A judicialização do direito fundamental à saúde e a necessidade da adoção de critérios preestabelecidos* Lucélia de Sena Alves** RESUMO: O crescente número de ações judiciais que visam o fornecimento de medicamentos aos indivíduos sugere a insuficiência das políticas públicas empregadas para a efetivação do direito fundamental à saúde. Entretanto, para que essa intervenção judicial se realize de forma adequada, de modo a atender aos reais anseios da população, com observância do caráter universal e igualitário do direito à saúde, faz-se necessário a adoção de critérios preestabelecidos pelos julgadores quando diante do caso concreto. O propósito desse artigo é, portanto, fornecer uma análise crítica de acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, considerados paradigmáticos, que visavam à tutela individual do direito à saúde em face da Administração Pública, a fim de propor limites a essa atuação judicial. Palavras-chave: Judicialização. Saúde. Políticas Públicas 1 INTRODUÇÃO O direito à saúde é um dos direitos fundamentais elencados no texto constitucional brasileiro e está diretamente ligado aos bens jurídicos mais caros aos seres humanos, quais sejam, a dignidade e a vida. Em razão disso, a não efetivação desse direito pode gerar graves consequências, podendo, muitas vezes, culminar em morte. O aumento do número de ações judiciais que buscam a tutela desse direito1 sugere a ineficiência dos Poderes Legislativo e Executivo em efetivá-lo, fazendo com que o Judiciário assuma, quando provocado, essa responsabilidade, fenômeno este denominado judicialização da saúde. Todavia, a atuação judicial, especialmente quando se refere a tutelas individuais, * Texto já publicado In SILVA, Adriana Campos; SILVA, Carla Ribeiro Volpini. Governança Pública, Atuação Judicial & Direitos Humanos. Vol. 5. Belo Horizonte: Initia Via, 2012, p. 23-40 e na Revista Juris Plenum, Ano IX, nº 53, jul./ago. 2013, p. 105-116. ** Mestranda em Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna. Professora de Direito Processual Civil da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato. Advogada. 1 O Conselho Nacional de Justiça apurou que, em 2010, havia 240.980 demandas ligadas à saúde no Brasil. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/relatorio_atualizado_da_resolucao107.pdf. Acesso em 04 nov. 2012. 2 não pode ocorrer de forma indiscriminada, sob pena de ocasionar, numa análise prospectiva, prejuízos à coletividade. Assim, o principal objetivo da pesquisa desenvolvida é fornecer uma análise crítica de acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, considerados paradigmáticos, que visavam tutelar de forma individual o direito à saúde em face da Administração Pública, a fim de propor limites a essa atuação para que o direito da coletividade não corra risco de frustração. 1. O direito à saúde na Constituição de 1988 e sua aplicabilidade imediata A Constituição de 1988 foi, sem sombra de dúvidas, a constituição brasileira mais generosa em termos de reconhecimento de direitos fundamentais e, essa generosidade, conforme leciona Norberto Bobbio, também apresenta barreiras a serem transpostas quanto à sua efetivação, uma vez que, para tanto, é necessária uma atuação positiva do Estado, que geram custos.2 Essa inflação de direitos gera polêmica na doutrina e na jurisprudência, e é considerada por alguns como ingênua, chegando muitos a afirmar, inclusive, que “a Constituição não cabe no PIB”.3 Porém, a constituição vigente foi a primeira a estabelecer o direito à saúde como um direito fundamental4, classificando-o, também, como um direito social em seu art. 6º e, por conta disso e do disposto em seu parágrafo 1º do art. 5º, possui aplicabilidade imediata. Mais adiante, em um capítulo específico sobre a ordem social (arts. 196 e seguintes), estabelece que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”, garantido o “acesso universal e igualitário” aos seus titulares. A utilização da expressão “direito de todos e dever do Estado” pelo constituinte cria, necessariamente, uma obrigação de fazer para o poder público, qual seja, a de concretizá-lo. Essa concretização, conforme leciona Maria Paula Dallari Bucci, é realizada mediante as políticas públicas, que consistem “num conjunto de medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública ou, na ótica dos juristas, concretizar um direito.”5 2 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 72. 