Aborto: um crime de 10 mil mulheres1 1 Informações coletadas e organizadas com o apoio de grupos, redes, articulações da sociedade civil: Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, Comissão de Cidadania e Reprodução, Rede Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, Articulação de Mulheres Brasileiras, Marcha Mundial de Mulheres, CLADEM, Cfemea, Themis, Antígona, IPAS. O apoio de líderes do movimento de mulheres de Campo Grande tem sido essencial para informar e sensibilizar a sociedade brasileira, regional e mundial sobre a problemática local ainda em curso. DOS FATOS2 A TV Morena (afiliada local da Rede Globo) realiza uma reportagem, com câmera oculta, sobre a Clínica de Planejamento Familiar de Campo Grande onde supostamente seriam realizados abortos não permitidos legalmente. A Clínica funcionava há mais de 20 anos na cidade e era publicamente conhecida. Tinha seu registro regular no Conselho Regional de Medicina. 10 de abril de 2007 O Jornal da Globo exibe a reportagem realizada pela TV Morena e a notícia ganha repercussão nacional. 11 de abril de 2007 Instaura-se inquérito policial para averiguação dos fatos noticiados. 12 de abril de 2007 A delegacia de polícia solicita e recebe autorização judicial para realizar busca domiciliar na Clínica médica. 12 de abril de 2007 Os parlamentares Luiz Carlos Bassuma (PT/BA), Gilvado de Sá Gouveia Carimbão (PSB/AL) ambos integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida - Contra o Aborto e Jaime Ferreira Lopes, do Movimento em Defesa da Vida - Brasil sem Aborto, entregaram uma representação ao Procurador-Geral de Justiça de Mato Grosso do Sul solicitando abertura de processo criminal contra a médica proprietária da clínica. 13 de abril de 2007 A polícia efetua a busca e apreensão de objetos e instrumentos na Clínica e apreende 04 gavetas contendo as fichas das pacientes e várias pastas com exames médicos das pacientes, além de mais 74 fichas de pacientes. A relação dos nomes das pacientes e suas fichas médicas são apensadas ao inquérito policial. 13 de abril de 2007 A Procuradora-Geral de Justiça nomeia os promotores Paulo Cezar dos Passos e Luciana do Amaral Nagib Jorge para acompanharem as investigações criminais. 2 Carmen Hein de Campos, preparou este material de divulgação. 2 10 de julho de 2007 O Ministério Público Estadual oferece denúncia contra a médica, oito funcionárias da clínica, 1 funcionário e 16 pacientes, totalizando 26 pessoas. As denúncias referem-se a supostos abortos realizados em 2007 e foram feitas com base em fichas médicas apreendidas durante a busca na Clínica. 5 a 9 de maio de 2008 Visita de grupo técnico formado por Margareth Arilha ( CCR), Carmen Campos, Rosa de Lourdes ( Rede Feminista Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos) e Natália Mori ( Cfemea). Visitam e diialogam com líderes do movimento de mulheres, autoridades governamentais, associações de classe, advogados, e outras/os envolvidas/os no episódio, organizando informações e identificando estratégias de ação que poderiam ser executadas para garantir os direitos humanos das mulheres envolvidas no episódio. Maio de 2008 Várias organizações feministas publicam nota de apoio às mulheres em jornal local. 16 de maio de 2008 O Conselho Regional de Medicina cassa o registro da médica proprietária da clínica. Maio de 2008 O movimento de mulheres local encaminha ofício á Ordem dos Advogados do Brasil, seção Mato Grosso do Sul, solicitando apoio às mulheres processadas. 30 de maio de 2008 O Conselho da Ordem dos Advogados/MS analisando ofício do movimento de mulheres local decide “continuar estudando o assunto”. 18 de junho de 2008 A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados realiza audiência pública sobre o caso de Mato Grosso do Sul e não se posiciona em defesa dos direitos das mulheres. 30 de julho de 2008 Várias entidades apresentam Representação ao Conselho Federal de Medicina contra o Conselho Regional de Medicina/MS em virtude de sua omissão em proteger o sigilo e a confidencialidade médica das pacientes. 