every sovereign is understood to wa[i]ve the exercise of a part of that complete exclusive territorial jurisdiction, which has been stated to be the attribute of every nation”. 9 trecho, deixou entrever distinção entre a propriedade privada de um soberano e a propriedade pública a serviço do Estado estrangeiro, ao afirmar que: [...] há manifesta distinção entre a propriedade privada de uma pessoa que porventura é príncipe e a força militar que apóia o poder soberano e mantém a dignidade de uma nação. Pode-se considerar que um príncipe, ao adquirir propriedade privada em país estrangeiro, sujeita-a à jurisdição territorial; pode-se considerar que até aquele ponto se põe de lado o príncipe e se assume um caráter de pessoa individual privada, mas isso não pode ser presumido relativamente a nenhuma porção de suas forças armadas, que sustentam sua coroa e a nação que lhe confia o governo.29 5 Caso Bank of the United States v. Planters' Bank of Georgia A emenda n. XI à constituição americana veda “qualquer demanda baseada na lei ou na eqüidade, iniciada ou processada contra um dos Estados Unidos por cidadãos de outro Estado, ou por cidadãos ou súditos de qualquer potência estrangeira”. Destarte, garante-se aos estados-membros da federação americana, bem como a seus órgãos, a imunidade de jurisdição. O Caso do Planters´Bank envolveu um banco que tinha como um de seus acionistas o estado de Geórgia. Diante da invocação de imunidade de jurisdição, o juiz Marshall, em 1824, pronunciou-se nos seguintes termos: Pensamos ser um sólido princípio que quando um governo se torna sócio de qualquer companhia comercial, ele renuncia de seu caráter soberano, no que concerne às transações daquela companhia, e assume a posição de um ente privado. Em vez de comunicar à companhia seus privilégios e prerrogativas, desce ao nível daqueles com quem se associou e assume o caráter pertinente aos seus sócios e à atividade comercial em que transacionará. [...] Ao conferir ao Banco capacidade de processar e ser processado, o estado de Georgia voluntariamente se despe de seu caráter soberano, no que diz respeito às transações do Banco, e abdica de todos os privilégios relativos a tal caráter. Como sócio de uma empresa, um governo nunca 29 “[...] there is a manifest distinction between the private property of the person who happens to be a prince, and that military force which supports the sovereign power, and maintains the dignity and the independence of a nation. A prince, by acquiring private property in a foreign country, may possibly be considered as subjecting that property to the territorial jurisdiction, he may be considered as so far laying down the prince, and assuming the character of a private individual, but this he cannot be presumed to do with respect to any portion of that armed force, which upholds his crown, and the nation he is entrusted to govern”. 10 exerce sua soberania. [...].30 Da análise da tríade, chega-se à mesma conclusão do Prof. Murray: a Suprema Corte Americana, já no início do século XIX, adotava a teoria da imunidade de jurisdição relativa. A orientação da corte só mudaria no caso Berizzi Bros. Co. v. SS Pesaro, em que o juiz da Suprema Corte Americana, Van Devanter, entendeu que um navio realizando comércio para o benefício da nação estava tanto a serviço público do Estado quanto um navio de guerra, devendo ser concedidas a ele as mesmas imunidades31. 6 O Departamento de Estado e o ofício de Jack B. Tate (The Tate Letter) Observa Murray que o Departamento de Estado americano acatou os princípios mais relevantes da teoria da imunidade relativa e teve atuação bastante consistente no século XX32. Ainda de acordo com Murray: Nos casos em que se afigurava que um navio era de propriedade de um governo estrangeiro, operado diretamente por ele, e cuja extensão da imunidade serviria à sua finalidade, o Departamento de Estado tendia a fazer uma clara sugestão de imunidade. Em casos em que as circunstâncias não indicavam que o governo estrangeiro possuía e operava um navio ou onde a extensão da imunidade não fosse cumprir sua finalidade, o Departamento de Estado tendia a não tomar uma posição na questão. Isso também valia para casos em que a soberania estrangeira não era 30 “It is, we think, a sound principle, that when a government becomes a partner in any trading company, it divests itself, so far as concerns the transactions of that company, of its sovereign character, and takes that of a private citizen. Instead of communicating to the company its privileges and its prerogatives, it descends to a level with those with whom it associates itself, and takes the character which belongs to its associates, and to the business which is to be transacted. […] The State of Georgia, by giving to the Bank the capacity to sue and be sued, voluntarily strips itself of its sovereign character, so far as respects the transactions of the Bank, and waives all the privileges of that character. As a member of a corporation, a government never exercises its sovereignty”. Disponível em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/amendXIs5.html>. Acesso em: 15 jan. 2005. 31 Cf. MURRAY, op.cit., p. 246, nota 21. 32 MURRAY, op.cit., p. 252, nota 21 11 considerada „amistosa‟ ou em situações em que o governo dos E.E.U.U. tivesse rompido relações com o outro Estado.33 Em 1952, o Departamento de Estado divulgou um ofício (the Tate Letter) 34 em que explicitou de forma inequívoca sua adesão à teoria da imunidade relativa: O Departamento de Estado, já há algum tempo, tem considerado a questão se a prática do Governo [americano] em conceder imunidade de jurisdição a governos estrangeiros, acionados nas cortes dos Estados Unidos sem seu respectivo consentimento deveria ser mudada. O Departamento, agora, concluiu que tal imunidade não mais deveria ser concedida em alguns tipos de casos. [...].35 Assim, resta evidente que, excetuando-se a União Soviética e seus satélites e, possivelmente, o Reino Unido, encontra-se pouco amparo para uma continuidade de aceitação integral da teoria da imunidade absoluta. Há evidências que as autoridades britânicas estão conscientes de suas deficiências e prontas para mudar.36 Dois pontos merecem particular atenção. O primeiro é o fato de a questão da relativização de imunidade estar sob análise “já há algum tempo”. Segundo, é o expresso reconhecimento de pouco apoio, no cenário internacional, para a regra da imunidade absoluta. 