UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD/UFRJ) PARA UMA PEDAGOGIA COMUNICATIVA NO ENSINO JURÍDICO: UMA ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE APRENDIZAGEM DESENVOLVIDAS EM ATIVIDADES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA AMANDA ALVES DE SOUZA RIO DE JANEIRO 2013 AMANDA ALVES DE SOUZA PARA UMA PEDAGOGIA COMUNICATIVA NO ENSINO JURÍDICO: UMA ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE APRENDIZAGEM DESENVOLVIDAS EM ATIVIDADES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Cecilia Caballero Lois RIO DE JANEIRO 2013 Souza, Amanda Alves de. Para uma pedagogia comunicativa no ensino jurídico: uma análise de experiências inovadoras de aprendizagem desenvolvidas em atividades de extensão universitária / Amanda Alves de Souza – 2013. 104 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito Bibliografia: f. 101-104 Orientadora: Cecilia Caballero Lois 1. Teoria do direito 2. Sociologia do direito 3. Ensino Jurídico 4. Extensão universitária – Dissertação I. Lois, Cecilia Caballero. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas. Faculdade de Direito. III. Título. CDD 340.2 AMANDA ALVES DE SOUZA PARA UMA PEDAGOGIA COMUNICATIVA NO ENSINO JURÍDICO: UMA ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE APRENDIZAGEM DESENVOLVIDAS EM ATIVIDADES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Data da aprovação: 05 de junho de 2013 _______________________________________________________ Presidente da Banca – Profa. Dra. Cecilia Caballero Lois Associada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ______________________________________________________ ______________________________________________________ "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática." Paulo Freire AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos à Professora Cecilia Caballero Lois pelos ensinamentos durante o período de orientação e pelas lições no estágio docência. Agradeço à Professora Juliana Neuenschwander Magalhães, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRJ, e à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa pelo financiamento concedido a esta pesquisa, sem o qual não teria sido possível desenvolver todo esse trabalho. Agradeço aos funcionários da Biblioteca Carvalho de Mendonça da Faculdade Nacional de Direito pelo suporte dado na pesquisa de bibliografia e resgate de monografias no acervo da Graduação. Ao Professor Marilson dos Santos Santana pelo incentivo ao ingresso no mestrado, por todos os ensinamentos desde a Graduação, por toda dedicação, pela amizade e pelas longas conversas que enriqueceram este trabalho e contribuíram significativamente para minha formação política, acadêmica e profissional. Não posso deixar também de agradecer aos Professores Marcos Silva, Gabriela Lema, André Luiz Conrado Mendes e Fernando Fontainha pela torcida e apoio ao longo de todo o mestrado e principalmente para que eu ingressasse na carreira docente. Agradeço a Eduardo Nicácio, André Rubião e toda equipe do Núcleo de Mediação da comunidade Serra do Programa Pólos de Cidadania da UFMG pela cessão de dados empíricos e materiais bibliográficos. Ao Professor José Geraldo de Sousa Junior por ter gentilmente me recebido na cidade de Brasília, por todos os livros doados e pelas brilhantes contribuições acadêmicas. Aos Professores Alexandre Bernardino Costa e Roberto Aguiar pelas conversas e contribuições que enriqueceram essa pesquisa. Aos meus colegas do mestrado Julia Rodrigues, Eric dos Santos Lima, Ana Catarina e Fernanda Lage pela solidariedade nos momentos difíceis e pelos momentos de alegria. Aos meus amigos Leonardo Paulistano, Renata Aguiar Leite e Juliana Peralta Conde pelo companheirismo, pelo apoio e pelo carinho desde a Graduação na Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Aos meus amigos e companheiros de lutas Augusto Cesar, Romero Bruno, Vasco Rodrigo, Roberto Monteiro, Sergio Machado, Bruno Isaac e Elias Khalil Jabbour pelo apoio, pelos momentos de alegria e descontração. A todos os integrantes do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ pelos debates, leituras e discussões que vão ficar pra sempre marcados na minha formação acadêmica, trajetória e memoria. A todas as forças políticas do movimento estudantil, do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira e da União Nacional dos Estudantes que inspiraram e em certa medida influenciaram este trabalho. A todos e todas que estiveram e estão em luta pela democratização da universidade brasileira. RESUMO Esta dissertação consiste na análise de uma concepção não assistencialista de extensão universitária e procura compreender a origem histórica e o desenvolvimento desta concepção na universidade e no ensino jurídico. Para elaborar esta análise recorremos num primeiro momento às contribuições de Paulo Freire, quando este colocava o problema da concepção assistencialista e dos modos de apredizagem nela implícitos, associando a estudos sobre a linguagem. A proposta de Freire de substituição do conceito de extensão pelo de comunicação coloca a linguagem como ponto chave para a rediscussão de processos de aprendizagem e de produção de conhecimento. Luis Alberto Warat já havia proposto uma crítica a pressupostos epistemológicos e teóricos no direito, atravessando a teoria saussuriana da linguagem. Paulo Freire e Warat, não chegaram a formular, no entanto, uma teoria da comunicação relacionada com uma teoria da sociedade contemporânea. Por isso, recorremos à teoria do agir comunicativo de Jurgen Habermas para compreensão mais aprofundada dos processos comunicacionais que se estabelecem em atividades autênticas de aprendizagem. Com o auxílio desta teoria, passamos a compreender que a extensão universitária, na sua vertente não assistencialista, pela sua origem histórica associada a projetos de democratização da universidade e pelo modo como se desenvolvem suas atividades, constitui-se em verdadeira ação comunicativa. No direito, a racionalidade comunicativa presente em experiências inovadoras de extensão contrasta com outra hegemônica de caráter instrumental presente no modelo de ensino jurídico. Além disso, a extensão como comunicação pode nos levar a repensar uma concepção problemática de direito que permeia o ensino jurídico, ora baseada na idéia de direito como sistema, ora baseada num senso comum teórico que conduz a um tratamento irracional e não reflexivo de demandas e institutos jurídicos. As experiências ocorridas no Programa Pólos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais, na Escola do Direito Achado na Rua da Unb e no Núcleo Interdisciplinar de Ações para Ciaddania da UFRJ oferecem subsídios maiores para que possamos compreender as tensões não apenas entre a concepção não assistencialista de extensão e o ensino jurídico, mas também a relação entre direito, sistema e mundo da vida. Palavras-Chave: extensão universitária, ensino jurídico, comunicação, linguagem, sistema, mundo da vida RÉSUMÉ Cette dissertation comporte une analyse d’une conception non assistentialiste de l’extension universitaire et cherche à comprendre l’origine historique et le développement de cette conception dans l’université et dans l’ enseignement juridique. Pour élaborer cette analyse nous nous sommes reportés d’abord aux contributions de Paulo Freire, quand il posait le problème de la conception assistentialiste et des moyens d’apprentissage implicites, en l’associant à des études sur le langage. La proposition de Freire de remplacement du concept d’ extension par celui de communication, considère le langage comme le point-clé pour la remise en discussion des procédés d’ apprentissage et de production du savoir. Luis Alberto Warat avait déjà proposé une critique aux présuppositions épistemologiques et théoriques dans le droit, parcourant la théorie saussurienne du langage. Paulo Freire et Warat, ne sont pas arrivés à formuler, cependant, une théorie de la communication associée à une théorie de la société contemporaine. Pour cette raison, nous avons eu recours à la théorie de l’action communicative de Jürgen Habermas pour une compréhension plus approfondie des procédés communicatifs qui s’établissent dans les activités authentiques d’apprentissage. Grâce à cette théorie, nous avons pu comprendre que l’extension universitaire, dans son côté non assistencialiste, par son origine historique associée à des projets de démocratisation de l’université et par la manière dont ses activités sont développées, représente une véritable action communicative. Dans le droit, la rationalité communicative présente dans des expériences innovatrices d’ extension contraste avec une autre dominante de caractère instrumental présente dans le modèle d’enseignement juridique. En plus, l’ extension comme communication peut nous amener à repenser une conception problématique du droit qui traverse l’ enseignement juridique, tantôt basée sur l’idée de droit comme système, tantôt basée sur un sens commum théorique qui aboutit à un traitement irrationnel et non réfléchi des demandes et instituts juridiques. Les expériences développées dans le Programa Pólos de Cidadania de l’ Université Fédérale de Minas Gerais, dans l’Escola do Direito Achado na Rua de l’ Unb (Université de Brasília) et dans l’ Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania (Université Fédérale de Rio de Janeiro) offrent des subsides plus importants pour que nous puissions comprendre les tensions pas seulement entre la conception non assistentialiste d’ extension et l’ enseignement juridique mais aussi la relation entre droit, système et monde-de-lavie. Mots-Clés: extension universitaire, enseignement juridique, communication, langage, système, monde-de-la-vie SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 9 Capítulo 1. EXTENSÃO OU COMUNICAÇÃO – Apresentação de uma concepção não assistencialista de extensão universitária e de conceitos da teoria habermasiana...............................................................................................................................16 1.1 A extensão como comunicação e os equívocos gnosiológicos da concepção assistencialista.....................................................................................................................................18 1.2 Extensão, comunicação e a proposta de construção de uma semiologia política.......................... 23 1.3 Racionalidade comunicativa, epistemológica e teleológica...............................................................27 1.4 Ação comunicativa, ação estratégica e os diferentes modos de utilização da linguagem................32 1.5 Sistema e mundo da vida..............................................................................................................36 1.6 O direito como linguagem ou medium entre sistema e mundo da vida.........................................40 1.7 Princípio do discurso, princípio da democracia e a gênese lógica do direito..................................45 Capítulo 2. EXTENSÃO, COMUNICAÇÃO, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE MUDANÇA DO MODELO DE ENSINO JURÍDICO................................................................49 2.1 Extensão e democratização da universidade: histórico do processo de institucionalização de uma concepção não assistencialista de extensão universitária e sua relação com o modelo de ensino jurídico...............................................................................................................................................49 2.2 Origem histórica de uma concepção não assistencialista de extensão nas faculdades de direito............................................................................................................................. ............................58 2.3 A Extensão no direito à luz da proposta de Paulo Freire de substituição do conceito de extensão pelo de comunicação e da teoria de Habermas........................................................................................62 2.4 Diagnóstico e problemas do modelo de ensino jurídico.................................................................68 Capítulo 3. EXPERIÊNCIAS NÃO ASSISTENCIALISTAS DE PESQUISA-EXTENSÃO: O CASO DO PROGRAMA PÓLOS DE CIDADANIA DA UFMG, DA ESCOLA DO DIREITO ACHADO NA RUA DA UNB E DO NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE AÇÕES PARA CIDADANIA DA UFRJ...................................................................................77 3.1. Programa Pólos de Cidadania da UFMG........................................................................................77 3.1.1 Análise Crítica de políticas públicas, comunicação e o resgate da dignidade política do curso de direito: breve relato sobre a atuação do Programa Pólos de Cidadania no contexto de implementação do “Programa Vila Viva Serra” de Belo Horizonte................................................84 3.2 Escola do Direito Achado na Rua da Unb.......................................................................................88 3.2.1 Relato sobre a contribuição do Projeto Promotoras Legais Populares – PLPs para a formação dos estudantes de direito.............................................................................................................91 3.3 Núcleo Interdisciplinar de Ações Para Cidadania da UFRJ..................................................................94 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................101 ANEXO A ANEXO B REFERÊNCIAS 9 Introdução A extensão universitária, na sua vertente não assistencialista, tem uma origem histórica associada a projetos de democratização da universidade brasileira, reivindicados pelo movimento estudantil. Os estudantes, ao colocarem a necessidade de uma reforma universitária, demonstravam sua insatisfação com um modelo de universidade indiferente a demandas sociais e aos anseios de uma maioria. Nas faculdades de direito, tal descontentamento se refletiu na criação dos Serviços de Assessoria Jurídica Gratuitos – os SAJUs pelos estudantes1, tendo estes como um dos seus objetivos principais discutir no curso de direito o problema da democratização do acesso a justiça na sociedade. Com o fim dos governos militares e a conseqüente abertura da universidade para o atendimento de reivindicações do movimento estudantil, passou-se a discutir políticas de institucionalização de uma concepção não assistencialista de extensão universitária. Nos cursos de direito especificamente, esse processo de institucionalização começou a ser debatido no início dos anos de 1990, quando reunida a Comissão de Ensino Jurídico da OAB, constatou -se a crise do modelo de ensino jurídico e o problema da reprodução de conhecimento descontextualizado ou não condizente com demandas concretas da maioria da sociedade.2 Diante disso, foram traçadas novas diretrizes como as de exigência de cumprimento de atividades complementares e a de implantação de atividades supervisionadas nos Núcleos de Prática Jurídica. Ainda assim, muitos dos problemas diagnosticados no processo de reformas permanecem. Que problemas são esses? De que maneira pode a extensão universitária apontar caminhos para superação de problemas presentes no ensino jurídico? Que tipo de formação vem oferecendo as faculdades de direito? 1 Ver em www.ufrgs.br/saju Porto, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação – construção do projeto didático no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. Págs. 40-41 2 10 Essas são algumas das questões que procuraremos enfrentar neste estudo. Apesar das mudanças provocadas pelas reformas de 1994 editadas pelo Ministério da Educação e, mais adiante as de 2004 editadas pelo Conselho Nacional de Educação3, procuraremos identificar problemas que ainda sustentam a permanência de um determinado modelo de ensino jurídico e de que maneira esse modelo oferece resistência ao desenvolvimento de experiências de extensão consideradas inovadoras na área do direito. Analisaremos porque essas experiências são consideradas inovadoras e que impactos elas podem provocar na formação dos estudantes. Para elaborar esta análise, nos utilizaremos das contribuições de Paulo Freire4, Jürgen Habermas na Teoria da Ação Comunicativa 5 e Teoria do Direito6, além de material bibliográfico ou dados empíricos fornecidos pelas equipes do Programa Pólos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais 7, da Escola do Direito Achado na Rua da Universidade de Brasília 8 e do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ Apresentaremos, no Capítulo 1, conceitos como os de racionalidade comunicativa e ação comunicativa, por exemplo, para, em seguida, no Capítulo 2, verificarmos como esses conceitos podem explicar o modo como se desenvolvem experiências de aprendizagem em atividades de extensão de caráter não assistencialista. Trabalhamos, neste estudo, inicialmente com a hipótese de que a extensão, enquanto atividade essencialmente estruturada em ações comunicativas, se rege por uma racionalidade que 3 Ver Portaria 1.886/94 do Ministério da Educação e Resolução n. 9 do Conselho Nacional de Educação. 4 Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983 . 5 Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 6 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. 7 8 Ver em Extensão no site www.direito.ufmg.br SOUSA JR., José Geraldo; COSTA, Alexandre Bernardino e SAID FILHO, Mamede (Org.). A prática jurídica na Unb: reconhecer para emancipar. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2007. (Coleção Prática Jurídica; v.1). 11 parece contrastar com uma outra instrumental e hegemônica no contexto do ensino jurídico, que tende a levar seus atores a perquirirem quase que exclusivamente êxitos pessoais ou orientarem suas ações segundo “os imperativos sistêmicos do poder e do dinheiro”.9 Essa hipótese foi construída a partir de observações e de pesquisa bibliográfica sobre ensino jurídico em que se pode verificar uma certa tendência entre docentes e alunos de tratar realidades sociais complexas de forma objetificante e puramente instrumental, transformando demandas sociais ou por direitos em objeto e “termômetro” da eficácia de suas intervenções judiciais ou de outras intervenções nas estruturas administrativas do Estado. Quanto mais “eficazes” são suas intervenções judiciais na resolução de determinados conflitos, ainda que esta resolução seja apenas aparente, ou quanto mais especializada na burocracia administrativa do Estado é a formação oferecida, tanto mais próximos estarão da hegemônica racionalidade sistêmica. Isso dificulta, por outro lado, uma compreensão mais ampla de demandas por direitos em uma perspectiva participante de processos presentes no mundo da vida. Na contramão da mencionada tendência, em atividades de caráter não assistencialista, observamos inicialmente que os alunos possuem como preocupação principal o conhecimento da realidade social na qual estavam imersas demandas por direitos, procurando entender sentidos e saberes pré-teóricos produzidos por aqueles que vivenciam aquela realidade. Ao longo de seis anos de participação em atividades do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIACUFRJ 10 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, percebemos que os alunos integrantes dessas atividades possuíam, em geral, uma profunda capacidade de se colocarem como co-participantes 9 Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Pág. 190-191. 10 O Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania é um programa de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro que reune a Escola de Serviço Social, o Instituto de Psicologia, a Faculdade Nacional de Direito e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Teve sua origem em um projeto elaborado por estudantes de Direito do Centro Acadêmico Candido de Oliveira, denominado Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar, mas ficou conhecido como Projeto Maré, devido à proposta inicial de promover ações integradas na área dos Direitos Humanos no complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro. Ver Souza, Amanda. Estudo sobre a nova praxis extensionista na Faculdade de Direito da UFRJ. Monografia de Graduação em Direito. Orientação: Marilson Santana. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. 12 de processos de entendimento dessa mesma realidade bem como habilidades de estabelecerem, conjuntamente com as comunidades demandantes, planos consensuais de ação para intervenção naquele contexto. Além disso, o contato com outras áreas de conhecimento como a Psicologia, Serviço Social, Arquitetura e Urbanismo no NIAC-UFRJ parece ter oferecido aos estudantes de direito uma compreensão mais panorâmica da realidade das comunidades e provocado nos mesmos uma postura crítica às concepções de direito que subjazem na formação em geral oferecida na faculdade. Constatamos ainda nessas atividades um ponto comum entre as diferentes áreas acadêmicas de resistência a uma concepção assistencialista de atuação da universidade, resistência essa que pode encontrar em Paulo Freire 11 um primeiro suporte teórico e metodológico para se explicar o que significa produzir conhecimento a partir de atividades de pesquisa integradas à extensão universitária. Aliás, encontrar referências bibliográficas constitui um problema para quem desenvolve pesquisa integrada a atividades de extensão, especialmente na área do direito. A área do direito não possui em geral um debate acadêmico sobre uma formação integrada à extensão que possibilite o surgimento constante de referências acadêmicas com perfil diferenciado. Apesar de ser precipuamente um divisor de águas para a área da educação, Freire pode suprir essa falta de debate no direito, pois seus argumentos e criticas podem funcionar também como uma referência para os processos de aprendizagem que se estabelecem em experiências de extensão consideradas inovadoras como as do Programa Polos de Cidadania da UFMG, por exemplo. Isso porque Freire constrói suas formulações sobre o que significam processos de aprendizagem na extensão, associando a estudos sobre a linguagem 12. Algo semelhante foi feito também no direito por Warat 13 quando este procurava explicar o fenômeno jurídico ou os modos de atuação dos juristas em geral, associando tais explicações a estudos sobre a linguagem. Além 11 Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Pág. 79. 12 13 Ibidem Pág. 21. Warat, Luis Alberto. Colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua Linguagem. 2ª. Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1995. Pág. 20. 13 disso, a linguagem vem sendo elemento constitutivo da teorização contemporânea do direito de Habermas14 e Luhmann, ao afirmar este ultimo que o sistema jurídico, como sistema parcial da sociedade, não se reproduz senão através da comunicação. 15 Discutir extensão no direito perpassa necessariamente pelo debate sobre concepção de ensino/educação jurídica e discutir ensino jurídico significa tratar da compreensão do que venha a ser mesmo o fenômeno jurídico. Como nos ensinou Lyra Filho 16, uma concepção equivocada do que venha a ser o direito explica os equívocos de sua pedagogia e vice-versa. Mas discutir as concepções de direito implícitas no modelo de ensino jurídico também significa na contemporaneidade problematizar, em alguma medida, as diferentes concepções de linguagem nelas colocadas. Verificamos que a substituição do conceito de extensão pelo de comunicação produzida por Freire pode promover, para quem se propõe a entender processos de aprendizagem em atividades de extensão no direito, uma abertura para um diálogo com as teorias de Habermas, o que pode também nos auxiliar na problematização do modelo de ensino jurídico e das concepções de direito nele implicadas. Em sua teoria do direito, Habermas está preocupado em explicar o fenômeno jurídico em uma sociedade marcada por complexidades e conflitos que põem constantemente à prova sua legitimidade. Além disso, preocupa-se em explicar a existência dos direitos subjetivos, que garantem aos cidadãos liberdades individuais e políticas de participação, rompendo tanto com uma fundamentação relacionada a direitos naturais quanto com uma fundamentação teórica que extrai da legalidade como que implicitamente a legitimidade da garantia desses direitos. 17 14 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003.Págs 27-28. 15 El derecho de la sociedad / Niklas Luhmann; formatação eletrônica de Joao Protasio Farias Domingues de Vargas, Marjorie Correa Marona e Juliana Neuenschwander Magalhaes – Versão 5.0 de 13/01/2003. Pág. 22. 16 LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da Unb, 1980. 