18 de agosto de 2008 O Corregedor do Conselho Federal de Medicina Pedro Paulo Magalhães Chacel responde à representação interposta pelas entidades dizendo que o Conselho Federal de Medicina não pode agir porque o aborto é crime e deve ser investigado pelas autoridades. 3 DA OMISSÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS A omissão do Conselho Regional de Medicina Segundo o Presidente do Conselho Regional de Medicina, a entrevista da TV Globo foi o que desencadeou o processo disciplinar no Conselho. O Presidente informou que a médica já havia respondido por 4 processos de ética no Conselho sendo que em dois foi absolvida e em dois houve uma censura pública, mas no entanto, não houve prova da prática de aborto ilegal. Em virtude das novas denúncias, o CRM suspendera, temporariamente, o exercício profissional da médica. Durante a visita, a Comissão informou ao Presidente do CRM/MS que a imprensa noticiara a apreensão e exposição das fichas médicas. O presidente disse não ter tomado conhecimento de que as fichas médicas ficaram expostas à curiosidade popular. Na ocasião explicitou a posição de que nos casos em que há envolvimento de Poder Judiciário, é necessário a indicação de perito médico com a finalidade de acompanhar o caso em questão. Referência foi feita á portaria do CFM que garante o direito ao sigilo médico. No julgamento do mérito do processo disciplinar ocorrido em 16 maio de 2008 o plenário do CRM cassou o registro da médica e decidiu não questionar o processo porque entendeu não haver, de parte das autoridades desanteção ao sigilo médico. Decidiu ainda não solicitar o recolhimento das fichas porque já havia sido apreendidas. No entanto, enviou ofício à delegada e ao juiz solicitando proteção à intimidade das pessoas envolvidas. A omissão do Conselho Federal de Medicina O Conselho Federal de Medicina em resposta à representação interposta por várias entidades por não se preocupar devidamente com o fato de que as fichas médicas das pacientes foram anexadas ao processo e ficaram expostas à curiosidade pública, entendeu que não podia agir no caso, considerando que o aborto é crime e deve ser investigado pela autoridade policial. A omissão da Ordem dos Advogados do Brasil Apesar da solidariedade expressada pelo Presidente e pela a primeira-vice presidente às mulheres processadas, a OAB/MS não realizou nenhuma ação concreta em defesa das mulheres. Informaram terem recebido a carta do movimento de mulheres solicitando o apoio da entidade e a encaminharam para o Conselho da entidade. O Conselho da Ordem se reuniu no dia 30 de maio para deliberar sobre o pedido de apoio formal da entidade às mulheres decidiu continuar estudando o assunto. A proposta de apoio não foi mais analisada pelo Conselho. A omissão do Conselho Regional de Psicologia O Presidente do Conselho Regional de Psicologia acompanhou o caso apenas pela imprensa. A psicóloga que atendia na clinica atualmente respondeu a processo ético no Conselho e teve seu registro cassado. O Presidente do CRP disse que desconhecia a exposição pública das fichas médicas assim como desconhecia haver nas fichas um campo específico para o detalhamento das “condições psicológicas” da paciente. 4 O Conselho não tomou nenhuma providência para fazer cessar a exposição dos prontuários psicológicos das pacientes. Omissão das Secretarias Municipal e Estadual de Saúde Tanto a Secretaria Municipal de Saúde e a Secretaria Estadual de Saúde não oferecem serviços de abortamento legal, conforme previsto na Norma Técnica do Ministério da Saúde. A ausência de serviços públicos obriga às mulheres a recorrerem a abortamentos inseguros para a realização de abortamento legal, colocando suas vidas em risco. O Estado do Mato Grosso do Sul é responsável por essa omissão e pelo risco de vida a que submete às mulheres que procuram serviços inseguros para a realização do abortamento a quem tem direito. 