33 MURRAY, op.cit., p. 251-252, nota 21. Tradução do autor. A versão original, em inglês, é a seguinte: “In cases where it appeared that a vessel was possessed and operated by a foreign government directly, and where extension of the immunity would serve its ends, the State Department tended to make a direct suggestion of immunity. In cases where the circumstances did not indicate that the foreign sovereign directly possessed and operated a vessel, or where extension of immunity would not serve its purposes, the State Department tended not to take a position in the matter. This was also true in cases where the foreign sovereign was not considered to be „friendly‟, or in situations where the U.S. government had broken off relations with the foreign sovereign”. 34 O ofício está transcrito, na íntegra, em CARTER e TRIMBLE, op. cit., p. 601-603. 35 “The Department of State has for some time had under consideration the question whether the practice of the Government in granting immunity from suit to foreign governments made parties defendant in the courts of the United States without their consent should be changed. The Department has now reached the conclusion that such immunity should no longer be granted in certain types of cases”. 36 “It is thus evident that with the possible exception of the United Kingdom little support has been found except on the part of the Soviet Union and its satellites for continued full acceptance of the absolute theory of sovereign immunity. There are evidences that British authorities are aware of its deficiencies and ready for a change”. 12 7 A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado resultou de discussões iniciadas em 1963 no âmbito do Conselho da Europa. Deve-se observar que, já em 1964, a delegação da Áustria apresentou um detalhado relatório propugnando pela adoção da teoria da imunidade relativa37. Tal posicionamento foi acolhido pelo Conselho da Europa e se reflete no texto final. O objetivo da Convenção Européia é “estabelecer regras comuns relacionadas ao alcance da imunidade de uma Parte [ou seja, um Estado] da jurisdição das cortes de outra Parte”. A Convenção estabeleceu e especificou os casos nos quais uma Parte não pode invocar imunidade perante tribunais estrangeiros: ações relativas a contratos de trabalho, participações em sociedades empresariais ou associações, atividades industriais, comerciais ou financeiras, direito de propriedade sobre imóveis, reparação de danos físicos ou materiais. No relatório explanatório sobre a Convenção Européia sobre Imunidade de Estado, afirmou-se que a limitação do número de casos nos quais Estados podem invocar a imunidade jurisdicional era consistente com a evolução de jurisprudência e doutrina na maioria dos países38. Embora a Convenção Européia sobre Imunidade de Estado tenha sido finalizada em 1972, decorridos mais de trinta anos, apenas oito países ratificaram-na, até o momento39. Todavia, como esclarece Von Henning, “embora não tenha sido ratificada por todos os membros da União Européia ainda, as normas e objetivos políticos da Convenção são observados por todas as jurisdições européias”40. 37 VON HENNING, Reinhard. European Convention on State Immunity and other international aspects of sovereign immunity. The Willamette Journal of International Law and Dispute Resolution, Salem, Oregon, v. 9, p. 185-219, 2001. p. 197. 38 COUNCIL OF EUROPE. Explanatory reports on the european convention on state immunity. Paragraph 7º. Basiléia, 1972. Disponível em: <http://conventions.coe.int/>. Acesso em: 11 abr. 2010. O texto completo no documento original em inglês que utilizamos diz o seguinte: “By limiting the number of cases in which States can invoke jurisdictional immunity, the Convention is consistent with the trend taking place in the case-law and legal writings in the majority of countries”. 39 Os países são Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido e Suíça. 40 VON HENNING, op.cit., p. 219. O texto original em inglês é “Although not yet ratified by all European Union members yet, the Convention´s regulations and political aims are honored by all European jurisdictions”. 13 8 A Comissão de Direito Internacional e a Imunidade de Estados A Comissão de Direito Internacional (CDI) foi estabelecida pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas41, com a incumbência de cuidar da codificação e do desenvolvimento e Direito Internacional. De reconhecida competência em Direito Internacional, é composta por 34 membros42, eleitos pela Assembléia Geral43. A questão da imunidade foi arrolada como um dos tópicos a serem codificados já na primeira sessão da CDI44. Todavia, por não constar da lista de temas prioritários, o tema só recebeu a atenção da CDI em 1977, quando Assembléia Geral solicitou à Comissão de Direito Internacional que considerasse a questão da “imunidade de Estados e sua propriedade”, com vistas à sua codificação e desenvolvimento45. Em 1978, a Comissão iniciou estudos sobre o tema e designou como relator o professor Sompong Sucharitkul, da Tailândia. Entre 1979 e 1986, o professor Sucharitkul elaborou oito (extensos) relatórios46. Submeteu-se uma versão à Assembléia Geral e, até 1988, vinte e três Estados haviam se pronunciado sobre a proposta de artigos da CDI. Entre 1988 e 1991, o novo relator designado, prof. Motoo Osigo, do Japão, preparou a versão final em três documentos, apresentando-os à Assembléia Geral da ONU no outono de 1991. Depois de inúmeras discussões no âmbito da AGONU, em 2 de dezembro de 2004, a 41 ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 174(II) of November 21, 1947. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2010; ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 174(II), U.N. Doc. A/519, at 105 (1948). Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2010. 42 ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 36/39, 36 U.N. GAOR Sup. (No. 51) at 18, U.N. Doc. A/36/51 (1982). Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2010. 