3 Apud BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública. In GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo: estudos e pareceres. 2ª Edição. São Paulo: DPJ Editora, 2009, p. 04. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a reforma do Estado. Salvador, n. 11, 2007, p. 04. Disponível em: < http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31953-37383-1-PB.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012. 5 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública. In GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo: estudos e pareceres. 2ª Edição. São Paulo: DPJ Editora, 2009, p. 14. 3 Devido à ampla abrangência de seu enfoque conceitual, o direito à saúde assume dupla dimensão: uma negativa e uma positiva. 6 A dimensão negativa está relacionada com o dever de não interferir na saúde de alguém, preservando-a. Já a dimensão positiva ou prestacional, implica no fomento através de ações que visam efetivar a saúde da população, de modo individual ou coletivo, tonando-a credora subjetiva material ou normativa desse direito.7 É certo que as políticas públicas são de competência originária dos Poderes Legislativo e Executivo, sendo o primeiro responsável pela criação de normas que irão definir quais serão as políticas públicas a serem adotadas, regulamentando os seus critérios de execução, e o segundo é incumbido de executar essas políticas, materializando aquilo que o Poder Legislativo idealizou. No caso da saúde, o legislador constituinte estabeleceu a política pública incumbida de implementá-lo, dispondo em seu art. 198 que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, ou seja, o Sistema Único de Saúde. Entretanto, a análise do cotidiano revela que, não raras vezes, o indivíduo, diante da inexistência de políticas públicas, ou quando as mesmas se demonstram insuficientes para atender aos anseios da população, buscam através de ações individuais, coletivas, individuais com efeitos coletivos ou pseudoindividuais8, junto Poder Judiciário, a tutela de seus direitos constitucionalmente assegurados. No período compreendido entre o ano de 2000 a 2008, por exemplo, segundo dados obtidos junto ao Sistema de Pesquisa em Direito Sanitário da Escola de Saúde Pública de 6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª edição. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2012, p. 326-27. 7 SARLET apud FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 88. 8 Essa classificação é dada por Ada Pellegrini Grinover, em texto ainda não publicado: “As ações coletivas, por terem objeto indivisível e porque os efeitos da sentença atuam erga omnes (embora com algumas exceções), veiculam pretensões também coletivas, relativas à tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, inserindo-se nas ideias de universalidade e igualdade de tratamento próprias do controle jurisdicional de políticas públicas, em geral, e no campo da saúde, em especial.(...) No outro extremo, encontramos as ações tipicamente individuais, em que a pretensão também é individual, veiculando um direito subjetivo.(...) Mas existe também um plano intermediário, em que a ação é ajuizada como sendo individual, mas na verdade, em função do pedido, os efeitos da sentença podem acabar atingindo a coletividade. Assim se um indivíduo, invocando seu direito subjetivo, afirma ter direito a uma prótese importada, que está excluída do seu plano de saúde, pedindo a revisão de uma cláusula contratual, de duas uma: ou o juiz só determina que a prótese lhe seja fornecida, e estará tratando a ação como individual; ou determina que a cláusula contratual seja revista, para beneficiar a todos, tratando o pedido individuai como tendo efeitos coletivos. Neste segundo caso, teremos uma ação individual com efeitos coletivos. (...) E há ainda uma outra hipótese, de ações que denominamos pseudoindividuais, porque o pedido, embora baseado num direito subjetivo, na verdade só pode beneficiar a todos.” 4 Minas Gerais (SPDiSa), o número de demandas judiciais relativas ao direito sanitário vem aumentando significativamente, conforme demonstra o quadro a seguir: Número de demandas Evolução do número de demandas junto ao TJMG em Estado de Minas Gerais figura o polo passivo 1200 1000 800 600 400 200 0 2000 2001 2002 2003 Acerca da legitimidade da judicialização da saúde em âmbito coletivo (controle de políticas públicas (judicial review), leciona Ada Pellegrini Grinover: “(...) nada mais representa do que um controle de constitucionalidade, no sentido de verificar se a política pública é adequada aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, fixados no art. 3º da Constituição, e aos direitos fundamentais prestacionais enumerados no art. 6º, implementando-a em caso de omissão ou corrigindo-a em caso de inadequação.”9 Compartilhando desse entendimento, afirma-se que, na atualidade, o papel do julgador não mais se limita ao modelo bouche de la loi, já que assume o papel de verdadeiro protagonista da arena pública10, afastando a lesão ou a ameaça de lesão aos direitos fundamentais. 