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DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE E PUBLICAÇÃO DA
REMUNERAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS. COMENTÁRIO A ACÓRDÃO DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Maria Sylvia Zanella Di Pietro
Professora Titular Aposentada da
Faculdade de Direito da USP
1. O direito à proteção da intimidade e da vida privada na
Constituição
O tema sugere a seguinte indagação: a publicação da remuneração
dos agentes públicos afronta o direito fundamental à proteção da
intimidade e da vida privada?
Note-se que não se indaga se a proteção da intimidade e da vida
privada constituem direito fundamental. No título já se contém essa
afirmação. E, na realidade, justifica-se essa afirmação tendo em vista que
a proteção à intimidade está inserida na Constituição, no Título II, que
trata dos direitos e garantias fundamentais.
O direito à intimidade foi assegurado pelo artigo 12 da Declaração
dos direitos individuais, embora o dispositivo não utilize a expressão.
Estabelece que “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida
privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem
ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques
toda pessoa tem direito à proteção da lei.”
No Brasil, antes da Constituição de 1988, não havia norma expressa
protegendo a intimidade ou a vida privada. O que se protegia, em regra,
era a inviolabilidade de domicílio e a liberdade de manifestação do
pensamento.
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A Constituição de 1988 inova ao fazer referência à intimidade, em
dois dispositivos: o artigo 5º, inciso X, estabelece que “são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”; e no artigo 5º, inciso LX, cuida especificamente dos processos
que correm em segredo de justiça ao estabelecer que “a lei só poderá
restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da
intimidade ou o interesse social o exigirem”. No entanto, outras normas
existem que constituem aplicação do direito à intimidade e à vida privada,
como a que protege a inviolabilidade do domicílio (inciso XI), a
inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações (inciso
XII) e o sigilo profissional (inciso XIV).
Não é fácil definir o direito à intimidade e à vida privada. Fico com a
lição de José Cretella Júnior,1 quando afirma que “o legislador distinguiu a
mesma situação com dois nomes distintos, quando se sabe que
‘intimidade’ do cidadão é sua ‘vida privada’, no recesso do lar”. Para o
autor, “intimidade” é o “status ou situação daquilo que é íntimo, isolado,
só. Há um direito ou liberdade pública de estar só, de não ser
importunado, devassado, visto por olhos estranhos”.
Com efeito, falar em intimidade ou vida privada significa falar em
algo que cada qual quer proteger do conhecimento ou interferência de
terceiros, porque só diz respeito à sua vida, ao seu ego, ao seu
pensamento, aos seus sonhos. É aquilo que se encerra na vida de cada
qual, porque a ninguém mais interessa. Opõe-se àquilo que é público, que
é aberto ao conhecimento de todos. Existem graus no direito à intimidade,
porque, em certas situações, o anseio pelo sigilo é de tal ordem que se
encerra em cada pessoa, isoladamente considerada; em outras situações,
o sigilo diz respeito à vida em família, dentro do lar; ou em família
considerada em sentido mais amplo, de modo a abranger os parentes
todos, com laços sanguíneos ou por afinidade; ainda a intimidade pode
dizer respeito a um círculo restrito de amigos ou ao ambiente de trabalho.
1
In Comentários à Constituição de 1988. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 257.
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Além disso, a noção do que deve ser alcançado pela proteção à
intimidade tem um elevado grau de subjetivismo, podendo variar de uma
pessoa para outra, ou, para a mesma pessoa, em épocas diferentes de sua
vida. Mas tem que existir um elemento mínimo, objetivo, que deve ser
protegido. Talvez seja aquilo que se chama de núcleo essencial do direito
à intimidade.
Eu diria ainda que o direito à intimidade ou à vida privada faz parte
da dignidade da pessoa humana, esta também só protegida, de forma
expressa, a partir da Constituição de 1988.
2. Do direito à informação
O direito à informação foi assegurado pela Constituição,
constituindo-se em um dos instrumentos previstos para garantir a
transparência dentro da Administração Pública. Além desse instrumento,
outros existem, como a exigência de publicidade, de motivação, de
participação, do direito à obtenção de certidão, do devido processo legal,
entre outros. O que interessa, para o tema proposta, é o direito à
informação.
Esse direito foi assegurado pelo artigo 5º, XXXIIII, da Constituição,
para garantir a obtenção, perante órgãos públicos, de informações de
interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo
sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Também
foi assegurado pelo inciso LXXII, que prevê o habeas data para assegurar o
conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante,
constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais
ou de caráter público, bem como para a retificação de dados, quando não
se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.
