1 DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE E PUBLICAÇÃO DA REMUNERAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS. COMENTÁRIO A ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Maria Sylvia Zanella Di Pietro Professora Titular Aposentada da Faculdade de Direito da USP 1. O direito à proteção da intimidade e da vida privada na Constituição O tema sugere a seguinte indagação: a publicação da remuneração dos agentes públicos afronta o direito fundamental à proteção da intimidade e da vida privada? Note-se que não se indaga se a proteção da intimidade e da vida privada constituem direito fundamental. No título já se contém essa afirmação. E, na realidade, justifica-se essa afirmação tendo em vista que a proteção à intimidade está inserida na Constituição, no Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais. O direito à intimidade foi assegurado pelo artigo 12 da Declaração dos direitos individuais, embora o dispositivo não utilize a expressão. Estabelece que “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem direito à proteção da lei.” No Brasil, antes da Constituição de 1988, não havia norma expressa protegendo a intimidade ou a vida privada. O que se protegia, em regra, era a inviolabilidade de domicílio e a liberdade de manifestação do pensamento. 2 A Constituição de 1988 inova ao fazer referência à intimidade, em dois dispositivos: o artigo 5º, inciso X, estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; e no artigo 5º, inciso LX, cuida especificamente dos processos que correm em segredo de justiça ao estabelecer que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. No entanto, outras normas existem que constituem aplicação do direito à intimidade e à vida privada, como a que protege a inviolabilidade do domicílio (inciso XI), a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações (inciso XII) e o sigilo profissional (inciso XIV). Não é fácil definir o direito à intimidade e à vida privada. Fico com a lição de José Cretella Júnior,1 quando afirma que “o legislador distinguiu a mesma situação com dois nomes distintos, quando se sabe que ‘intimidade’ do cidadão é sua ‘vida privada’, no recesso do lar”. Para o autor, “intimidade” é o “status ou situação daquilo que é íntimo, isolado, só. Há um direito ou liberdade pública de estar só, de não ser importunado, devassado, visto por olhos estranhos”. Com efeito, falar em intimidade ou vida privada significa falar em algo que cada qual quer proteger do conhecimento ou interferência de terceiros, porque só diz respeito à sua vida, ao seu ego, ao seu pensamento, aos seus sonhos. É aquilo que se encerra na vida de cada qual, porque a ninguém mais interessa. Opõe-se àquilo que é público, que é aberto ao conhecimento de todos. Existem graus no direito à intimidade, porque, em certas situações, o anseio pelo sigilo é de tal ordem que se encerra em cada pessoa, isoladamente considerada; em outras situações, o sigilo diz respeito à vida em família, dentro do lar; ou em família considerada em sentido mais amplo, de modo a abranger os parentes todos, com laços sanguíneos ou por afinidade; ainda a intimidade pode dizer respeito a um círculo restrito de amigos ou ao ambiente de trabalho. 1 In Comentários à Constituição de 1988. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 257. 3 Além disso, a noção do que deve ser alcançado pela proteção à intimidade tem um elevado grau de subjetivismo, podendo variar de uma pessoa para outra, ou, para a mesma pessoa, em épocas diferentes de sua vida. Mas tem que existir um elemento mínimo, objetivo, que deve ser protegido. Talvez seja aquilo que se chama de núcleo essencial do direito à intimidade. Eu diria ainda que o direito à intimidade ou à vida privada faz parte da dignidade da pessoa humana, esta também só protegida, de forma expressa, a partir da Constituição de 1988. 