17 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003.Págs 116-122 14 Habermas enxerga uma tensão constante entre facticidade e validade, entre coercitividade do direito e a sua pretensa legitimidade, encontrando nos direitos subjetivos de participação política uma das chaves para explicar essa tensão permanente na qual se estrutura o direito. Para o autor, o direito coercitivo somente consegue garantir sua força se a totalidade dos destinatários singulares das normas jurídicas puder considerar-se autora racional dessas normas.18 Esse processo de avaliação da condição de autores do mesmo direito de que são destinatários perpassa pelo exercício de direitos subjetivos que garantem também a participação política de cidadãos em debates públicos ou em processos comunicativos que ocorrem numa esfera pública autônoma. Uma outra questão que nos interessa na teoria do direito de Habermas e que nos parece fundamental para a discussão do ensino jurídico, refere-se à sua crítica à concepção de direito como sistema. Nesta concepção, os processos políticos, a esfera pública e a cultura são subsistemas que circundam o sistema jurídico, possuindo linguagens próprias que, muitas das vezes, o sistema jurídico não necessariamente compreende. E, se compreende essas linguagens, o faz traduzindo-a segundo linguagens, mecanismos e interesses próprios do sistema jurídico, dando uma conotação diversa daquela gerada nos processos políticos originários. Isto quer dizer que enxergar o sistema jurídico como um sistema significa analisar o Direito e a Política, o sistema jurídico e o mundo da vida, de maneira não necessariamente articulada, já que o subsistema do direito é concebido como relativamente autônomo e se diferencia do seu entorno graças a operações e a uma linguagem específica que lhe é própria.19 Interessa-nos analisar as diferenças entre a noção que concebe o direito como um sistema e a concepção de direito como algo presente tanto em sistemas de códigos especializados como no mundo da vida onde podem ser iniciados processos de legitimação e deslegitimação do direito positivo. A partir dessa diferenciação, verificaremos de que maneira o modelo de ensino jurídico pode se aproximar, em alguma medida, de uma concepção de direito como sistema e de que maneira a extensão, entendida como ação comunicativa, abre outras perspectivas de compreensão 18 19 Ibidem Pág. 54-60 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Págs. 74-75 15 do fenômeno jurídico, aproximando-o da esfera pública e dos processos comunicativos a ela inerentes. Processos de aprendizagem apoiados em ações comunicativas podem criar as condições necessárias para compreensão do direito como linguagem ou médium entre sistema e mundo da vida, resignificando assim a concepção de ensino e de direito que subjaz a formação que vem sendo normalmente oferecida. Por isso, a extensão, na sua vertente não assistencialista, pode nos apontar novas perspectivas teóricas e metodológicas, ao promover uma aproximação entre fenômeno jurídico e mundo da vida e desenvolver processos pedagógicos que se regem segundo uma racionalidade comunicativa. A extensão pode, assim, indicar de que maneira o fenômeno jurídico pode ser compreendido sem que se exclua a possibilidade de estar também implicado em processos sociais que ocorrem no mundo da vida ou numa esfera pública que encontra na comunicação a sua força vital. 16 Capítulo 1: Extensão ou comunicação - Apresentação de uma concepção não assistencialista de extensão universitária e de conceitos da teoria habermasiana Neste capítulo, apresentaremos a proposta de Freire de substituição do conceito de extensão pelo de comunicação a fim de iniciarmos a colocação do problema de como se desenvolvem processos de aprendizagem em uma concepção não assistencialista de extensão universitária. Freire teceu passos relevantes a fim de que possamos compreender o papel que cumpre uma concepção não assistencialista de extensão dentro de um determinado modelo de ensino jurídico. O autor dedicou-se a criticar o assistencialismo extensionista, desde 1968, ao problematizar o conceito de extensão e propor a sua substituição pelo conceito de comunicação. 20 Com isso, promoveu a desconstrução de uma concepção assistencialista historicamente presente na universidade. O extensionismo assistencialista foi amplamente difundido no Brasil em projetos da época como o Rondon e os Centros Rurais de Treinamento e Aperfeiçoamento Técnico – CRUTACs.21 Em linhas gerais, a concepção assistencialista pressupõe o ato de estender saber técnico ou científico a agricultores e trabalhadores, o que, para Freire, traduziria um equívoco gnosiológico e uma verdadeira invasão cultural, pois compreende a extensão como comunicação ou situação gnosiológica que se caracteriza pela relação dialógica intersubjetiva para o entendimento de algo no mundo. Na construção dessa relação, educadores encontraram dificuldades de ordem material, acadêmica e cultural, inerentes a um modelo de universidade ainda calcado em uma educação bancária que pressupõe a transferência de conhecimento daquele que sabe àqueles que nada sabem. Estas dificuldades vão desde a não oferta de infraestrutura necessária ao desenvolvimento constante do próprio diálogo com camponeses até os limites da própria formação universitária 20 Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Pág 11-13 21 Sousa, Ana Luiza Lima. A história da extensão universitária. Campinas: Editora Alínea, 2000. Págs. 6163 17 que muitas vezes não oferece todo suporte teórico e metodológico necessário à produção de conhecimento científico a partir de processos dialógicos e/ou pedagógicos. As comunidades de trabalhadores e camponeses, por sua vez, encontrarão dificuldades de estabelecer essa relação, visto que estão submetidas constantemente a relações sociais de exploração econômica e dominação que lhes emudecem ou vão tolhendo gradativamente sua capacidade de analisar criticamente ao falarem sobre sua própria realidade. Apesar de todos esses limites, quando a relação dialógica se estabelece, conforme veremos mais detalhadamente, não estamos mais falando em extensão, mas em comunicação. A partir desta concepção de aprendizagem baseada na comunicação, pode-se apontar para as faculdades de direito caminhos para promoção de mudanças na concepção de ensino jurídico ou mesmo de direito. Preocupação semelhante a esta que temos com o ensino jurídico pode ser encontrada nas formulações de Warat sobre o esgotamento da produção discursos jurídicos elaborada por juristas. O autor dedicou-se a construção de criticas a pressupostos epistemológicos presentes no direito, entendendo que a construção de uma nova concepção de ciência e de direito, pressupunha uma analise critica de diferentes concepções linguagem/comunicação que, em alguma medida, estariam influenciando os discursos jurídicos.22 Antes de entrarmos nessa discussão acerca dos problemas do modelo de ensino jurídico e, portanto, de problemas contidos na concepção de ensino, ciência e de direito implícitos nesse modelo, vejamos como Freire construiu a mencionada proposta de substituição. Freire, porém, não se propõe a construir uma teoria que tenha a linguagem e a comunicação como elemento central, embora não tenha deixado de levar em consideração a linguística para desenvolver suas formulações e raciocínios. 23 De igual maneira, no direito, Warat, apesar de lançar e tecer passos significativos para a construção de uma semiologia politica ou de uma produção de conhecimento critica dos processos de significação produzidos pelo 22 Warat, Luis Alberto. Com colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua linguagem. 2ª Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 17-18 23 Freire inicia sua critica a concepção assistencialista pela aproximação semântica do termo extensão e apoiando-se em estudos modernos da semântica. Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Pág. 21 18 direito na sociedade, também não chegou a formular uma teoria que possa servir de marco para compreensão do nosso objeto. Por isso, verificaremos como a teoria do agir comunicativo oferece maiores subsídios para explicar processos de aprendizagem em uma concepção não assistencialista de extensão. Conceitos como os de racionalidade comunicativa, racionalidade instrumental, ação comunicativa, ação estratégica, sistema e mundo da vida podem nos servir de suporte para esta explicação. Assim, apresentaremos neste Capítulo as noções preliminares para que, no Capítulo 2, possamos analisar nosso objeto de estudo, a saber, experiências e processos de aprendizagem ocorridos em atividades de extensão desenvolvidas no interior de um determinado modelo de ensino jurídico. 1.1 A Extensão como comunicação e os equívocos gnosiológicos da concepção assistencialista Neste momento, analisaremos mais detalhadamente as contribuições de Paulo Freire para uma compreensão não assistencialista das atividades de extensão e a sua proposta de substituição do termo extensão pelo de comunicação. Embora Freire tenha tomado em seu texto a experiência de agrônomos com camponeses como referência para suas formulações24, não valem elas apenas para estes profissionais, mas para educadores em geral que se propõem a desenvolver atividades semelhantes em outras áreas do conhecimento, pois tais atividades possuem um caráter pedagógico que deve ser discutido criticamente. 25 Freire começa a problematizar a concepção assistencialista das atividades implementadas por agrônomos pela análise semântica do termo extensão que indica a ação de estender algo àquele que recebe o conteúdo objeto da ação. No contexto do agrônomo, o termo extensão 24 Ibidem. Pág. 24. 25 Embora Freire tome o exemplo especifico da experiência dos agrônomos, pode-se inferir que seus argumentos são universalizáveis a ponto de servirem de diretrizes para outras categorias profissionais, visto que a partir desse exemplo particular ele passa a problematizar formas de aprendizagem e produção de conhecimento de uma maneira mais genérica ou ampla. 19 significa, nesta primeira acepção, que ele estende conhecimentos e técnicas àqueles presentes em regiões rurais ou de reforma agrária. 26 A presença de um outro elemento humano no contexto de interferência do agrônomo é elemento essencial a ser considerado para que o termo passe a ter plenitude de sentido. Sua intervenção se daria, portanto, no domínio humano e não natural, para que os camponeses possam implementar mudanças em seus contextos gerais de vida através de técnicas e conhecimentos científicos. Como se pode perceber, o termo extensão aparece com um sentido diretamente relacionado à ideia de transmissão, entrega ou mesmo persuasão. Esta relação de associação de sentidos foi explicada através da teoria dos “campos associativos”, cujo objetivo consiste principalmente em comprovar que existe uma relação estrutural de dependência entre as palavras que se dá através dos chamados “campos linguísticos”, ou seja, dos campos de significação conceitual que expressam uma determinada visão de mundo. 27 Vale ressaltar que o estruturalismo de Saussure já havia inaugurado anteriormente a ideia de que a linguagem constitui-se enquanto sistema dotado de unidades linguísticas que, por regras de diferenciação intrínsecas, encontramse inter-relacionadas, formando assim um campo de significação e compreensão. A linguagem funcionaria como um sistema de unidades que induz naturalmente, pela sua estruturação, a um determinado campo de compreensão dos termos e a determinada visão de mundo. 28 Assim, a análise semântica do termo extensão nos remete quase que naturalmente à ideia de que a atividade extensionista consiste no trabalho de ida do agrônomo até um outro contexto social para estender a ele, à sua maneira, os seus conhecimentos e técnicas e, com eles, a sua 26 Ibidem Pág. 20 27 Ibidem Pág. 21. 28 Warat afirma que a semiologia saussuriana se encarregou de estudar as leis e os conceitos metodológicos gerais que poderiam ser considerados validos para todos os sistemas signicos. Ou seja, seria um estudo voltado à determinação das categorias fundantes e as regras metodológicas pertinentes à constituição de uma ciência dos signos em sentido estrito. No livro, O Direito e sua linguagem o autor promove uma leitura critica do direito como ciência e fenômeno social atravessando pressupostos estruturalistas da linguagem. Afirma que um de seus propósitos neste livro seria denunciar o esgotamento da produção linguístico-semiológica dos juristas. Warat, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Colaboração de Leonel Severo da Rocha. 2ª. Edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. Pág. 99 20 visão de mundo. Existe, incutida na concepção assistencialista de extensão, a idéia de que é papel do agrônomo “normalizar” uma outra realidade, sendo que os êxitos de sua ação estariam relacionados a resultados objetivos provocados pelo controle técnico por camponeses de fenômenos de causas consideradas naturais. Isto implicaria ainda na transformação do outro em “objeto indireto de uma ação” ou “ser abstratamente concebido” e, por outro lado, na negação deste mesmo outro como agente e sujeito também de ações no mundo. Outra implicação desta compreensão da atividade extensionista reside no fato de não se perceber nela um que-fazer educativo libertador 29, fato este que pode explicar o papel secundário que ainda cumpre a extensão dentro do conjunto de funções sociais compreendidas como próprias da universidade. 30 A extensão passa a ser vista como simples instrumento de divulgação de resultados provenientes de pesquisas teóricas, essas últimas sim consideradas atividades essencialmente acadêmicas. Se compreendermos a atividade do agrônomo-extensionista como atividade educativa e comunicativa, perceberemos nela um processo de aprendizagem com sujeitos que atuam de maneira livre de coerção ou “domesticação”, cujo objetivo seria tão somente chegar, pela via racional e discursiva, a um entendimento ou sentido sobre o mundo.31 O equivoco gnosiológico implícito na utilização do termo extensão reside justamente no fato de não se perceber que a atividade do agrônomo insere-se numa dialogicidade de sujeitos em torno de um objeto cognoscível que buscam ambos conhecer. O ato de conhecer autêntico implica na transformação de ambos, o agrônomo e o camponês, em sujeitos que, buscando conhecer o objeto, procuram, numa relação intersubjetiva, reinventá-lo ou revelá-lo criticamente através da linguagem. 32 O ato de estender algo a alguém, ao contrário, implica em considerar 29 Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 30 Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão na América Latina In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos de Faria (Org.). Brasília, Universidade de Brasília, 2001. Págs 16-19 31 A partir dessa compreensão, justifica-se mais adiante a adoção da teoria do agir comunicativo como marco para se explicar de maneira mais aprofundada formas de aprendizagem ocorridas em experiências não assistencialistas de extensão. 32 Critica-se aqui o processo de absolutização da ignorância dos camponeses, como se estes não fossem portadores de um saber, ainda que pré-científico, capaz de colocá-los na condição de sujeitos da ação e que deve ser levado em consideração no processo de produção do conhecimento, já que também o 21 que o outro apenas vai “dar-se conta” de algo tido como transmissível e não como cognoscível. 33 O outro é um ser abstratamente concebido que tão somente receberá de maneira mecanicista algo supostamente estático e transmissível que vem a ser o conhecimento. O outro é indiretamente posto na posição de objeto da ação de transmitir, cujos objetivos são fazer com que se substitua um conhecimento por outro e provocar, através dessa operação, um determinado resultado no mundo objetivo. A propósito da questão de provocar resultados objetivos, muitos agrônomos argumentam que, movidos pela urgência do tempo e da necessidade de aumento de produtividade agrícola em áreas de reforma agraria, não conseguem estabelecer uma relação de diálogo com os camponeses, o que os leva ainda a não observação das condições culturais em que ocorrem as atividades extensionistas e a uma postura em defesa da invasão cultural. 34 O problema da invasão cultural reside no fato de que ela pressupõe a descaracterização da cultura invadida para o fim de preenchê-la com produtos da cultura invasora, o que envolve não apenas a substituição de conhecimentos, mas linguagens, valores e visões de mundo. Em realidade, a dificuldade dos agrônomos em estabelecer uma relação dialógica com os camponeses se deve, em parte, por conta de um histórico de dominação dos camponeses e de sua submissão a relações sócio-culturais verticais provenientes de estruturas como o latifúndio monocultor. Os camponeses estiveram por muito tempo submetidos há uma relação sócio-cultural anti-dialógica, o que exige um certa transição para um outro contexto de reforma agrária. O equívoco implicitamente presente no termo extensão implica em não reconhecer o ato de conhecer em si como uma relação dialógica, o que vai de encontro à própria compreensão de si mesmo daquele que julga-se detentor de saber. Mesmo este sujeito, no ato de pesquisa científica tradicional, no qual encontra-se aparentemente só, trava um diálogo com uma comunidade de outros tantos homens que anteriormente a ele já havia problematizado e agrônomo, quando ainda busca conhecer a razão de ser dos fenômenos, insere-se também ele num domínio de conhecimento pré-científico. 33 Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Págs. 79-81 34 Ibidem Pág 45 22 empreendido formulações acerca do objeto cognoscível. 35 Passa também por um processo de auto-reflexão36, pois, para chegar à aprendizagem autêntica tem de afastar-se criticamente de suas opiniões, convicções e pressupostos, a fim de por estes a prova nesta relação dialógica com a comunidade de pensadores que possui um acúmulo que não há como ser desprezado. A idéia de extensão, portanto, não se sustenta enquanto produção autêntica de conhecimento, já que parece desprezar uma dialogicidade implícita ao ato de conhecer. De fato, Freire ressalta que “dar-se conta” de algo pertence ao domínio do sensível ou da “doxa”, no qual se encontram formas desarmadas ou puramente experimentais de aquisição de conhecimento pré-científico, em que ainda não se atingiu o conhecimento da razão de ser das coisas. Isso difere de “desvelar” relações existentes nesse mesmo mundo, algo que pertence ao domínio do “logos”, domínio este reflexivo que impõe um afastamento crítico do mundo para encontrar de maneira racional uma explicação científica para o que ocorre no mesmo. A partir dessas distinções, o autor convence-se de que o problema implícito no termo extensão está relacionado a um problema epistemológico, ou seja, relacionado à forma como se concebe a produção de conhecimento, problema esse que atinge inevitavelmente valores culturais, concepções e modos de utilização da linguagem. Convence-se ainda de que qualquer esforço de educação popular, esteja ele associado ou não a uma capacitação profissional, seja em âmbito rural ou urbano, deve ter determinados objetivos fundamentais: problematizar as relações homem-mundo ou homem-homem no mundo e criar condições para que tomem racionalmente consciência do que ocorre na realidade ou no contexto em que estão inseridos, o que transformaria o conhecimento pré-científico em técnico ou científico. Mais do que um técnico distante, o que-fazer fundamental do agrônomo consiste no trabalho de um educador que 35 Ibidem Pág 79 36 A expressão auto-reflexão foi utilizada por Habermas nos anos de 1960 quando este colocava a importância da abertura da universidade para temas políticos. Para o autor, a discussão desses temas leva a universidade a uma auto-reflexão, visto que os debates seguem o mesmo princípio pelo qual deve se pautar a reflexão científica, ou seja, segundo o princípio do discurso, segundo o qual não deve prevalecer nenhuma outra força que não seja a do melhor argumento. The University in a democracy: democratization on the university In Toward to a rational society: students and politics / Jurgen Habermas. Translated by Jeremy J. Shapiro. Boston: Bacon Press, 1970. Págs. 7 e 8 23 compromete-se e se insere com os camponeses na transformação, como sujeito, com outros sujeitos, e até mesmo outros educadores, do contexto de reforma agrária. 1.2 Extensão, comunicação e a proposta de construção de uma semiologia política Embora a linguagem ou as teorias da linguística não sejam objeto das preocupações principais de Freire em Extensao ou Comunicacao? , o autor recorre à linguística como primeiro passo para tecer suas críticas a concepção assitencialista de extensão. Como ponto de partida de suas formulações, vimos anteriormente que Freire encontra, na aplicação de parte da teoria saussuriana dos signos, um início do problema que envolve a utilização do termo extensão para designar atividades de aprendizagem desenvolvidas a princípio por agrônomos com camponeses. De maneira semelhante, embora estivesse com preocupações teóricas voltadas as condições de produção discursiva e de conhecimento no direito, Warat parte da teoria saussuriana para construir uma analogia entre a semiologia e a teoria kelseniana ou, em outras palavras, entre linguística e ciênca jurídica. Com isso teceu os primeiros passos, para formulação da proposta de construção de uma semiologia política no direito. Warat explica que as pretensões da teoria saussuriana de criar uma ciência pura dos signos partiam da divisão entre plano dos fatos e plano das ideias ou do conhecimento, divisão esta que pode ser traduzida através da distinção entre língua e fala. Assim, intentou-se reconstruir, no plano do conhecimento, um sistema teórico que explicasse um funcionamento lógico dos diversos tipos de signos. Os diferentes tipos de unidades sígnicas traduzem verdadeiros esquemas ideais de interpretação do que ocorre no mundo da linguagem natural e/ou da fala 37, sendo tarefa da ciência dos signos, como meta-linguagem, esquematizar as leis ou os critérios de diferenciação, semelhança e inter-relacionamento entre as diversas unidades identificadas. 38 Tal esquematização pressupõe, portanto, uma separação do mundo dos fatos ou da fala para poder contraditoriamente explicá-lo. 37 Neste sentido, os signos são a meta-linguagem do que ocorre com a linguagem-objeto que passa a ser a linguagem natural. 38 Warat, Luis Alberto. Com colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua linguagem. 2ª Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 12 24 Por conta dessas pretensões teóricas e epistemológicas, Warat promove uma analogia entre a teoria saussuriana e kelseniana. Além disso, encontra, por exemplo, em conceitos fundamentais como de língua e fala39 uma correspondência entre dever-ser e ser respectivamente. 40 Não pretendeu com isso afirmar uma influência direta de Saussure em Kelsen, mas que há no estatuto epistemológico das referidas ciências semelhanças que podem indicar caminhos semelhantes para a construção de novos pressupostos científicos e teóricos. A reação à concepção de linguagem presente na semiologia veio com a Filosofia da Linguagem Ordinária que, invertendo a postura teórica e epistemológica da linguística semiológica, propõe a fala como ponto de partida para explicar a maneira como se constitui a linguagem e seus processos de significação. Se foram verificadas deficiências nas teorias que procuram explicar os modos de funcionamento da linguagem isso se deve, segundo esta filosofia, a uma não observância do usos linguísticos em contextos de fala. 41 Warat chama, entretanto, a atenção para o fato de que a análise da Filosofia da Linguagem Ordinária apoia-se em certos pressupostos psicologistas, ignorando a inserção histórica da linguagem, assim como a articulação no nível pragmático com a sociedade, vista em sua totalidade. Afirma esse mesmo autor que a análise funcional que a Filosofia de viés pragmático pretende elaborar não considera os componentes ideológicos e políticos da sociedade, centrandose nos propósitos do emissor. Isso significaria um equívoco, já que, ao transmitir uma mensagem, o homem não apenas reflete seus propósitos, como também reproduz uma concepção do mundo. Por esta razão, na classificação dos usos da linguagem sugerida pela Filosofia da Linguagem Ordinária pode-se dizer que estão ausentes os usos ou os modos emergentes da função social da linguagem.42 39 A fala seria o conjunto de linguagens naturais heterogêneas ou fatos sígnicos concretos. A língua é sistematização ou o esquema ideal e lógico de interpretação destes fatos, sendo, portanto, o objeto da ciência linguística. 40 Ibidem Pág. 21. 41 Ibidem Pág. 63 42 Ibidem Pág. 67 25 Por conta disso é que Habermas, embora tenha se utilizado da mecionada filosofia, quando se apoiou nos efeitos perlocucionários e ilocucionários43 dos diferentes tipos de atos de fala para explicar mais adiante em sua teoria a diferenciação entre as ações estratégicas e o agir comunicativo, não deixou de relacionar tais conceitos aos de sistema e mundo da vida. O conceito de agir comunicativo, enquanto ação de fala sustentada em uma relação intersubjetiva orientada ao entendimento, apenas pode ser explicado como conceito complementar do conceito de mundo da vida. Neste último conceito, encontram-se processos de socialização dos individuos, de formação de indentidades culturais e relações socio-políticas de ordens legítimas que influem ou permeiam os processos de significação e de utilização da linguagem. Apesar das críticas e releituras da filosofia da linguagem ordinária feitas no sentido de atualizá-la de acordo com uma concepção ou teoria da sociedade, podemos dizer que tais estudos abriram, em alguma medida, a possibilidade de no direito se questionar tanto a ideia de que as palavras da lei contêm uma significação unívoca, bastando a alteração do texto para que se transforme a compreensão do direito, como a ideia de direito como sistema, já que esta última pressupõe assim como na linguística, a ideia de um sistema logica e tecnicamente ordenado do direito que guarda uma unidade interna. Análises pragmáticas das linguagens jurídicas denunciam a relação entre enunciações jurídicas e práticas político-ideológicas da sociedade bem como o caráter persuasivo do discurso jurídico, baseadas na ideia dos fins implícitos ou explícitos nos usos linguísticos do direito. Com isso, colocam para a ciência jurídica a análise do fenômeno jurídico a partir de um paradigma 43 No ato perlocucionario, ao contrario do ilocucionario, ha uma intenção do agente pressuposta na fala de instrumentaliza-la para garantir êxitos ou resultados objetivos que lhe tragam alguma vantagem. As intenções do agente não estão explicitas na fala, sendo a manipulação um outro efeito que caminha em paralelo com o efeito perlocucionario. Verificaremos as diferenças entre ilocucao e perlocucao mais adiante. Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Pag 502 26 linguístico. Mas não situam a produção discursiva do direito na produção social geral. 