O primeiro dispositivo protege o direito à informação em geral; o
segundo protege o direito à informação relativa à pessoa do impetrante.
Por sua vez, o artigo 37, § 3º, II, da Constituição traz inovação
introduzida pela Emenda Constitucional nº 19/98, ao determinar que “a
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lei disciplinará as formas de participação do usuário na Administração
Pública direta e indireta, regulando especialmente: (.......) II – o acesso dos
usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de
governo, observado o disposto no artigo 5º, X e XXXIII”.
E o artigo 216, § 2º, estabelece que “cabem à Administração
Pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as
providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”.
Da leitura desses dispositivos constitucionais extraem-se algumas
conclusões: (i) o direito à informação pode ser exercido para defesa de
interesse particular ou de interesse coletivo ou geral; (ii) as informações
devem ser prestadas no prazo da lei; (iii) a recusa enseja responsabilidade;
(iv) podem ser recusadas as informações cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado, bem como as que acarretem violação
à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas; a sua
violação dá direito a indenização.
Para disciplinar o direito à informação, foi promulgada primeiro a
Lei nº 11.111, de 5.5.2005, que regulamentou a parte final do artigo 5º,
XXXIII, que fala de sigilo. Essa lei delegou grande parte da regulamentação
ao Poder Executivo. E acabou sendo revogada pela Lei nº 12.527, de
18.11.2011 (a chamada Lei de Acesso a Informações), regulamentada pelo
Decreto nº 7.724, de 16.5.2012.
A Lei 12.527 passou a disciplinar a matéria de forma mais ampla.
Resumidamente, ela:
a) resguarda o direito de acesso à informação necessária à tutela
judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 21);
b) protege as hipóteses de sigilo, de segredo de justiça e de segredo
industrial (art. 22);
c) estabelece o procedimento de acesso à informação, abrangendo
o pedido e os recursos cabíveis (arts. 10 a 19), vedando que
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sejam exigidos os motivos determinantes da solicitação (art. 10,
§ 3º);2
d) define o que se considera sigilo imprescindível a segurança da
sociedade e do Estado (art. 23);
e) estabelece os procedimentos de classificação e desclassificação
do sigilo de informações, indicando as autoridades competentes
e exigindo fundamento para a classificação;
f) define as condutas ilícitas que ensejam a responsabilidade do
agente público ou militar e as sanções cabíveis, inclusive por ato
de improbidade (art. 32).
Note-se que o artigo 3º da lei refere-se ao acesso às informações
como direito fundamental, acompanhando norma que consta de
declaração conjunta da UNU, da OECE (Organização para a Cooperação
Econômica Europeia) e da OEA, de 6.12.2004, em que se afirma que “o
direito de acesso à informação em poder de autoridades públicas é um
direito humano fundamental que deveria aplicar-se a nível nacional
através da legislação global baseada no princípio da máxima divulgação, a
qual estabelece a presunção de que a informação é acessível, sujeita
somente a um sistema restrito de exceções.”
Embora garantindo a gestão transparente da informação e a
proteção da informação, o artigo 6º da lei prevê também a proteção da
informação sigilosa e da informação pessoal.
O artigo 4º, IV, define informação pessoal como aquela relacionada
à pessoa natural identificada ou identificável; e o inciso III define
informação sigilosa como aquela sujeita temporariamente à restrição de
acesso público por motivo de segurança da sociedade e do Estado.
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Essa vedação me parece excessiva, porque pode levar ao uso arbitrário e abusivo do direito à
informação.
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No acesso à informação inclui-se o direito de obter informação
pertinente à administração público, utilização de recursos públicos,
licitação e contratos (art. 7º, VI).
3. Da publicação dos vencimentos dos agentes públicos
Pelo artigo 8º da Lei, é dever dos órgãos e entidades públicas
promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local
de fácil acesso, de informações de interesse coletivo ou geral por eles
produzidas ou custodiadas.
O Decreto regulamentar, no artigo 7º, § 3º, foi além do estabelecido
no artigo 8º, § 1º, da lei. Esta dá o elenco das informações que devem ser
divulgadas independentemente de requerimento. O decreto amplia esse
elenco e inclui a exigência de divulgação da remuneração e subsídio, bem
como de todas as vantagens pecuniárias recebidas pelos servidores
públicos em geral, de “maneira individualizada”. Note-se que não fala em
identificação do servidor. Nem a lei nem seu regulamento exigem
identificação do servidor.