2. Do direito à informação O direito à informação foi assegurado pela Constituição, constituindo-se em um dos instrumentos previstos para garantir a transparência dentro da Administração Pública. Além desse instrumento, outros existem, como a exigência de publicidade, de motivação, de participação, do direito à obtenção de certidão, do devido processo legal, entre outros. O que interessa, para o tema proposta, é o direito à informação. Esse direito foi assegurado pelo artigo 5º, XXXIIII, da Constituição, para garantir a obtenção, perante órgãos públicos, de informações de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Também foi assegurado pelo inciso LXXII, que prevê o habeas data para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, bem como para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo. O primeiro dispositivo protege o direito à informação em geral; o segundo protege o direito à informação relativa à pessoa do impetrante. Por sua vez, o artigo 37, § 3º, II, da Constituição traz inovação introduzida pela Emenda Constitucional nº 19/98, ao determinar que “a 4 lei disciplinará as formas de participação do usuário na Administração Pública direta e indireta, regulando especialmente: (.......) II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no artigo 5º, X e XXXIII”. E o artigo 216, § 2º, estabelece que “cabem à Administração Pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”. Da leitura desses dispositivos constitucionais extraem-se algumas conclusões: (i) o direito à informação pode ser exercido para defesa de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral; (ii) as informações devem ser prestadas no prazo da lei; (iii) a recusa enseja responsabilidade; (iv) podem ser recusadas as informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem como as que acarretem violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas; a sua violação dá direito a indenização. Para disciplinar o direito à informação, foi promulgada primeiro a Lei nº 11.111, de 5.5.2005, que regulamentou a parte final do artigo 5º, XXXIII, que fala de sigilo. Essa lei delegou grande parte da regulamentação ao Poder Executivo. E acabou sendo revogada pela Lei nº 12.527, de 18.11.2011 (a chamada Lei de Acesso a Informações), regulamentada pelo Decreto nº 7.724, de 16.5.2012. A Lei 12.527 passou a disciplinar a matéria de forma mais ampla. Resumidamente, ela: a) resguarda o direito de acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 21); b) protege as hipóteses de sigilo, de segredo de justiça e de segredo industrial (art. 22); c) estabelece o procedimento de acesso à informação, abrangendo o pedido e os recursos cabíveis (arts. 10 a 19), vedando que 5 sejam exigidos os motivos determinantes da solicitação (art. 10, § 3º);2 d) define o que se considera sigilo imprescindível a segurança da sociedade e do Estado (art. 23); e) estabelece os procedimentos de classificação e desclassificação do sigilo de informações, indicando as autoridades competentes e exigindo fundamento para a classificação; f) define as condutas ilícitas que ensejam a responsabilidade do agente público ou militar e as sanções cabíveis, inclusive por ato de improbidade (art. 32). Note-se que o artigo 3º da lei refere-se ao acesso às informações como direito fundamental, acompanhando norma que consta de declaração conjunta da UNU, da OECE (Organização para a Cooperação Econômica Europeia) e da OEA, de 6.12.2004, em que se afirma que “o direito de acesso à informação em poder de autoridades públicas é um direito humano fundamental que deveria aplicar-se a nível nacional através da legislação global baseada no princípio da máxima divulgação, a qual estabelece a presunção de que a informação é acessível, sujeita somente a um sistema restrito de exceções.” Embora garantindo a gestão transparente da informação e a proteção da informação, o artigo 6º da lei prevê também a proteção da informação sigilosa e da informação pessoal. O artigo 4º, IV, define informação pessoal como aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável; e o inciso III define informação sigilosa como aquela sujeita temporariamente à restrição de acesso público por motivo de segurança da sociedade e do Estado. 2 Essa vedação me parece excessiva, porque pode levar ao uso arbitrário e abusivo do direito à informação. 6 No acesso à informação inclui-se o direito de obter informação pertinente à administração público, utilização de recursos públicos, licitação e contratos (art. 7º, VI). 