43 Para maiores informações sobre a Comissão de Direito Internacional (CDI), sugerem-se as obras de SINCLAIR, Ian. The international law commission. Cambridge: CUP, 1993; e MORTON, Jeffrey S. The international law commission of the United Nations. Columbia: University of South Carolina Carolina Press, 2000; bem como o acesso à página da CDI disponível em: <http://www.un.org/law/ilc/index.htm>. 44 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Jurisdictional immunities of states and their property: summary. Nova Iorque, 2005. Disponível em: <http://untreaty.un.org/ilc>. Acesso em: 11 abr. 2010. 45 ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 32/151 of 19 December 1977. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2010. 46 Cf. HEß, Burkhard, op.cit., p. 270, nota 11. 14 Convenção foi finalmente adotada pela Assembléia Geral a “Convenção das Nações Unidas sobre a Imunidade dos Estados e dos seus Bens”47. O texto em português integra, como anexo, este artigo. No quarto relatório que preparou, o prof. Sucharitkul, afirmou com clareza que a imunidade de Estado não era absoluta, comportando limitações em determinadas hipóteses. Contudo, Sucharitkul entendeu - com razão - que simplesmente dizer que o Estado gozaria de imunidade de jurisdição quando praticasse “atos de império” e que se submeteria ao poder jurisdicional alheio na hipótese de praticar “atos de gestão” não resolveria o problema, pois as expressões acta jure imperii e acta jure gestionis não eram livres de ambiguidades. Em outras palavras, a caracterização de um ato como “de império” ou de “gestão” poderia variar consideravelmente. Assim, a estratégia adotada foi a de se consagrar a imunidade de jurisdição como regra e listar os casos que constituiriam a exceção 48. Como se pode verificar a partir do exame da Convenção das Nações Unidas sobre a Imunidade dos Estados e dos seus Bens, os casos em que o Estado se submeteria à jurisdição seriam: ações relativas a contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens, propriedade intelectual, participação em sociedades ou outras pessoas coletivas, navios de que um Estado é proprietário ou explora e arbitragem. Para entrar em vigor, a Convenção sobre a Imunidade dos Estados e dos seus Bens, nos termos de seu artigo 30, precisará de trinta depósitos de instrumentos “de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas. Até a presente data, apenas oito Estados ratificaram a referida Convenção 49. É provável que vários anos se passem até que as trinta ratificações necessárias sejam atingidas. 47 ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution adopted by the General Assembly [on the report of the Sixth Committee (A/59/508)] 59/38. United Nations Convention on Jurisdictional Immunities of States and Their Property. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2010. 48 SUCHARITKUL, Sompong. Fourth report on jurisdictional immunities of States and their property. Yearbook of the International Law Commission, New York, v. II, part. I, 1982. p. 208. 49 Cf. informação da ONU. Disponível em: <http://treaties.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2004. Os oito Estados são: Áustria, Irã, Cazaquistão, Líbano, Noruega, Portugal, Romênia e Suécia. 15 9 A imunidade absoluta como “antiga e sólida regra costumeira”: tudo que é sólido desmancha no ar Em 1873 (e, portanto, mais de um século antes da decisão mencionada no início deste artigo), ao proferir lapidar voto no caso The Charkieh, em que se abordou a questão da imunidade, o juiz inglês Robert Phillimore afirmou: Além daquele princípio [da independência] não há posição comum. Faculta-se a cada Estado aplicar, a seu modo, o princípio e cada um o aplicou de maneira distinta. Alguns adotaram uma regra de imunidade absoluta que, se levada às ultimas conseqüências, arriscaria tornar-se um instrumento de injustiça. Outros adotaram uma regra de imunidade para atos [de natureza] pública, mas não para atos [de natureza] privada, o que tem se mostrado uma distinção elusiva. Todos admitem exceções. Não há prática uniforme. Não há regra uniforme.50 Para que se possa configurar uma norma costumeira de Direito Internacional, é necessário que se tenha uma “prática geral aceita como sendo o Direito”, nos precisos termos do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça 51. Registra-se que, na primeira decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso Haya de la Torre, em que contendiam Peru e Colômbia, em questão concernente ao asilo diplomático, afirmou-se que a prática revelava “tantas incertezas e contradições”, “flutuações e discordâncias” e “influências políticas” que se impossibilitava discernir um uso uniforme e uma aceitação constante, susceptível de servir de base ao costume 52. Pelos fundamentos acima expendidos, resta patente que a imunidade absoluta de Estados não configurou costume, no sentido jus-internacionalista do termo, quanto mais uma “sólida regra costumeira”. As “incertezas, contradições, flutuações e discordâncias” observadas pela CIJ na primeira decisão proferida do caso Haya de la Torre são também inferíveis da prática dos Estados atinente à imunidade absoluta de jurisdição. 50 “Beyond that principle there is no common ground. It is left to each State to apply the principle in its own way and each has applied it differently. Some have adopted a rule of absolute immunity which, if carried to he logical extreme, is in danger of becoming an instrument of injustice. Others have adopted a rule of immunity for public acts but not for private acts, which has turned out to be an elusive test. All admit exceptions. There is no uniform practice. There is no uniform rule”. A decisão aparece em FOX, Hazel. The law of state immunity. Oxford: OUP, 2002. p. 36. 51 O Estatuto da CIJ pode ser encontrado na página daquela corte: <http://www.icj-cij.org/icjwww/ibasicdocum ents/ibasictext/ibasicstatute.htm>. Acesso em: 16 jan. 2005. 52 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Partes relevantes da decisão aparecem na obra de HARRIS, D. J. op.cit., p. 24-25, nota 24. 16 Destarte, pelo zelo a uma “sólida regra costumeira” que não resistiria a uma análise mais detida, indenizações e verbas trabalhistas deixaram de ser pagas ou, pelo menos, judicialmente discutidas. A suposta norma consuetudinária era, na verdade, um mito - uma crença equivocada que custou a vários indivíduos a adequada prestação jurisdicional. 