44 Daí, se propõe a ideia de construção de uma semiologia política ou do poder como contraponto tanto a semiologia dominante, cujo propósito é chegar a uma análise do discurso puramente linguística, como a uma análise psicologista dos modos de utilização da linguagem. Se transportarmos a proposta de construção de uma semiologia política para o âmbito da rediscussão do modelo de ensino jurídico, verificaremos que nos processos de aprendizagem da concepção não assistencialista de extensão universitária encontram-se perspectivas concretas de passarmos a produzir conhecimento que situe a produção discursiva do direito na produção social geral. Isso porque esta concepção, entendida como comunicação, leva não apenas em consideração os modos de utilização da linguagem, relacionando-os as intenções ou fins do agente, mas coloca a necessidade de observar as relações comunicativas dentro de contextos que possuem uma determinada cultura e modo de vida. Quando Freire aponta que a extensão como comunicação não se destina a persuadir o camponês para que ele se adeque a uma outra cultura ou visão de mundo, colocando assim a problemática da invasão cultural em processos de aprendizagem, leva em consideração que a atividade comunicativa implementada está situada num contexto maior da sociedade. Percebemos, entretanto, que embora Freire e Warat apontem a necessidade de situar a produção discursiva/comunicativa em um contexto social, cultural e político mais amplo, não chegaram a formular uma teoria que explicasse com profundidade esta relação. Em realidade, não conseguimos identificar se podemos colocar como seus esses propósitos. Por isso, recorremos à teoria do agir comunicativo de Habermas a fim de entendermos as relações entre produção discursiva, política e sociedade. Mais adiante verificaremos como estas relações podem ser analisadas no âmbito da produção discursiva no direito dentro de uma perspetiva habermasiana. 44 Warat, Luis Alberto. Com colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua linguagem. 2ª Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 100. 27 1.3 Racionalidade comunicativa, epistemológica e teleológica Iniciaremos a compreensão da produção de discursos na sociedade e de conhecimento em geral pelo conceito de racionalidade comunicativa. Antes da teoria do agir comunicativo, a produção de conhecimento humana estava, em grande medida, baseada no autoconhecimento intuitivo de um sujeito singular. A partir desta teoria, passa-se a pensar que a produção de conhecimento não poderia se dar senão numa relação intersubjetiva. Assim, os sujeitos que buscam conhecer o mundo, enquanto seres capazes de fala, já se encontram preliminarmente numa situação na qual não poderão estar situados senão em uma relação com outros sujeitos. Nessas relações intersubjetivas que constituem formas de vida predomina um tipo de racionalidade chamado de comunicativa. O conceito de racionalidade comunicativa tem a sua origem principal no debate que Habermas promove com a filosofia kantiana e a tradição filosófica alemã da consciência em uma perspectiva crítica das relações sujeito-objeto e indivíduo-sociedade.45 Tal conceito também parece ter ganhado densidade no debate de caráter epistemológico e sociológico com a teoria dos sistemas de Parsons e com a teoria social de Weber. 46 Ao substituir o paradigma da consciência pelo paradigma da linguagem, Habermas afirma que a reflexão ou a atitude reflexiva do sujeito, que pretende conhecer e agir, não se dá num processo singular consigo mesmo, carregando predisposições que o fazem um sujeito racional. Esta atitude reflexiva ocorre numa relação dialógica na qual utiliza-se a linguagem no seu modo mais originário.47 45 Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Págs. 183-186. 46 Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs 25-29 47 Verificaremos que a análise dos diferentes tipos de atos de fala traduz usos diferenciados da linguagem. A utilização da linguagem no seu modo originário ocorre quando o objetivo do sujeito é realmente se fazer entender ou apresentar aos demais constatações, vivências e impressões e, conjuntamente com elas, todas as suas razões ao emití-las. 28 A partir dessa interação com outros sujeitos que problematizam-se uns aos outros (e a si mesmos) e reconhecem a validade de suas expressões, sob determinadas condições que estruturam a própria ação de falar, como a do reconhecimento de que o outro pode atribuir sentidos e formas de compreensão idênticas ao do emissor da fala, vai se formando um conhecimento pré-teórico construído pela vivência desses sujeitos que agem ao se comunicar. A partir desse conhecimento pré-teórico oriundo da utilização da linguagem no seu modo mais originário, o conhecimento pode expandir-se e aperfeiçoar-se. A atitude de refletir desse sujeito que age e conhece ao se comunicar traduz determinada racionalidade que pode assumir diferentes conotações. A atitude reflexiva pode significar as possibilidades de distanciamento do sujeito em relação a juízos de verdade, em relação às suas intenções na persecução de objetivos/fins em suas ações ou um distanciamento de si mesmo, enquanto ser capaz de fala, ao pretender que um outro tão somente entenda aquilo que quer comunicar.48 Por isso, Habermas promove uma distinção entre racionalidade epistemológica, teleológica/instrumental e comunicativa. Não deixa o mesmo autor de salientar que no meio linguístico e, principalmente na estrutura da linguagem, essas racionalidades encontram-se como que inter-relacionadas, pois a atitude de refletir e afastar-se de si mesmo, própria da ação de comunicar-se, induz necessariamente a processos de aprendizagem, de construção de conhecimentos e identidades e, na falta desta atitude, falha a comunicação, o que induz o sujeito a necessariamente agir segundo uma racionalidade mais objetiva e instrumental. 49 De fato, a racionalidade epistemológica surge interligada com a ação e a utilização da linguagem. Este tipo de racionalidade diz respeito à estrutura proposicional da linguagem e a uma Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 500-504 48 49 Ibidem Págs. 34-37 Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Págs. 185-187. 29 natureza intrinsecamente linguística do conhecimento. 50 Tal estrutura proposicional significa que nossos juízos acerca da realidade sempre estão como que implicitamente acompanhados do porque julgamos um contexto de uma determinada maneira e não de outra, ou seja, de uma base de sustentação composta de razões pretensamente universais. As razoes universais tem que ser aceitáveis tanto para quem participa aqui e agora dos processos comunicativos como para um “auditório universal” pressuposto na emissão de falas. 51 Tais razões podem desmoronar diante da realidade, caso, na utilização da linguagem, fique evidente o caráter de falsidade dos juízos emitidos nos atos de fala ou caso se constate que a utilização da linguagem não acompanhou determinado conteúdo normativo que rege a própria ação de falar nesse contexto. Essa falibilidade do conhecimento enquanto expressão linguística proposicional é o que possibilita lidarmos com o mesmo de maneira racional. A justificação necessária e implicada na linguagem é, portanto, a chave para a compreensão da racionalidade epistemológica e dos processos de aprendizagem que acompanham a constatação da falibilidade de juízos emitidos em atos de fala diante de seus contextos. Por outro lado, a racionalidade teleológica ou instrumental está relacionada ao cálculo que terá de fazer o agente que pretende a obtenção de determinado êxito ou finalidade previa e intencionalmente traçada. Neste cálculo, reside um conjunto de razões que podem ser testadas e que justificam a tomada de decisões em um determinado sentido numa ação. Por isso, Habermas afirma que um agente bem sucedido terá agido racionalmente apenas se souber o porquê desse sucesso, pois é na existência de uma motivação ou de razões para ação que encontra-se a condição principal que serve como base da racionalidade da mesma. E, como estas razões podem ser problematizadas, antes mesmo da tomada de decisão, é que a racionalidade teleológica está, em alguma medida, relacionada às outras duas racionalidades. 50 51 Ibidem. Págs 188-189 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebneicher – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Pág. 37-39. 30 Por conta disso, Habermas52 também explicita o problema da tomada de decisões de agentes que são orientados de modo egocêntrico pelas suas respectivas preferências e expectativas de sucesso pessoais, por não considerarem que, mesmo o cálculo de suas ações e o atingimento de seus objetivos, se relacionam a um conjunto de razões que podem ser problematizáveis por outros agentes que também possuem seus planos de ação e seus respectivos objetivos. O fato é que, orientados egocentricamente ou levando em conta os planos de ação de outros agentes, o sujeito que age de acordo com uma racionalidade teleológica ou instrumental o faz segundo intenções de obter um determinado resultado ou algum êxito no mundo objetivo, mas, para isso, utiliza-se da linguagem não apenas para se fazer entender, mas principalmente para provocar no outro um efeito que lhe traga alguma vantagem. Ao contrário da racionalidade teleológica, a racionalidade comunicativa rege as ações de sujeitos que pretendem extrair do modo mais originário de utilização da linguagem o máximo possível de entendimento. O conceito de entendimento remete a um acordo almejado pelos participantes e racionalmente motivado, que se mede segundo pretensões de validade criticáveis.53 Esse entendimento assegura aos falantes um mundo intersubjetivamente partilhado que funciona como um pano de fundo sobre o qual podem se referir como um contexto em comum. Tal entendimento é alcançado por conta de um determinado modo de utilização da linguagem em que o agente pretende levantar algo sobre o mundo, seja ele objetivo, subjetivo ou social comum a todos, que apenas será aceito se o interlocutor se convencer das razões implicitamente contidas nessa pretensão. Para tanto, terá de voluntariamente se afastar de suas convicções/impressões subjetivas iniciais a fim de formar um consenso.54 Assim, interlocutor e agente passam a partilhar 52 Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Pág. 191. 53 Ações, atos de fala, interações linguisticamente mediadas e o mundo da vida (1988) In Racionalidade e comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Edições 70, LDA, 2002. Págs. 110-112. 54 Habermas identifica quatro pretensões de validade contidas na estrutura da fala: as pretensões de verdade para o conteúdo proposicional afirmado; as de retitude ou adequação, para com as normas que justificam a relação que quer estabelecer; veracidade na manifestação de suas intenções e a pretensão a inteligibilidade que tem que ser cumprida como pressuposto da própria compreensão do ato. 31 de um mesmo ponto de vista, pois utilizam a linguagem segundo uma racionalidade comunicativa, ou seja, segundo uma lógica em que a linguagem possui o papel de comunicar algo passível de crítica e, portanto, também de consenso sobre essa mesma crítica. Uma outra forma de compreender a racionalidade comunicativa, além da análise dos modos de utilização da linguagem, é sugerida por Habermas na aplicação de seu método reconstrutivo das condições de fala em processos argumentativos. O autor sugere que a teoria da argumentação oferece subsídios para reconstruir as condições sob as quais é possível alcançar um acordo intersubjetivo e racionalmente motivado com base na pura força do melhor argumento, ou seja, com base na pertinência do argumento frente a um determinado contexto no qual estão inseridos os participantes. 55 Tais condições encontram-se apoiadas principalmente nas pressuposições que fazem os participantes no ato de argumentar de que seus interlocutores são capazes de analisar, livres de quaisquer coerções, a pertinência dos argumentos ao contexto e de que, ao adotar uma atitude hipotética, podem problematizar argumentos e verificar as condições de aceitabilidade e as possibilidades de universalização dos mesmos.56 Assim, a racionalidade comunicativa, sob a ótica de uma teoria da argumentação, está na suscetibilidade de crítica das razões e no procedimento, livre de coerções, de exame da pertinência de argumentos sem os quais não seria possível alcançar um acordo racionalmente motivado sobre o contexto dos participantes. E esta suscetibilidade de crítica é o que possibilita a análise da relação entre racionalidade comunicativa e epistemológica, pois nos processos de Dutra, Delamar Jose Volpato. Razão e Consenso: uma introdução ao pensamento de Habermas. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL , 1993. Págs. 18-20 55 Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 57-62 56 Importa a observação feita por Habermas de que a força do argumento jurídico está para além dos efeitos que provoca no processo judicial. A força do argumento jurídico encontra-se principalmente na sua justificação com base em expectativas legítimas de comportamento. O argumento jurídico possui sua base de fundamentação em contextos práticos em que se discute coletivamente a legitimidade de ações que tem por razão de ser o cumprimento de normas. Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2ª Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Págs. 75-76 32 aprendizagem ou construção de conhecimento, os quais ocorrem com a identificação da falibilidade de juízos, a argumentação desempenha um papel relevante. 1.4 Ação comunicativa, ação estratégica e os diferentes modos de utilização da linguagem A discussão acerca das diferentes conotações que pode assumir a racionalidade prepara o terreno para a análise sociológica das ações humanas, estando esta relacionada tanto aos modos de utilização da linguagem nessas ações como também ao sistema de referências culturais e sociais dos quais se utilizam implicitamente os participantes ou que se tornam objeto mesmo destas interações quando há a intenção de compreendê-lo ou problematizá-lo. Esse sistema de referências é reconstruído na teoria habermasiana principalmente a partir do diálogo com as teorias de Popper e Weber. Em linhas muito gerais, podemos dizer que, de Popper, Habermas extrai a lição de que a relação do sujeito com o mundo objetivo nem sempre se estabelece de uma forma direta 57, mas simbolicamente mediada. Em Popper, seguindo-se em grande medida uma tradição platônica, o terceiro mundo de produtos simbólicos funciona como um sistema de referencias complexo pré-estabelecido. O terceiro mundo funciona como um acervo de referenciais ao qual poderá ter acesso aquele sujeito racional que, no ato de conhecer, descobre problemas previamente estabelecidos e, numa atitude crítica e criativa, procura resolvêlos desenvolvendo explicações, técnicas e teorias. 58 Da teoria weberiana Habermas extrai a lição de que é possível diferenciar ações humanas e levantar pretensões de validade diferenciadas acerca da realidade com base em esferas especiais de valor que seriam uma espécie de 57 Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 149-150 58 A teoria do interacionismo simbólico de Mead, que possui algumas de suas raízes nas reflexões de Peirce, também trará elementos neste sentido. O interacionismo simbólico de Mead surge como uma espécie de derivação ou evolução de uma interação humana primitiva baseada na interpretação de gestos e ações concretas no mundo objetivo. Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 9-13 33 subproduto de um todo maior formado pela tradição cultural. Sugere-se, portanto, que há toda uma tradição cultural consolidada pelo avanço de processos de racionalização da sociedade e que rege como um todo as ações humanas. 59 A partir desses diálogos, Habermas sugere, por sua vez, que as relações do sujeito com o mundo podem ser simbolicamente mediadas pela linguagem, sendo que os usos linguísticos pressupõem um pano de fundo formado pelo mundo da vida, no qual está inserida uma compreensão pré-compartilhada não apenas do mundo objetivo, mas do mundo subjetivo (formado pelas vivências dos próprios falantes) e do mundo social (formado por relações reconhecidamente reguladas por normas e valores culturais).60 Forma-se um acervo cultural que funciona como pano de fundo reproduzido por processos comunicativos61 e que, ao mesmo tempo, é formado por esses processos no mundo da vida. A constatação da existência desse acervo cultural e social que forma um consenso de fundo foi o que possibilitou que Habermas pudesse falar de ação comunicativa em um sentido forte. Na ação comunicativa em um sentido forte, as pretensões de validade são julgadas não apenas com relação à intenção real do agente em comunicar algo sobre o mundo, mas também com relação à aceitabilidade que possuem essas pretensões, tendo em vista valores e relações consolidados que regulam o seu contexto. Esta percepção nos parece relevante se levarmos em conta que os processos comunicativos se desencadeiam num contexto de democracia com determinados direitos e valores consolidados ou em vias de serem aprofundados. Esse mundo de referências formado por valores culturais e sociais compartilhados interfere na ação de comunicar na medida em que está pressuposto nos atos de fala ou é ele mesmo invocado pelos agentes comunicadores quando o próprio pano de fundo passa a ser o problema ou parte dos problemas enfrentados pelos sujeitos nas suas interações comunicativas. 59 Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 489-492 60 61 Ibidem Págs. 192-193 Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Págs. 204-206 34 Se está pressuposto na fala dos agentes ou pode ser invocado através de atos de fala, conclui-se, então, que esse mundo de valores culturais e sociais somente pode ser acessível e problematizável através da linguagem e em interações em que figuram pelo menos dois sujeitos. Com isso, chegamos a um dos pontos principais de caracterização das ações comunicativas que é o da utilização da linguagem no seu modo mais originário, como caminho para se chegar a um entendimento. Nas ações comunicativas, negociam-se definições sobre o mundo que passarão a coordenar, como um pano de fundo, outros tipos de ações humanas, sendo que é somente neste tipo de ação que podem os sujeitos assumir uma postura reflexiva ou crítica do mundo ao qual se referem na linguagem.62 Ao utilizarem a linguagem no seu modo originário, ou seja, com o intuito de realmente se fazerem entender e chegarem a um consenso, os sujeitos assumem uma postura reflexiva, afastando-se de suas convicções ou razões originais implícitas nas suas manifestações e esperando, assim, que elas sejam criticadas ou aceitas por todos os demais participantes num determinado contexto.63 As unidades de análise desse modo de utilização da linguagem nas ações encontram-se principalmente na releitura habermasiana da classificação dos atos de fala em ilocucionários e perlocucionários feita por Austin. 64 Com atos ilocucionários, o falante executa uma ação ao dizer algo, objetivando que o ouvinte queira compreender o significado da externação proposta e aceitá-la segundo um procedimento de exame reflexivo livre de coerções. Não há outra intenção do agente que não seja mobilizar a linguagem para o mutuo entendimento. Com atos perlocucionários, o falante almeja desencadear um efeito no ouvinte, mas sua intenção de 62 O modelo de ação comunicativa tem sua origem na teoria do interacionismo simbólico de Mead, na concepção de jogos de linguagem de Wittgenstein, na teoria dos atos de fala de Austin e na hermenêutica de Gadamer. 63 Os agentes podem manifestar de maneira implícita três tipos de pretensões: a pretensão de que o enunciado seja verdadeiro (referência ao mundo objetivo); a pretensão de que a ação de fala esteja correta, tendo como referência um contexto normativo vigente (referência ao mundo social) e a pretensão de que a postura assumida na expressão de suas intenções, emoções e vivências seja reconhecida como uma postura ética (referência ao mundo subjetivo). 64 Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs 502-504. 35 provocar e/ou manipulá-lo permanece como que oculta na própria fala. E esta intenção apenas poderia ser revelada se analisarmos a fala diante de um contexto objetivo de ação, pois, para que o falante atinja seus objetivos perlocucionários, jamais deixará exposto aquilo que realmente pretende. Essa ocultação de um objetivo que não é o de comunicar algo sobre o mundo de maneira fundamentada é o que difere as ações estratégicas das ações comunicativas. Sabe-se que nas ações teleológicas e estratégicas o agente, dotado de informações, opiniões e vontades acerca da realidade, deseja obter um êxito ou atingir um fim que pode esbarrar nos objetivos de outros sujeitos em interações. Para atingir esse fim, além de promover um cálculo racional dos meios, o agente deverá selecionar um modo de utilização da linguagem que provoque naquele outro sujeito, que possui também seus respetivos interesses e objetivos, um efeito capaz de lhe trazer vantagens. Ao utilizar a linguagem segundo objetivos perlocucionários, ele terá de se utilizar da mesma, ainda que indiretamente, de maneira ilocucionária. Por isso, é que Habermas afirma que nas ações estratégicas utiliza-se de maneira parasitária da força ilocucionária que pode possuir a linguagem, sendo ela apenas mais um dentre os diferentes meios de se conseguir determinado resultado. Há um aproveitamento da função de inteligibilidade da linguagem para outro fim que não é, de fato, o de chegar a uma definição acordada sobre algo no mundo. O critério de julgamento dessas ações estratégicas é principalmente o da eficiência. Quanto mais eficaz for o modo de utilização da linguagem através de atos perlocucionários, mais rapidamente atinge-se o êxito, tornando-se esta ação, portanto, eficaz, segundo uma racionalidade que observa objetivamente as ações com base no critério da eficiência. Este mesmo critério não pode ser aplicado às ações comunicativas, pois estas, além de utilizarem a força ilocucionária da linguagem de maneira irrestrita, funcionam segundo uma racionalidade comunicativa que orienta os agentes ao entendimento do mundo, seja ele objetivo ou social e não à obtenção de êxitos pessoais numa dada realidade objetiva. Por isso, afirma-se que os critérios de julgamento ou 36 validação de uma ação comunicativa não são egocêntricos, mas públicos, visto que são social e intersubjetivamente partilhados no mundo da vida.65 1.5 Sistema e mundo da vida No tópico anterior, vimos como o conceito de mundo da vida e agir comunicativo são complementares, visto que este último reproduz e, ao mesmo tempo, é reproduzido pelo primeiro porque nele está implicado. Além disso, o mundo da vida 66 constitui um consenso de fundo formado por elementos como tradições culturais, processos de socialização e experiências constitutivas da personalidade aos quais os agentes se referem, ainda que indireta ou implicitamente na fala, o que implica na diluição dos riscos de dissenso. 67 Vejamos agora nesse tópico como os conceitos de sistema e de mundo da vida representam modos diferenciados de compreender a sociedade, as coordenações das ações e também diferentes posturas metodológicas pelas quais pode optar o cientista social no ato de conhecer a realidade. Em primeiro lugar, o conceito de sistema traduz um determinado modo de compreender a sociedade desenvolvido principalmente por Parsons. Se as tradições culturais, sociais e da personalidade aparecem em Habermas como estruturas inter-relacionadas formadoras de um mesmo consenso de fundo, em Parsons, essas estruturas são subsistemas diferenciados, sendo a cultura e a personalidade meros entornos do subsistema da sociedade formado pelas instituições e pelas normas sociais. 68 Se as estruturas do mundo da vida aparecem em Parsons diferenciadas na 65 Ações, atos de fala, interações linguisticamente mediadas e o mundo da vida (1988) em Racionalidade e comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Edições 70, LDA, 2002. Págs.108 e 109 66 O conceito de mundo da vida foi formulado principalmente por Husserl, sendo que este ainda seguia uma tradição da filosofia da consciência, remetendo este a um mundo previamente dado de experiências originárias somente acessível por uma consciência transcendental subjetiva. Este conceito foi reformulado por Habermas pela influência da filosofia heideggeriana, da hermenêutica de Gadamer e de alguma maneira pelas sociologias de Durkheim e Weber. 67 Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 252-253 68 Vale ressaltar também que em Habermas as estruturas componentes do mundo da vida encontram-se interelacionadas horizontalmente, diferentemente do que ocorre na teoria social de Parsons que concebe a 37 forma de subsistemas parcialmente especializados em determinadas funções, que orientam as ações num determinado sentido, então não há que se falar em agir comunicativo ou em agentes comunicantes/comunicadores, mas em sistemas de ação, nos quais o sujeito possui um papel de mera unidade abstrata, isto é, o sujeito constitui uma espécie de “peça das engrenagens e operações sistêmicas”. 69 As funções subsistêmicas são cumpridas por meio de controles que são modos especializados de utilização da linguagem para o atendimento de fins. A linguagem, na perspectiva da teoria dos sistemas, tende a se especializar para cumprir funções no interior dos diferentes subsistemas. Passa a cumprir um papel de controle e manutenção/reprodução dos sistemas e de sua racionalidade teleológica destinada ao atendimento de fins e objetivos. Neste ponto, há uma diferença radical para a teoria do agir comunicativo, pois nesta última a tendência da sociedade no mundo da vida é de reproduzir-se e integrar-se por meio de um modo de utilização da linguagem originário e, portanto, não especializado. Um modo de utilização da linguagem orientado ao entendimento que ocorre devido à própria estrutura proposicional da linguagem e do saber nela implícito. Habermas critica a concepção de linguagem contida na teoria dos sistemas principalmente pelo fato de que esta teoria tende a extrair da linguagem qualquer meio de controle, não aventando a possibilidade de que a própria estrutura proposicional da linguagem poderia submeter esse processo de especialização que dá origem aos sistemas a certas limitações. Em outras palavras, Habermas afirma que exclui-se em grande medida a possibilidade de o mundo da vida controlar o processo de complexificação social e especialização funcional em sistemas, passando-se a um raciocínio, de certa forma determinista, da sociedade, como se houvesse uma tendência ao controle das ações e sujeitos através da especialização da linguagem, sendo o “dinheiro” e o “poder” os que principalmente se destacam. 70 possibilidade de uma autonomia relativa e hierarquia entre a esfera cultural, da personalidade e da sociedade bem como do mundo objetivo físico-químico. 