5 DOS DIREITOS VIOLADOS As pacientes da Clínica tiveram vários direitos fundamentais violados, tais como: O DIREITO À DIGNIDADE - A dignidade em nosso ordenamento jurídico tem três dimensões: é um valor fundante do Estado Democrático de Direito, é um princípio fundamental e tem o caráter de direito fundamental. É princípio fundante do ordenamento jurídico e constitiu o pressuposto essencial da consagração e efetividade do sistema de garantias fundamentais, do qual derivam e erradiam os direitos fundamentais. A dignidade humana é critério relevante para a autonomia, isto é, a possibilidade de autodeterminação; para a intagibilidade de bens não patrimoniais, como a integridade física e moral. A dignidade humana assegura às mulheres o direito à autonomia e integridade moral e o dever de ter esses direitos respeitados pelos poderes públicos e particulares. A criminalização do aborto viola o direito à dignidade porque impede o exercício da autonomia reprodutiva, o direito de decidir sobre sua saúde, o direito de ser ou não ser mãe, o direito à identidade pessoal e o direito à sexualidade sem interferências de terceiros. O DIREITO À VIDA E À SAÚDE - O direito à vida é um direito fundamental diretamente conectado ao direito à saúde ambos consagrados em nossa Constituição e em diversos tratados internacionais de direitos humanos. O direito à saúde não significa apenas o direito à saúde física, ou de ser saudável, mas o direito à saúde mental que se extende à saúde reprodutiva, impondo ao estado o dever de assegurar o acesso a serviços de saúde de qualidade e sem custo a todas as mulheres. O direito à vida e à saúde são violados porque a criminalização do aborto ou a ameaça da punição empurra as mulheres para a clandestinidade e portanto, as impede de acessar os serviços de saúde, coloca suas vidas em risco desnecessariamente, viola o direito de tomar decisões livre de interferência de terceiros e livre de todas as formas de coação e violência. O direito à saúde é reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, pela Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, dentre outros tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. No Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no artigo 12: Os Estados-partes reconhecem o direito de toda a pessoa gozar das melhores condições possíveis de saúde física e mental. O DIREITO À AUTONOMIA REPRODUTIVA - O direito à autonomia deriva diretamente do direito à dignidade e significa a capacacidade de decidir, livremente, sobre como, quando e quantos filhos ter, ou seja, sobre ser ou não ser mãe. Implica no direito de informação e de escolha sobre planejamento familiar, métodos contraceptivos 6 bem como seu acesso. A criminalização do aborto impede o pleno exercício desse direito porque interfere diretamente no direito de autodeterminação das mulheres. O DIREITO À NÃO DISCRIMINAÇÃO - O direito de não sofrer discriminação é decorrente do direito à igualdade constitucional e realização material desse direito. No campo da saúde reprodutiva significa ter acesso a serviços de saúde em igualdade com os homens e não ser penalizada por procedimentos médicos que só as mulheres necessitam. Implica, ainda, em acesso igualitário a aos serviços de saúde, independentemente de condição econônomica ou geográfica. O DIREITO DE NÃO SER SUBMETIDO À TORTURA OU TRATAMENTO DESUMANO, CRUEL E DEGRADANTE - A imposição de uma gravidez não desejada viola o direito à dignidade, autonomia reprodutiva, integridade mental e o direito de não ser submetida à tortura ou tratamento desumano, cruel ou degradante. A imposição de gravidez ás mulheres é internacionalmente reconhecida como sofrimento mental equivalente à tortura, como decidido pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU no caso K.L v. Peru.3 Da mesma forma, penalizar as mulheres através de medidas tais como “prestação de serviços à comunidade em creches para que mulheres reflitam sobre os filhos que poderiam ter tido” significa submetê-las à sofrimento mental equivalente à tortura. 3 Communication No. 1153/2003 : Peru. CCPR/C/85/D/1153/2003. 