10 Referências AKEHURST, Michael. Modern introduction to international law. 7. ed. rev. por Peter Malanczuk. Londres: Routledge, 1997. ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 174(II) of November 21, 1947. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 11 abr. 2010. ______. Resolution 174(II), U.N. Doc. A/519, at 105 (1948). Disponível em: <http://www.un. org>. Acesso em: 11 abr. 2010. ______. Resolution 32/151 of 19 December 1977. Disponível em: <http://www.un.org>. 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Apelação Cível nº 9696-3/SP. T. Pleno. Relator: Min. Sydney Sanches, julgada em 31.5.1989. DJ, Brasília, 12 out. 1990. Disponível em: <http://portal.in.gov.br/in>. Acesso em: 02 fev. 2004. BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 5. ed. New York: Oxford University Press, 1998. BUERGENTHAL, Thomas; MAIER, Harold M. Public international law in a nutshell. St. Paul: West Publishing Co., 1990. BYERS, Michael. Custom, power and the power of rules. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. CAPLAN, Lee M. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy theory. American Journal of International Law, Washington, v. 97, n. 4, p. 741-781, Oct. 2003. CARTER, Barry E.; TRIMBLE, Phillip R. International law. 3. ed. New York: Aspen Law e Business, 1999. COUNCIL OF EUROPE. Explanatory reports on the european convention on state immunity. Paragraph 7º. Basiléia, 1972. Disponível em: <http://conventions.coe.int/>. Acesso em: 11 abr. 2010. 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The Willamette Journal of International Law and Dispute Resolution, Salem, Oregon, v. 9, p. 185-219, 2001. 19 11 Anexo - Texto integral da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus bens Os Estados Partes na presente Convenção: Considerando que as imunidades jurisdicionais dos Estados e dos seus bens são geralmente aceites como um princípio de direito internacional consuetudinário; Tendo em conta os princípios de direito internacional consagrados na Carta das Nações Unidas; Convictos que uma convenção internacional sobre as imunidades jurisdicionais dos Estados e dos seus bens reforçará o princípio do Estado de direito e a segurança jurídica, especialmente nas relações dos Estados com as pessoas singulares ou coletivas, e contribuirá para a codificação e desenvolvimento do direito internacional e para a harmonização da prática nesta área; Tomando em consideração os desenvolvimentos na prática dos Estados relativamente às imunidades jurisdicionais dos Estados e dos seus bens; Afirmando que os princípios de direito internacional consuetudinário continuam a reger as matérias não reguladas pelas disposições da presente Convenção; Acordam no seguinte: PARTE I – INTRODUÇÃO ARTIGO 1º Âmbito da presente Convenção A presente Convenção aplica-se às imunidades jurisdicionais de um Estado e dos seus bens perante os tribunais de um outro Estado. ARTIGO 2º Definições 1 – Para os efeitos da presente Convenção: a)“Tribunal” designa qualquer órgão de um Estado, seja qual for a sua denominação, autorizado a exercer funções jurisdicionais; b)....... “Estado” designa: i) O Estado e os seus vários órgãos governamentais; ii) As unidades constitutivas de um Estado federal ou subdivisões políticas do Estado autorizadas a praticar atos no exercício da sua autoridade soberana e que exercem essas funções; iii) Serviços, organismos públicos ou outras entidades, na medida em que tenham competência para e pratiquem efetivamente atos no exercício da autoridade soberana do Estado; iv) Representantes do Estado no exercício dessas funções; c)“Transação comercial” designa: i) Qualquer contrato ou transação comercial para a venda de bens ou prestação de serviços; 20 ii) Qualquer contrato de empréstimo ou outra transação de natureza financeira, incluindo qualquer garantia obrigacional e obrigação de indenização relativamente aos mesmos; iii) Qualquer outro contrato ou transação de natureza comercial, industrial ou profissional, excluindo contratos de trabalho. 2 – Para determinar se um contrato ou transação constituem uma “transação comercial”, ao abrigo do nº 1 da alínea c), deve ter-se em conta, em primeiro lugar, a natureza do contrato ou transação, devendo o seu objetivo ser também tido em conta se as partes assim o convencionarem no contrato ou transação, ou se, na prática do Estado do foro, esse objetivo for pertinente para determinar a natureza não comercial do contrato ou transação. 3 – As disposições dos nos 1 e 2 relativamente às definições para os efeitos da presente Convenção não afetam o emprego desses termos nem o significado que lhes possa ser atribuído noutros instrumentos internacionais ou no direito interno de qualquer Estado. ARTIGO 3º Privilégios e imunidades não afetados pela presente Convenção 1 – A presente Convenção não afeta os privilégios e imunidades de que goza um Estado, ao abrigo do direito internacional, relativamente ao exercício das funções: a)Das suas missões diplomáticas, postos consulares, missões especiais, missões junto de organizações internacionais ou delegações junto de órgãos de organizações internacionais ou de conferências internacionais; e b)Das pessoas relacionadas com as mesmas. 2 – A presente Convenção não afeta os privilégios e imunidades concedidos ratione personae, ao abrigo do direito internacional, aos chefes de Estado. 3 – A presente Convenção não afeta as imunidades de que goza um Estado, ao abrigo do direito internacional, relativamente a aeronaves ou objetos espaciais de que é proprietário ou que explora. ARTIGO 4º Não retroatividade da presente Convenção Sem prejuízo da aplicação de quaisquer normas previstas na presente Convenção às quais as imunidades jurisdicionais dos Estados e dos seus bens estão sujeitos ao abrigo do direito internacional, independentemente do previsto na presente Convenção, as suas disposições não se aplicarão a qualquer questão de imunidades jurisdicionais dos Estados ou dos seus bens suscitadas num processo judicial instaurado contra um Estado junto de um tribunal de outro Estado antes da entrada em vigor da presente Convenção entre os Estados em questão. PARTE II – PRINCÍPIOS GERAIS ARTIGO 5º Imunidade dos Estados Sob reserva das disposições da presente Convenção, um Estado goza, em relação a si próprio e aos seus bens, de imunidade de jurisdição junto dos tribunais de um outro Estado. ARTIGO 6º Modalidades para garantir a imunidade dos Estados 1 – Um Estado garante a imunidade dos Estados prevista no artigo 5º abstendo-se de exercer a sua jurisdição num processo judicial instaurado nos seus tribunais contra outro Estado e, para esse fim, assegurará que os seus tribunais determinem oficiosamente que a imunidade desse outro Estado prevista no artigo 5º seja respeitada. 