Essa é a norma que mais está gerando controvérsias:
a) de um lado, porque exorbita do poder regulamentar, sendo de
legalidade pelo menos duvidosa;
b) de outro lado, porque, constando apenas do decreto e não da
lei, surge dúvida quanto à sua aplicabilidade aos Estados e
Municípios e mesmo aos Poderes Judiciário e Legislativo;
c) em terceiro lugar, porque afronta o direito à intimidade
garantido pelo artigo 5º, X, da Constituição Federal;
d) a norma do regulamento contraria o artigo 4º, IV, combinado
com o artigo 6º, III, da lei de acesso à informação; este último
dispositivo determina que os órgãos e entidades do poder
público assegurem a “proteção da informação sigilosa e da
informação pessoal, observada a sua disponibilidade,
autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso”; e a
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informação pessoal é definida como “aquela relacionada à
pessoa natural identificada ou identificável”.
4. Da decisão do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a controvérsia
referente à possibilidade ou não de divulgação dos vencimentos, com
identificação pessoal dos agentes públicos que os recebem. O acórdão
aqui mencionado foi proferido no Processo SS 3902-SP, sendo Relator o
Ministro Carlos Ayres Brito (Tribunal Pleno, DJe-189, divulgação em
30.09.2011, publicação em 3.10.2011)
É curioso que em tal voto tenha o ilustre Ministro entendido que é
válida essa divulgação, porque atende ao interesse coletivo. Ele analisa o
assunto em face do artigo 5º, XXXIII, da Constituição, que só excepciona
com o sigilo no caso de segurança da sociedade e do Estado. Ele faz uma
interpretação puramente literal e não sistemática do dispositivo. Esquece
que o artigo 5º, X, protege a intimidade e a vida privada e tem que ser
observado pelas normas infraconstitucionais, especialmente se elas não
têm fundamento em lei, mas em mero decreto do Poder Executivo (de
legalidade duvidosa); mesmo este não fala em divulgação com
identificação do servidor, mas em divulgação de maneira individualizada.
Individualizar não significa necessariamente mencionar o nome da pessoa;
a individualização pode ser feita com menção ao cargo ou ao número de
matrícula do servidor ou outro critério criado para esse fim.
O Ministro reconhece expressamente que a “segurança pessoal e
familiar dos servidores pode ficar fragilizada”. Mas observa que esse é o
“risco pessoal e familiar” que se atenua com a proibição de se revelar o
endereço residencial, o CPF e a Carteira de Identidade de cada servidor. E
acrescenta que “é o preço que se paga pela opção por uma carreira
pública no seio de um Estado republicano”.
O voto prolatado não leva em consideração a norma do artigo 23,
III, da Lei de Acesso à Informação, que considera como imprescindíveis à
segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de restrição
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ao acesso: as que possam por em risco a vida, a segurança ou a saúde da
população.
E não leva em consideração o artigo 6º, III, da lei, que manda
proteger a informação pessoal, definida como aquela relacionada à pessoa
natural, identificada ou identificável.
O legislador teve maior sensibilidade do que os Ministros do STF, no
que diz respeito à proteção à intimidade. Todos acompanharam o
Ministro Carlos Ayres em seu voto.
Acho absolutamente inaceitáveis os argumentos, com todo o
respeito e estima que tenho pelo Ministro Carlos Ayres Brito.
Poder-se-ia alegar que essa divulgação de dados salariais é prevista
em normas baixadas por organismos internacionais. Talvez seja.
Poder-se-ia alegar que a divulgação foi prevista no afã de controlar
o teto salarial dos servidores, frequentemente não observado.
É possível que o Ministro sentisse essa conveniência ou importância
para o interesse coletivo de divulgar os vencimentos dos magistrados,
muitos deles bem superiores ao teto salarial.
O intuito pode ser honesto e louvável. Mas leva a um desequilíbrio
entre o princípio da transparência (de que o direito à informação constitui
uma das aplicações) e o direito à intimidade.
É sabido – porque ensinado pelos constitucionalistas – que o
conflito entre princípios ou preceitos da Constituição não pode ser
resolvido com o sacrifício total de um deles. Na interpretação adotada
pelo ilustre Ministro, a norma do artigo 5º, X, é inteiramente
desrespeitada para dar cumprimento integral à norma do artigo 5º, XXXIII.