7 DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO BRASIL Do dever de cumprim com as obrigações internacionais de direitos humanos O Brasil é signitário de inúmeras declarações e tratados de direitos humanos que integram a ordem jurídica constitucional, por força do parágrafo 2º do artigo 5º tais como: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos, Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Declaração e Plataforma de Pequim e de Viena, se onde comprometeu dentre outras medidas, a assegurar o direito e o acesso a serviços de saúde e particularmente, de revisar a legislação punitiva do aborto. O Brasil ao ratificar inúmeros instrumentos internacionais de direitos humanos das mulheres assumiu a responsabilidade internacional de proteger, respeitar e fazer cumprir os direitos humanos das mulheres. A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres obriga o governo brasileiro a tomar todas as medidas para eliminar a discriminação contra as mulheres. O artigo 1º da Convenção define a discriminação contra as mulheres: “Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dosdireitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.” O artigo 12 da mesma Convenção dispõe: 1. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar. O Comitê Cedaw4 ao comentar o direito à saúde expresso no artigo 12 da Convenção afirmou, na sua Recomendação Geral No. 19, que o acesso à saúde é um direito básico. O item 14 da Recomendação dispõe que a obrigação de respeitar os direitos requer que os estados se abstenham de tomar medidas que possam obstruir os direitos das mulheres, inclusive leis que criminalizam procedimentos médicos que só as mulheres necessitam e que perseguem as mulheres que buscam tais procedimentos, como é o caso do aborto. A saúde reprodutiva é definida como sendo o bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade ou doença em todas as questões relacionadas ao 4 O Comitê Cedaw é responsável pelo monitoramento do cumprimento da Convenção pelos países signatários. 8 sistema reprodutivo, suas funções e seus processos. A saúde reprodutiva implica, portanto, na capacidade das pessoas de ter uma vida sexual satisfatória e na capacidade de reproduzir e decidir livremente quando, como e com que frequência. Plataforma de Ação de Pequim, parágrafo 94 (1995). Os direitos reprodutivos incluem os direitos humanos reconhecidos em leis nacionais e internacionais e outros documentos de consenso de direitos humanos e compreendem o direito básico dos casais e das pessoas de decidir livre e responsavelmente quando, como e quantos filhos ter. Plataforma de Ação de Pequim, parágrafo 95 (1995). O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em suas Observações Conclusivas sobre o primeiro relatório do Estado brasileiro, analisado no seu 30º período de sessões, entre 05 e 23 de maio de 2003, expressou: “Preocupação com as altas taxas de mortalidade materna devido a abortos ilegais, particularmente nas regiões ao Norte do país, onde as mulheres têm acesso insuficiente aos equipamentos de saúde pública” (parágrafo 27). E, ainda, recomendou ao Estado “que empreenda medidas legislativas e outras, incluindo a revisão de sua legislação atual, a fim de proteger as mulheres dos efeitos de abortos clandestinos e inseguros e assegure que as mulheres não recorram a tais procedimentos prejudiciais”. Solicitou, também que o Estado, em seu próximo relatório periódico, forneça “informações detalhadas, baseadas em dados comparativos, sobre a mortalidade materna e o aborto no Brasil” (parágrafo 51). O Comitê CEDAW que monitora a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, quando da apresentação do Sexto Relatório Brasileiro5 apresentado na 39ª Sessão do Comitê, em 10 de agosto de 2007, manifestou: Preocupação com o alto número de abortos inseguros, as punições impostas às mulheres que abortam e as dificuldades para acessarem serviços de saúde em virtude das complicações decorrentes do abortamento inseguro. (Observações Conclusivas do Comitê CEDAW, 2007). A norma proibitiva do aborto viola compromissos internacionais assumidos pelo estado brasileiro de garantir o acesso à saúde das mulheres e, particularmente, o de rever a legislação punitiva, o que sujeita o país à responsabilidade internacional. 5 Relatório Brasileiro apresentado ao Comitê CEDAW em 10 de agosto de 2007 na 39ª Sessão. Nações Unidas, CEDAW/C/BRA/CO/6 . 9