21 2 – Um processo judicial instaurado num tribunal de um Estado será considerado como tendo sido instaurado contra um outro Estado se esse outro Estado: a)For citado como parte nesse processo judicial; ou b)Não for citado como parte no processo judicial mas o processo visa, com efeito, afetar os bens, direitos, interesses ou atividades desse outro Estado. ARTIGO 7º Consentimento expresso para o exercício da jurisdição 1 – Um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num processo judicial num tribunal de outro Estado, relativamente a uma questão ou lide, se tiver consentido expressamente no exercício da jurisdição por esse tribunal em relação a essa mesma questão ou lide: a)Por acordo internacional; b)Por contrato escrito; ou c)Por declaração perante o tribunal ou comunicação escrita num determinado processo judicial. 2 – A aceitação por parte de um Estado no que diz respeito à aplicação da lei de um outro Estado não será interpretado como consentimento para o exercício da jurisdição pelos tribunais desse outro Estado. ARTIGO 8º Efeito da participação num processo em tribunal 1 – Um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num processo num tribunal de outro Estado se: a)Foi o próprio Estado a instaurar o dito processo; ou b)Interveio no processo ou fez alguma diligência em relação ao mérito da causa. Todavia, se o Estado demonstrar ao tribunal que não poderia ter tomado conhecimento dos fatos sobre os quais um pedido de imunidade se poderia fundamentar, senão após ter feito tal diligência, pode invocar a imunidade com base nesses fatos desde que o faça com a maior brevidade possível. 2 – Não se considera que um Estado tenha consentido no exercício da jurisdição de um tribunal de um outro Estado se intervier num processo judicial ou tomar quaisquer outras medidas com o único objetivo de: a)Invocar a imunidade; ou b)Fazer valer um direito relativo a um bem em causa no processo. 3 – O comparecimento de um representante de um Estado num tribunal de outro Estado como testemunha não será interpretado como consentimento para o exercício da jurisdição pelo tribunal. 4 – O não-comparecimento de um Estado num processo num tribunal de outro Estado não será interpretada como consentimento para o exercício da jurisdição pelo tribunal. ARTIGO 9º Pedidos reconvencionais 1 – Um Estado que instaure um processo num tribunal de outro Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição perante o mesmo tribunal relativamente a qualquer pedido reconvencional resultante da mesma relação jurídica ou dos mesmos fatos do pedido principal. 2 – Um Estado que intervier para apresentar um pedido num processo num tribunal de outro 22 Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição perante o mesmo tribunal relativamente a qualquer pedido reconvencional resultante da mesma relação jurídica ou dos mesmos fatos do pedido apresentado pelo Estado. 3 – Um Estado que apresentar um pedido reconvencional num processo intentado contra si num tribunal de outro Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição no dito tribunal relativamente ao pedido principal. PARTE III – PROCESSOS JUDICIAIS NOS QUAIS OS ESTADOS NÃO PODEM INVOCAR IMUNIDADE ARTIGO 10º Transações comerciais 1 – Se um Estado realizar uma transação comercial com uma pessoa singular ou coletiva estrangeira e, em resultado das regras aplicáveis de direito internacional privado, as divergências relativas a essa transação comercial forem submetidas à jurisdição de um tribunal de outro Estado, o Estado não pode invocar imunidade de jurisdição num processo judicial relativo à mesma transação comercial. 2 – O nº 1 não se aplica: a)No caso de uma transação comercial entre Estados; ou b)Se as partes na transação comercial tiverem acordado expressamente em sentido diverso. 3 – Quando uma empresa pública ou outra entidade criada por um Estado com personalidade jurídica autônoma e tiver a capacidade de: a)Demandar ou ser demandado em juízo; e b)Adquirir, ser proprietária, possuir ou dispor de bens, incluindo os bens que esse Estado a autorizou a explorar ou a gerir; for parte num processo judicial relacionado com uma transação comercial em que essa empresa ou entidade participou, a imunidade de jurisdição de que goza o Estado em questão não será afetada. ARTIGO 11º Contratos de trabalho 1 – Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial que diga respeito a um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que se deveria realizar, no todo ou em parte, no território desse outro Estado. 2 – O nº 1 não se aplica se: a)O trabalhador foi contratado para desempenhar funções específicas que decorrem do exercício de poderes públicos; b)....... O trabalhador for: i) Um agente diplomático, tal como definido na Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 1961; ii) Um funcionário consular, tal como definido na Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963; iii) Um membro do pessoal diplomático das missões permanentes junto de organizações internacionais, de missões especiais, ou se for contratado para representar um Estado numa conferência internacional; ou 23 iv) Uma qualquer outra pessoa que goze de imunidade diplomática; c)O processo judicial se referir à contratação, renovação do contrato ou reintegração do trabalhador; d)O processo judicial se referir à cessação unilateral do contrato ou ao despedimento do trabalhador e, se assim for determinado pelo chefe de Estado, chefe de governo ou ministro dos negócios estrangeiros do Estado empregador, esse processo puser em causa os interesses de segurança desse Estado; e)O trabalhador for nacional do Estado empregador no momento da instauração do processo judicial, salvo se a pessoa em causa tiver residência permanente no Estado do foro; ou f) O Estado empregador e o trabalhador acordaram diversamente por escrito, sob reserva de considerações de ordem pública