69 Ibidem Págs. 435-442 70 Ibidem Págs 266 38 A teoria do agir comunicativo não nega que possa haver um controle sistêmico de ações e sujeitos por meio da codificação e especialização da linguagem. Mas afirma, por outro lado, que esse processo de controle ocorre em determinados domínios de reprodução material, restando ainda domínios sociais do mundo da vida em que se utiliza a linguagem para negociar sentidos, domínios esses que não podem ser negligenciados pela ciência porque formam um conhecimento ainda que pré-teórico. Neste ponto, compreende-se porque o conceito de mundo da vida exige uma postura metodológica diferenciada daquela proposta pela teoria dos sistemas. Isto porque o mundo da vida preserva domínios em que a formação linguística dos sentidos é construída livre do controle de meios ou de uma racionalidade funcional. Como não são controláveis, esses domínios não podem ser observados de maneira objetiva, segundo critérios de eficiência no atingimento de êxitos ou segundo critérios funcionais. Os sentidos formados no mundo da vida não são acessíveis, portanto, por meio da mera observação reiterada dos fenômenos de controle funcionais. Por conta disso, Habermas propõe uma postura participante dos processos de produção de sentido, visto que é por dentro desses processos, numa postura de sujeito participante e não observador, que o cientista social consegue ter acesso ao modo como eles são produzidos intersubjetivamente no mundo da vida. Outra questão que está colocada na diferenciação entre os domínios sistêmicos de reprodução material e os domínios sociais do mundo da vida diz respeito aos efeitos que produzem sobre a coordenação das ações sociais. Quando os domínios do mundo da vida passam a ser controlados por uma linguagem codificada de tal maneira em que fica prejudicado o agir comunicativo, ocorre o que chamamos de tecnicização do mundo da vida. A relevância da linguagem técnica ou codificada passa então a se sobrepor e se impor diante daquela contida nos processos comunicativos do cotidiano ou do mundo da vida. Orientam-se em geral as ações não mais pela formação linguística do consenso ou por uma racionalidade comunicativa, mas por meios de controle que pressupõem certa ruptura com o mundo da vida, segundo uma racionalidade teleológica, cujos imperativos ultrapassam a capacidade reflexiva dos sujeitos. Meios como o dinheiro e o poder codificam e exteriorizam uma racionalidade teleológica, tornando não apenas possível a quantificação e mensuração de valores, mas também uma influenciacão nas decisões do outro que prescinde de maiores esforços de reflexão, interpretação 39 e formação linguística de consenso. Porém, é preciso ressaltar que, embora esses dois meios de controles sistêmicos funcionem de maneira semelhante dentro de um processo de tecnicização de um mundo da vida, os dois se diferenciam com respeito ao nível de dependência que contraditoriamente podem ter com o mundo da vida no momento em que se institucionalizam. O poder, diferentemente do dinheiro, institucionaliza-se e necessariamente é mantido por via de um direito público que encontra nos processos de legitimação um dos seus maiores pilares. Segundo Habermas, o direito privado de possuir dinheiro ou ser proprietário de algo implica o acesso a mercados em que é possível efetuar transações, enquanto o direito de exercer poder implica, via de regra, a ocupação de um posto no quadro de uma organização destinada ao atendimento de fins coletivos. Justamente por ser destinada ao atendimento de fins coletivos é que esta mesma organização necessita de uma base que lhe confira confiança e reafirme constantemente o compromisso com seus propósitos públicos. Essa base de confiança no cumprimento de fins coletivos pelas organizações é denominada legitimidade. 71 Ao contrário do dinheiro, o poder necessita legitimar-se para continuar a manter suas estruturas. Esta relação com a legitimidade dos fins a que se destina a organização é o que a torna vinculável em grande medida a uma formação linguística de consenso e, portanto, ao mundo da vida, pois os destinatários avaliam, segundo critérios públicos, os êxitos da organização com relação às suas pretensões no cumprimento de determinadas funções. Esta relação entre a institucionalização do poder por meio de direitos públicos e os seus processos de legitimação ligados à formação de consensos linguísticos nos parece aprofundada na teoria do direito de Habermas que será analisada no próximo tópico 1.6 O Direito como linguagem ou médium entre sistema e mundo da vida A teoria do agir comunicativo ensaia, através da análise das diferenças entre os meios do poder e do dinheiro, os primeiros passos para a discussão acerca do caráter duplo de coercibilidade e liberdade de que se reveste a validade jurídica. Isso porque já na teoria do agir 71 Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs 329-333 40 comunicativo Habermas aponta para uma relação entre o meio de controle do poder e a ideia de legitimação através da institucionalização do poder promovida pelo direito público. Na teoria do agir comunicativo, Habermas compreende que o sistema administrativo do poder não está de todo desconectado de processos comunicativos do mundo da vida, pois os fins da organização sistêmica, garantidos pelo direito, são em geral fins coletivos que devem ser reconhecidos como tais para que se garanta a legitimidade ou mesmo a existência desse sistema. Naquela teoria, Habermas já aponta que a tensão entre facticidade e validade é intrinsecamente constitutiva da estrutura da linguagem, pois a linguagem argumentativa deve a sua força racionalmente motivadora tanto ao significado do que comunica quanto com a sua validade segundo critérios públicos de utilização da linguagem estabelecidos no mundo da vida. Conforme vimos, tais critérios que podem ser, inclusive, tematizados ou reforçados. As pretensões de validade ou os modos de sua utilização podem ser constantemente postos a prova justamente por constituírem-se de uma estrutura proposicional. Essa tensão própria da estrutura proposicional da linguagem encontra-se também no direito de maneira intensificada72, pois é através de processos discursivos relativos a pretensões de validez normativas que o direito é tematizado e abre-se a possibilidade de sua validação e positivação, ou seja, a sua possibilidade de coagir legitimamente. Em outras palavras, Habermas afirma que direito e linguagem possuem, portanto, estruturas muito semelhantes e é justamente isto que possibilita o estabelecimento de articulações entre linguagem codificada e linguagem coloquial, sistema e mundo da vida, positividade e legitimação, direito e política. Habermas73 encontrará nos direitos subjetivos de participação política ou numa democracia deliberativa garantida por tais direitos a principal chave para explicar essa permanente tensão entre facticidade e validade, entre coercibilidade e a pretensa legitimidade do 72 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Págs 60-61 73 Ibidem Págs 113-116 41 direito, sendo que é nesta tensão que também reside uma relação entre sistema e mundo da vida por intermédio do direito que se estrutura como a linguagem. 74 O direito possui um duplo caráter de coercibilidade e garantia de liberdades. Após o estabelecimento do Estado de Direito, as teorias que fundamentavam o Direito com base num direito natural e explicavam a força de integração social do Direito com base numa força de coerção soberana e externa às relações da sociedade civil, por sua vez entendida como reunião de interesses teleológicos ou egoísticos, se tornaram descontextualizadas. Isso porque foram positivados e legitimados direitos civis de liberdade nos processos de instalação das principais democracias que, inclusive, consolidaram ações civis contra possíveis excessos cometidos pelo próprio Estado em nome do Direito. Habermas afirma que, para Kant, a relação entre facticidade e validade, estabilizada na validade jurídica, apresenta-se como uma relação interna entre coerção e liberdade, fundada pelo direito. 75 O direito encontra-se, portanto, ligado à autorização para o uso da coerção, mas esse uso somente se justifica quando “elimina empecilhos à liberdade”, ou seja, quando se opõe a abusos da liberdade de cada um ou quando se garante a liberdade de todos. A elaborações kantianas, porém, não parecem desenvolver a ideia de liberdade contida no direito vinculada à idéia de legitimação como resgatabilidade discursiva.76 A ideia da resgatabilidade ganha relevância após o surgimento de ordens jurídicas que, apesar de positivas e, portanto, formalmente válidas, ofuscavam o seu caráter ilegítimo através de uma força intrínseca da legalidade. Segundo Habermas, a legitimidade de regras, e principalmente o grau de utilização de direitos subjetivos, se mede pela resgatabilidade discursiva das mesmas nos processos legislativos racionais ou de justificação mais amplos. Resgatam-se nos discursos ou no exercício 74 Ressalte-se a observação de Habermas sobre a fusão entre facticidade e validade nas sociedades em que o direito aparece relacionado a “imagens de mundo sagradas” e “a autoridade de instituições” como a família, por exemplo. O direito nessas sociedades consideradas arcaicas é aceito e não aceitável, isto é, não se tematiza o direito segundo pretensões de validade normativa e muito menos valores autoritários que nele estão implícitos e que formam um aparente consenso de fundo para os que agem comunicativamente. Ibidem Pág. 42-43. 75 Ibidem Págs 48-49 76 Ibidem Págs 50-51 42 de direitos subjetivos de liberdade e participação política as razões que motivaram a formação de um consenso intersubjetivo em torno da validade de uma determinada ordem normativa. De fato, os direitos de participação política assumem a forma de direitos subjetivospúblicos e podem ser interpretados como liberdades subjetivas de ação. Instituem liberdades para os cidadãos decidirem como usar direitos de comunicação, assumindo estes uma postura de utilização da liberdade e da linguagem orientada a formação de um acordo mutuo. Tais direitos são responsáveis pela consolidação de uma cultura politica democrática que pode ser analisada por conta de uma resgatabilidade discursiva das regras de direito como um todo positivadas. Para compreender, no entanto, essa resgatabilidade discursiva, é preciso adotar um enfoque performativo 77 da ordem jurídica ou uma perspectiva participante de processos comunicativos que levam a acordos racionalmente motivados. Tal enfoque se diferencia do enfoque objetivador no qual o ator compreende o direito como fato social e a norma como limitador de seus interesses egoísticos e de seus planos estratégicos de ação. O direito é compreendido, segundo este último enfoque, como limitação da liberdade subjetiva de agir e não como fenômeno capaz de gerar coerção e ao mesmo tempo liberdade. O direito como fato social não está relacionado com o agir comunicativo e não gera expectativas obrigatórias de comportamento apoiadas em acordos racionais motivados por processos comunicativos de entendimento. Os acordos racionalmente motivados que estão implicados no processo de positivação do direito são construídos somente se os sujeitos de direitos puderem se considerar reciprocamente e ao mesmo tempo destinatários e autores dos direitos. Esse reconhecimento recíproco, garantido por direitos subjetivos, entre cidadãos da condição de destinatários e autores de direitos ocorre com o agir comunicativo, no qual se levantam pretensões de validade normativa e, a partir disso, pode-se tomar livremente uma posição de aceitação ou rejeição dessa pretensão com fundamento em razões. 77 Habermas indica aqui que a metodologia de compreensão do direito traduz uma determinada concepção do direito. O enfoque objetivista tenderá a retratar o direito como um fato social e o enfoque performativo traduzirá um direito formado a partir de processos comunicativos dinâmicos e acordos racionalmente motivados num contexto de democracia. Ibidem Pág. 36-37 43 O fato de o direito legitimar-se e manter-se positivo através de acordos racionalmente motivados é o que principalmente diferencia a concepção de direito de Habermas daquela existente na teoria de Luhmann. O direito é concebido neste último como um subsistema do sistema social capaz de estabilizar expectativas de comportamento e não como produto de um arranjo comunicativo. Para Habermas, não seria possível estabilizar expectativas de comportamento de maneira deslocada de processos comunicativos inerentes ao mundo da vida. 78 O direito como subsistema autopoietico tem a função de estabilizar expectativas de comportamento através de uma linguagem especializada em código, funcionando e interagindo com outros subsistemas como o da política ou o da cultura segundo critérios e observações específicas e próprias. A linguagem codificada não apenas estabiliza expectativas de comportamento discutidas em conflitos especificamente jurídicos, mas também funciona como mecanismo de manutenção do próprio direito enquanto subsistema. Habermas diverge de Luhmann nesse ponto, pois o direito estaria não apenas relacionado a uma linguagem codificada, mas também a uma linguagem coloquial presente nos seus processos de legitimação ou nos acordos racionalmente motivados que o sustentam e emergem do mundo da vida.79 O direito institui uma linguagem codificada no sistema de poder, mas esta linguagem codificada apenas existe porque existem processos comunicativos que ocorrem no mundo da vida que levantam ou colocam a prova pretensões de validade normativa formando assim um pano de fundo. O sistema de poder estruturado em direitos públicos, por sua vez, garante a continuidade desses processos comunicativos de legitimação porque impõe coercitivamente uma gama de direitos subjetivos que garantem aos cidadãos o próprio direito de opinar sobre o direito que institui o poder. Por isso, Habermas conclui que o direito funciona como médium entre sistema e mundo da vida.80 O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora, se rompa, quando garante direitos subjetivos de participação politica numa esfera publica. O direito garante, portanto, a sua 78 Ibidem Pág. 57 79 Ibidem Págs. 75-81 80 Ibidem Págs. 111 - 112 44 própria tematização em uma esfera pública de linguagem coloquial através da institucionalização de procedimentos e direitos subjetivos de participação política. Ao mesmo tempo, sem a tradução para o código especializado do direito contido no sistema, que é complexo, porém cognitivamente aberto ao mundo da vida, os processos comunicativos de legitimação e questionamento que ocorrem no mundo da vida não encontrariam eco em universos de ação dirigidos por meios de controle. 1.7 Princípio do discurso, princípio da democracia e a gênese lógica do direito Vimos no tópico anterior que os direitos subjetivos constituem a principal chave para compreensão da tensão entre facticidade e validade na medida em que sem eles não se consegue explicar os processos de positivação e legitimação do direito. Vejamos agora a relação entre autonomia pública e privada traduzida pelos direitos subjetivos e de que maneira essas autonomias, quando entendidas como co-originárias, operacionalizam a tensão entre facticidade e validade do direito. O sentido da co-orignaridade da autonomia pública e privada somente é entendido se reconstruirmos antes os passos de Habermas na sua crítica tanto à concepção de autonomia de Hobbes quanto de Rousseau. Em linhas muito gerais, podemos dizer que tal critica significa que Habermas não mais aposta na figura clássica abstrata de um contrato social para explicar a origem da autonomia tanto privada quanto política dos cidadãos. Em vez disso, aposta em processos democráticos discursivos garantidos por direitos subjetivos que ao mesmo tempo traduzem e garantem autonomias e possibilitam a legitimação do sistema de direitos. A crítica de Habermas a concepção hobbesiana de autonomia reside no fato de esta estar baseada numa concepção privatista dos direitos subjetivos e num estado natural em que as ações dos indivíduos são regidas segundo uma racionalidade teleológica. 81 A saída deste estado de 81 Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume 1. 2ª. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Pág. 123 45 natureza é garantida através da abdicação parcial pelos indivíduos de seus respectivos planos autônomos de ação, depositando no contrato social, em nome do qual passará a atuar um soberano, toda a força legitimadora de uma vontade geral abstratamente concebida. O contrato social hobbesiano significa ainda a transportação para o âmbito público de um instrumento privado como o contrato que traduz um pacto ou acordo de vontades individuais. Já a crítica de Habermas a Rousseau reside no fato de a autonomia política dos cidadãos estar baseada numa autonomia natural dos indivíduos que se sustenta graças a fundamentos morais e éticos abstratos e universais. 82 Tal autonomia naturalmente concebida consegue se impor socialmente quando estes indivíduos passam a exercitar/defender politicamente suas liberdades originais, orientando esse exercício a formação de um consenso geral que permita a manutenção tanto do próprio exercício de todos quando da autonomia individual original. A força legitimadora desse exercício da autonomia, orientada à formação de um consenso, é depositada num contrato social que sustenta a fundação de um Estado, representante da totalidade dos indivíduos livres, que, por sua vez, produzirá um direito igualmente universal e abstrato, espelho daquela autonomia natural anterior à sua própria existência. Nesse ponto, Habermas também diverge de Rousseau, pois entende que o surgimento de um direito universal e abstrato, espelho de uma ordem natural, não explica por si só a integração social promovida pelo direito nem tampouco a gênese do fenômeno jurídico. 83 Habermas entende que existe uma relação interna entre autonomia pública e privada construída no meio linguístico, a qual não pode ser explicada por nenhuma das teorias acima mencionadas. O autor entende que os modos de utilização da linguagem possuem um conteúdo normativo que permanece no modo de exercício da autonomia política. Tal conteúdo normativo assegura uma formação discursiva da opinião e da vontade, na qual são utilizadas as forças ilocucionárias da linguagem, ou seja, as forças linguísticas capazes de provocar entendimento pela via racional. Essa formação discursiva da vontade é o que possibilita a existência de um direito legítimo e indica, portanto, que o fenômeno jurídico se apoia, em última instância, num arranjo comunicativo. 82 Ibidem Pág. 128 83 Ibidem Págs. 136-137 46 Além disso, a formação discursiva da vontade indica que não é possível formar um consenso racional sem que autonomia pública e privada sejam exercitadas simultaneamente, pois traduzem liberdades sem as quais não é possível tomar uma posição acerca da condição de autoria e destinação do direito. O indivíduo, enquanto ser humano dotado de liberdade, e o cidadão que é reconhecidamente parte de uma comunidade política ou esfera pública autônoma são figuras que se confundem e que não se separam em Habermas e é exatamente por isso que, em sua teoria, não se pode falar na formação coletiva de uma vontade sem que haja, de fato, exercício de liberdade em todos os sentidos do termo. 84 Tal exercício pleno de liberdades ou autonomias pode ser explicitado pela via discursiva ou pela análise da formação da opinião no meio linguístico. Diante de tal constatação, Habermas formula o princípio do discurso que simboliza teoricamente um amálgama entre exercício da autonomia pública e privada na formação discursiva da opinião e da vontade que fundamenta e legitima, em ultima instância, o sistema de direitos. Nas palavras do autor, o princípio do discurso simboliza, portanto, a co-originariedade entre autonomia pública e privada na utilização da linguagem na esfera pública. 85 No exercício da autonomia politica, que se da através da via discursiva, os sujeitos em condições iguais de fala, respeitando-se o principio da democracia, atribuem-se mutuamente direitos e constroem racionalmente uma vontade comum, fato este que explicaria como um todo a gênese do fenômeno jurídico. O princípio do discurso, que constitui símbolo de um amálgama, institucionaliza-se juridicamente através da consolidação da via democrática de normatização ou regulação das ações em geral. A democracia institucionaliza-se com o fundamento no discurso, com o equilíbrio entre autonomia pública e privada, expresso num determinado modo de exercício de autonomia política, de formação da opinião e da vontade, garantido através de uma forma jurídica. 84 Chegou-se neste estudo a conclusão de que, embora Habermas tenha se filiado mais a tradição republicana que a liberal, ele radicaliza o sentido da formação de uma vontade geral presente na teoria contratualista de Rousseau, ao exigir um exercício pleno de liberdades pela via discursiva e racional numa esfera pública. Ibidem Págs. 133-134 85 Ibidem Págs. 158 47 O direito institucionaliza a via democrática através da garantia de uma formação discursiva da opinião e da vontade e é através dessa institucionalização que ele garante o seu próprio processo de existência e legitimação. 86 Tal garantia de formação discursiva deve ser expressa por direitos fundamentais atribuídos reciprocamente pelos cidadãos no intuito de regularem legitimamente sua convivência. Os direitos fundamentais traduzem, portanto, tipos de normas de ação, atribuíveis o máximo possível a todos participantes da esfera pública, que garantem um agir comunicativo para formação de um consenso racional, essencial à sustentação de um sistema geral de direitos que possa ser considerado legítimo. No exercício dos direitos fundamentais, os cidadãos ou agentes comunicadores refletem ou devem poder refletir como devem ser os direitos que institucionalizam princípios, valores e a própria via democrática. Como esse processo de reflexão se da num nível discursivo, sugere-se na teoria do direito de Habermas uma análise pragmática da formação discursiva da opinião e da vontade e não uma análise semântica de um sistema estabelecido, pois esta ultima não expressa de fato o real grau de sua legitimidade, ao extrair o sentido do direito da sua forma geral e abstrata, ou seja, ao explicar a legitimidade do direito a partir da forma legal, diferentemente da analise pragmática que busca o sentido do direito pela via dos modos de utilização do discurso ou do exercício discursivo da autonomia politica orientado ao entendimento. 86 Neuenschwander Magalhaes, dentro de uma perspectiva luhmanniana, compreende que o princípio do discurso representa um “substituto funcional” da noção de Moral, sendo seu papel fundante o mesmo da Moral moderna que funcionou como uma Religião secularizada. Tal compreensão parece, entretanto, partir do pressuposto de que o direito, enquanto subsistema recursivamente fechado, mantem-se a si mesmo através de fundamentos como o princípio do discurso. Embora possua uma certa circularidade, o princípio do discurso, se realmente compreendido como uso linguístico orientado ao entendimento, não poderia expressar apenas um recurso de auto reprodução do subsistema jurídico, mas algo mais amplo, relacionado ao mundo da vida onde se utiliza a linguagem no seu modo mais originário, uso linguístico esse que está necessariamente implicado nos processos de legitimação do direito. Neuenschwander Magalhaes, Juliana. Reconstruindo Direito e Democracia em Uma sociologia indignada: diálogos com Luiz Wenerck Vianna / Rubem Barboza Filho, Fernando Perlatto. – Juiz de Fora. Ed.: UFJF, 2012. Págs 278-279 48 Capítulo 2: Extensão, comunicação, problemas e perspectivas de mudança do modelo de ensino jurídico Neste capítulo, iniciaremos a análise de diferentes experiências e concepções de extensão no interior de um determinado modelo de ensino jurídico à luz da teoria do agir comunicativo e teoria do direito de Habermas. Verificaremos também porque a extensão, antes mesmo de ser compreendida no contexto do ensino jurídico, representou em determinado período histórico tensões ocorridas no interior da universidade, provocadas principalmente por estudantes, para que cumprisse funções sociais que estão para além da mera instrução para fins de atender exigências do mercado ou da máquina burocrática do Estado. A ideia de uma aproximação mais orgânica entre universidade e sociedade possuiu historicamente uma variação de sentidos, mas a sua vertente não assistencialista se sustenta historicamente na construção de uma produção de conhecimento baseada numa relação horizontalizada e comprometida com questões do mundo da vida. 2.1 Extensão universitária e democratização da universidade: histórico do processo de institucionalização de uma concepção não assistencialista de extensão e sua relação com o modelo de ensino jurídico Embora não tenha tratado especificamente do tema do desenvolvimento de atividades de extensão universitária, ao refletir sobre o processo de democratização da universidade, numa conferência ocorrida em Berlim em 1967, Habermas 87 enfrentou questões semelhantes as trazidas pelo movimento estudantil no Brasil e na América Latina, conforme veremos mais adiante no texto. Preocupava-se a época com o problema da sua autonomia frente ao mercado e procurou explicar quais seriam suas principais funções sociais. Para o autor, a universidade possui três responsabilidades básicas: a primeira consiste em qualificar os estudantes com habilidades consideradas extrafuncionais, ou seja, habilidades que 87 The University in a democracy: democratization on the university In Toward to a rational society: students and politics / Jurgen Habermas. Translated by Jeremy J. Shapiro. Boston: Bacon Press, 1970. Págs. 2 e 3 49 não servem exclusivamente a uma função num determinado nicho profissional; segunda responsabilidade é a de interpretar, desenvolver ou influenciar criticamente nas tradições culturais, entendendo que a universidade, sobretudo as ciências sociais, historicamente desempenha o papel de promover uma auto-reflexão da sociedade; a terceira seria relacionada a formar uma consciência política entre estudantes, responsabilidade essa que foi negligenciada em período anterior na Alemanha, o que fez a universidade se autocompreender como “apolítica” e servir ideologicamente à manutenção de uma elite com um pensamento homogêneo.88 Ao colocar essas três responsabilidades como fundamentais da universidade, Habermas questiona a sua autonomia na produção do conhecimento e se coloca contrariamente a uma tendência da universidade naquele momento histórico de se voltar a produção de um conhecimento técnica e economicamente explorável. Para que a universidade promovesse uma autocrítica e revisse essa tendência seria necessário que as mais diversas ciências revissem não apenas suas respectivas metodologias de aplicação do conhecimento, mas retomassem uma avaliação crítica de seus pressupostos filosóficos e epistemológicos. 