3. Da publicação dos vencimentos dos agentes públicos Pelo artigo 8º da Lei, é dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. O Decreto regulamentar, no artigo 7º, § 3º, foi além do estabelecido no artigo 8º, § 1º, da lei. Esta dá o elenco das informações que devem ser divulgadas independentemente de requerimento. O decreto amplia esse elenco e inclui a exigência de divulgação da remuneração e subsídio, bem como de todas as vantagens pecuniárias recebidas pelos servidores públicos em geral, de “maneira individualizada”. Note-se que não fala em identificação do servidor. Nem a lei nem seu regulamento exigem identificação do servidor. Essa é a norma que mais está gerando controvérsias: a) de um lado, porque exorbita do poder regulamentar, sendo de legalidade pelo menos duvidosa; b) de outro lado, porque, constando apenas do decreto e não da lei, surge dúvida quanto à sua aplicabilidade aos Estados e Municípios e mesmo aos Poderes Judiciário e Legislativo; c) em terceiro lugar, porque afronta o direito à intimidade garantido pelo artigo 5º, X, da Constituição Federal; d) a norma do regulamento contraria o artigo 4º, IV, combinado com o artigo 6º, III, da lei de acesso à informação; este último dispositivo determina que os órgãos e entidades do poder público assegurem a “proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso”; e a 7 informação pessoal é definida como “aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável”. 4. Da decisão do Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a controvérsia referente à possibilidade ou não de divulgação dos vencimentos, com identificação pessoal dos agentes públicos que os recebem. O acórdão aqui mencionado foi proferido no Processo SS 3902-SP, sendo Relator o Ministro Carlos Ayres Brito (Tribunal Pleno, DJe-189, divulgação em 30.09.2011, publicação em 3.10.2011) É curioso que em tal voto tenha o ilustre Ministro entendido que é válida essa divulgação, porque atende ao interesse coletivo. Ele analisa o assunto em face do artigo 5º, XXXIII, da Constituição, que só excepciona com o sigilo no caso de segurança da sociedade e do Estado. Ele faz uma interpretação puramente literal e não sistemática do dispositivo. Esquece que o artigo 5º, X, protege a intimidade e a vida privada e tem que ser observado pelas normas infraconstitucionais, especialmente se elas não têm fundamento em lei, mas em mero decreto do Poder Executivo (de legalidade duvidosa); mesmo este não fala em divulgação com identificação do servidor, mas em divulgação de maneira individualizada. Individualizar não significa necessariamente mencionar o nome da pessoa; a individualização pode ser feita com menção ao cargo ou ao número de matrícula do servidor ou outro critério criado para esse fim. O Ministro reconhece expressamente que a “segurança pessoal e familiar dos servidores pode ficar fragilizada”. Mas observa que esse é o “risco pessoal e familiar” que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a Carteira de Identidade de cada servidor. E acrescenta que “é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano”. O voto prolatado não leva em consideração a norma do artigo 23, III, da Lei de Acesso à Informação, que considera como imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de restrição 8 ao acesso: as que possam por em risco a vida, a segurança ou a saúde da população. E não leva em consideração o artigo 6º, III, da lei, que manda proteger a informação pessoal, definida como aquela relacionada à pessoa natural, identificada ou identificável. O legislador teve maior sensibilidade do que os Ministros do STF, no que diz respeito à proteção à intimidade. Todos acompanharam o Ministro Carlos Ayres em seu voto. Acho absolutamente inaceitáveis os argumentos, com todo o respeito e estima que tenho pelo Ministro Carlos Ayres Brito. Poder-se-ia alegar que essa divulgação de dados salariais é prevista em normas baixadas por organismos internacionais. Talvez seja. Poder-se-ia alegar que a divulgação foi prevista no afã de controlar o teto salarial dos servidores, frequentemente não observado. É possível que o Ministro sentisse essa conveniência ou importância para o interesse coletivo de divulgar os vencimentos dos magistrados, muitos deles bem superiores ao teto salarial. O intuito pode ser honesto e louvável. Mas leva a um desequilíbrio entre o princípio da transparência (de que o direito à informação constitui uma das aplicações) e o direito à intimidade. É sabido – porque ensinado pelos constitucionalistas – que o conflito entre princípios ou preceitos da Constituição não pode ser resolvido com o sacrifício total de um deles. Na interpretação adotada pelo ilustre Ministro, a norma do artigo 5º, X, é inteiramente desrespeitada para dar cumprimento integral à norma do artigo 5º, XXXIII. E aqui chega-se à questão a ser desenvolvida no item subsequente: os dispositivos que consagram o direito à intimidade e o direito à informação contêm regras ou princípios? 