12 graus Maurício Fregonesi Falleiros O Américo e a Silvânia viviam brigando por causa do ar-condicionado. Para ele sempre estava muito quente. Para ela, frio demais. Como também deve acontecer no lugar em que você trabalha. Todo dia era a mesma ladainha: – Nossa, Américo, que gelo. Desliga esse ar. – Você quer que todo mundo cozinhe aqui dentro, Silvânia? Eu não vou desligar. – Meu cérebro já tá congelando. Desliga esse ar! – Não vou desligar. Coloca uma blusa. – Eu não trouxe blusa. E nem vou trazer só porque você quer. – Então, não reclama. – Reclamo, sim! Você é um egoísta. – E você é uma chata! – Não sou chata, sou friorenta. – E senta bem de frente para o ar? – Que culpa eu tenho? O chefe me colocou para sentar aqui. – Quer trocar de lugar?! Eu troco com você. – Eu não. O sol bate bem na cara aí. – Então, não reclama... – Reclamo, sim. Você não é dono desse ar! – Nem você. – Falando assim você parece uma criança, Américo. – E você uma velha. – Como você é grosso. É impossível conversar com você. Volta pra caverna, volta. – Já instalaram ar-condicionado lá?! Quando não estavam discutindo, estavam agindo. Ele saía para tomar um café, ela aproveitava para desligar o ar. Ela dava um pulo no banheiro, ele ligava de novo. Ele ia pegar uma impressão, ela roubava o controle do aparelho. Ela ia fumar um cigarrinho, ele sequestrava o almoço dela e exigia o controle como pagamento pelo resgate. Certa vez, chegaram a queimar o ar com aquele liga e desliga. Levaram uma tremenda advertência e ainda tiveram que bancar sozinhos o conserto. Prometeram nunca mais brigar, mas foi só o aparelho voltar da assistência para a novela recomeçar. O chefe do departamento já tinha perdido as esperanças de dar um jeito neles – e não iria demiti-los, pois eram de longe os melhores funcionários – quando o Julião, que tinha esquecido os fones de ouvido um dia, resolveu intervir. E gritou do outro lado da sala: – Silvânia, sabia que o ar gelado acelera o metabolismo e ajuda a emagrecer? Hoje a temperatura média do escritório é de 12 graus. E quem achar que está frio demais que vá de blusa! Ou que vá falar com a Silvânia... Não falo nada Maurício Fregonesi Falleiros Do nada, o homem resolveu puxar assunto no elevador, coisa que nunca tinha feito antes. Se arrependeu mortalmente. – E a seleção ontem, hein? – Não tem pra ninguém, né? O Neymar joga demais. – Hum... Não acho ele tudo isso, não. – Como não?! O cara come a bola. – Só firula. – Que firula, o quê?! O cara é gênio. – Gênio é cientista, essas coisas. Ele só joga bola. – Mas quando o assunto é bola, ele é o cara. – Puro marketing. Pararam no andar do homem. O outro morador saiu junto do elevador. – Você mora nesse andar também? Nunca te vi por aqui... – Não, moro no décimo-oitavo. – E desceu aqui por quê? – Pra gente terminar o nosso papo. – Para com isso. Só tava puxando assunto. – Você me fala que o Neymar não joga nada e fica por isso mesmo? – Isso pode continuar outra hora. – Disse isso e entrou de supetão no apartamento. *** No dia seguinte, ele abriu a porta do apartamento e deu de cara com o neymarzete. – Que você tá fazendo aqui? – Tomando coragem. – Pra? – Tocar sua campainha. – Pra? – Terminar aquela conversa. – Tá nessa ainda? – Você ainda acha que o Neymar é só firula? – Acho. Sem dar chance de resposta para o inconveniente, o homem correu para o elevador. O vizinho impediu a porta com o pé: – Ainda não terminamos. – Terminamos, sim! – Falou, empurrando o pé do vizinho para fora do elevador. *** Horas mais tarde, ao chegar do trabalho, o homem por pouco não atropelou um ser que estava parado feito um cone na sua vaga. Era o vizinho. – Não é possível! O que você quer de mim, cara? – Que você reconheça que falou besteira! – Eu não vou reconhecer porcaria nenhuma. O Neymar é um firulento. E você, um mala! – Também não concordo com essa sua opinião. – Retrucou, seguindo o homem até a porta do elevador. O homem questionou: – Você vai subir de elevador? – Vou, sim. – Então, eu vou de escada. – Eu te acompanho. – Se você for de escada, eu vou de elevador. – Por que isso, cara? Tá fugindo da conversa? – Não, tô fugindo de você. Com um salto ornamental, o homem voou para dentro do elevador apertou todos os botões e se mandou. Quando entrou no seu apartamento, o interfone tocou. Ele teve