conferindo aos tribunais do Estado do foro jurisdição exclusiva em função do objeto do processo. ARTIGO 12º Danos causados a pessoas e bens Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo relacionado com uma indenização pecuniária, em caso de morte ou de ofensa à integridade física de uma pessoa, ou em caso de dano ou perda de bens materiais causados por um ato ou omissão alegadamente atribuído ao Estado, se esse ato ou omissão ocorreu, no todo ou em parte, no território desse outro Estado e se o autor do ato ou omissão se encontrava nesse território no momento da prática do ato ou omissão. ARTIGO 13º Propriedade, posse e utilização de bens Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial para a determinação de: a)Quaisquer direitos do Estado sobre um bem imóvel, a sua posse ou utilização, ou qualquer obrigação do Estado resultante dos seus direitos, posse ou utilização desse bem imóvel situado no Estado do foro; b)Quaisquer direitos do Estado sobre bens móveis ou imóveis em virtude de uma herança, doação ou bona vacantia; ou c)Quaisquer direitos do Estado na administração de bens, tais como uma propriedade fideicomissária, o patrimônio resultante de uma falência ou os bens de uma sociedade em caso de dissolução. ARTIGO 14º Propriedade intelectual e industrial Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial relacionado com: a)A determinação de qualquer direito do Estado numa patente, modelo ou design industrial, nome comercial ou firma, marca registrada, direitos de autor ou qualquer outra forma de propriedade intelectual ou industrial que beneficie de alguma proteção jurídica, ainda que provisória, no Estado do foro; ou b)Uma alegada violação pelo Estado, no território do Estado do foro, de um direito do tipo do previsto na alínea a) pertencente a um terceiro e que se encontra protegido no Estado do foro. 24 ARTIGO 15º Participação em sociedades ou outras pessoas coletivas 1 – Um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso, num processo judicial relacionado com a sua participação numa sociedade ou outra pessoa coletiva, dotada ou não de personalidade jurídica, quando o processo diga respeito às relações entre o Estado e a sociedade ou outra pessoa coletiva, quando estas: a)Incluam outros participantes que não Estados ou organizações internacionais; e b)Estejam registradas ou tenham sido constituídas ao abrigo da lei do Estado do foro ou tenham a sua sede ou atividade principal nesse Estado. 2 – Um Estado pode, todavia, invocar a imunidade de jurisdição num processo deste tipo se os Estados interessados assim o tiverem acordado ou se as partes no diferendo assim o convieram por escrito ou, ainda, se o instrumento que criou ou rege a sociedade ou outra pessoa coletiva em questão contiver disposições para esse efeito. ARTIGO 16º Navios de que um Estado é proprietário ou explora 1 – Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado que é proprietário ou explora um navio não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial relacionado com a exploração desse navio se, no momento do fato que deu lugar à ação, o navio estava a ser utilizado para outra finalidade que não a de serviço público sem fins comerciais. 2 – O nº 1 não se aplica a navios de guerra nem a unidades auxiliares da marinha de guerra, nem a outros vasos de que um Estado seja proprietário ou explora e que são, em dado momento, utilizados exclusivamente para serviços públicos sem fins comerciais. 3 – Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial relacionado com o transporte de carga a bordo de um navio de que esse Estado é proprietário ou explora se, no momento do fato que deu lugar à ação, o navio estava a ser utilizado para outra finalidade que não a de serviço público sem fins comerciais. 4 – O nº 3 não se aplica a qualquer carga transportada a bordo dos navios a que se refere o nº 2 nem a qualquer carga de que um Estado é proprietário e que é utilizada ou destinada a ser utilizada exclusivamente com a finalidade de serviço público sem fins comerciais. 5 – Os Estados podem invocar todos os meios de defesa, prescrição e limitação de responsabilidade disponíveis para os navios privados e suas cargas e respectivos proprietários. 6 – Se, num processo judicial, surgir uma questão relacionada com a natureza pública e não comercial de um navio de que um Estado é proprietário ou explora ou da carga de que um Estado é proprietário, um certificado assinado por um representante diplomático ou por outra autoridade competente desse Estado, notificando o tribunal, fará prova da natureza do navio ou da carga. ARTIGO 17º Efeito de um acordo de arbitragem Se um Estado concluir por escrito um acordo com uma pessoa singular ou coletiva estrangeira para submeter a arbitragem as divergências relativas a uma transação comercial, esse Estado não pode invocar, salvo previsão em contrário no acordo de arbitragem, a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial relativo: a)À validade, interpretação ou aplicação do acordo de arbitragem; b)Ao processo de arbitragem; ou 25 c)À confirmação ou rejeição da decisão arbitral. PARTE IV – IMUNIDADE DOS ESTADOS RELATIVAMENTE A MEDIDAS CAUTELARES E DE EXECUÇÃO RELACIONADAS COM PROCESSOS JUDICIAIS ARTIGO 18º Imunidade dos Estados relativamente a medidas cautelares anteriores ao julgamento Não poderão ser tomadas, em conexão com um processo judicial num tribunal de outro Estado, quaisquer medidas cautelares prévias ao julgamento contra os bens de um Estado, tais como o arrolamento ou arresto, salvo se e na medida em que: a)O Estado consentiu expressamente na aplicação de tais medidas: i) Por acordo internacional; ii) Por acordo de arbitragem ou por contrato escrito; ou iii) Por declaração num tribunal ou por comunicação escrita após o litígio entre as partes ter surgido; ou b)O Estado reservou ou afetou bens para satisfação do pedido que constitui o objeto desse processo. ARTIGO 19º Imunidade dos Estados relativamente a medidas de execução posteriores ao julgamento Não poderão ser tomadas, em conexão com um processo judicial num tribunal de outro Estado, quaisquer medidas de execução posteriores ao julgamento contra os bens de um Estado, tais como o arrolamento, arresto ou penhora, salvo se e na medida em que: a)O Estado consentiu expressamente na aplicação de