E aqui chega-se à questão a ser desenvolvida no item subsequente:
os dispositivos que consagram o direito à intimidade e o direito à
informação contêm regras ou princípios?
5. Do conflito entre princípios constitucionais
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Sabe-se que existem muitos critérios para distinguir entre regras e
princípios. Vamos mencionar os dois que são mais utilizados no direito
brasileiro: (i) um que considera o grau de fundamentalidade, inspirado
principalmente em Karl Larenz; (ii) e outro que considera a estrutura
lógico-normativa, inspirado em Ronald Dworkin e Robert Alexy.
Pelo primeiro critério, os princípios são considerados as normas
fundamentais de um sistema; eles servem de base ao ordenamento
jurídico, enquanto as regras concretizam os princípios e, por isso, têm
caráter instrumental.
É o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando afirma
que “princípio é por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para
exata compreensão e inteligência delas....Violar um princípio é muito mais
do que violar uma norma”.3
Por esse critério, as regras têm menor grau de fundamentalidade,
porque constituem instrumentos de densificação dos princípios, os quais
condicionam a sua interpretação e aplicação.
É a doutrina aceita por José Afonso da Silva, Geraldo Ataliba, Carlos
Ari Sundfeld, Cármen Lúcia Antunes Rocha, José Cretella Júnior.
Pelo segundo critério, a norma é o gênero que abrange as regras e
os princípios. A forma de aplicação da norma é que vai determinar se se
trata de regra ou de princípio.
Para Dworkin, as regras se aplicam conforme a lógica do tudo ou
nada. Se houver conflito entre regras, apenas uma delas será aplicada,
porque apenas uma delas é válida. Os princípios têm uma dimensão de
peso ou importância: se dois princípios colidirem num caso concreto, o
intérprete é que irá resolver a questão, levando em conta a força relativa
de cada um, isto é, o peso que cada um deve ter naquela situação
3
Curso de direito administrativo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 54.
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específica. Ambos continuam a existir, não havendo necessidade de
declarar a invalidade de um deles.
Para Robert Alexy, os princípios são normas que determinam que
algo seja realizado na maior medida possível, levando em consideração as
considerações fáticas e jurídicas presentes no caso concreto. São
mandamentos de otimização, caracterizados por poderem ser aplicados
em diferentes graus, a depender das circunstâncias de cada situação.
As regras são normas que devem ser aplicadas de uma única forma:
se a regra for válida, “deve-se fazer exatamente o que ela exige, nem
mais, nem menos”.
O conflito entre regras resolve-se de dois modos: (a) ou se introduz
em uma das regras uma cláusula de exceção que afasta o conflito; ou (b)
deve ser declarada a invalidade de pelo menos uma delas.
A colisão de princípios deve ser solucionada pela técnica da
ponderação. Não deve ser declarada a invalidade de nenhuma delas, nem
se deve incluir uma cláusula de exceção. Um irá ceder passo ao outro,
conforme o peso exercido por cada um deles naquelas circunstâncias.
Através da ponderação se determinará qual o princípio que deve ter o
maior peso na aplicação concreta, de modo que cada qual seja aplicado da
melhor medida possível, produzindo um resultado ótimo.
Essa foi a teoria que, mais recentemente, teve aceitação maior
entre os doutrinadores brasileiros, como Clémerson Merlin Cleve, Regina
Maria Macedo Nery Ferrari, Luís Roberto Barroso, Ana Paula Barcellos,
Virgílio Afonso da Silva, dentre outros.
Se adotado o primeiro critério, tanto o direito à intimidade como o
direito à informação são considerados como princípios, porque eles
servem de fundamento para inúmeras regras que os densificam. Já o
direito à inviolabilidade de domicílio e de correspondência constituem
regras, que dão aplicação ao princípio do direito à intimidade e que já têm
o seu conteúdo estabelecido de forma precisa e insuscetível de
descumprimento.
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Se adotado o segundo critério, ainda uma vez o direito à intimidade
tem a natureza de princípio, da mesma forma que o direito à informação
(como densificação do princípio maior da transparência). Ambos devem
ser aplicados da melhor forma possível, levando em consideração as
condições de fato e de direito presentes no caso concreto. Ambos devem
ser aplicados em maior ou menor grau, conforme as situações de cada
caso. Se fossem considerados como regras, o conflito entre ambas levaria
à inaplicabilidade de uma delas.
Sendo princípios que podem entrar em conflito em determinadas
situações, aplica-se a técnica da ponderação.
