Departamento de Microbiologia Instituto de Ciências Biológicas Universidade Federal de Minas Gerais http://www.icb.ufmg.br/mic/diaadia Cultura de Células Introdução A cultura de células se refere à propagação de células em ambientes controlados, artificiais ou não. De uma forma geral, qualquer organismo vivo é formado por células (exceto os vírus), seja ele uni ou multicelular. O termo “cultura de células” poderia então abrangir quaisquer destes organismos, no entanto, na prática ele é utilizado principalmente para cultura de células eucarióticas de organismos multicelulares, especialmente animais. A sua origem está intimamente relacionada com a origem das culturas de tecidos e órgãos. O desenvolvimento da cultura de tecido iniciou no final do século XIX, quando Roux demonstrou que células embrionárias de pinto (Gallus gallus) podiam ser mantidas vivas em solução salina, fora do organismo animal. Desde então vários pesquisadores contribuíram para o conhecimento e manutenção in vitro das células, como pode ser observado na Tabela 1. Porém foi apenas na metade do século XX, devido à adoção do uso de antibióticos nos meios de cultura, que a cultura de tecido pode ser ampla e continuamente utilizada e se tornou uma técnica comum de laboratório. A substituição dos modelos animais ou ovos embrionados de galinha pela cultura de células, a partir da década de 50, permitiu à virologia um grande avanço nos estudos de vírus animais, pois proporcionou um sistema mais fácil, rápido e barato para realização de ensaios. Hoje, mesmo com técnicas moleculares avançadas, ainda utilizamos o cultivo celular no estudo de vírus. Os ensaios mais comuns são os de titulação de vírus, multiplicação e isolamento. O cultivo de células, além de ter sido utilizado para o estudo dos vírus, tem sido utilizado para estudos fisiológicos, mecanismos de ação de drogas, resposta imune, sinalização celular, produção de vacinas, entre muitos outros. Contudo, a descoberta de células pluripotentes ou células tronco (stem cells) abriu novas perspectivas para sua utilização na Medicina Regenerativa. A produção de linhagens celulares específicas para transplantes é a aplicação terapêutica mais promissora das células tronco. O objetivo maior é dirigir a diferenciação da célula tronco para reparar tecidos doentes ou injuriados, por exemplo, células do músculo cardíaco, células pancreáticas para a produção de insulina, células hepáticas, células neurais e mesmo células para tratamento de algumas formas de câncer. A eliminação do HIV de paciente foi descrita pela primeira vez após tratamento com células de medula de paciente resistente ao HIV, abrindo novas perspectivas para o tratamento (New England J. Med., fevereiro 2009). O cultivo de células deve ser realizado em condições assépticas e um dos grandes desafios de se cultivar células in vitro é reproduzir as condições nutricionais encontradas in vivo. Desta forma, várias formulações de meios de cultura vêm sendo desenvolvidas a fim de simular as condições encontradas no tecido original. Os meios para cultura de célula precisam garantir o fornecimento de aminoácidos, vitaminas, proteínas e sais orgânicos e outros componentes essenciais para a sobrevivência de cada tipo celular. Além disso, o meio de cultura deve garantir condições físicoquímicas, como pH e osmolaridade adequadas. Os meios de cultura devem apresentar um sistema de tamponamento para garantir a manutenção do pH na faixa apropriada para o tipo de linhagem celular. Cultura de Ceélulas http://www.icb.ufmg.br/mic/diaadia 1 Tabela 1 Marcos históricos do desenvolvimento da cultura de tecidos. Adaptado de Molecular Biology of the Cell, 4ª edição. Ano Evento 1885 Roux mostrou que células de embrião de galinha podiam ser mantidas vivas em solução salina, fora do organismo animal. – Manutenção de tecido ex vivo. 1907 Harrison cultivou cordão nervoso de anfíbio em coágulo linfático para demonstrar que axônios são produzidos como extensão de células nervosas únicas. – Crescimento na presença de fluidos do organismo. 