tais medidas: i) Por acordo internacional; ii) Por acordo de arbitragem ou por contrato escrito; ou iii) Por declaração num tribunal ou por comunicação escrita após o litígio entre as partes ter surgido; ou b)O Estado reservou ou afetou bens para satisfação do pedido que constitui o objeto desse processo; ou c)For demonstrado que os bens são especificamente utilizados ou destinados a ser utilizados pelo Estado com outra finalidade que não a do serviço público sem fins comerciais e estão situados no território do Estado do foro, com a condição de que as medidas de execução posteriores ao julgamento sejam tomadas apenas contra os bens relacionados com a entidade contra a qual o processo judicial foi instaurado. ARTIGO 20º Efeito do consentimento para o exercício da jurisdição sobre a adoção de medidas cautelares e de execução Nos casos em que o consentimento para a adoção de medidas cautelares e de execução seja necessário em virtude dos artigos 18º e 19º, o consentimento para o exercício da jurisdição ao abrigo do artigo 7º não implica que haja consentimento para a adoção de medidas cautelares e de execução. ARTIGO 21º Categorias específicas de bens 1 – As seguintes categorias de bens do Estado, nomeadamente, não são consideradas como bens 26 especificamente utilizados ou destinados a ser utilizados pelo Estado com outra finalidade que não a de serviço público sem fins comerciais ao abrigo da alínea c) do artigo 19º: a)Os bens, incluindo qualquer conta bancária, utilizados ou destinados a ser utilizados no exercício das funções da missão diplomática do Estado ou dos seus postos consulares, missões especiais, missões junto de organizações internacionais, ou delegações junto de órgãos de organizações internacionais ou de conferências internacionais; b)Os bens de natureza militar ou utilizados ou destinados a serem utilizados no exercício de funções militares; c)Os bens do banco central ou de outra autoridade monetária do Estado; d)Os bens que fazem parte do patrimônio cultural do Estado ou dos seus arquivos e que não estão à venda ou que não são destinados a serem vendidos; e)Os bens que fazem parte de uma exposição de objetos de interesse científico, cultural ou histórico e que não estão à venda ou que não são destinados a serem vendidos. 2 – O nº 1 aplica-se sem prejuízo do disposto nos artigos 18º e nas alíneas a) e b) do artigo 19º. PARTE V – DISPOSIÇÕES DIVERSAS ARTIGO 22º Citação ou notificação dos atos introdutórios da instância 1 – A citação ou notificação da instauração de um processo contra um Estado deverá ser efetuada: a)Em conformidade com qualquer convenção internacional aplicável que seja vinculativa para o Estado do foro e para o Estado em questão; ou b)Em conformidade com qualquer acordo especial em matéria de citação ou notificação entre o autor da ação e o Estado em questão se o direito do Estado do foro não o impedir; ou c)Na ausência de convenção ou acordo especial: i) Por comunicação por via diplomática ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Estado em questão; ou ii) Por qualquer outro meio aceite pelo Estado em questão, se a lei do Estado do foro não o impedir. 2 – No caso da subalínea i) da alínea c) do nº 1, considera-se que a citação ou notificação foi efetuada no momento da recepção dos documentos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. 3 – Estes documentos serão acompanhados, caso necessário, de uma tradução para a língua oficial, ou para uma das línguas oficiais, do Estado em questão. 4 – Qualquer Estado que compareça perante um tribunal numa questão de mérito num processo judicial instaurado contra si não poderá doravante alegar que a citação ou notificação não obedeceram ao disposto nos nos 1 e 3. ARTIGO 23º Julgamento à revelia 1 – Um julgamento à revelia não poderá ser realizado contra um Estado salvo se o tribunal se tiver assegurado de que: a)Os requisitos previstos nos nos 1 e 3 do artigo 22º foram observados; b)Decorreu um período de pelo menos quatro meses a partir da data em que a citação ou 27 notificação que deram início ao processo foram entregues ou consideradas como tendo sido entregues em conformidade com os nos 1 e 2 do artigo 22º; e c)A presente Convenção não o impeça de exercer a sua jurisdição. 2 – Uma cópia da sentença relativa a qualquer julgamento à revelia contra um Estado, acompanhada caso necessário de uma tradução na língua oficial ou numa das línguas oficiais do Estado em questão, deverá ser comunicada ao mesmo através de um dos meios previstos no nº 1 do artigo 22º e em conformidade com as disposições do mesmo número. 3 – O prazo para recorrer de um julgamento à revelia não será inferior a quatro meses e terá início a partir da data em que a cópia da sentença é recebida, ou considerada como tendo sido recebida, pelo Estado em questão. ARTIGO 24º Privilégios e imunidades durante um processo em tribunal 1 – Qualquer descumprimento ou recusa de cumprimento por parte de um Estado de uma decisão de um tribunal de um outro Estado intimando-o a praticar ou a abster-se de praticar um determinado ato, a produzir qualquer documento ou fornecer qualquer outra informação para os efeitos de um processo não terá quaisquer conseqüências para além das que possam resultar dessa mesma conduta em relação ao mérito da causa. Em particular, nenhuma multa ou sanção será aplicada a esse Estado em resultado do descumprimento ou de recusa do cumprimento. 2 – Um Estado não será obrigado a prestar qualquer caução ou depósito, seja qual for a sua denominação, para garantir o pagamento de custas judiciais ou outras despesas em qualquer processo em que seja réu perante um tribunal de outro Estado. PARTE VI – DISPOSIÇÕES FINAIS ARTIGO 25º Anexo O anexo à presente Convenção faz parte integral da mesma. ARTIGO 26º OUTROS ACORDOS INTERNACIONAIS Nada na presente Convenção afetará os direitos e as obrigações dos Estados Partes que decorram de acordos internacionais que tratem de matérias constantes da presente Convenção e que se apliquem nas relações entre as partes. ARTIGO 27º Resolução de diferendos 1 – Os Estados Partes deverão tentar solucionar os diferendos relativos à interpretação ou aplicação da presente Convenção através da negociação. 