3. Os casos paradigmáticos nos tribunais superiores 9 Op cit. 10 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 31. 5 A fim de apresentar as principais discussões acerca da judicialização do direito à saúde, foram analisados alguns acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal e selecionados dois casos que se adota como paradigmáticos do entendimento daqueles tribunais acerca do assunto, para posteriormente pontuar e analisar de forma crítica os argumentos e fundamentos decisórios utilizados pelos julgadores. O primeiro caso a ser analisado é o do mandado de segurança nº 24.197 - PR (2007/0112500-5), interposto pelo Ministério Público do Estado do Paraná, visando reformar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Paraná, que denegou a segurança a paciente portador de hepatite C que demandava em face do Município de Curitiba e do Estado do Paraná visando o fornecimento de medicamento para o seu tratamento. A denegação da segurança ao paciente pelo tribunal, em segunda instância, se deu em virtude da não comprovação de que este preenchia os requisitos instituídos pelo Ministério da Saúde, através da Portaria nº 863/2002, a qual restringia o fornecimento do medicamento pleiteado pelo requerente (Interferon Peguilado) somente a pacientes que ainda não tinham sido tratados e tinham diagnóstico do genótipo 1 da doença, já que o requerente era portador do genótipo 3. O então Ministro Luiz Fux11, relator do acórdão, fundamentou o seu voto no sentido de concessão da segurança pleiteada, sob o argumento de que os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, e que em um Estado Democrático de Direito a proteção à dignidade da pessoa humana deve superar quaisquer espécies de restrições legais. O referido ministro também sustentou a desnecessidade de esgotamento da via administrativa como requisito para o pleito judicial e a suficiência de relatório médico particular para a comprovação da necessidade e da adequação do tratamento pleiteado. Já o ministro revisor, Teori Albino Zavascki12, pediu vista e, posteriormente, proferiu o seu voto denegando a segurança, sustentando que não cabe ao julgador formular e executar políticas públicas em qualquer área, inclusive na saúde, já que essa função estaria reservada ao legislador e ao administrador, que detém de informações próprias para o emprego destas em conformidade com as prioridades orçamentárias. A partir dessa afirmação, o ministro ressalvou que a atuação judicial deve ocorrer somente nos casos em que inexiste a referida política. Ao final, concluiu que, no caso concreto, a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná foi acertada, já que o medicamento de alto custo pleiteado havia sido rotulado como ineficaz 11 Atualmente Ministro do Supremo Tribunal Federal, empossado em 03/03/2011, em razão da aposentadoria do Ministro Eros Grau. 12 Recém empossado no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, em razão da aposentadoria do Ministro Antonio Cezar Peluso. 6 pela comunidade científica e pelo Ministério da Saúde para o tratamento da doença que portava o paciente. Após esse voto, o Ministro Benedito Gonçalves também pediu vista, decidindo, posteriormente, pela concessão da segurança, visando, não necessariamente, curar o paciente, mas sim, prolongar a sua vida, fazendo maioria para a conclusão do julgamento, tendo sido vencido o voto do ministro revisor. O segundo caso a ser analisado é o do agravo regimental nº 2.944- PB, interposto pelo Estado da Paraíba contra a decisão proferida pela Ministra Ellen Gracie que indeferiu o pedido de suspensão e manteve a execução da liminar concedida pelo Tribunal de Justiça da Paraíba determinando o fornecimento do medicamento Viagra (citaro de sildenafil) para o tratamento de hipertensão pulmonar, julgado pelo Tribunal Pleno em 17 de marco de 2010. Alegou o recorrente, além da sua ilegitimidade passiva, que o fornecimento desses medicamentos aos