1910 Rous induziu um tumor usando um extrato filtrado de células tumorais de galinhas, mostrado posteriormente que continha um vírus de RNA (Rous sarcoma virus). – Estabelecimento de linhagem transformada. 1913 Carrel mostrou que células podem crescer por longos períodos em cultura desde que “alimentados” regularmente em condições assépticas. 1948 Earle e colaboradores isolaram células da linhagem L e mostraram que elas formavam clones em culturas de tecido. – Seleção clonal. 1952 Gey e colaboradores estabeleceram uma linhagem contínua de células derivada de um câncer de cérvix humano, que mais tarde se tornou conhecida como linhagem HeLa. 1955 Eagle fez a primeira investigação sistemática dos requerimentos nutricionais essenciais de células em cultura e descobriu que células animais podiam se propagar em uma mistura de pequenas moléculas suplementadas com uma pequena proporção de proteínas séricas. 1956 Puck e colaboradores selecionaram mutantes de culturas de células HeLa com necessidades de crescimento alteradas. – Manipulação das linhagens. 1961 Hayflick e Moorhead mostraram que fibroblastos humanos em cultura morriam depois de um número determinado de divisões celulares. Kato e Takeuchi obtiveram uma planta completa (cenoura) a partir de uma única célula da raiz em cultura de tecido. 1975 Köhler and Milstein produziram o primeiro hibridoma de linhagens celulares capazes de secretar anticorpos monoclonais. 1976 Sato e colaboradores publicaram o primeiro de uma série de trabalhos mostrando que diferentes linhagens celulares necessitam de diferentes misturas de hormônios e fatores de crescimento para crescerem em um meio sem soro. 1977 Wigler e Axel e colaboradores desenvolveram um método eficiente para introdução de genes de cópia única de mamíferos em culturas de células, adaptando um método anterior desenvolvido por Graham e van der Eb. 1986 Martin e Evans e colaboradores isolaram e cultivaram células tronco pluripotentes de embrião de camundongo. 1998 Thomson e Gearhart e colaboradores isolaram células tronco embrionárias humanas. Podemos dividir os cultivos celulares em três tipos: cultivo primário, cultivo secundário e linhagem contínua. Na Tabela 2 são apresentadas as principais características de cada tipo. No Cultivo primário as células são diplóides e foram extraídas de órgãos ou tecidos. Em função de sua origem, as células geralmente são muito sensíveis às infecções pelos vírus da espécie do tecido. Elas são obtidas pela dispersão com tripsina e são capazes de multiplicar por 3 a 20 passagens in vitro. No Cultivo secundário as células são ainda diplóides, porém sofreram algumas modificações no seu genoma que permitem a sua passagem de 60 a 80 subcultivos in vitro. As células de Linhagens contínuas são células heteroplóides, com números bastantes irregulares de cromossomos, com permissividade variável para as várias espécies de vírus, porém capazes de serem propagadas in vitro por números indefinidos de passagens. Cultivo de Células http://www.icb.ufmg.br/mic/diaadia 2 Tabela 2 Principais características dos três tipos de cultivos de células. Cultivo primário Cultivo Secundário Linhagem contínua Nº subcultivos 3 a 20 40 a 80 infinito Nº cromossomos 2n 2n maior que 2n Morfologia Semelhante ao tecido original Semelhante ao tecido original Difere do tecido original Índice metabólico Baixo Médio Alto Nº nucléolos 1 1 4a6 Produção de vacina Sim Sim Depende da origem Cultivo primário de embrião de galinha Cultivo primário de células amnióticas humanas Células originárias de prepúcio humano (FS4) Células de pulmão de embrião humano (WI38) Linhagem de células HeLa, originária de um tumor de cérvix uterino, cujo nome tem as iniciais da paciente de onde foi retirado (Henrietta Lacks) Exemplos Referências TORTORA, Gerard J.; FUNKE, Berdell R.; CASE, Christine L. Microbiologia. 10.ed. Porto Alegre : Artmed, 2011. JAWETZ; MELNICK;ADELBERG.Microbiologia médica. 25.ed. Rio de Janeiro : McGrawHill Interamericana do Brasil Ltda, 2012. MURRAY, Patrick R; ROSENTHAL, Ken S; PFALLER, Michael A. Microbiologia médica. 6. ed. 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