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RESENHA
Resenha do livro “Histeria: o princípio de tudo”
Maurano, Denise, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.140pgs.
Vera Pollo
Psicanalista, membro da FFCL, doutora em Psicologia Clínica, professora do Mestrado em
Psicanálise, Saúde e Sociedade UVA-RJ
Esse gosto pelo teatro é evidente no trabalho de Freud.
Afinal, é com a fantasia que vestimos o nosso Eu.
(Denise Maurano, 2010, p.30 e 67)
O novo livro de Denise Maurano, Histeria: o princípio de tudo, vem compor a estante
daqueles volumes que gostamos de chamar de os “pequenos grandes livros”. Ele integra a
coleção Para ler Freud, organizada por Nina Saroldi e editada pela Civilização Brasileira. Seu
objetivo é despertar no leitor o desejo de percorrer a obra freudiana e verificar a atualidade de
suas construções, bem como dos sintomas, das angústias e dos desejos de pessoas que viveram
exatamente há cem anos, habitaram outro continente e falaram outra língua. Dito de outro modo,
demonstrar que o inconsciente é realmente atemporal e translinguístico, pois, movidos como o
são pelo que chamamos com Freud de Trieb ou pulsão, os seres falantes são raramente adeptos
do que é novo. Somos em primeira instância, e até segunda ordem, sujeitos bem conservadores.
Não é de hoje que acompanhamos com prazer o método que Denise Maurano aplica e
desenvolve: transformar a estética barroca em alavanca de leitura, ferramenta de
contextualização, chave interpretativa. Ela o explicita desde as páginas iniciais, propondo
simultaneamente que seu livro seja tomado como “manifesto em prol da histeria”. Ora, se Denise
não assina sozinha esse manifesto, já que nele certamente podemos incluir outros autores, nem
por isso seu livro deixa de ser particular. Diria, então, que pelo menos dois aspectos ganham em
seu texto uma dimensão que foge do comum: a ênfase no entrecruzamento do texto freudiano
com a grande obra teatral da Antiguidade e dos séculos XIX e XX; e a leitura da histeria através
dos óculos do estilo barroco, melhor dizendo, do gozo que as obras barrocas sugerem e evocam.
Nos anjinhos desnudos, assim como nas imagens de sangue, de crânios e caveiras, observa
Denise, há um endereçamento de curvas e espirais cujo “rebuscamento e a riqueza de detalhes
marcam a sua presença não apenas nas obras barrocas, mas nas manifestações histéricas, tanto
em sua sintomatologia quanto na lógica que opera na sustentação de tal sintomatologia” (p.40).
A partir da afirmação de que a Psicanálise segue a vocação histriônica de sua mãe: a
histeria, Denise percorre com clareza os principais textos de Freud sobre o tema e, com
frequência, o enlaça a um ou outro comentário de Lacan. No capítulo intitulado “Nos bastidores,
Freud entre a academia e o teatro”, descobrimos que a imperatriz Elisabeth II, imortalizada no
cinema pela atriz Romy Schneider, e sob o codinome Sissi, foi quem “deu à histeria uma
visibilidade a mais” (p.32). Algumas linhas adiante, ampliando a paródia freudiana que aproxima
o ritual obsessivo de uma religião individual e o sintoma conversivo de uma obra de arte, Denise
http://www.uva.br/trivium/edicao1-dez-2010/resenhas/1-histeria-o-principio-de-tudo.pdf
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chega a enunciar que “nos encontramos todos situados em uma obra aberta que é nossa própria
vida” (p.38).
“Histeria: o princípio de tudo” nos conduz dos primeiros estudos psicanalíticos à
necessária distinção entre o desejo e o gozo e à máxima lacaniana de que “não há relação
sexual”. Porém, não sem passar pela análise da estrutura defensiva da histeria, pelo enigma do
feminino e pela insatisfação como marca de desejo nos histéricos. É bem-vindo, então, o
destaque dado aos casos da Srta. Elisabeth Von R. – cujo verdadeiro nome era Ilona Weiss (p.25)
– e de Ida Bauer, a famosa Dora da história da Psicanálise. O primeiro pelo motivo de que,
argumenta Denise, foi o próprio Freud quem considerou “sua primeira análise completa de uma
histeria” (p56). O segundo, por desmistificar algumas ideias acerca das relações entre mulheres,
como na assertiva de que “a suposta homossexualidade de Dora não configurava propriamente
uma escolha de um objeto amoroso do mesmo sexo, mas sim indicava o que pode ser chamado
de uma homossexualidade de base, referida à relação da menina com a mãe, antes que ela se
volte para o pai, como terceiro, na dinâmica edípica” (p.95).
Para os leitores que, porventura, estejam ainda tomados pela cisão cartesiana entre a coisa
extensa e a pensante, Denise lembra que, sem considerar-se propriamente um homem de ciência,
Freud quis saber sobre psicopatolgia, entendendo-a desde sempre como a busca do sentido
daquilo que, no corpo, “causa espanto à alma” (p. 43). Adiante, ela extrai comentários de Freud
em sua vigésima quinta Conferência Introdutória à Psicanálise e no texto O recalque, para
lembrar que os afetos, coexistindo com as representações, correspondem à parte quantitativa da
pulsão: “funcionam, portanto, como quantidades deslocáveis, e sua relação com as pulsões
endossa a conexão indissociável entre o psíquico e o somático” (p.100).
Nas páginas finais, Denise trabalha o difícil e delicado enlace da pulsão de morte e da
cultura, entre outros motivos, para lembrar a descoberta freudiana de que o brincar das crianças,
embora compulsivo, é uma importante aquisição cultural, pois é renúncia à satisfação direta e
imediata da pulsão. Ninguém melhor do que os histéricos, prossegue a autora, para dar a ver que
“o desejo do homem é o desejo do Outro”, algo que Freud reconheceu com clareza desde 1900,
quando escreveu A interpretação dos sonhos. Ou melhor, desde que uma histérica lhe trouxe o
sonho que hoje conhecemos como A bela açougueira, uma jovem que dizia querer, mas não
desejava que o marido lhe desse tanto caviar, assim como queria, mas não desejava oferecer o
jantar de salmão com que engordaria a amiga. Isto porque, “alinhando-se à amiga, [ela] tenta
captar-lhe esse ‘quê’ de feminino que sensibiliza o marido”, ao mesmo tempo em que, “pondo-se
no lugar do marido, identificando-se com seu desejo, quer saber por que o marido ama a amiga”
(p.116).
Para distinguir seu manifesto do que poderia eventualmente ser tomado como um elogio à
histeria, Denise nos recorda que “o desejo, primeiro motor do psiquismo, marco inaugural de
toda atividade por ele engendrada, parte na caça do objeto que, enquanto perdido, jamais poderá
ser encontrado, senão reencontrado pelas pistas da fantasia fundamental, trazendo como
resultado a eterna defasagem entre a satisfação esperada e a encontrada” (p.123), Nunca haverá
acoplamento perfeito entre sujeito e objeto. Malgrado os histéricos tenham “sede do Absoluto,
como estratégia para suplantar sua própria divisão” (p.128), é Tanatos quem limita Eros, não o
inverso.
Ao encerrar o livro, Denise propôs que ficássemos a desejar. De certo modo, já estamos,
pois sua leitura nos deleita.
Recebido em: 26 de outubro de 2010.
http://www.uva.br/trivium/edicao1-dez-2010/resenhas/1-histeria-o-principio-de-tudo.pdf
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