recorridos afetaria o direito à saúde de outros, devido à alocação de vultosos recursos públicos a uma parcela mínima da população. O Ministro Gilmar Mendes, relator do acórdão, após uma síntese dos posicionamentos favoráveis e contrários à judicialização dos direitos sociais, demonstrandoos através de argumentos doutrinários nacionais e estrangeiros, a essencialidade desses direitos, ressaltando o alto dispêndio de recursos financeiros para a sua concretização. Asseverou, ainda, que essa concretização deve ser feita através de políticas públicas efetivas e que, no caso da saúde, quando o Judiciário atua para a implementação de uma obrigação ao Executivo, o faz como fiscal de uma política pública já existente: o Sistema Único de Saúde. O ministro relator apontou as quatro principais causas da pretensão dos requerentes para a efetivação do direito à saúde através do Judiciário: (1) uma omissão legislativa ou administrativa; ou (2) de uma decisão administrativa de não fornecê-la; ou (3) de uma vedação legal, sustentando que essa vedação legal pode ser fundamentada através da Lei Federal nº 6.360/76, que estabelece que “nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”, registro esse que é concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e configura-se condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto. Entretanto, esclareceu o Ministro Gilmar Mendes que essa regra não é absoluta, citando a Lei nº 9.782/99, que permite a dispensa de registro de medicamentos adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas em saúde pública pelo Ministério da Saúde; e 4) o Sistema Único de Saúde fornece tratamento 7 alternativo, mas não adequado a determinado paciente, ou não possui nenhum tratamento específico para determinada patologia. Assim, o ministro concluiu que, a fim de tornar viável o acesso universal e igualitário às ações e prestações de saúde, é imprescindível a criação de políticas públicas que repartam os recursos orçamentários do Estado de forma mais eficiente possível frisando que, “obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada.”13 Defendeu, também, que o tratamento fornecido pelo SUS deve prevalecer em detrimento da escolha do paciente. Contudo, em casos em que inexista tratamento oferecido pela rede pública, o sustentou que o juiz poderá decidir de forma distinta, porém, deverá afastar os tratamentos puramente experimentais e não testados, por ser o referido sistema filiado à corrente da “medicina com base em evidências”, segundo a qual somente poderão ser fornecidos aqueles medicamentos e tratamentos com comprovação científica de eficácia. No caso concreto apresentado, o ministro relator não deu provimento ao recurso, fundamentando que o medicamento requerido (Viagra 50 mg), possuía registro junto à ANVISA e que a parte recorrente não questionava a eficácia ou a adequação do medicamento para o tratamento das necessidades dos pacientes, tampouco foi demonstrada a grave lesão ao direito de outras pessoas e, em contrapartida, os recorridos demonstraram a irreversibilidade dos danos a serem causados pelo indeferimento da tutela. Por fim, afirmou que a responsabilidade da prestação da saúde é solidária entre os entes federativos. Os demais ministros seguiram o entendimento do relator, reforçando possibilidade da judiciabilidade do direito à saúde, sendo que o Ministro Celso de Mello ainda ressaltou que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos à pessoa, a incapacidade de gerir recursos públicos, a falta de visão política na justa percepção, e a inoperância funcional dos gestores públicos não podem e nem devem representar obstáculos à execução do direito fundamental à saúde. 4. Análise crítica dos fundamentos das decisões estudadas Pode-se observar que a judicialização da saúde não é entendida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça como uma interferência ilegítima do 13 AgRg no Mandado de Segurança nº 2.944 – PB, p. 24. 