Eu até prefiro falar em razoabilidade, pela aplicação das regras da
necessidade, adequação e proporcionalidade.
O acórdão do Supremo Tribunal Federal não utilizou a técnica da
ponderação, nem aplicou o princípio da razoabilidade na interpretação
dos princípios constitucionais pertinentes.
Realmente, a proteção à intimidade pode colocar-se em conflito
com o princípio da publicidade (previsto no artigo 37 da Constituição) que,
como regra geral, veda o sigilo, a não ser em hipóteses previstas
expressamente na Constituição.
A publicidade é vista como princípio inerente à democracia. Nas
palavras de Norberto Bobbio, em seu livro O Futuro da Democracia, “o
governo da democracia é o governo do poder público em público”. A
democracia exige que o poder público seja visível, transparente, sem
mistérios ou segredos. Daí a conclusão de que o caráter público é a regra
e, o segredo, a exceção.
Porque é necessária a publicidade e, mais do que publicidade, a
transparência no exercício do poder? Especialmente porque se trata de
instrumento de fiscalização do exercício do poder pelo cidadão; permite o
exercício do direito de defesa e do contraditório; permite o controle pelos
poderes instituídos.
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No direito brasileiro, pode-se afirmar que a publicidade, prevista no
artigo 37 da Constituição entre os princípios a que se submete a
Administração Pública, constitui a regra geral, sendo o sigilo a exceção.
Precisamente por constituir-se em exceção, o sigilo só é possível nas
hipóteses expressamente admitidas pela própria Constituição.
Em algumas situações, o sigilo protege o interesse coletivo ou o
interesse social, como nas hipóteses do artigo 5º, incisos XXXIII e LX. O
primeiro dispositivo garante o direito de receber dos órgãos públicos
informação de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado. O segundo dispositivo trata da publicidade dos
atos processuais, que só pode ser restringida para proteger a intimidade
ou o interesse social.
Em outras hipóteses, o sigilo protege o interesse privado:
- o artigo 5º, X, declara serem invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
- o artigo 5º, XI, prevê a inviolabilidade da casa, ninguém nela
podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia,
por determinação judicial;
- o artigo 5º, XII, garante a inviolabilidade do sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
criminal ou instrução processual penal;
- o artigo 5º, XIV, assegura a todos o acesso à informação e
resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
São frequentes os conflitos entre as normas constitucionais
garantidoras de direitos fundamentais. Segundo Gilmar Ferreira Mendes,
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Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco,4 as colisões de
direitos podem ser consideradas em sentido estrito, que se referem aos
conflitos entre direitos fundamentais, e em sentido amplo, que envolvem
os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por
escopo a proteção de interesses da comunidade. A esses dois tipos de
conflitos pode-se acrescentar um terceiro, que se verifica entre interesses
públicos diversos.
Constitui exemplo do primeiro – conflito entre diferentes direitos
individuais – o conflito entre, de um lado, o direito à honra, à intimidade,
à vida e à imagem, e, de outro lado, o direito à liberdade de opinião e de
imprensa e a liberdade artística.
Constitui exemplo de conflito entre direito individual e o interesse
público, o que ocorre entre, de um lado, o direito de propriedade, e, de
outro, a função social da propriedade, a proteção do meio ambiente, a
proteção do patrimônio histórico; também o conflito entre, de um lado, o
direito à inviolabilidade de domicílio e das comunicações, e, de outro, o
interesse público nas investigações criminais; ainda o conflito entre o
direito à intimidade, de um lado, e, de outro, o dever de fiscalização por
parte do Estado; ou entre, de um lado, o direito à informação, e, de outro,
a proteção da segurança da sociedade e do Estado.
São exemplos de conflitos entre interesses públicos diversos o sigilo
para proteção da segurança da sociedade, que conflita com o dever de
investigação criminal.
Talvez até, no caso de conflito entre o direito à intimidade e o
princípio da transparência, que cria para o Estado o dever de informar,
seja um conflito entre dois interesses coletivos. Tanto constitui interesse
de todos a proteção da intimidade como o dever de informar que incumbe
ao Poder Público.
Se nós partirmos do conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello
de que “o interesse público deve ser conceituado como o interesse
resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm
4
Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 332.
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quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo
simples fato de o serem5”, não há dúvida de que a proteção à intimidade
e à vida privada constitui direito fundamental de cada pessoa, mas
também interesse de toda a coletividade.