89 O autor coloca o exemplo dos métodos pedagógicos das escolas primárias, voltados para os cursos de gramática dos diversos idiomas, e sugere que os desenvolvedores desses métodos poderiam aperfeiçoá-los retornando a pressupostos da filosofia da linguagem e confrontando diferentes perspectivas de conceber a linguagem e o fenômeno da comunicação. De fato, Habermas, ao analisar o papel que pode cumprir a universidade numa sociedade democrática, sugere que a universidade pode criar possibilidades de abertura para discussão de temas políticos, pois as discussões de temas dessa magnitude se pautam pelas mesmas regras de racionalidade pelas quais a reflexão científica deve se pautar. Esse processo de abertura de possibilidades de discussão de temas políticos que levam não apenas a uma auto-reflexão da sociedade, mas da própria universidade, na medida em que as ciências, principalmente as sociais, se voltam nesse processo também a uma rediscussão de seus pressupostos filosóficos, Habermas chama de democratização da universidade. 88 89 Ibidem Págs 3-5 Essas conclusões de Habermas sugerem que, para que o ensino jurídico se transforme e aperfeiçoe, fazse necessário retomar uma avaliação crítica dos pressupostos filosóficos da ciência jurídica. 50 Embora esteja debatendo a universidade num contexto europeu, Habermas não está de todo enfrentando questões distantes da universidade brasileira. No Brasil, a universidade experimentou muito recentemente a possibilidade de produzir conhecimento com relativa autonomia, em um contexto de democracia, mas vai se servir durante praticamente toda sua história em parte do modelo francês de universidade, voltado à atividade do Ensino de determinadas profissões e à preparação de quadros para compor a máquina burocrática do Estado. Neste modelo, outras atividades acadêmicas como a pesquisa e a extensão, que possivelmente levariam as ciências a uma atitude reflexiva, se desenvolvem fora dos muros da universidade. Por outro lado, a universidade brasileira também se servirá do modelo norte-americano, na medida em que passa a associar-se acriticamente a projetos estatais de desenvolvimento econômico, principalmente no período da ditadura militar, investindo em determinados nichos de pesquisa tecnicamente explorável e tendo a extensão a função de promover a formação continuada de egressos ou difundir conhecimento técnico, mediante prestação de serviço. A atividade extensionista das Escolas Superiores de Lavras e Viçosa é exemplo disso, pois tinha como objetivo principal promover o desenvolvimento rural regional, com a difusão técnico-científica aos agropecuaristas, servindo-se do modelo norte-americano de extensão universitária e representando uma determinada concepção de universidade.90 Somente a partir da criação da União Nacional dos Estudantes - UNE, em 1937, os estudantes e parcela significativa da sociedade civil começam a questionar de maneira mais organizada e permanente no Brasil as funções e o papel que cumpria a universidade na sociedade.91 Os estudantes levaram a universidade a uma rediscussão de atividades como as de pesquisa e de extensão no cumprimento do que se compreendia como suas funções sociais. A UNE, desde os seus primeiros congressos, em um contexto de oposição de estudantes ao nazi- 90 Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão universitária na América Latina. In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Pag 17 91 Poerner, Arthur Jose. O poder jovem: historia da participação politica dos estudantes brasileiros. 5ª. Edição. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. Pág. 119-120 51 fascismo, demandava uma reforma da universidade relacionada à idéia de Universidade Popular 92 já contida no Manifesto de Córdoba de 1918.93 O movimento estudantil nascido da tradição de Córdoba tinha basicamente dois objetivos: democratizar o governo universitário e alterar a relação da universidade com a sociedade, tornando a universidade solidária aos destinos da maioria. Em uma palestra ministrada em 1967 em Nova Iorque sobre o movimento estudantil na República Federal da Alemanha ou “Alemanha Ocidental”, Habermas94 ressalta o papel que cumpriram protestos estudantis no sentido de impulsionar reformas na universidade mesmo em sociedades industrializadas e economicamente avançadas do chamado Primeiro Mundo. Ele concluiu estar diante de uma geração estudantil que, apesar de ter surgido num contexto de relativa estabilidade econômica e livre da hegemonia do nazismo, ou seja, num contexto em que deveria estar gozando dos supostos benefícios de seu desenvolvimento econômico e tecnológico, demonstrava-se insatisfeita com instituições sociais como a universidade e com a filosofia de vida em sociedade instaurada pelo avanço do capitalismo. Essa geração estudantil não queria nem a universidade tradicional elitista, nem a universidade de massa como mera escola de profissionais especialistas e muito menos uma universidade que representasse uma combinação de ambos os modelos. Uma geração que 92 As Universidades Populares surgem na Inglaterra em meados do sec. XIX por conta de críticas feitas à universidade pelo movimento operário. Na Espanha, na Universidade de Oviedo, uma organização de orientação anarquista, criou alianças com setores populares, ofertando cursos livres, programas de melhoramento da vida dos trabalhadores e programas de difusão cultural. A Universidade de Oviedo será de importância fundamental para o movimento latino-americano em sua formulação, pois será ela, por seus dirigentes e docentes, o núcleo de apoio e articulação politico-acadêmica da experiência na Argentina, influenciando fortemente a construção do conceito de extensão do Movimento de Córdoba. Para tal movimento, a extensão significava um instrumento para a criação de uma relação orgânica entre universidade e a classe operária e para despertar nessa mesma classe a consciência de que possuíam direitos. Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão na America Latina In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos de Faria (Org.). Brasília, Universidade de Brasília, 2001. Págs 16-19 93 Ver manifesto produzido pela juventude http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/10/399447.shtml 94 argentina em 1918 em Student Protest in the Federal Republic of Germany In Toward to a rational society: students and politics / Jurgen Habermas. Translated by Jeremy J. Shapiro. Boston: Bacon Press, 1970. Págs. 24 -26 52 colocava em questão o direito à livre expressão no espaço acadêmico, reivindicava direitos de participação nas instâncias decisórias da universidade e questionava o modo de produção de conhecimento, diante de uma universidade que não conseguia se organizar para promover reformas e não funcionava eficientemente nem para propósitos acadêmicos relativos ao avanço de pesquisas nem para objetivos de adequada formação profissional. Isso quer dizer que os estudantes brasileiros deste mesmo período, embora estivessem num contexto específico de repressão dos governos militares, estavam também imersos num contexto geral de insatisfação entre os jovens com instituições sociais como a universidade. O movimento estudantil brasileiro, nesse mesmo contexto, além de denunciar políticas de acordo entre o governo militar e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (acordos MEC-USAID), através de documentos editados pela União Nacional dos Estudantes, propunha um amplo conjunto de medidas no sentido de democratizar o acesso das classes populares à universidade e mais especificamente medidas que despertassem a conscientização de direitos como a de criação de escritórios de assistência judiciária aos trabalhadores.95 Propunhase um conjunto de medidas que criassem uma relação mais orgânica da universidade com as classes populares sem que isso significasse o estabelecimento de uma relação paternalística 96. Assim, se desenvolvia, no interior das tensões sociais promovidas pelo movimento estudantil, a construção de uma nova concepção de universidade associada a um projeto de democratização que encontra numa concepção não assistencialista de extensão universitária um de seus pilares. Tais tensões sociais reverberaram nas Faculdades de Direito, provocando, ainda que somente nos anos de 1980 e principalmente a partir dos anos de 1990, um debate público sobre o modelo de ensino jurídico, o que demandou de professores e especialistas um diagnóstico acerca 95 A proposta de um amplo conjunto de medidas de democratização da universidade pode ser encontrada em documentos como a Declaração da Bahia de 1961. A Declaração da Bahia de 1961 tratava de dois eixos básicos: da análise da realidade social brasileira e da universidade pública no Brasil. Propunha-se como diretriz da luta pela reforma universitária e democratização do ensino, o compromisso com a classe trabalhadora através da criação nas faculdades de cursos de alfabetização de adultos, cursos para lideres sindicais nas Faculdades de Direito, entre outras medidas. Rocha, Jose Claudio. A reinvenção solidaria e participativa da universidade: estudos sobre redes de extensão universitária no Brasil – Salvador: EDUNEB, 2008. Pág. 150 96 Sousa, Ana Luiza Lima. A história da extensão universitária. Campinas, SP: Editora Alínea, 2000. Págs. 31-33 53 dos principais pontos de fragilidade deste modelo. Uma das fragilidades apontadas é a descontextualização dos currículos e dos conteúdos reproduzidos, constatação esta que traduz ainda certa inadequação da formação oferecida diante do novo contexto de democratização da sociedade brasileira inaugurado pela Constituição de 1988, no qual se faz notar a centralidade e amplitude dos direitos fundamentais. 97 Antes de passarmos à análise do modelo de ensino jurídico apresentada pela Comissão de Ensino Jurídico da OAB e, portanto, ao problema da descontextualização dos currículos e conteúdos, verificamos que a Extensão, por sua gênese histórica, é atividade que pode apontar perspectivas de transformação desse mesmo modelo, por provocar no interior do mesmo e principalmente na própria estrutura da universidade tensões que, em realidade, emergem de crises sociais que impõem mudanças institucionais. É preciso, no entanto, ressaltar que a extensão nem sempre esteve relacionada a projetos de democratização da universidade, já que entre as variações de definições para o termo podemos encontrar algumas associadas a uma concepção assistencialista. Tal concepção associa a extensão à prestação de serviços à comunidade, sendo atividade através da qual ocorre a transmissão de conhecimento tecnicamente explorável produzido no interior da universidade. De outro lado, encontra-se a concepção não assistencialista que compreende a extensão como processo educativo, cultural e científico, associado a um projeto de democratização da universidade oriundo de tensões historicamente provocadas pelo movimento estudantil. De acordo com esta segunda concepção, a produção do conhecimento deve estar articulada a demandas sociais colocadas principalmente pelas classes populares nos debates públicos, ou seja, a segunda concepção de extensão está de alguma maneira vinculada à identificação de problemas no modo internalizado como a universidade vem procedendo suas formulações ou produzindo conhecimento. Por isso, cabe aqui a classificação feita por Silva 98 que coloca a concepção assistencialista de extensão como Funcionalista e a concepção não 97 Santos, André Luiz Lopes dos. Ensino Jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas: Edicamp, 2002. Págs. 287 e 288 98 Silva, Maria das Graças Martins da. Extensão Universitária no sentido do Ensino e da Pesquisa In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Págs 97-98 54 assistencialista como Processualista. Além delas, a autora identifica uma terceira concepção de extensão que chama de Crítica. Esta última concepção compreende a extensão como uma tendência do Ensino e da Pesquisa, sendo a própria essência dessas atividades quando transformadas e comprometidas com as reais funções da universidade. As duas primeiras concepções, predominantes em momentos históricos distintos da universidade, coexistem até os dias atuais provocando contradições internas que refletem em grande medida uma gama de tensões existentes na própria sociedade. Conforme já vimos anteriormente, a concepção assistencialista de extensão está relacionada a um modelo de universidade, cujo compromisso social é basicamente cumprido através do ensino especializado e voltado para determinadas profissões como as da área de Medicina, Engenharia e Direito. Pesquisa e Extensão constituem, segundo esse modelo, “funções secundárias” da universidade, exercidas segundo interesses voluntários do seu corpo social. Esse modelo, calcado principalmente no Ensino, sofre algumas transformações na medida em que a integração Ensino-Pesquisa encontra condições favoráveis ao seu desenvolvimento no contexto das chamadas Reformas Francisco Campos, promovidas pelo Decreto-lei 19.851/31, em que se verifica a influência do modelo norte-americano. A extensão, segundo estes modelos, é atividade reconhecida, apesar de não necessariamente obrigatória. A extensão constituiria uma espécie de resposta a uma suposta demanda da sociedade por cursos regulares de aperfeiçoamento e capacitação técnica, visando atender necessidades de atualização profissional. Nogueira ressalta que a extensão como formação continuada, oferecida através de cursos regulares, na prática, beneficiou a classe que já tinha acesso ao ensino superior, mantendo excluídas as classes populares, pois funcionava como meio de complementação da formação de alunos e egressos da universidade . 99 Somente após o golpe militar de 1964, a extensão vai ser incorporada como atividade da universidade com a instituição do tripé ensino-pesquisa-extensão pela Lei 5.540 de 1968 ( Lei de Reforma Universitária ). Dentro do tripé, a extensão é instituída com os objetivos de divulgação de resultados da pesquisa e transmissão do conhecimento através do Ensino, aproximando-se da 99 Nogueira, Maria das Dores Pimentel. Extensão Universitária no Brasil: uma revisão conceitual In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Págs 63-64 55 concepção assistencialista que mencionamos anteriormente. A extensão será, portanto, entendida como projeção do Ensino e da Pesquisa no meio social e, embora as atividades extensionistas não estivessem nesse período totalmente sobre o controle e coordenação da universidade, verificaremos que é no regime militar que se intensifica a participação de estudantes em projetos de escala nacional como o Projeto Rondon. Em 1968, a Extensão passa, então, por intenso processo de institucionalização na universidade. De fato, tal processo estabelecido pela Reforma Universitária não significou, porém, o desenvolvimento de uma nova concepção de universidade. Significou, em vez disso, uma apropriação do discurso estudantil pelo Governo e a incorporação no plano meramente formal de suas revindicações, pois, na realidade, grande parte do corpo social da universidade vai se tornar instrumento de concretização de políticas estatais traçadas pelas Forças Armadas via projetos como o Rondon ou os Centros Rurais Universitários de Treinamento e Capacitação – CRUTACs.100 Os programas de integração do estudante com a comunidade, criados pelos militares em parceria com alguns docentes, como o Projeto Rondon e a operação Mauá, eram programas nos quais os estudantes podiam desenvolver atividades profissionais. Além do caráter assistencialista, havia um controle político e ideológico. Na ótica dos representantes do governo militar que passaram a comandar a política educacional, vista como assunto de segurança nacional, os objetivos do Projeto Rondon poderiam solucionar vários problemas: ajudariam a disciplinar os estudantes que a época vinham se organizando em oposição as políticas governamentais; realizariam uma política "integração nacional” em territórios como a Região Norte e CentroOeste e serviriam a projetos desenvolvimentistas traçados para o país. De fato, a concepção de extensão de caráter não assistencialista presente nas reivindicações do movimento estudantil sofrerá um processo de institucionalização somente com a democratização da sociedade brasileira e, mais especificamente, a partir da criação do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas em 1987 101. Com a criação do 100 Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão na América Latina In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos de Faria (Org.). Brasília, Universidade de Brasília, 2001. Pág. 21-22 56 Fórum, as instituições de ensino passam efetivamente a discutir uma política nacional de extensão com relativa autonomia de políticas governamentais. Esse segundo processo de institucionalização não significou uma apropriação do discurso estudantil pela máquina do Estado, mas o início de um processo de democratização da universidade a partir de pressões estudantis. Antes de nos profundarmos sobre esse segundo processo de institucionalização de uma nova concepção, é importante observar que mesmo antes da ditadura militar, estudantes de direito já reforçavam a idéia de uma nova concepção através da criação de núcleos estudantis de assessoria jurídica. 2.2 Origem histórica de uma concepção não assistencialista de extensão nas faculdades de direito Segundo Luz102, a assessoria jurídica universitária desenvolvida por estudantes de Direito, organizados pelo conjunto da militância política, se intensificou nos anos de 1990, mas possui uma origem histórica nos movimentos estudantis de assessoria surgidos entre 1950 e 1964. A assessoria jurídica estudantil iniciou-se com a preocupação de discentes dos cursos de Direito com a questão do acesso a justiça às classes populares, o que deu origem a criação do Serviço de Assistência Jurídica Gratuita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU-RS), na época vinculado ao Centro Acadêmico André da Rocha, e do Serviço de Assistência Judiciária da Universidade Federal da Bahia (SAJU-BA), fundado nos anos de 1960 103. 101 Cria-se o Fórum Nacional de Pró-reitores de Extensão das Universidades Publicas - FORPROEXT em função de necessidades acadêmicas e institucionais. No nível externo às universidades, somente as atividades de Ensino, de graduação e pós-graduação, e Pesquisa contavam com políticas específicas e interlocutores no Ministério da Educação e de Ciência e Tecnologia. Nas universidades, a ação extensionista carecia de orientações comuns e diretrizes políticas de atuação e institucionalização. Nogueira, Maria das Dores Pimentel In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Págs. 68-69 102 103 Luz, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurídica popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Os SAJUs modificaram suas nomenclaturas a partir dos anos de 1980 para Serviço de Assessoria Jurídica, entendendo suas equipes que esta nomenclatura era mais abrangente, pois traduzia uma atuação dos estudantes ampliada para demandas coletivas, para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e para o fortalecimento da organização política das camadas populares. (www.ufrgs.br/saju) 57 A discussão acerca da relação entre o modelo de ensino jurídico e as demandas populares surge, portanto, a margem da estrutura acadêmica e curricular, vinculando-se a organizações estudantis políticas de base como os centros acadêmicos. Constrói-se através dessas organizações estudantis no interior dos cursos de Direito uma concepção de extensão que se aproximava também daquela proposta pelo movimento estudantil nacional e que vai ser posteriormente reprimida pela ditadura militar 104, pois os SAJUs vão praticamente interromper suas atividades até meados dos anos de 1970, quando recomeçam novas discussões sobre a questão da relação entre ensino jurídico e sociedade. Entre os anos de 1980 e 1990 os SAJUs, especialmente os da UFRGS e da UFBA, vão intensificar sua atuação junto ao movimento social e as camadas populares, estimulando uma rede de assessorias que posteriormente ensejaria a criação da Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias – RENAJU em 1996. Embora essas assessorias estudantis tenham sido criadas à margem da estrutura curricular, muitas delas, mesmo depois do fim da ditadura e no contexto de institucionalização de uma nova concepção de extensão nas universidades públicas, continuaram a atuar de forma autônoma em relação às atividades de Ensino e Pesquisa desenvolvidas no interior dos cursos de Direito. Essa posição das assessorias em relação à estrutura acadêmica e ao modelo de ensino jurídico revela, de um lado a continuidade de uma posição de resistência por parte dos estudantes de manterem sua autonomia politicoorganizacional em relação ao corpo docente e, de outro lado, um modelo de ensino que parece funcionar segundo uma racionalidade hegemônica diversa daquela que nos parece permear as atividades dos SAJUs. 104 Dados históricos publicados no site do SAJU-UFRGS demonstram que em 1971 os serviços de assistência promovidos pelos alunos foram drasticamente reduzidos, em razão da criação pela Direção da Faculdade de um órgão, cujo objetivo era realizar a preparação técnica dos estudantes do curso de Direito, denominado Serviço e Preparação Profissional. Com a criação deste órgão, foram definitivamente encerrados os serviços gratuitos e o contato com a população, de modo que uma das justificadas empregadas era a de que o Estado Brasileiro já havia intensificado o acesso à justiça através de órgãos próprios da Consultoria Geral. 58 Muitas das assessorias universitárias estudantis ainda são criadas atualmente de maneira voluntarista pelos estudantes105 e não contam com uma participação docente estruturada através da Pesquisa, o que possibilitaria uma abertura do modelo de ensino e um retorno a pressupostos filosóficos de determinadas concepções de ciência jurídica. Além disso, as assessorias estudantis por se desenvolverem a margem dos currículos podem não estar atentas à realização das novas diretrizes curriculares estabelecidas em 2004 pela Resolução n. 9 do Conselho Nacional de Educação, dentre elas a de justamente fomentar uma sólida formação humanística que provoque uma postura reflexiva e crítica nos estudantes bem como uma capacidade dinâmica de aprendizagem, indispensável ao desenvolvimento da cidadania e aprofundamento de conquistas democráticas. Tal fato demanda uma análise ainda mais precisa acerca das fragilidades do modelo de ensino jurídico e do problema de sua descontextualização106, pois há evidente demanda estudantil por uma formação acadêmica e profissional que se comprometa efetivamente com as novas diretrizes curriculares e o processo de democratização social e universitário iniciado. Mesmo aquelas assessorias que passaram muito recentemente por uma institucionalização na universidade, como é o caso do SAJU-UFGRS, incorporado como atividade acadêmica em 1997 via Pró-Reitoria de Extensão, ou NAJUP-PUC/RS, que passou a contar com apoio institucional em 2005 107 , encontram dificuldades de inserção nos cursos de Direito, possuindo problemas de organização e administração de suas atividades. 105 A Renaju, atualmente, conta com a participação de grupos estudantis que atuam em grande medida de forma voluntária e espontânea, como o Najupak-PA, Isa Cunha-PA, NEP “Flor de Mandacaru”-PB, Najup “Direito nas Ruas”-PE, Negro Cosme-MA, Cajuína-PI, Mandacaru-PI, Najuc-CE, Caju-CE, Paje-CE, Najup “Produzir Direitos”-RJ, Saju-SP, Najup-GO, Sajup-PR, Nepe-SC, Saju-RS, Najup-RS, Najupi-RS, Nijuc-RS. Ribas, Luiz Otavio. Assessoria jurídica popular universitária In Revista Captura Criptica: direito, política e atualidade. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, v. 1, n. 1, jul./dez, 2008. Porto, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação – construção do projeto didático no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. Págs. 40-41 106 107 Assessoria Jurídica popular: leituras fundamentais e novos debates / Paulo Abrão Pires Junior, Marcelo Dalmas Torelly (organizadores); Allan Hahnemann Ferreira et all – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. 59 No contexto geral da universidade, o Fórum de Pró-reitores de Extensão das Universidades Publicas - FORPROEXT, além de procurar incorporar ideias e reivindicações do conjunto do movimento estudantil, se preocupou em conceituar a Extensão a fim de procurar consolidar uma nova concepção que reorientasse políticas de institucionalização no interior das instituições de ensino superior. A Extensão passa então a ser compreendida como processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza uma relação transformadora e não paternalística entre universidade e sociedade. Além disso, passa ser entendida como instrumento viabilizador da função social da universidade e estratégia para se estabelecer práticas acadêmicas interdisciplinares, integrando na sua ação articuladora diferentes áreas do conhecimento 108. As discussões pareciam caminhar no sentido da institucionalização de uma nova concepção de extensão das universidades quando, em 1994, a Extensão como prestação de serviço, ou seja, a concepção assistencialista de extensão volta ao centro dos debates nacionais. Sousa 109 afirma que, no Fórum de Vitória – ES, além de ganhar nova centralidade, a prestação de serviços passa a ser vista como instrumento para captação de recursos financeiros pela universidade. Com que parcela da sociedade estaria, afinal, comprometida a universidade? Que segmentos sociais poderiam pagar pelos seus serviços? Tais indagações demonstram, em realidade, um retorno às discussões iniciais promovidas pelo próprio Fórum no contexto de sua criação, pois, em vez de se discutirem avanços e políticas no sentido de aprofundar o processo de institucionalização de uma nova concepção de Extensão e de universidade, voltava-se a questionar compromissos e funções que a universidade deveria assumir junto à sociedade, tendendo o Fórum a apresentar como solução uma concepção que Em uma postura crítica, Demo afirma que, em realidade, a extensão se tornou a “má consciência” da universidade na medida em que sua existência apenas se justifica porque Ensino e Pesquisa não cumprem suas reais funções sociais. 