5. Do conflito entre princípios constitucionais 9 Sabe-se que existem muitos critérios para distinguir entre regras e princípios. Vamos mencionar os dois que são mais utilizados no direito brasileiro: (i) um que considera o grau de fundamentalidade, inspirado principalmente em Karl Larenz; (ii) e outro que considera a estrutura lógico-normativa, inspirado em Ronald Dworkin e Robert Alexy. Pelo primeiro critério, os princípios são considerados as normas fundamentais de um sistema; eles servem de base ao ordenamento jurídico, enquanto as regras concretizam os princípios e, por isso, têm caráter instrumental. É o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando afirma que “princípio é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas....Violar um princípio é muito mais do que violar uma norma”.3 Por esse critério, as regras têm menor grau de fundamentalidade, porque constituem instrumentos de densificação dos princípios, os quais condicionam a sua interpretação e aplicação. É a doutrina aceita por José Afonso da Silva, Geraldo Ataliba, Carlos Ari Sundfeld, Cármen Lúcia Antunes Rocha, José Cretella Júnior. Pelo segundo critério, a norma é o gênero que abrange as regras e os princípios. A forma de aplicação da norma é que vai determinar se se trata de regra ou de princípio. Para Dworkin, as regras se aplicam conforme a lógica do tudo ou nada. Se houver conflito entre regras, apenas uma delas será aplicada, porque apenas uma delas é válida. Os princípios têm uma dimensão de peso ou importância: se dois princípios colidirem num caso concreto, o intérprete é que irá resolver a questão, levando em conta a força relativa de cada um, isto é, o peso que cada um deve ter naquela situação 3 Curso de direito administrativo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 54. 10 específica. Ambos continuam a existir, não havendo necessidade de declarar a invalidade de um deles. Para Robert Alexy, os princípios são normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, levando em consideração as considerações fáticas e jurídicas presentes no caso concreto. São mandamentos de otimização, caracterizados por poderem ser aplicados em diferentes graus, a depender das circunstâncias de cada situação. As regras são normas que devem ser aplicadas de uma única forma: se a regra for válida, “deve-se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos”. O conflito entre regras resolve-se de dois modos: (a) ou se introduz em uma das regras uma cláusula de exceção que afasta o conflito; ou (b) deve ser declarada a invalidade de pelo menos uma delas. A colisão de princípios deve ser solucionada pela técnica da ponderação. Não deve ser declarada a invalidade de nenhuma delas, nem se deve incluir uma cláusula de exceção. Um irá ceder passo ao outro, conforme o peso exercido por cada um deles naquelas circunstâncias. Através da ponderação se determinará qual o princípio que deve ter o maior peso na aplicação concreta, de modo que cada qual seja aplicado da melhor medida possível, produzindo um resultado ótimo. Essa foi a teoria que, mais recentemente, teve aceitação maior entre os doutrinadores brasileiros, como Clémerson Merlin Cleve, Regina Maria Macedo Nery Ferrari, Luís Roberto Barroso, Ana Paula Barcellos, Virgílio Afonso da Silva, dentre outros. Se adotado o primeiro critério, tanto o direito à intimidade como o direito à informação são considerados como princípios, porque eles servem de fundamento para inúmeras regras que os densificam. Já o direito à inviolabilidade de domicílio e de correspondência constituem regras, que dão aplicação ao princípio do direito à intimidade e que já têm o seu conteúdo estabelecido de forma precisa e insuscetível de descumprimento. 11 Se adotado o segundo critério, ainda uma vez o direito à intimidade tem a natureza de princípio, da mesma forma que o direito à informação (como densificação do princípio maior da transparência). Ambos devem ser aplicados da melhor forma possível, levando em consideração as condições de fato e de direito presentes no caso concreto. Ambos devem ser aplicados em maior ou menor grau, conforme as situações de cada caso. Se fossem considerados como regras, o conflito entre ambas levaria à inaplicabilidade de uma delas. Sendo princípios que podem entrar em conflito em determinadas situações, aplica-se a técnica da ponderação. Eu até prefiro falar em razoabilidade, pela aplicação das regras da necessidade, adequação