6. Conclusões
6.1.
Diante das considerações desenvolvidas nos itens anteriores,
podemos concluir afirmando que o acórdão do Supremo
Tribunal Federal, já referido, não empregou a técnica da
ponderação.
A decisão foi tomada como se apenas um dos interesses fosse
protegido pelo ordenamento jurídico: o direito à informação. Em
consequência, deixou de aplicar o outro: o direito à intimidade.
6.2. Levando em consideração as três regras da razoabilidade (ou
proporcionalidade em sentido amplo, como preferem
alguns), nenhuma delas foi aplicada.
Para chegar a essa conclusão, basta fazer as seguintes indagações:
(i)
qual a finalidade da divulgação dos dados pertinentes aos
gastos com vencimentos ou subsídios dos agentes públicos?
(ii)
A divulgação dos vencimentos sem a identificação dos
agentes públicos é meio necessário, adequado e proporcional
em relação ao fim a atingir?
(iii)
A divulgação dos vencimentos com a identificação dos
agentes públicos é meio necessário, adequado e proporcional
em relação ao fim a atingir?
A resposta à primeira indagação é muito simples: o grande objetivo
é proporcionar o controle (pelo Estado e pela Sociedade) da legalidade
dos vencimentos dos seus agentes. É garantir a transparência dos gastos
com servidores.
5
Curso de direito administrativo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 62.
15
A resposta á segunda e à terceira indagação também é simples:
A divulgação dos vencimentos pode ser necessária; mas a
identificação dos agentes é desnecessária, na medida em que o mesmo
objetivo poderia ser alcançado sem submeter o servidor ao
constrangimento de ver a sua intimidade invadida pela curiosidade, pela
inveja, pela maldade, pela cobiça por parte de terceiros; e até a piedade
ou a caçoada, nas hipóteses em que os vencimentos são irrisórios.
A divulgação dos vencimentos pode ser adequada; mas a
identificação dos agentes é inadequada, porque afronta o direito à
intimidade e porque o mesmo objetivo de transparência e controle
poderia ser alcançado pela simples divulgação dos valores e adoção de
outros critérios para individualização que não a identificação do servidor.
Uma vez verificada alguma situação desconforme com o ordenamento
jurídico, essa situação poderia ser objeto de verificação pelos órgãos de
controle. Não há qualquer justificativa, no ordenamento jurídico, para
expor todos os agentes públicos a esse tipo de constrangimento e colocálos em situação de risco para a sua segurança pessoal e de sua família.
A divulgação dos vencimentos pode guardar proporcionalidade em
relação ao fim; mas a divulgação dos nomes dos servidores é inteiramente
desproporcional, porque o mesmo objetivo poderia ser alcança por outros
meios, menos onerosos para o servidor.
6.3.
Quando se fala em transparência, ela deve existir no âmbito
da Administração Pública, sem afetar a vida privada do
servidor público. Uma vez que se reconhece que a divulgação
dos vencimentos com identificação do servidor coloca em
risco a sua segurança, torna-se absolutamente inaceitável e
mesmo inacreditável que o valor transparência (por mais que
seja relevante para proteção do patrimônio público) seja
privilegiado em detrimento da segurança (numa sociedade
que vive cercada de violência, de medo, em resumo, de
insegurança).
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6.4.
O citado acórdão do Supremo Tribunal Federal não produz
efeitos erga omnes. Em consequência, não há razão para que
seja cumprido por órgãos e entidades não alcançados por
seus efeitos.
Quero concluir com uma citação de trecho de artigo da lavra da
Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha,6 que contraditoriamente,
concordou com o voto do Ministro Carlos Ayres Brito:
“A vida econômica do cidadão, o seu patrimônio de bens,
compõem o quanto juridicamente protegido pela privacidade. Muito
mais necessária é esta proteção num mundo de mercancia de
homens e de almas, o conhecimento de quem dispõe de recursos,
quanto se dispõe de recursos, quais os gastos e as aspirações de
cada um.....e, o que é mais grave e inédito na história dos homens, à
gama dos criminosos contra a vida e o patrimônio.
Daí por que a segurança dos direitos fundamentais e à
privacidade da vida econômica do cidadão faz-se realçada nos
tempos atuais.”
Maria Sylvia Zanella Di Pietro
6
Direito à privacidade e os sigilos fiscal e bancário. In Revista Interesse Público, vol. 20, 2003.
Download

direito fundamental à intimidade e publicação da remuneração dos