108 Demo, Pedro. Lugar da Extensão In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001. 109 Sousa, Ana Luiza Lima. A história da extensão universitária. Campinas, SP: Editora Alínea, 2000. Págs. 105-106 60 possui suas raízes históricas em um contexto superado pelo processo de democratização brasileiro. A extensão vive atualmente três dilemas no contexto geral da universidade: o primeiro diz respeito ao enfrentamento da extensão “caça-níquel” que se caracteriza por promover cursos variados, seja de aperfeiçoamento profissional ou formação continuada, cujo objetivo seria arrecadar fundos para centros de pesquisa ou unidades universitárias com a cobrança de taxas e mensalidades; o segundo dilema diz respeito ao enfrentamento de uma espécie de ideologia que se caracteriza pelo culto ao “purismo do saber”, que se agrava nas ciências sociais aplicadas como o direito, e que redunda no seu não engajamento com questões sociais e na sua despolitização; o terceiro esta relacionado a um equivoco na auto-compreensão de muitos que se propõe a criar atividades de extensão em não se enxergarem como produtores de ciência ou saber cientifico, o que leva a comunidade acadêmica a entender a extensão como uma espécie de “mero favor” que a universidade faz de “transmitir” o seu saber a sociedade. O modelo de ensino jurídico reflete em alguma medida esse contexto mais geral da universidade, tendo a Extensão nesse modelo uma tendência a assumir um caráter assistencialista ou a ter dificuldades de se articular a outras atividades acadêmicas. Apesar dos esforços promovidos por docentes e especialistas da Comissão de Ensino Jurídico da OAB no sentido de promover um diagnóstico das fragilidades presentes nesse modelo e assim propor novos parâmetros que culminaram em novas diretrizes editadas pelo MEC, a Extensão como prestação de serviços à comunidade, de caráter evidentemente paternalista, parece permanecer em práticas desenvolvidas no interior dos Escritórios Modelos, Núcleos de Prática Jurídica e até mesmo de SAJUs institucionalizados, refletindo as características de um modelo avesso a uma auto-reflexão de seus pressupostos e a investigação de perspectivas de atuação condizentes com uma nova agenda de direitos e um novo contexto social. 61 2.3 A Extensão no Direito à luz da proposta de Paulo Freire de substituição do conceito de Extensão pelo de Comunicação e da Teoria de Habermas Como dissemos no Capitulo anterior, embora Freire tome a atividade do agrônomo como exemplo para suas formulações, estas podem servir de referência também para educadores em geral, podendo também ser problematizado o desenvolvimento de atividades de mesma natureza no âmbito do ensino jurídico. Interessa-nos neste momento verificar a relação de complementariedade entre as formulações de Freire e Habermas e de que maneira esses dois autores contribuem para repensarmos criticamente a relação de assistência jurídica estabelecida entre profissionais/estudantes do direito e trabalhadores urbanos ou camponeses nas instituições de ensino. Ressalte-se que a Portaria 1.886/94 do Ministério da Educação instituiu como obrigatório o estágio supervisionado nas faculdades de direito, podendo este ser cumprido nas dependências dos Núcleos de Prática Jurídica – NPJs das instituições de ensino, atividade esta que, por um lado, tem os objetivos de preparar estudantes para a prática jurídica e exercício profissional e, de outro lado, promover o acesso a direitos e à justiça a trabalhadores urbanos e camponeses. 110 A partir dessa diretriz educacional, instituída não apenas por força da portaria, mas principalmente do acúmulo de debates entre professores, estudantes e especialistas acerca de deficiências presentes no modelo de ensino jurídico, as faculdades de direito podem também desenvolver, no Pesquisas recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA em parceria com a Associação Nacional dos Defensores Públicos revelaram que os estados de Góias, Paraná e Santa Catarina não possuem ainda uma Defensoria Pública atuante. Além disso, constatou-se que somente 28% das comarcas espalhadas por todo país contam com a atuação de defensores públicos, fato este que indica que trabalhadores e camponeses não dispõem ainda de todos os canais institucionais necessários ao diálogo ou reivindicação de direitos junto ao Poder Público. Embora as faculdades de direito possuam um papel diferenciado dos órgãos estatais e não possam elas substituí-los em suas tarefas institucionais, há evidente demanda de pesquisa detalhada acerca dos problemas decorrentes da ausência de canais institucionais de acesso ao poder público e à justiça. Além disso, abre-se a possibilidade de investigação acerca do papel que as próprias faculdades de direito e, mais especificamente os NPJs e programas de extensão, cumprem no atual contexto de demanda de acesso à justiça. 110 MOURA, Tatiana Whately de. e outros. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. 1ª Edição. Brasília, Distrito Federal: edição dos autores, 2013. 62 interior de seus NPJs, programas e projetos de pesquisa-extensão que ampliem as possibilidades de atendimento desses e outros objetivos educacionais 111. O fato do atendimento de trabalhadores e camponeses para oitiva de demandas jurídicas ter se tornado atividade constitutiva da estrutura curricular, nos impõe ainda mais uma reflexão acerca das diferentes concepções de atendimento jurídico que se desenvolveram no interior das faculdades de direito, passando estas a conviver tanto com uma concepção assistencialista quanto com uma concepção não assistencialista desta mesma atividade. Além disso, as faculdades de direito passaram também a supervisionar estágios cumpridos no interior da máquina do Estado e instituições privadas, que funcionam segundo uma racionalidade que lhe é própria, atribuindo a estas outras instituições uma co-responsabilidade pedagógica. Algumas instituições, preocupadas com os estágios supervisionados e com o modelo de ensino jurídico, mesmo antes da edição da Portaria 1.886/94, como no caso do Programa Pólos de Cidadania (UFMG), da Escola do Direito Achado na Rua (Unb) e SAJUs, passaram a diferenciar suas atividades das tradicionalmente oferecidas nas faculdades de direito e daquelas assistenciais cumpridas nas dependências das faculdades, em escritórios privados ou instituições públicas, como o Ministério Público e cartórios das varas dos tribunais. Para tanto, desenvolveram experiências de aprendizagem que estimulassem uma relação dialógica com trabalhadores e camponeses e uma produção de conhecimento que se constitui da articulação entre esse diálogo e atividades permanentes de pesquisa. 112 Os exemplos acima mencionados revelam a existência nas faculdades de direito de uma concepção não assistencialista de extensão ou atendimento jurídico que se propõe a criar uma relação entre juristas e trabalhadores muito semelhante àquela proposta por Freire no sentido de 111 A Resolução nº 9 de 2004, além de manter a obrigatoriedade do estágio supervisionado, atualiza a Portaria 1.886/94, ao apontar mais explicitamente, no Art. 2º parágrafo 1º, para a necessidade de uma articulação mais orgânica entre extensão e pesquisa no interior da estrutura curricular e iniciação científica. 112 Gustin, Miracy B. de Sousa. (Re)pensando a inserção da universidade na sociedade brasileira atual In Educando para direitos humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade / Jose Geraldo de Sousa Jr. [et al.] (organizadores) – Porto Alegre: Síntese, 2004. Pág. 62 63 estabelecer uma comunicação. Em outras palavras, no sentido de se agir em determinados contextos segundo uma racionalidade orientada ao entendimento, racionalidade esta inerente a processos autênticos de aprendizagem em que se constatam a falibilidade de nossos juízos através de uma postura reflexiva dos sujeitos e graças à estrutura proposicional presente na linguagem que impõe aos sujeitos um esforço de justificação até que se atinja um consenso acerca do sentido atribuído à realidade. Apesar das diretrizes e debates educacionais apontarem no sentido de se estimular nos estudantes de direito habilidades que estão para além das estritamente técnico-profissionais, esta proposta de estabelecimento de uma relação de ensino regida por uma racionalidade comunicativa encontra no direito certa resistência.113 Uma demonstração disso é a transcrição do relato de Menelick de Carvalho Netto sobre a criação do Programa Pólos de Cidadania que aponta que, mesmo no contexto de discussões sobre a reforma do ensino jurídico no âmbito da OAB, a ideia do Polos não encontrou aceitação no corpo docente da Faculdade de Direito da UFMG.114 Outra demonstração disso é a caracterização dos núcleos de prática jurídica e assessorias populares como “espaços alternativos” de construção de uma concepção crítica do direito, como se partisse-se do pressuposto de que há um modelo de ensino estruturado que segue uma racionalidade, no qual experiências baseadas em outra racionalidade estão como que há margem desse modelo. 115 Além disso, há uma tendência entre estudantes e juristas em receber as demandas dos trabalhadores e traduzirem estas, como que numa operação matemática, para uma linguagem codificada, que possui uma espécie de “vida própria” relativamente independente dos sujeitos que 113 Não foram encontrados neste trabalho dados sobre a quantidade de professores que se dedicam a atividades em núcleos de prática ou projetos de extensão nas universidades públicas em geral. Mas há indícios, pela observação das reduzidas equipes constituídas (em média três ou quatro professores) nas Faculdades de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade de Brasília e na Universidade de Minas Gerais, que revelam que é baixo o número de profissionais com efetiva experiência pedagógica em atividades de extensão que adotem uma metodologia de ensino diferenciada. Rubião, André. “A universidade participativa” – Uma análise a partir do Programa Pólos de Cidadania. Tese de Doutorado. Orientação: Yves Santomer (Paris 8) e Leonardo Avritzer (UFMG). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; Paris: Université Paris 8 Vincennes – Saint Denis, 2010. 114 115 Sousa Junior, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2011. Pág. 90 64 a utilizam. O fim desta tradução é ou de apenas dizer o que está e o que não está conforme ao direito ou de movimentar eficientemente a máquina do Estado. Além disso, há uma tendência em considerar as demandas jurídicas como termômetro da eficiência dessa tradução em relação aos êxitos atingidos e não como partes integrantes de um processo de aprendizagem. Apesar de todas as discussões críticas empreendidas pela Comissão de Ensino Jurídico da OAB, da Associação Brasileira de Ensino do Direito e as mais recentes atualizações das diretrizes educacionais feitas pelo Conselho Nacional de Educação, atribuímos a existência dessa tendência a um modelo de ensino jurídico ainda estruturado a partir da noção de que sua função social primária é a do ensino técnico-profissionalizante, como se Pesquisa e a Extensão fossem funções secundárias na formação profissional. Além disso, esse modelo estrutura-se a partir de uma concepção de direito centrada na idéia de sistema, concepção esta que leva a um conhecimento parcial do fenômeno jurídico e centrado na figura do jurista e numa interpretação tipicamente juridicista da realidade. A tradução para a linguagem sistêmica específica evidentemente é uma atividade que não se pode subtrair do contexto de formação de estudantes e profissionais do direito. O problema está em resumir a atividade dos NPJs e projetos de extensão à tradução em linguagem codificada/técnica das demandas jurídicas e transmitir aos trabalhadores os resultados e êxitos obtidos no sistema do mercado ou do Estado com esta operação. Isto significaria transportar para os NPJs, que fazem parte da estrutura curricular das instituições de ensino, uma racionalidade teleológica proveniente do mundo sistêmico e que não é aquela própria dos processos de aprendizagem ou mesmo de reflexão científica. Ocorre que mesmo as ações regidas por uma racionalidade teleológica ou instrumental, para serem justamente consideradas racionais, devem estar acompanhadas de uma base de fundamentação bem estruturada. Diante de um modelo de ensino jurídico que oscila entre o raciocínio do direito segundo esta racionalidade e o raciocínio do direito segundo um senso comum teórico116, isto e, segundo um “suposto saber” carente de cientificidade, questiona-se 116 Warat, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, V. II, A epistemologia da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 284. 65 ainda se de fato o tratamento de demandas jurídicas que vem sendo implementado nos NPJs e em outras instituições pode, de fato, atingir o grau de eficiência almejado por eles mesmos. Por outro lado, a atividade de atendimento jurídico no âmbito das faculdades de direito, quando compreendida segundo uma racionalidade comunicativa, tende a considerar que o objetivo principal da atividade é chegar a um entendimento acerca do fenômeno jurídico, relacionando-o não apenas ao sistema, mas também à sua inserção no mundo da vida. O objetivo da relação estabelecida no atendimento não seria outro senão desenvolver um processo de aprendizagem e isto implica que juristas e estudantes de direito assumam uma postura reflexiva, colocando à prova juízos, valores bem como pressupostos e conceitos jurídicos numa relação intersubjetiva de comunicação. A postura reflexiva, ao colocar à prova pressupostos jurídicos, possibilita ainda um certo retorno crítico aos pressupostos filosóficos da ciência jurídica. Tal relação comunicativa implica em necessariamente considerar as problematizações do outro (não-jurista) que, ao tematizar livremente o direito numa linguagem não codificada, impõe tanto um exercício de justificação por parte dos juristas ao emitirem suas pretensões de validade quanto um esforço de tradução inverso daquele normalmente sugerido, o que exige, por sua vez, uma atitude performativa e de imersão no mundo da vida, a fim de que se compreenda ou se preservem os sentidos nele produzidos e partilhados. Esse esforço de tradução do conhecimento jurídico para a linguagem presente no mundo da vida implica, consequentemente, na utilização da linguagem no seu modo mais originário, mobilizando as suas forças ilocucionárias capazes de promover entendimento e consenso na ação. A atitude performativa exige do jurista e do estudante do direito certa imersão no contexto de uma cultura e sociedade em que se tematizam e ao mesmo tempo se consolidam valores via acordos racionalmente motivados e se acumulam experiências que não podem ser por ele desprezados, sob pena de incompreensão do que venha a ser de fato o fenômeno jurídico. Assim, quando um grupo de juristas ou estudantes de direito passa a assessorar uma entidade representativa da sociedade civil como as associações de moradores de favelas, por exemplo, deve considerar todo um histórico de formação política, cultural, organizacional e de compreensão de seu próprio contexto formado pelos moradores, ou seja, deve considerar um 66 pano de fundo, sem o qual terá dificuldades de se inserir numa relação autêntica de aprendizagem, de comunicação e compreensão do direito. Além disso, a atitude performativa possibilita uma politização dos conteúdos jurídicos em questão, já que, com ela, compreende-se a relação do direito não apenas com o sistema, mas com o mundo da vida. Com ela, abre-se a possibilidade do jurista e do estudante resgatarem discursivamente as razões que motivaram a validade de um direito considerado legítimo bem como problematizarem discursivamente, por via do estímulo ao exercício de direitos subjetivos de participação política, a tensão entre a coercibilidade e garantia de liberdades permanente no fenômeno jurídico. Abre-se a possibilidade ainda de questionamento real, pela via discursiva, da facticidade de direitos positivos. Nas ações comunicativas desenvolvidas pelos estudantes através de determinados programas de pesquisa-extensão, apesar das dificuldades, coloca-se a possibilidade de o direito ser entendido de maneira articulada com a idéia de legitimação, estimulando uma relação com os trabalhadores em que se preserva e aprofunda uma cultura democrática na qual procura-se que autonomia pública e privada sejam exercitadas simultaneamente por todos os sujeitos envolvidos e não se compreende o fenômeno jurídico senão através da forma democrática. 2.4 Diagnóstico e problemas do modelo de ensino jurídico É recorrente entre os principais autores que se dedicam à investigação das características do modelo de ensino jurídico uma preocupação com a sua contextualização que designa desde uma atenção a problemas e demandas jurídicas presentes nos contextos em que se inserem os educandos até o adequado tratamento acadêmico de temas inaugurados pela constituição de 1988 como o do direito ao acesso à justiça. Considera-se a descontextualização um problema que envolve ainda o reconhecimento do caráter pedagógico de que deve se revestir a atuação dos profissionais em direito num contexto em que se demanda a efetivação e acesso a direitos fundamentais numa sociedade ainda marcada por desigualdades sociais. 117 117 Santos sugere que num país em que a grande maioria dos trabalhadores tem pouco ou nenhum acesso ao conhecimento de direitos e procedimentos institucionais de reivindicação de direitos, a atividade dos 67 Em outras palavras, é recorrente entre os autores considerados referência no tema, a problematização da relação entre ensino jurídico e mundo da vida, contexto próprio das ações comunicativas que congrega cultura, subjetividades e as relações sociais, o que envolve não apenas a discussão de metodologias e concepções de ensino, mas também de concepções de direito a partir das quais se estrutura esse mesmo ensino. Santos começa por destacar que há nos currículos de direito um ranço privatista que se caracteriza pela ênfase no estudo do direito privado, em detrimento de um enfoque educacional que permitisse um aprofundamento no conhecimento do direito público, o que revelaria uma aguda falta de sintonia entre o ensino jurídico e os propósitos democratizantes, inclusive os direcionados às instituições ensino, do texto constitucional vigente. O autor coloca como centro dos debates educacionais mais atuais a busca por uma formação profissional renovada no direito, capaz de tornar o estudante apto, mais do que de lidar de forma tecnicamente eficiente com o instrumental técnico e jurídico, mas de fazer do direito um elemento de democratização da sociedade brasileira, enfrentando para isso princípios e valores democráticos em vias de consolidação.118 Além disso, coloca que o problema da descontextualização faz transparecer que o problema do ensino jurídico não é conjuntural, mas representa uma forma de perceber o Direito que esbarra em uma cultura jurídica arraigada nas instituições de ensino. Uma forma de perceber o direito que filtra o fenômeno jurídico e o reduz a um conjunto de operações e linguagens específicas para o exercício imediato de funções dentro do Estado e do mercado. Outro problema que se soma ao da descontextualização diz respeito à fragmentação do saber jurídico que, segundo o mencionado autor, tem por base uma racionalidade cartesiana que juristas e estudantes de direito deve se revestir de um caráter pedagógico, o que coloca suas atividades no sentido da ampliação das possibilidades de consolidação do Estado Democrático de Direito. Neste sentido, contextualizar o ensino jurídico significa aproximar saber jurídico da sociedade como forma de perceber o fenômeno jurídico em diferentes níveis de organização política e social. Santos, André Luiz Lopes dos. Ensino Jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas: Edicamp, 2002. Pag. 30 118 Ibidem Pág. 30-31 68 propunha a decomposição da realidade ou do objeto de investigação em partes fundamentais para melhor conhecê-lo segundo uma ordem lógica. Seguindo essa mesma racionalidade objetivista, o ensino jurídico acabou por desenvolver seus conteúdos de forma fragmentada, o que levou o conhecimento a crescentes especializações e a uma perda de visão global do fenômeno jurídico indispensável aos profissionais do Direito. Contextualizar o ensino jurídico significaria então provocar o questionamento da radical separação entre direito e política, ou direito e sociedade, que tem como pano de fundo a concepção positivista de ciência jurídica, cujos subprodutos são institutos jurídicos desconexos de suas respectivas origens históricas, filosóficas e sociais. 119 Um dos caminhos apontados por Santos para um emprego crítico da linguagem e conhecimentos técnicos bem como para a contextualização da produção de conhecimento e conteúdos curriculares nos cursos jurídicos, passa, em alguma medida, pela ideia de democratização da interpretação constitucional, baseada na constatação de que a sociedade como um todo deve conhecer, compreender e interpretar orientações constitucionais, de modo a extrair delas as condições de efetivo alargamento da noção de direito e (vivência) de cidadania. 120 Além de Santos, através do diagnóstico feito pela comissão de ensino jurídico da OAB, Porto121 também verificou que a crise do ensino jurídico se situa num contexto mais amplo de questionamento de instituições sociais e formas de organização da sociedade. Tal crise também não é para ela conjuntural, mas resultado de sucessivas crises, tendo o ensino jurídico assumido um caráter ensimesmado, fechando-se num delírio egocêntrico. A partir desta percepção, aponta como primeira característica desse modelo de ensino a descontextualização122 que seria resultado 119 Santos ressalta que na ditadura militar o propósito do acobertamento da dimensão política das mais diversas práticas jurídicas e culturais nas faculdades de direito contribui em alguma medida para a sua manutenção. Segundo ele, esse acorbertamento da dimensão política era traduzido num fetiche legalista, disfarçando-se com isso valores conservadores e o seu teor autoritário. 120 Ibidem Pag. 27 Porto, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação – construção do projeto didático no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000. Págs. 40-41 121 122 Outras características acompanham esta primeira como: o dogmatismo que significa a organização do conhecimento segundo esquemas, regras lógicas e um raciocínio baseado em operações interiorizadas; e a unidisciplinaridade que significa o isolamento da ciência jurídica de outras ciências ou uma produção fragmentada de saber. 69 do ocultamento de contextos jurídicos variados, desprezando-se saberes de outros contextos sociais construídos a partir das especificidades de suas práticas sociais. Isto se reflete na pedagogia implementada, baseada na idéia de instrução ou transmissão de conhecimento, cuja principal característica é não revelar os seus pressupostos ou os pressupostos filosóficos dos quais se parte para produzir um determinado conhecimento. Além disso, a idéia de transmissão parece colocar os sujeitos, professores e estudantes, juristas e não-juristas, numa posição de assimetria. Para chegar a estas conclusões, Porto parte da idéia de pluralismo jurídico que se edifica a partir da compreensão de que o fenômeno jurídico é um fenômeno complexo e, portanto, está contido em contexto diferenciados com especificidades, juridicidades e práticas próprias. Verificaremos que, em realidade, o fenômeno jurídico pode ser compreendido através de uma determinada concepção de linguagem, o que aponta que ele, na verdade, funcionaria como médium de diferentes estruturas e instituições sociais, ou seja, o direito é capaz de promover a interlocução social, por se apoiar, em última instância, num arranjo comunicativo. Quando este arranjo comunicativo é atingido ou mesmo se rompe, seja pela crescente tecnicização do mundo da vida, seja por outros fatores históricos e sociais, o direito passa a funcionar precipuamente como linguagem-instrumento de movimentação da máquina estatal, do sistema do poder e do mercado. Voltaremos ainda neste tópico, mas, por ora, nos concentraremos na noção de que este modelo de ensino jurídico tem se apoiado em automatismos, operações e esquemas inconscientes de percepção que enclausuram o aprendizado numa atividade de reprodução de valores, estereótipos e de um poder simbólico (ou imperceptível), baseado na ignorância do que há de arbitrário em seu funcionamento. O processo de aprendizagem aconteceria segundo um acúmulo de informações, ou, nas palavras de Freire, apoiado numa “educação bancária”. Segundo Aguiar 123, uma educação que não trate de desenvolver uma gama de habilidades certamente será receituário ideológico de noções paralisantes que não tocam nem a interioridade 123 Aguiar, Roberto A. R de. Habilidades: ensino jurídico e contemporaneidade. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. 70 dos educandos, nem sua interferência no mundo ou nas relações sociais.124 Para Aguiar, em sociedades mercantilizadas, a subjetividade dos indivíduos foi aos poucos sendo tolhida, passando estes a serem definidos tão-somente por habilidades superficiais ou perfis estereotipados, ou seja, perfis adequados à realização dos padrões e objetivos de uma sociedade de massas, de consumo, de trabalho e exploração. Desenvolver habilidades que servem não apenas ao atendimento de objetivos da sociedade de massas ou a lógica instrumental por ela imposta significa criar condições de problematizar a realidade social, dando um outro sentido as ações, e de ligar essas ações aos desejos humanos e à subjetividade. Em entrevista concedida a autora deste estudo, Aguiar coloca a relevância do desenvolvimento da habilidade de “compreender o outro”, entendendo que esse outro define em grande medida a subjetividade daquele que se propõe a compreendê-lo e não ser possível obter uma formação em direito sem que se parta desse pressuposto. 