e proporcionalidade. O acórdão do Supremo Tribunal Federal não utilizou a técnica da ponderação, nem aplicou o princípio da razoabilidade na interpretação dos princípios constitucionais pertinentes. Realmente, a proteção à intimidade pode colocar-se em conflito com o princípio da publicidade (previsto no artigo 37 da Constituição) que, como regra geral, veda o sigilo, a não ser em hipóteses previstas expressamente na Constituição. A publicidade é vista como princípio inerente à democracia. Nas palavras de Norberto Bobbio, em seu livro O Futuro da Democracia, “o governo da democracia é o governo do poder público em público”. A democracia exige que o poder público seja visível, transparente, sem mistérios ou segredos. Daí a conclusão de que o caráter público é a regra e, o segredo, a exceção. Porque é necessária a publicidade e, mais do que publicidade, a transparência no exercício do poder? Especialmente porque se trata de instrumento de fiscalização do exercício do poder pelo cidadão; permite o exercício do direito de defesa e do contraditório; permite o controle pelos poderes instituídos. 12 No direito brasileiro, pode-se afirmar que a publicidade, prevista no artigo 37 da Constituição entre os princípios a que se submete a Administração Pública, constitui a regra geral, sendo o sigilo a exceção. Precisamente por constituir-se em exceção, o sigilo só é possível nas hipóteses expressamente admitidas pela própria Constituição. Em algumas situações, o sigilo protege o interesse coletivo ou o interesse social, como nas hipóteses do artigo 5º, incisos XXXIII e LX. O primeiro dispositivo garante o direito de receber dos órgãos públicos informação de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. O segundo dispositivo trata da publicidade dos atos processuais, que só pode ser restringida para proteger a intimidade ou o interesse social. Em outras hipóteses, o sigilo protege o interesse privado: - o artigo 5º, X, declara serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; - o artigo 5º, XI, prevê a inviolabilidade da casa, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; - o artigo 5º, XII, garante a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; - o artigo 5º, XIV, assegura a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. São frequentes os conflitos entre as normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, 13 Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco,4 as colisões de direitos podem ser consideradas em sentido estrito, que se referem aos conflitos entre direitos fundamentais, e em sentido amplo, que envolvem os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade. A esses dois tipos de conflitos pode-se acrescentar um terceiro, que se verifica entre interesses públicos diversos. Constitui exemplo do primeiro – conflito entre diferentes direitos individuais – o conflito entre, de um lado, o direito à honra, à intimidade, à vida e à imagem, e, de outro lado, o direito à liberdade de opinião e de imprensa e a liberdade artística. Constitui exemplo de conflito entre direito individual e o interesse público, o que ocorre entre, de um lado, o direito de propriedade, e, de outro, a função social da propriedade, a proteção do meio ambiente, a proteção do patrimônio histórico; também o conflito entre, de um lado, o direito à inviolabilidade de domicílio e das comunicações, e, de outro, o interesse público nas investigações criminais; ainda o conflito entre o direito à intimidade, de um lado, e, de outro, o dever de fiscalização por parte do Estado; ou entre, de um lado, o direito à informação, e, de outro, a proteção da segurança da sociedade e do Estado. São exemplos de conflitos entre interesses públicos diversos o sigilo para proteção da segurança da sociedade, que conflita com o dever de investigação criminal. Talvez até, no caso de conflito entre o direito à intimidade e o princípio da transparência, que cria para o Estado o dever de informar, seja um conflito entre dois interesses coletivos. Tanto constitui interesse de todos a proteção da intimidade como o dever de informar que incumbe ao Poder Público. Se nós partirmos do conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello de que “o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm 4 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 332. 14 quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem5”, não há dúvida de que a proteção à intimidade e à vida privada constitui direito fundamental de cada pessoa, mas também interesse de toda a coletividade. 