a chance de deixar o aparelho tocando, mas atendeu. Se arrependeu novamente: – Pronto. – Arrá! Me driblou igual ao Neymar, hein? Lance de gênio! Mas eu te peguei. Bora trocar aquela ideia? – Você?! Vai arranjar alguma coisa pra fazer, dar um trato na sua esposa, se você tiver uma ainda, sei lá! – Tô descendo aí. – Se aparecer aqui, eu te dou um tiro. Eu juro. E faço parecer suicídio! Desligou o interfone e depois o tirou do gancho. Passou todas as travas na porta, preparou um uísque e pensou alto: – Nunca mais puxo assunto com ninguém. E se alguém puxar comigo, eu me faço de surdo. Deu um gole no uísque e ouviu um barulho na porta da sacada. Virou para lado e viu um vulto. Adivinha quem era. Tem de quê? Maurício Fregonesi Falleiros Joana, que estava sem comer carne desde que tinha casado com um professor de ioga, e que estava de dieta desde o dia em que nasceu – mesmo não precisando –, decidiu que aquele era o dia de dar uma escapadinha. Ela já não aguentava mais tanta pressão, precisava dar uma escapadinha. Mas não uma escapadinha do casamento, muito menos do vegetarianismo. Ela precisava dar uma escapadinha da dieta. Com essa ideia fixa na cabeça, ela deu um pulinho até uma padaria perto do trabalho e foi direto para o balcão onde ficavam os salgados. Joana ficou namorando alguns deles por um bom tempo e quando estava perto de babar em cima da estufa, chamou uma mocinha da padaria para atendê-la: – Moça, eu não como nada de carne. Então, queria uma ajuda sua. Que salgados sem carne você tem? – Olha... Tem de calabresa, salame, presunto e queijo. Tem salsicha empanada... – Não, moça. Eu perguntei que salgados você tem sem carne. – Então. Tem de calabresa, salame, presunto e queijo. Tem a salsicha empanada, que também sai bastante. – Acho que você não me entendeu, moça. Eu quero um salgado que não tenha nada de carne. Nadinha. – Mas esses que eu falei não têm nada de carne, não. De carne aqui só o kibe de carne, o croquete de carne e o pastel de carne. – Na verdade, todos esses que você falou são de carne. – Não, não. De carne só o kibe, o croquete e o pastel. O resto é de calabresa, salame, presunto e queijo, salsicha... – Tudo bem, mas calabresa, salame, presunto e salsicha também são carne. – Não são, não. Calabresa é calabresa. Salame é salame. Presunto é presunto. E salsicha é um troço feito de papelão. – Eu sei, eu sei! O que estou querendo dizer é que tudo isso um dia já foi carne. – Errou de novo. Calabresa, salame e presunto um dia foram porquinhos. E a salsicha, um dia foi um tipo de papel, só que mais grosso e marrom. – Meu Deus, hoje tá difícil. Olha, esquece essa história de carne. Você não tem nada só de queijo? – Tem, sim. Tem bolinha de catupiry, risole de catupiry, esfirra de catupiry. – Ah, não. Esse catupiry nunca é Catupiry mesmo. É sempre aquela massa nojenta de Maisena. Não tem nada sem esse catupiry genérico? – Não. Só os de carne. E os de calabresa, salame, presunto e queijo, salsicha... – Muito obrigada, eu dispenso. Quer saber? Deixa esses salgados pra lá. Os doces aqui são bons? – Nossa! São ótimos. A moça que cuida dos doces faz um quindim delícia. Faz o maior sucesso! – Jura? Então me vê logo uns dois. – Acabaram todos. – E fez essa propaganda toda pra quê? Enfim, pode ser uma bomba. Ou um brigadeiro. Ou uma mousse. Qualquer coisa, pelamordedeus, moça! – Acabaram todos. Todos mesmo. A moça que cuida dos doces não veio hoje, o filho dela ficou doente. A gente não teve como repor os doces hoje. *** Sem falar mais nada, Joana deu meia volta, pegou uma barrinha de cereal na prateleira e se dirigiu ao caixa.Tanta provação assim só podia ser um sinal de que os deuses não queriam que ela desse a tal escapadinha. Mas, enquanto tirava o dinheiro da carteira para pagar a barrinha ela refletiu: “quem os deuses pensam que são pra querer ou deixar de querer que eu faça alguma coisa?” Se ela tinha decidido que ia dar uma escapadinha naquele dia, ela ia dar uma escapadinha naquele dia. Joana pediu desculpas ao mocinho do caixa, colocou aquela barrinha de serragem de volta na prateleira e gritou pra moça dos salgados: – Vocês montam lanche quente aqui também? – Montamos... – Então, monta aquele bauru de carne pra mim. Com um bife dos bons, bem grosso. – Mas você não disse que... – E deixa sangrando, hein?!