125 Já Rodrigues126 atribui, como uma das causas principais do não desenvolvimento de outras habilidades no âmbito do ensino jurídico, como a habilidade comunicativa, ao fato de não haver uma formação/preparação pedagógica entre os profissionais em Direito, o que implica em relegar as atividades do ensino e pesquisa à condição de atividades secundárias frente a outros interesses profissionais. Assim, passa-se a reproduzir nas instituições de ensino de maneira irrefletida percepções, conteúdos e esquemas de raciocínio próprios da prática ou do meio profissional que muitas vezes traduzem um senso comum teórico 127 e não um estudo baseado em critérios e metodologias que gozem de maior rigor científico. Apesar da aparente cientificidade, o discurso docente goza de uma autoridade que significa a reprodução simbólica do poder nas 124 As formulações de Aguiar nos parecem ir ao encontro daquelas feitas por Habermas quando discutia o papel da universidade na sociedade contemporânea, colocando a relevância do desenvolvimento de habilidades chamadas por ele de extrafuncionais. 125 Entrevista em anexo concedida em Brasília no dia 06 de abril de 2013. 126 RODRIGUES, Horácio Wanderley. O Ensino Jurídico de Graduação no Brasil Contemporâneo: análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho. Tese Mestrado. Orientação: WARAT, Luis Alberto. Universidade Federal de Santa Catarina, 1987. 127 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: epistemologia jurídica da modernidade. Volume 2. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. 71 instituições de ensino e, mais adiante, a reprodução de estruturas de poder na sociedade pelo tipo de formação que oferece. Constata o mencionado autor, tendo como referência Lyra Filho, que uma equivocada compreensão do que venha a ser o direito explica fragilidades presentes na pedagogia do ensino jurídico e vice-versa. Lyra Filho128 questiona em seus escritos muitos dos pressupostos presentes nas teorias positivistas que embasam as concepções de ensino jurídico. Questiona a tomada da norma pelo direito, a definição do direito pela sua sanção ou poder de coercitividade, como se mantivesse sempre uma pauta negativa de exercício da liberdade, ou seja, como se as liberdades garantidas pelo direito fossem tudo aquilo que restasse do elenco de proibições impostas. Ao questionar tais pressupostos, denuncia a despolitização de tal concepção e da equivocada noção de legitimidade porque nela está implícita a idéia de que a legitimidade se extrai como que de sobressalto da própria legalidade. Como se não pudesse haver um direito positivo antijurídico e as contradições que existem na sociedade não fossem a origem da manutenção e, ao mesmo tempo, também da mudança de tal direito. Afirma o autor que o direito surge de tensões sociais entre espoliados e espoliadores e é exatamente por isso que não se pode defini-lo apenas pela sua coercitividade, reconhecendo-se que há direitos, como os direitos subjetivos, que garantem uma existência positiva da liberdade, ou seja, direitos que garantem, em grande medida, o questionamento a todos aqueles que entendem ilegítimo o direito positivo. Partindo dessas formulações, se levarmos em consideração que a tensão entre espoliados e espoliadores se reflete em grande medida no discurso e na linguagem, que há uma tensão entre facticidade e validade existente na linguagem e que tal tensão está também ela presente no direito, não há como compreender o direito criticamente se não compreendermos a estrutura proposicional da linguagem, a racionalidade comunicativa que dela se deriva, os processos de legitimação e atitude performativa através da qual é possível compreender o direito na sua relação com o mundo da vida. 128 Lyra Filho, Roberto. Pesquisa em QUE Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984. Pág 12. 72 A facticidade do direito é em geral identificada pelo fato de haver o uso da coerção, mas esta coercibilidade somente pode ser considerada jurídica se for legítima, isto é, se estiver de acordo com critérios públicos estabelecidos através de acordos racionalmente motivados. Tais acordos racionalmente motivados foram gerados por conta da existência de direitos subjetivos que garantem igual participação a todos em debates públicos, em que a ação comunicativa é elemento central para o seu desenvolvimento. Como o ambiente próprio da ação comunicativa é o mundo da vida, não há como compreender o processo de legitimação (ou mesmo de deslegitimacão) do direito via debates públicos sem que se adote uma atitude performativa em que se procura conhecer e preservar os sentidos neles partilhados. No ensino jurídico, esta atitude performativa é muitas das vezes tolhida em processos pedagógicos por conta de uma equivocada compreensão do direito que leva em consideração principalmente o aspecto de sua coercibilidade, deixando muitas das vezes de discutir os modos em que se pode processar a sua legitimação e a sua inserção no mundo da vida. Não se compreende o direito como uma linguagem que pode estar relacionada também com o mundo da vida e muito menos a maneira como os direitos subjetivos de participação política garantem o direito ao uso da linguagem/comunicação para questionar ou validar pretensões de validade normativa no mundo da vida. Por outro lado, o direito é muitas das vezes visto como um subsistema que possui funções que lhes são próprios como a de estabilizar expectativas de comportamento através de fundamentos criados por ele mesmo a partir de dentro. Essas funções são garantidas através do manejo eficiente de uma linguagem técnica específica e de esquemas de percepções que funcionam segundo uma racionalidade dirigida a fins. Diante disso, o ensino do direito deveria, em tese, se voltar à compreensão dessas funções e da linguagem que possibilite o acesso a elas. Assim, as demandas jurídicas são traduzidas para uma linguagem que opera o sistema de poder que, para se manter, reproduz-se através de uma racionalidade que lhe é própria. Com isso, o fenômeno jurídico fica descolado do mundo da vida, o que acaba por provocar uma espécie de perda da visão global do fenômeno. 73 Os sujeitos envolvidos nas demandas jurídicas passam a ser considerados peças de engrenagens sistêmicas e de um repertório linguístico que possui uma espécie de vida própria relativamente independente de quem as utiliza e do contexto sócio-cultural em que é produzido. O direito, segundo o modelo de ensino jurídico, passa ser muitas vezes explicado pela facticidade ou a coercibilidade que produz, mas esta pretensa facticidade quando confrontada em debates públicos pode desmoronar, já que junto com ela se tematiza sua legitimidade, questões culturais e valores sociais. Por outro lado, conforme demonstraram alguns autores mencionados, o ensino do direito também reproduz institutos e conceitos que em realidade emergem de um senso comum teórico partilhado por juristas que se solidifica numa espécie de tradição presente nas carreiras jurídicas. Esse senso comum teórico não esta fundamentado num tratamento racional de pretensões de validade ou de saberes, mas em estereótipos, valores hegemônicos e num habitus129 que se constitui por uma espécie de modo de reprodução do poder simbólico de um suposto saber que não encontra sua autoridade na força do melhor argumento diante de um contexto, mas em disputas pelo poder de dizer o direito entre juristas, seguindo uma determinada tradição do campo jurídico. Isso nos leva a concluir que o modelo de ensino jurídico parece se voltar ora para a preservação de uma racionalidade sistêmica, teleológica ou instrumental no tratamento de demandas jurídicas ora para a preservação de um suposto saber baseado em um habitus teórico e linguístico, ou seja, em uma linguagem estereotipada, o que dificulta uma produção do conhecimento através de processos autênticos de aprendizagem ou baseada na interlocução com elementos do mundo da vida que, por sua vez, fazem parte de uma concepção ampliada de direito. Isso se reflete numa pedagogia ou metodologia de ensino resistente a uma racionalidade comunicativa, baseada numa intersubjetividade orientada a negociação de sentidos sobre o mundo e numa atitude reflexiva que põe sempre a prova juízos e pressupostos jurídicos que fundamentam institutos, conceitos e a prática jurídica. 129 Veras, Mariana Rodrigues. Campo do ensino jurídico e travessias para mudança de habitus: desajustamentos e (des)construção do personagem. Dissertação de Mestrado. Orientação: Jose Geraldo Sousa Junior. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.Pág 65-66 74 Capítulo 3: Experiências não assistencialistas de pesquisa-extensão: o caso do Programa Pólos de Cidadania da UFMG, da Escola do Direito Achado na Rua da Unb e do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania 3.1 Programa Pólos de Cidadania da UFMG No contexto de debates nacionais acerca da necessidade de reformas nas diretrizes educacionais para os cursos de direito, promovidos pela Comissão de Ensino Jurídico da OAB e principalmente no contexto de discussão da construção de um pensamento jurídico crítico130 e uma “nova cultura jurídica”, professores e estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais propunham a criação de um programa de pesquisa-extensão, denominado Pólos de Cidadania, cuja temática central é a efetivação de direitos humanos. Essa temática foi desdobrada no eixo da cidadania que trata da inserção política e participativa dos sujeitos nas mais diversas relações sociais, da subjetividade que reflete sobre as condições de expressão da personalidade ou dos desejos desses sujeitos e eixo da emancipação, centrado no desenvolvimento da democracia e da capacidade de organização desses sujeitos. A fim de diferenciar-se da visão assistencialista de extensão universitária, o Pólos procurava aproximar a concepção de extensão da faculdade de direito daquela discutida pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das universidades públicas bem como desconstruir uma visão “salvacionista” ou messiânica de atuação dos juristas junto a trabalhadores urbanos e camponeses. A idéia, desde o princípio era criar, através de uma metodologia diferenciada das que vigoravam, pólos de discussão pública, nos quais se tematizaria o direito, fomentando o exercício de autonomias por todos os envolvidos e ações no sentido de reivindicar direitos junto ao poder público. Para os estudantes, a principal proposta era oferecer a oportunidade de construção, através de uma racionalidade diferenciada, de um conhecimento interdisciplinar, articulado de maneira reflexiva com a complexa produção de sentidos do mundo da vida. Essa discussão foi impulsionada pelos movimentos do “Direito Alternativo” na Região Sul e pela “Nova Escola Jurídica Brasileira” de Lyra Filho em Brasília. 130 75 A metodologia adotada para o atendimento dos mencionados objetivos passou a ser a da pesquisa-ação. Nesta metodologia, a participação e o envolvimento dos sujeitos da realidade social investigada é fundamental, ou seja, a mobilização social é peça chave para o seu desenvolvimento, mas para que essa mobilização ocorra é preciso que os sujeitos tomem discursivamente consciência do contexto em que estão inseridos. Rubião131 elencou em sua tese de doutorado os pressupostos principais desta metodologia: a) em primeiro lugar, a pesquisa-ação deve partir de uma situação ou demanda social concreta e deve se inspirar constantemente nas transformações e elementos novos que surgem no contexto social durante o processo da pesquisa; b) em segundo lugar, deve-se partir do pressuposto que os fenômenos sociais não são dados estáticos e que, portanto, não podem ser observados de um ponto de vista externo; c) em terceiro lugar, na pesquisa-ação, o pesquisador deve assumir constantemente dois papéis complementares o de pesquisador e o de participante do grupo, o que implica, de um lado, em partilhar coletivamente sentidos e dinâmicas adotados pelo grupo no contexto social em questão e, de outro lado, transformar os sujeitos envolvidos em co-autores das formulações científicas. Com isso, a pesquisa-ação sugere uma inversão epistemológica ou uma mudança de atitude acadêmica do pesquisador em ciências humanas, desconstruindo a exacerbada objetividade contida nas metodologias de observação de inspiração positivista e a relação sujeito-objeto nelas implicadas. Além disso, busca-se com essa metodologia uma avaliação qualitativa e crítica dos dados compreendidos, sem a qual não é possível chegar a um diagnóstico completo dos sentidos e dos discursos produzidos dentre uma determinada realidade social. A metodologia da pesquisa-ação serve então de suporte para o desenvolvimento de três núcleos temáticos: o da subjetividade, que compreende a análise do desenvolvimento de personalidades, da autonomia e dos desejos humanos numa dada realidade; da cidadania, que envolve formas jurídico-políticas de exercício de direitos subjetivos, bem como a democratização Rubião, André. “A universidade participativa” – Uma análise a partir do Programa Pólos de Cidadania. Tese de Doutorado. Orientação: Yves Santomer (Paris 8) e Leonardo Avritzer (UFMG). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; Paris: Université Paris 8 Vincennes – Saint Denis, 2010. Pág 310 131 76 das relações sociais com o desvelamento de formas variadas de opressão/dominação; e o da emancipação que consiste na capacidade permanente de avaliação crítica de estruturas sociais de opressão ou violação de direitos subjetivos fundamentais e no aprofundamento de relações baseadas na organização e no associativismo comunitário. Ao analisarmos cada um desses núcleos temáticos, verificamos que o Pólos lida com todos os elementos que Habermas caracterizou como pertencentes ao mundo da vida, a saber: a personalidade que se constitui como a dimensão do mundo da vida em que ocorrem processos de socialização dos indivíduos e a formação de identidades; a sociedade que se regula por ordens legítimas pelas quais um indivíduo cria sentimentos de pertença e laços de solidariedade dentro de um grupo ou com outros grupos sociais; e a cultura que se caracteriza pelo acúmulo de saberes e interpretações do mundo através de um histórico de ações comunicativas no mundo da vida. Cada um dos núcleos temáticos pode estar relacionado direta ou indiretamente com todos os elementos que compõem o mundo da vida. Além disso, dependendo da demanda sóciojurídica abordada os núcleos temáticos, tal como os elementos do mundo da vida, podem estar inter-relacionados a ponto de não se poder discutir um eixo sem se abordar outro. Porém, se pudéssemos esquematizar uma relação entre os núcleos temáticos do Programa Pólos e os elementos do mundo da vida, sugeriríamos que: a) o núcleo temático da subjetividade está em grande medida relacionado à dimensão da personalidade, visto que lida com a complexa relação entre autonomia subjetiva e socialização, ou seja, com o desenvolvimento dos desejos humanos e das identidades de grupo num determinado contexto em que encontram-se consolidados determinados valores e estruturais sociais; b) o núcleo temático da cidadania está relacionado à dimensão da sociedade, já que lida com formas jurídico-politicas de exercício da autonomia, com um conteúdo normativo ou, em outras palavras, com o exercício de direitos subjetivos fundamentais sem os quais não seria possível regular a pertença dos sujeitos a grupos sociais ou ao conjunto das relações sociais; c) o núcleo temático da emancipação está ligado à dimensão da cultura, pois não é possível avaliar criticamente estruturas sociais de opressão sem enfrentar interpretações, valores e o imaginário social que compõem o pano de fundo das ações sociais. 77 Os núcleos temáticos constituem, portanto, a “moldura interpretativa” ou “moldura temática” dentro da qual se desenvolvem as ações do Programa Pólos, ações essas que, segundo a metodologia empregada, estariam reguladas por uma racionalidade comunicativa ou orientada ao entendimento, proporcionando a todos os envolvidos processos autênticos de aprendizagem e produção de conhecimento. Vale ressaltar que esses processos de aprendizagem vem oferecendo preparação pedagógica a ponto de inserir ex-alunos da Faculdade de Direito na carreira docente . Para além da preparação pedagógica, essas ações objetivam, em primeiro lugar, o aumento do capital social em determinadas comunidades do estado de Minas Gerais, ou seja, o aumento da capacidade de cooperação dos indivíduos e o desenvolvimento de normas de reciprocidade que possibilitem o acesso a direitos e o exercício da cidadania através da intensificação da mobilização social. 132 Em segundo lugar, as ações implementadas objetivam desenvolver processos de mediação com métodos interdisciplinares de estímulo a ações comunicativas que aprimorem o entendimento entre sujeitos, nos casos menos complexos, e dentro da comunidade como um todo em casos que envolvam questões sociais maiores. Essas ações criam as condições para que as comunidades desenvolvam elas próprias processos de entendimento através da comunicação, mesmo nos casos em que, a princípio, há dissenso e divergência de opiniões, o que as aproxima de processos de emancipação da burocracia estatal, de um lado, e a processos de mobilização, de outro, para a reivindicação coletiva de direitos, com acordos internos duradouros, frente à máquina do Estado. Outro objetivo do Pólos é desenvolver uma economia solidária, baseada na criação de cooperativas populares, articulando-se formas de geração de emprego e renda, a fim de integrar a 132 A experiência do Programa Polos de Cidadania em comunidades do Vale do Jequitinhonha (Minas gerais), localizadas em áreas rurais de baixo IDH, demonstrou que a existência de Conselhos de Direitos em que havia a interlocução entre o poder público e comunidades organizadas guardava relação com o controle da violação de direitos de crianças e adolescentes ou com a salvaguarda de direitos humanos. Publicação do Programa Polos de Cidadania sobre o tema “Responsabilidade Social da Administração Pública na efetividade dos Direitos Humanos”. Belo Horizonte: Movimento Editorial, Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de Direito, 2003. 78 comunidade ao sistema do mercado, sem que isso signifique uma adesão a ele. A criação das incubadoras de cooperativas populares surge do estímulo a ações comunicativas no interior das comunidades que possibilitem a mobilização das mesmas em torno de interesses coletivos relacionados ao problema de baixa remuneração e capacitação profissional dos envolvidos.133 Com isso, são discutidas e estudadas formas de geração de emprego e renda que insiram as comunidades no sistema do mercado, sem, contudo, se render de todo a racionalidade deste, preservando-se no interior das comunidades laços de solidariedade que sustentam a sua organização e mobilização em torno de interesses coletivos.134 Já o eixo de ações estabelecido pela Trupe a Torto e a Direito é um dos mais antigos do Pólos, cujo objetivo é trabalhar temas-problemas das comunidades por meio da linguagem teatral/dramatúrgica e de forma integrada a outros tipos de ações que compõem o programa. A Trupe a Torto e a Direito tem a sua origem numa iniciativa voluntária de estudantes de Graduação do curso de Direito que buscavam no teatro um discurso político ou formas de intervenção política. O grupo de teatro se consolidou institucional e academicamente através da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG e foi incorporado ao ate então recém-inaugurado Projeto Pólos Reprodutores de Cidadania, coordenado pelos professores Menelick de Carvalho Netto e Miracy Gustin. Além disso, a Trupe passou mais adiante a contar com financiamentos do Ministério da Justiça pelo programa “Direitos Humanos em Cena”. O objetivo é enfrentar questões sociais, valores e estereótipos presentes no imaginário popular a fim de provocar uma reflexão através da dramaturgia. Segundo Nicácio135, a Trupe se No caso da “Vila Acaba Mundo”, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte onde há intensa atividade de empresas do ramo da mineração, constatou-se através de pesquisa quantitativa e qualitativa que 13 % dos moradores estavam desempregados e 45% recebia ate um salario mínimo, sendo que mais da metade dos assalariados não possuía carteira assinada. Além disso, constatou-se que 15% eram analfabetos e que 77% não havia frequentado nenhum tipo de curso profissionalizante. A grande maioria desse publico era composta de jovens de ate 29 anos. 133 134 Ainda no caso da Vila Acaba Mundo, a formação de cooperativas populares não apenas contribuiu para a geração de renda para suas integrantes (maioria delas eram mulheres) como consolidou uma rede de associações e organizações comunitárias que deu origem ao Fórum de Entidades do Entorno da Área de Mineração (FEMAN). 135 Nicacio, Antônio Eduardo Silva. A Torto e a Direito: um ensaio para a realidade. Monografia sob Orientação de Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 2003.Pág 50-51 79 inspira na atuação no “Teatro do Oprimido” que, desde os anos de 1970, ficou reconhecido internacionalmente como prática autêntica de problematizar e incitar comportamentos para uma organização política e socialmente emancipada do público. 136 A influência do Teatro do Oprimido sobrecai principalmente no modo de produção dos textos das peças que se dá num processo coletivo ou dialógico entre os atores-pesquisadores, no qual se verifica um processo de aprendizagem que trata coletivamente de demandas públicas por direitos. Assim, nesse processo coletivo, os dados ou códigos científicos são transformados em linguagem artística, lúdica, compreensível e condizente com o contexto em que ocorrerá a cena. Como relata Nicácio, o que se vê é a tensão constante entre o tratamento do dado objetivo e a necessidade da técnica ou recursos artísticos que transformam o teatro em prática didáticopedagógica e provocadora de reflexão. 137 O desafio consiste, portanto, em transformar criticamente a linguagem produzida pela ciência (jurídica) em ação cênica. Para tanto, são utilizados elementos da cultura popular (ou do mundo da vida) com o intuito de gerar a implicação do público na discussão ou no diálogo objeto da cena. Além disso, recorre-se a técnicas como a da “cena modelo” que promove uma interação mais direta do público com os personagens, provocando, de um lado, o público a intervir na cena e, de outro, o despertar da reflexividade.. A “cena modelo” convida o público a uma atitude reflexiva inerente as ações comunicativas, pois promove possibilidades de distanciamento dos sujeitos de juízos de verdade 136 A Trupe também foi influenciada pela experiência do Programa Jurisdrama da Universidade Federal do Rio de Janeiro nos anos de 1995 e 1996. A metodologia de trabalho do programa Jurisdrama se baseava na montagem de peças que, por sua vez, era estruturada no estudo da legislação, da doutrina e jurisprudência correlata à determinada área do direito. As peças simulavam situações em que se discutiam questões e institutos jurídicos numa linguagem mais próxima de pessoas não-juristas, configurando atividades de educação jurídica popular num formato teatral. Além do Jurisdrama, a Trupe foi influenciada pelo Teatro Universitário da UFMG, somando às preocupações sociais, políticas e jurídicas técnicas teatrais diversas e outras preocupações de caráter estético e artístico. Ibidem Pág 19 137 Como forma de provocar a reflexão do público, a Trupe recorre constantemente às tragicomédias. Segundo Fernando Limoeiro, o riso ou o humor é iconoclasta, isto é, promove um juízo crítico de crenças, estereótipos e imagens de mundo, sendo capaz de despertar comportamentos de mudança ou de indignação que geram efeitos sociais maiores do que uma cena dramática qualquer. 80 sobre a realidade que vivenciam diariamente, sem, contudo, tomarem uma postura curiosa diante dela. Os personagens e envolvidos tendem a constatar desta forma a falibilidade de juízos e visões de mundo até então solidificadas como um pano de fundo e passam a reconstruir, ainda que num momento lúdico, suas próprias formas de enxergar seus contextos de vida. Além disso, a “cena modelo” provoca o público a observar-se a si mesmo como sujeito capaz de ação e de fala, criando, assim, as condições para que se apropriem e penetrem em uma realidade cênica construída consensualmente através de uma linguagem diferenciada. Como se pode perceber, as ações do Programa Pólos de Cidadania estão, portanto, relacionadas com elementos do mundo da vida e são promovidas basicamente segundo uma racionalidade comunicativa que implica na tomada de uma atitude reflexiva por todos os sujeitos envolvidos. Para profissionais e estudantes de direito, esta atitude possibilita um retorno crítico, a partir da fala dos demandantes, a pressupostos ainda presentes na ciência jurídica e reproduzidos, em alguma medida, por um determinado modelo de ensino jurídico ainda considerado descontextualizado, frente a uma sociedade que demanda a efetivação de direitos fundamentais como os referentes ao exercício da autonomia politica e da cidadania na sua plenitude. Além disso, possibilita a confrontação entre uma determinada concepção de direito contida nesse mesmo modelo, basicamente estruturada na ideia de direito como sistema, e processos discursivos em que o direito e a sua pretensa legitimidade são constantemente tematizados. Com isso, exige-se, por um lado, maior esforço de fundamentação e justificação de conceitos e institutos jurídicos por uma via racional e, por outro, uma atualização dos mesmos, tendo em vista o contexto ou pano de fundo em que eles são utilizados. Exige-se o desenvolvimento e adoção de uma metodologia apta a compreender o direito como linguagem e as tensões presentes nos contextos em que o mesmo é tematizado. 