6. Conclusões 6.1. Diante das considerações desenvolvidas nos itens anteriores, podemos concluir afirmando que o acórdão do Supremo Tribunal Federal, já referido, não empregou a técnica da ponderação. A decisão foi tomada como se apenas um dos interesses fosse protegido pelo ordenamento jurídico: o direito à informação. Em consequência, deixou de aplicar o outro: o direito à intimidade. 6.2. Levando em consideração as três regras da razoabilidade (ou proporcionalidade em sentido amplo, como preferem alguns), nenhuma delas foi aplicada. Para chegar a essa conclusão, basta fazer as seguintes indagações: (i) qual a finalidade da divulgação dos dados pertinentes aos gastos com vencimentos ou subsídios dos agentes públicos? (ii) A divulgação dos vencimentos sem a identificação dos agentes públicos é meio necessário, adequado e proporcional em relação ao fim a atingir? (iii) A divulgação dos vencimentos com a identificação dos agentes públicos é meio necessário, adequado e proporcional em relação ao fim a atingir? A resposta à primeira indagação é muito simples: o grande objetivo é proporcionar o controle (pelo Estado e pela Sociedade) da legalidade dos vencimentos dos seus agentes. É garantir a transparência dos gastos com servidores. 5 Curso de direito administrativo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 62. 15 A resposta á segunda e à terceira indagação também é simples: A divulgação dos vencimentos pode ser necessária; mas a identificação dos agentes é desnecessária, na medida em que o mesmo objetivo poderia ser alcançado sem submeter o servidor ao constrangimento de ver a sua intimidade invadida pela curiosidade, pela inveja, pela maldade, pela cobiça por parte de terceiros; e até a piedade ou a caçoada, nas hipóteses em que os vencimentos são irrisórios. A divulgação dos vencimentos pode ser adequada; mas a identificação dos agentes é inadequada, porque afronta o direito à intimidade e porque o mesmo objetivo de transparência e controle poderia ser alcançado pela simples divulgação dos valores e adoção de outros critérios para individualização que não a identificação do servidor. Uma vez verificada alguma situação desconforme com o ordenamento jurídico, essa situação poderia ser objeto de verificação pelos órgãos de controle. Não há qualquer justificativa, no ordenamento jurídico, para expor todos os agentes públicos a esse tipo de constrangimento e colocálos em situação de risco para a sua segurança pessoal e de sua família. A divulgação dos vencimentos pode guardar proporcionalidade em relação ao fim; mas a divulgação dos nomes dos servidores é inteiramente desproporcional, porque o mesmo objetivo poderia ser alcança por outros meios, menos onerosos para o servidor. 6.3. Quando se fala em transparência, ela deve existir no âmbito da Administração Pública, sem afetar a vida privada do servidor público. Uma vez que se reconhece que a divulgação dos vencimentos com identificação do servidor coloca em risco a sua segurança, torna-se absolutamente inaceitável e mesmo inacreditável que o valor transparência (por mais que seja relevante para proteção do patrimônio público) seja privilegiado em detrimento da segurança (numa sociedade que vive cercada de violência, de medo, em resumo, de insegurança). 16 6.4. O citado acórdão do Supremo Tribunal Federal não produz efeitos erga omnes. Em consequência, não há razão para que seja cumprido por órgãos e entidades não alcançados por seus efeitos. Quero concluir com uma citação de trecho de artigo da lavra da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha,6 que contraditoriamente, concordou com o voto do Ministro Carlos Ayres Brito: “A vida econômica do cidadão, o seu patrimônio de bens, compõem o quanto juridicamente protegido pela privacidade. Muito mais necessária é esta proteção num mundo de mercancia de homens e de almas, o conhecimento de quem dispõe de recursos, quanto se dispõe de recursos, quais os gastos e as aspirações de cada um.....e, o que é mais grave e inédito na história dos homens, à gama dos criminosos contra a vida e o patrimônio. Daí por que a segurança dos direitos fundamentais e à privacidade da vida econômica do cidadão faz-se realçada nos tempos atuais.” Maria Sylvia Zanella Di Pietro 6 Direito à privacidade e os sigilos fiscal e bancário. In Revista Interesse Público, vol. 20, 2003.