8 Poder Judiciário nas funções dos Poderes Executivo e Legislativo, mas sim, como forma de controle de constitucionalidade das políticas públicas empregadas. No caso da saúde, não se trata de implementar políticas públicas, uma vez que essa já foi instituída mediante a criação do Sistema Único de Saúde, mas tão somente, verificar se as políticas empregadas através desse sistema são compatíveis com os preceitos constitucionais e com a real necessidade da população. Assim, a recorrente alegação de que haveria violação do princípio da separação dos poderes não se sustenta. A uma, porque o papel do Poder Judiciário (há muito) se transformou, passando da neutralidade a verdadeiro protagonista da arena pública14, acompanhando a evolução política do constitucionalismo, e a duas por conta do disposto no inciso XXXV, do art. 5º, da Constituição de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, sendo que a sua inércia, no caso de lesão ou ameaça de lesão ao direito social fundamental à saúde (de aplicabilidade imediata), configuraria verdadeira negativa de acesso à uma ordem jurídica justa. Por oportuno, ousa-se afirmar que a razão da confusão que se faz em relação à alegação de invasão de Poderes se deve, principalmente, na compreensão equivocada dos termos “Poder Executivo”, “Poder Legislativo” e “Poder Judiciário”. Por serem as funções administrativas do Estado divididas em três principais funções, não significa que elas são dotadas de poderes distintos e independentes, já que, na verdade, como afirmou o Ministro Eros Grau, no voto do agravo regimental 2.944, “o poder é uno e, quando ele se divide, deixa de ser poder”. Fábio Konder Comparato vai mais além, aduzindo que os objetivos elencados na Constituição vinculam não só os órgãos do Estado, mas também toda a sociedade civil15. No que se refere ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, nota-se que o entendimento predominante é que, em se tratando da tutela do direito à saúde, qualquer tratamento ou medicamento deve ser fornecido à pessoa que alega necessitar, de modo a 14 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 01-32. 15 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/doutrina/constitucional/23.htm>. Acesso em 20 nov. 2012. O autor leciona: “Escusa lembrar que tais objetivos são juridicamente vinculantes para todos os órgãos do Estado e também para todos os detentores de poder econômico ou social, fora do Estado. A juridicidade das normas que simplesmente declaram tais fins (as Zielnormen dos alemães), ou que impõem a realização de determinado programa de atividades - as normas propriamente programáticas -, já não pode ser posta em dúvida, nesta altura da evolução jurídica.” 9 assegurar a garantia de uma vida digna, mesmo que o referido tratamento ou medicamento não seja capaz de curá-la. Entretanto, constata-se que o entendimento do Supremo Tribunal Federal é mais criterioso, impondo alguns critérios que deverão ser observados pelo julgador, quais sejam: 1) deve ser priorizado o tratamento oferecido pelo Sistema Único de Saúde em detrimento daquele escolhido pelo paciente; 2) deve ser evitado o deferimento de fornecimento de medicamentos que não tenham eficácia comprovada pela comunidade científica; 3) os tratamentos que a comunidade científica tiver comprovado a sua ineficácia não deverão ser deferidos; e 4) no caso do fornecimento de medicamentos, devem ser deferidas as tutelas daqueles que possuam registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Em estudo apresentado por Silvia Badim Marques e Sueli Gandolfi Salari, no qual foram analisados processos judiciais para o fornecimento de medicamentos no Estado de São Paulo, de 1997 a 2004, aponta a situação atual da judicialização da saúde naquele estado: “Os discursos dos juízes subsidiaram a condenação do Estado em 96,4% dos casos analisados. O Estado foi condenado a fornecer o medicamento nos exatos moldes do pedido do autor, inclusive quando o medicamento não possuía registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (9,6% dos casos analisados). Observou-se que 100% dos processos estudados foram propostos por autores individuais; em 77,4% o autor requer o fornecimento de medicamento específico de determinado laboratório farmacêutico e; em 93,5% dos casos, o medicamentos são concedidos judicialmente ao autor em caráter de urgência, por meio de medida liminar.”16 Em outro estudo sobre o mesmo objeto Ana Luiza Chieffi e Rita Barradas Barata constataram que: “No ano 2006, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SESSP) gastou, com o cumprimento das decisões judiciais da comarca da capital, 65 milhões de Reais, para atender cerca de 3.600 pessoas. Em comparação, no mesmo ano, ela investiu 838 milhões de Reais no Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional (alto custo), atendendo 380 mil pessoas. Foram gastos aproximadamente 18 mil Reais por paciente com ações judiciais naquele ano, enquanto o Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional consumiu 2,2 mil Reais por paciente.”17 16 MARQUES, Silvia Badim; DALARI, Sueli Gandolfi. Garantia do direitos social à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. In Revista Saúde Pública, 2007; 41(1); 101-7. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v41n1/15.pdf>. Acesso em 20 nov. 2012. 17 CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e equidade. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102311X2009000800020&script=sci_arttext>. Acesso em 25 nov 2012. 10 A partir desse diagnóstico, conclui-se que a posição do Supremo Tribunal Federal, na medida em que impõe a adoção de critérios a serem observados pelos julgadores quando diante de um caso concreto que visa a tutela do direito à saúde, demonstra-se mais adequada do que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, já que reconhece a essencialidade da atuação do Poder Judiciário para a garantia da saúde e dignidade humana, sem se esquecer da finita fonte de recursos tributários do Estado que custeiam a atuação do Sistema Único de Saúde, que, caso desconsiderada, pode prejudicar a coletividade. Ademais, constata-se que, tanto o Executivo quanto o Legislativo, não estão atuando de forma a satisfazer as reais necessidades dos indivíduos. Em relação ao Legislativo, cita-se o exemplo do parágrafo 2º, do art. 198, da Constituição de 1988, acrescentado pela emenda constitucional nº 29, no qual o legislador estabeleceu que os percentuais mínimos dos recursos orçamentários de cada ente federativo a serem aplicados na saúde ficaria a cargo de Lei Complementar a ser e reavaliada a cada cinco anos. Somente em 2012 é que a referida norma foi editada.18 Durante doze anos de inércia do Legislativo, os percentuais mínimos eram aplicados segundo os critérios estabelecidos no art. 77 do ato das disposições constitucionais transitórias. Quanto ao Executivo, através de dados do ano de 2008 informados pelo Ministério da Saúde, pode-se constatar que 13 dos 27 estados da federação não cumprem com o estabelecido no art. 77, do ADCT, investindo menos do que o percentual mínimo de 12% na saúde, dentre os quais se destacam alguns dos mais populosos do país, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.19 Essa falta de investimento também está divulgada internacionalmente pela Organização Mundial da Saúde, ocupando o penúltimo lugar dos países da América Latina em investimento de seus recursos na saúde: General gov ernm ent ex pendit ure on healt h % GGE 18 Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. 19 Apud SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 27. 11 Fonte: Organização Mundial da Saúde. Nesse contexto, percebe-se que, o direito à saúde de milhares de pessoas está sendo lesado e/ou ameaçado de lesão e, sem a atuação jurisdicional, a situação poderia se agravar ainda mais. 5- Conclusões A evolução do sistema jurídico brasileiro e o novo modelo de Estado instituído pela Constituição de 1988 legitima a atuação do Poder Judiciário no que se refere ao controle constitucional das políticas públicas instituídas pelo Legislativo e pelo Executivo. Nesse sentido, em que pese a imperfeita atuação jurisdicional, seja pelo despreparo dos profissionais para lidar com as funções legiferante e executiva, seja pela ausência de cadastros universalizados para a coletivização desse tipo de ações individualizadas, a judicialização do direito à saúde, no contexto atual das políticas públicas do Sistema Único de Saúde demonstra-se ser um importante instrumento para a efetivação desse direito social fundamental, bem como para a não frustração dos objetivos da própria ordem estatal. Contudo, tendo em vista as características da universalidade e igualdade, faz-se necessário a adoção de critérios para essa atuação, com um viés coletivizado, uma vez que se trata de políticas públicas, com o auxílio de profissionais da área de saúde, administradores públicos, dentre outros profissionais, a fim de, a partir de um caso concreto, mesmo em um pleito individual, possa-se investigar se não é o caso, inclusive, de adequação e reformulação das políticas públicas até então empregadas, com o intuito de concretizar de forma satisfatória a todos o direito à saúde. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo: superação da summa divisio Direito Público e Direito Privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 12 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. 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