2 – Qualquer diferendo entre dois ou mais Estados Partes relativo à interpretação ou aplicação da presente Convenção que não for resolvido através da negociação num prazo de seis meses deverá, a pedido de qualquer desses Estados Partes, ser submetido a arbitragem. No caso de, seis meses após a data do pedido de arbitragem, os mesmos Estados Partes não tiverem chegado a um acordo sobre a organização da arbitragem, qualquer desses Estados Partes poderá levar o diferendo ao Tribunal Internacional de Justiça através de um pedido feito em conformidade com o Estatuto do Tribunal. 3 – Cada Estado Parte poderá, no momento da assinatura, ratificação, aceitação ou aprovação, ou adesão à presente Convenção, declarar que não se considera vinculado pelo nº 2 do 28 presente artigo. Os outros Estados Partes não ficarão vinculados pelo nº 2 do presente artigo relativamente a qualquer Estado Parte que tenha feito tal declaração. 4 – Qualquer Estado Parte que tenha feito uma declaração em conformidade com o nº 3 do presente artigo poderá, em qualquer momento, retirar essa declaração por notificação ao Secretário-Geral das Nações Unidas. ARTIGO 28º Assinatura A presente Convenção está aberta à assinatura por todos os Estados até 17 de Janeiro de 2007 na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. ARTIGO 29º Ratificação, aceitação, aprovação ou adesão 1 – A presente Convenção está sujeita a ratificação, aceitação ou aprovação. 2 – A presente Convenção está aberta à adesão de qualquer Estado. 3 – Os instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão serão depositados junto do Secretário-Geral das Nações Unidas. ARTIGO 30º Entrada em vigor 1 – A presente Convenção entrará em vigor no 30º dia seguinte à data do depósito do 30º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas. 2 – Para cada Estado que ratifique, aceite, aprove ou adira à presente Convenção após o depósito do 30º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão a Convenção entrará em vigor no 30º dia seguinte ao depósito por esse Estado do seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. ARTIGO 31º Denúncia 1 – Qualquer Estado Parte poderá denunciar a presente Convenção através de uma notificação escrita ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 2 – A denúncia produzirá os seus efeitos um ano após a data de recepção da notificação pelo Secretário-Geral das Nações Unidas. A presente Convenção continuará, todavia, a aplicar-se a qualquer questão de imunidades jurisdicionais dos Estados ou dos seus bens, suscitada num processo instaurado contra um Estado num tribunal de outro Estado antes da data em que a denúncia produz os seus efeitos para qualquer dos Estados em questão. 3 – A denúncia não prejudica o dever de qualquer Estado Parte de cumprir qualquer obrigação prevista na presente Convenção à qual estaria sujeito ao abrigo do direito internacional independentemente da presente Convenção. ARTIGO 32º Depositário e notificações 1 – O Secretário-Geral das Nações Unidas é designado depositário da presente Convenção. 2 – Na qualidade de depositário da presente Convenção, o Secretário-Geral das Nações Unidas notificará a todos os Estados: a)As assinaturas da presente Convenção e o depósito de instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão ou notificações de denúncia, ao abrigo dos artigos 29º e 31º; b)A data de entrada em vigor da presente Convenção, ao abrigo do artigo 30º; c)Outros atos, notificações ou comunicações relacionados com a presente Convenção. 29 ARTIGO 33º Textos autênticos Os textos da presente Convenção em árabe, chinês, inglês, francês, russo e espanhol são igualmente autênticos. Em fé do que, os abaixo assinados, estando devidamente autorizados pelos respectivos Governos, assinaram a presente Convenção, aberta à assinatura na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 17 de janeiro de 2005. ANEXO INTERPRETAÇÃO ACORDADA EM RELAÇÃO A DETERMINADAS DISPOSIÇÕES DA CONVENÇÃO O presente anexo tem o objetivo de estabelecer o entendimento atribuído às disposições a que diz respeito. ARTIGO 10º O termo “imunidade” constante do artigo 10º deve ser compreendido no contexto da presente Convenção no seu todo. O nº 3 do artigo 10º não prejudica a questão do “levantar o véu da sociedade” nem as questões relacionadas com uma situação na qual uma entidade do Estado deliberadamente falseou a sua situação financeira ou, subseqüentemente, reduziu o seu patrimônio para evitar satisfazer um pedido ou outras questões conexas. ARTIGO 11º Na alínea d) do nº 2 do artigo 11º, a referência a “interesses de segurança” do Estado empregador visa essencialmente questões de segurança nacional e de segurança das missões diplomáticas e postos consulares. Nos termos do artigo 41º da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 1961 e do artigo 55º da Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963, todas as pessoas referidas nesses artigos têm o dever de respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditador, incluindo a sua legislação laboral. Ao mesmo tempo, nos termos do artigo 38º da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 1961 e do artigo 71º da Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963, o Estado receptor tem o dever de exercer a sua jurisdição de forma a não interferir indevidamente com o desempenho das funções da missão ou posto consular. ARTIGOS 13º E 14º O termo “determinação” designa não só a averiguação ou verificação da existência dos direitos protegidos mas também a avaliação quanto à sua substância, incluindo o conteúdo, âmbito ou extensão desses direitos. ARTIGO 17º A expressão “transação comercial” abrange questões de investimento. ARTIGO 19º O termo “entidade” utilizado na alínea c) significa o Estado como uma pessoa jurídica autônoma, bem como uma unidade constitutiva de um Estado federal, uma subdivisão de um Estado, um serviço ou organismo público ou outra entidade que goze de personalidade jurídica própria. A expressão “bens relacionados com a entidade” utilizada na alínea c) deve ser entendida num sentido mais amplo do que propriedade ou posse. O artigo 19º não prejudica a questão do “levantar o véu da sociedade” nem as questões relacionadas com uma situação na qual uma entidade do Estado deliberadamente falseou a sua situação financeira ou, subseqüentemente, reduziu o seu patrimônio para evitar satisfazer um pedido ou outras questões conexas.