81 3.1.1. Análise crítica de políticas públicas, comunicação e o resgate da dignidade política do curso de direito: breve relato sobre a atuação do Programa Pólos de Cidadania no contexto de implementação do “Programa Vila Viva Serra”. Verificaremos nesse tópico como uma abordagem baseada na comunicação permite uma avaliação da efetividade de políticas públicas de acesso a direitos bem como contextualiza conceitos ou relações sociais que lidam com institutos jurídicos como o de propriedade, posse ou direito a moradia. Além disso, aponta para o resgate da legitimidade e dignidade política dos cursos de direito ao chegar a conclusões que podem significar mudanças nas condições de vida das comunidades objeto de análise. Nos concentraremos na averiguação da experiência do Núcleo de Mediação do Pólos, localizado na comunidade Serra e nas conclusões obtidas em pesquisas, cujo objetivo principal era promover uma análise crítica políticas implementadas pela Prefeitura da cidade. Até então tais políticas não tinham sido objeto de discussão nem na sociedade e nem na comunidade acadêmica. Durante o ano de 2010 e 2011, o Núcleo de Mediação do Pólos debruçou-se sobre políticas públicas de urbanização e regularização fundiária implementadas pelo Programa Vila Viva no Aglomerado Serra, complexo de favelas localizado na região Centro-Sul de Belo Horizonte.138 Apesar da ausência de debates públicos sobre tais políticas, seus recursos eram da ordem de R$ 171,2 milhões de reais e se propunham a interferir no acesso ao direito de moradia de mais de 11 mil famílias naquela localidade. Ressalte-se que atualmente o direito à moradia abarca não apenas a regularização formal da posse ou propriedade de terras pelo poder público, mas o acesso a uma gama de direitos sociais no processo de assentamento em áreas urbanas ou rurais. 139 Acompanhando esse Relatório Final de Pesquisa. “Os efeitos do Vila Viva Serra na condição socioeconômica dos afetados”. Núcleo de Mediação e Cidadania Comunitária Serra. Programa Polos de Cidadania. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 2011. 138 139 Lema, Gabriela Icasuriaga (coord.). O papel do Estado na Efetivação do Direito à Moradia no Rio de Janeiro In Desafios da Constituição: Democracia e Estado no Século XXI. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. Págs. 189-193 82 entendimento, a proposta do Programa Vila Viva Serra era em princípio não apenas garantir o direito à moradia das referidas famílias, assentando-as em conjuntos habitacionais ou indenizando-as pela sua remoção de áreas consideradas inadequadas geográfica e socialmente para o exercício de tal direito (“áreas de risco”), mas interferir no acesso a saúde, educação e lazer, com a construção de escolas, áreas sociais de convívio ou desenvolvendo programas sociais que criassem condições de acesso a tais direitos. Além disso, havia a possibilidade de os moradores da região colocarem reivindicações, sugestões e críticas a atuação do poder público nas etapas de planejamento e execução das políticas. Através de análise crítica, a equipe de pesquisadores do Pólos constatou que, embora a proposta do Programa Vila Viva abarcasse uma série de políticas que permitiriam o acesso a um conjunto de direitos sociais e, portanto, a “moradia digna”, na prática, tal política deu ênfase no aspecto urbanístico do processo de regularização fundiária, concentrando esforços na abertura de rodovias e no reassentamento de famílias em conjuntos habitacionais, removendo-as de “áreas de risco”, ou indenizando aquelas que optaram por não serem reassentadas. Algumas melhorias na área educacional foram apontadas, mas outras demandas sócio-jurídicas foram diagnosticadas como não cumpridas pelo programa. Por conta disso, o Pólos caracterizou o “Vila Viva” como uma política “expulsora”, já que não criou ainda todas as condições de acesso a “moradia digna” e tampouco garantiu que indenizados permanecessem na localidade com maior qualidade de vida. Para chegar a essa constatação, optou-se metodologicamente por uma abordagem qualitativa de dados que implica na oitiva de um determinado universo de pessoas direta ou indiretamente afetadas pelas políticas públicas, resgatando-se pela via discursiva e da comunicação a compreensão dos sentidos e interpretação dos que vivem a realidade. Esse universo de pessoas, embora tenha sido reduzido em termos quantitativos, permitiu extrair algumas conclusões pela análise crítica de significados e sentidos atribuídos a realidade pelos moradores nos diálogos estabelecidos. Assim, a metodologia serviu não apenas para aproximar o Núcleo de Mediação do Pólos de uma concepção de extensão baseada em ações comunicativa, mas também serviu para superar dificuldades materiais no curso da pesquisa relativas à disponibilização de dados (como telefones e endereços, por exemplo) de moradores afetados por parte de empresas e administradores públicos responsáveis pelas mencionadas políticas bem 83 como as relativas à precariedade das condições materiais de pesquisa de estudantes e professores.140 No bojo do desenvolvimento dessa abordagem, foram discutidos e apontados alguns indicadores sociais que permitiriam um diagnóstico dos efeitos das políticas públicas de acesso ao direito a moradia. Para o caso do eixo relacionado ao acesso a políticas sociais, foi verificada a localização de escolas, as vagas disponíveis, a percepção quanto à qualidade do ensino (acesso à educação); serviços de saúde utilizados, localização dos postos de atendimento (acesso à saúde); condições de acesso ao local de trabalho, a oferta de cursos profissionalizantes, o conhecimento de cooperativas (trabalho e geração de renda); utilização de transporte público e serviços como o de coleta de lixo (níveis de urbanização e sustentabilidade); a satisfação quanto ao atual local de moradia e a participação em reuniões de acompanhamento do programa (consciência acerca das políticas implementadas). Da análise qualitativa dos indicadores relativos ao eixo de acesso a políticas sociais, chegou-se à conclusão de que a verificação do efetivo acesso a moradia depende de outros indicadores sociais que extrapolam os limites formais de institutos que permeiam a regularização fundiária. Chegou-se ainda à conclusão que o acesso a direitos sociais como a educação, por exemplo, é geralmente garantido quando não há uma ruptura com o local em que crianças e adolescentes vêm normal e gradativamente desenvolvendo não apenas suas atividades educacionais. Com isso, verificou-se que as políticas públicas que em geral preservam identidades e processos de socialização podem garantir mais efetivamente uma gama de direitos fundamentais até então negligenciados. A abordagem qualitativa da realidade demonstrou que políticas que preservam processos de socialização e formação de identidades presentes no mundo da vida, embora sejam de iniciativa do Estado, podem romper, em alguma medida, com a racionalidade 140 Uma abordagem quantitativa exigiria recursos financeiros e materiais maiores do que uma abordagem qualitativa dos dados empíricos. Além disso, uma abordagem qualitativa de dados empíricos permite uma penetração maior na realidade estudada, ao exigir dos estudantes de direito uma atitude performativa ou um atitude de participante dos processos discursivos sobre a realidade para melhor compreensão dos sentidos produzidos. 84 sistêmica que, na persecução de fins/resultados objetivos, pode provocar a violação de direitos subjetivos e fundamentais. Além de atenderem a fins objetivos traçados por seus órgãos, concluiu-se que as politicas públicas de iniciativa do Estado, para se legitimarem enquanto públicas, devem se sustentar em elementos que extrapolam a realidade sistêmica tais como a cultura e as ordens de valores consolidados simbolicamente num pano de fundo. Compreendeu-se na ação do Polos questões mais amplas como o porquê o Programa Vila Viva segue ainda um perfil muito semelhante ao das políticas públicas de regularização fundiária baseadas em remoções e na ênfase à segurança formal da posse ou da propriedade, pois não garante como um todo o acesso a direitos fundamentais, ao criar desníveis sociais entre moradores que optaram por permanecer na comunidade em conjuntos habitacionais e moradores que foram indenizados e se viram obrigados a sair do local seja pelo baixo valor da indenização, seja pelo tempo de espera do seu recebimento, seja pelo aumento do valor dos imóveis ocorrido na região por conta de especulações imobiliárias. Embora o poder público tenha apresentado proposta que contemplava a intervenção das comunidades através de debates e apresentação de sugestões para evitar os mencionados desníveis, essa interlocução demonstrou um limite. Isso porque, de um lado, a comunidade não possuía um histórico de exercício de sua autonomia política e, de outro, é próprio do poder público agir segundo uma racionalidade instrumental, baseada na consecução de determinados fins traçados, o que o faz, muitas das vezes, não observar todos os elementos presentes no contexto social como a cultura local e as identidades alí construídas. Na medida em que a comunidade legitima ou questiona o atendimento destes fins, que, aliás, devem ser públicos, é que a máquina do Estado vai se aprimorando em suas ações/funções. Por isso, a intervenção do Pólos de Cidadania, no sentido de provocar ações comunicativas e estimular com isso a mobilização social em torno de direitos ou o exercício da cidadania, constitui-se fundamental para o aprimoramento de políticas públicas. De fato, a opção metodológica e abordagem de dados feita pelos Pólos permitiu não apenas um diagnóstico acerca da efetividade de políticas de acesso a direitos sociais, mas abriu a 85 possibilidade de o curso de direito interferir em políticas públicas, apontando seus problemas e dando a possibilidade de a comunidade se mobilizar para a resolução de questões concretas, diagnosticadas nas pesquisas. Com isso, abre-se, portanto, a perspectiva de resgate da dignidade política dos cursos de direito ao levantarem-se questões que afetam diretamente as condições de vida em sociedade das comunidades. 3.2 Escola do Direito Achado na Rua da Unb Podemos dizer que a Escola do Direito Achado na Rua da Universidade de Brasília se inspira na Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) fundada por Lyra Filho entre o final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980. A NAIR buscava principalmente desconstruir alguns pressupostos tomados pelo positivismo legalista como o da tomada da norma pelo Direito, o da definição da norma pela sanção ou coercibilidade que produz e o da tomada do direito como restrição à liberdade. Com isso, pretendia-se pensar o direito desde uma perspectiva politizadora. Nas palavras de Sousa Junior 141, a NAIR tinha como objetivo geral construir um outro modo de pensar o direito, em que a sua compreensão não fosse uma dedução do legal, mas uma construção ou legítima organização social da liberdade. Segundo Lyra Filho142, a NAIR se estrutura, embora não se esgote, em cinco proposições básicas: a primeira diz respeito à sua concepção de direito, baseada na idéia de direito como consciência e processo histórico de afirmação do exercício da liberdade, contrariando a idéia de uma ordem social coercitiva deslocada da idéia de legitimidade; a segunda diz respeito à noção de que a justiça histórica e concreta não se determina senão pelo estabelecimento gradual da Segundo Sousa Junior, Lyra já havia utilizado a metáfora do “Direito Achado na Rua”, fazendo alusão a um poema em que o jovem Marx dizia: “Kant e Fitche buscavam o país distante pelo gosto de andar lá no mundo da Lua, eu por mim tento ver, sem viéis deformante, o que pude encontrar bem no meio da rua.” 141 Entrevista de José Geraldo de Sousa Junior concedida à equipe do Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito – Observatório da Constituição e Democracia. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, jan. e fev. de 2008. Págs. 12-13 142 LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em QUE Direito? Brasília: Edições Nair Ltda.,1984. Págs. 16-18 86 liberdade e pela dialética entre opressores e oprimidos, espoliados e espoliadores, contrariando a idéia de uma justiça abstrata ou calcada em princípios universais metafísicos; a terceira afirma que o padrão de legitimidade está na história da correlação de forças de luta pela afirmação de direitos humanos, não podendo apenas se extrair de declarações oficiais a conclusão de que determinadas ordens são de fato legítimas; a quarta refere-se a idéia de que a liberdade perquirida encontra limites na própria história e correlação de forças, significando a emancipação de privilégios de classe, a abolição de todo mínimo de classe ou a efetivação de direitos e deveres iguais; a quinta busca problematizar a idéia de positivação confrontando a noção de direito positivo com a sua materialidade e legitimidade diante de polarizações entre classes e grupos que ocorrem historicamente na sociedade. Essas cinco proposições refletem proposta de desconstrução, de um lado, de fundamentações metafísicas para o direito e, de outro, de pressupostos positivistas que demarcaram um objeto para a ciência jurídica deslocado da realidade social. Tal proposta de desconstrução se desenvolveu, na prática, com estudos sociológico-jurídicos sobre a produção de jurisprudência contra legem ou de interpretações jurídicas baseadas em princípios ressocializadores do estabelecido pelo legislador. Além desses, havia ainda estudos que confrontavam parâmetros da Criminologia tradicional de definição da figura do criminoso e as situações sociais de estrutura e de classe surgidas com o aprofundamento do capitalismo que motivam determinados comportamentos sociais como os de agressividade, violência, indiferença ou individualismo acentuado. Assim, a Nova Escola Jurídica Brasileira formou juristas e professores que mais adiante integrariam na Universidade de Brasília a Escola do Direito Achado na Rua que, tal como a NAIR, promove estudos sociológico-jurídicos integrados a atividades de extensão em favelas e regiões populares do Distrito Federal. De acordo com Sousa Junior 143, a Escola do Direito Achado na Rua quer compreender o processo histórico onde ocorre a afirmação de novos sujeitos e em que se criam concretamente as condições para se explicar a existência ou processo de realização do direito. Procura -se refletir sobre a atuação desses novos sujeitos e experiências por eles desenvolvidas de criação de direitos. 143 Sousa Junior, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2011. Págs 46 e 47. 87 Além disso, desenvolve-se um modelo de investigação do fenômeno jurídico que: a) procura determinar o espaço político do qual emergem direitos contra legem; b) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político e a sua própria representação teórica como sujeito; c) compreender os sentidos derivados dos dados extraídos das práticas sociais criadoras de direitos e, a partir disso, formular institutos e categorias jurídicas. Este modelo de investigação científica conta com a contribuição de projetos de extensão como o das Promotoras Legais Populares que visava capacitar lideranças comunitárias a lidar qualificadamente com demandas de mulheres vítimas de violência doméstica ou de violação de direitos humanos em geral, fortalecer ações pela garantia de direitos junto aos poderes públicos e acompanhar a implementação de políticas públicas que afetam diretamente as mulheres; o Projeto “Advogados Voluntários” que, integrado ao Núcleo de Prática Jurídica e Cidadania da Unb e, portanto, à estrutura curricular e acadêmica obrigatória do curso144, objetivava não apenas discutir e assessorar juridicamente moradores da comunidade de Cinelândia em demandas individuais e coletivas nas mais diversas áreas do direito, mas permitir que alunos egressos da Faculdade de Direito da Unb retornassem ao NPJ, dando continuidade à sua formação pedagógica e profissional nas dependências da universidade e contribuindo para a formação de outros alunos; o Projeto Tororó que, com o objetivo de discutir o acesso à educação, atuou como facilitador da mobilização da Comunidade do Tororó para a reivindicação do acesso a escolas por jovens e adultos da comunidade junto ao poder público; e o Projeto Cabaret Macunaíma que, através da experiência do fazer artístico pelos alunos, explorava a compreensão da relação entre Direito e Arte, de maneira integrada à proposta do curso de Arqueologia Crítica das Teorias Jurídicas do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unb, ministrado pelo Prof. Luis Alberto Warat.145 144 O currículo da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília inova em relação ao de outras universidades ao considerar atividade obrigatória do curso o Estágio Supervisionado nas dependências do Núcleo de Prática Jurídica. 145 A experiência da Extensão Universitária da Faculdade de Direito da Unb. Série: O que se pensa na colina. Vol.3. Alexandre Bernardino Costa (org.). Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, 2007. 88 Esses projetos de extensão adotam, por sua vez, uma metodologia baseada em princípios educacionais formulados por Freire em que direito e educação traduzem-se em uma prática emancipatória. Reflete-se com essa metodologia sobre o diálogo entre saber jurídico acadêmico e o saber jurídico popular, de maneira horizontal, permitindo a construção de um saber interdisciplinar e contextualizado. Assim, o resultado dessa reflexão constitui-se em uma apropriação crítica de instrumentais jurídicos trabalhados e outras categorias de gênero, raça ou classe que possibilita aos sujeitos envolvidos um atuar no mundo que observa criticamente e até mesmo transforma condições sociais de vida. 3.2.1 Relato sobre a contribuição do Projeto Promotoras Legais Populares – PLPs para a formação dos estudantes de direito. O projeto das Promotoras Legais Populares surge do debate público estabelecido no ano de 2005 entre a Unb, instituições como o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, a ONG AGENDE – Ações em Gênero e Cidadania e Desenvolvimento, o Centro Dandara de Promotoras Legais Populares e a comunidade de Ceilândia/DF acerca de questões relativas à violação ou garantia de direitos entre as mulheres. O projeto constitui-se, nas palavras de uma de suas integrantes, além de uma ação afirmativa de gênero, uma iniciativa no campo da educação jurídica popular, sendo ele fundamentado na defesa dos direitos humanos, em princípios democráticos e no ideal de construção de relações humanas igualitárias e justas. 146 Realizam-se encontros dinamizados por seminários e oficinas no Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito, sendo estes mediados por professores da Graduação e Pósgraduação e profissionais de diferentes carreiras jurídicas e áreas do conhecimento. O objetivo é tornar as participantes do curso agentes multiplicadoras do aprendizado acumulado e da defesa de direitos em questões de gênero dentro da comunidade. Para os estudantes de direito, exige-se uma 146 Farias, Fabiana Perillo de.; Tokarski Carolina. Promotoras Legais Populares In A Pratica Juridica na Unb: reconhecer para emancipar / Jose Geraldo Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa e Mamede Said Filho (Orgs.) – Brasilia: Universidade de Brasilia, Faculdade de Direito, 2007. Pág 402. 89 análise mais detalhada do significado desta experiência, visto que ela integra o conjunto de atividades curriculares, estando, portanto, inserida num determinado contexto de ensino. Segundo relato de alunas da Graduação da Unb do projeto147, a discussão contribuiu para análise na afirmação da mulher em espaços sociais e políticos como sujeitos de direitos e para compreensão da necessidade de criação de fóruns de discussão que contemplem questões do gênero feminino, visando fortalecer subjetividades em contextos sociais em que diversidades e diferenças devam ser respeitadas. A discussão com a comunidade ainda proporcionou aprendizado no sentido de que as atividades de educação jurídica popular promovidas pelo projeto de extensão adotam metodologia baseada em uma dialogicidade ou comunicação capaz de promover uma reflexão crítica sobre a linguagem jurídica. As alunas, em um primeiro ciclo de debates/oficinas oferecido à comunidade, constataram a necessidade de encontrar palestrantes que conseguissem traduzir a linguagem estritamente técnica do direito em uma linguagem que se aproximasse daquela do cotidiano da comunidade e, conseqüentemente, de sua visão de mundo. Além disso, constataram que quanto maiores eram os espaços de fala, discordância e diálogo abertos no seio da comunidade, maiores eram as possibilidades vislumbradas de exercício da cidadania, ou seja, de exercício das autonomias subjetiva e política, ou de formação de uma cultura democrática naquele determinado contexto social. Outro relato relevante e que atesta contribuição diferenciada do projeto das PLPs para a formação de estudantes de direito diz respeito às dificuldades percebidas pelos mesmos em encontrar respostas para questões ou demandas jurídicas concretas apresentadas pelas comunidades em oficinas realizadas no ano de 2006. Muitas dessas questões diziam respeito a institutos jurídicos como o da posse e propriedade que geralmente são aplicados/interpretados por juristas, diante da realidade daquelas comunidades, de maneira diversa daquela empreendida na realidade social dos próprios juristas. Com isso, os estudantes começaram a se questionar se a concepção de direito que se refletia nos institutos jurídicos aprendidos em sala de aula realmente dava conta de explicar relações jurídicas concretas do cotidiano e da vida social. Percebe-se tal fato no seguinte relato: 147 Ibidem. Pág. 89-91. 90 “- Por que ocupação de pobre é invasão e de rico é condomínio?” Nas aulas de Direito das Coisas estas questões não haviam sido trabalhadas. Na sala de aula da Faculdade foi-nos apresentado o instituto da posse, o instituto da propriedade, como estes institutos desenvolveram-se juridicamente ao longo dos anos, a natureza jurídica de cada um, os meios processuais para assegurá-los, ação possessória, ação de imissão na posse e ação reivindicatória. O desenlace destes institutos com a realidade, na luta pelo direito à moradia, no entanto foi omitido. E agora, como daríamos respostas as insurgentes questões sobre o direito, afinal não estávamos ali para isto, dizer o direito?148 Assim, constatou-se a falibilidade das categorias jurídicas apreendidas em sala de aula através da sua tematização pelos sujeitos envolvidos nos ciclos de debate, pois estes apresentaram questões e fundamentos que além de confrontar aqueles implícitos nas categorias construídas, possuíam como pano de fundo elementos constitutivos de uma visão de mundo diferenciada. Observou-se que a falibilidade das categorias jurídicas foi percebida pelos estudantes através de uma atitude reflexiva exigida em contextos próprios de ações comunicativas, o que os levou a se afastar de convicções, valores e juízos embutidos no saber jurídico, colocando a prova pretensões de validade. O direito, muitas das vezes concebido como fenômeno que integra um sistema de linguagens técnicas, operações específicas e engrenagens capazes de estabilizar expectativas de comportamento com suas decisões, passa a ser percebido como linguagem que pode ser tematizada fora do sistema, integrando, portanto, um mundo da vida em que subjetividades, valores sociais e culturais vão influir na sua formação. No processo de aprendizagem demonstrado, percebe-se ainda que a noção de validade que subjaz na concepção de direito própria do modelo de ensino jurídico, tradicionalmente tida como validade oriunda de procedimentos legislativos e de ato decisório datado, não comporta as tensões que ocorrem em ações comunicativas em que o direito é constantemente posto à prova, 148 CARVALHEDO, Ana Zélia; PERILLO, Fabiana; XAVIER, Hanna; TOKARSKI, Carolina; MIRANDA, Adriana Andrade.; LOSADA, Paula Ravanelli In A experiência da Extensão Universitária da Faculdade de Direito da Unb. Série: O que se pensa na colina. Vol.3. Alexandre Bernardino Costa (org.). Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, 2007, Pág. 100. 91 exigindo-se razões e fundamentos, baseados em critérios públicos, para que se sustente como válido. Além disso, os estudantes puderam compreender que os critérios públicos de validade ou invalidade de pretensões não estão consolidados num texto apenas, mas numa esfera pública em que, com o exercício de direitos subjetivos, eles vêm à tona impondo-se e demonstrando quais direitos são válidos e porque são válidos. A concepção de direito do modelo de ensino com o qual lidam os estudantes de direito, estruturada no ocultamento da tensão entre a facticidade e a validade do direito, revela uma metodologia pedagógica anti-dialógica, pois só é possível perceber essas tensões em ações comunicativas ou em espaços públicos de discussão que funcionem como possibilidades de livre tematização do direito. Isso, conseqüentemente, traduz ainda um deslocamento entre ensino jurídico e mundo da vida, pois a constatação da ausência de uma atitude reflexiva, própria das ações comunicativas e de processos autênticos de aprendizagem, não pode ser revertida por completo senão com a integração com os sentidos e ações que ocorrem no mundo da vida. 3.3 Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ A Faculdade Nacional de Direito da UFRJ experimentou nos anos de 2007, 2008 e 2009 experiências de aprendizagem, semelhantes às relatadas nos tópicos anteriores, após a inauguração de Programa de extensão universitária denominado Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ. O Programa tem a sua origem no projeto Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar149, datado de 2006, que ficou mais conhecido dentro da universidade como Projeto Maré e contou com contribuições político-acadêmicas de estudantes do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO). 149 Verificar anexos. 92 O Projeto Maré não significou apenas o resgate histórico de uma linha de trabalho anteriormente desenvolvida pela Faculdade Nacional de Direito - FND 150 junto ao complexo de favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, mas um projeto piloto de reformulação do Núcleo de Prática Jurídica - NPJs e uma nova concepção de estagio supervisionado, dentro de um contexto institucional de reforma curricular via Projeto Político-Pedagógico – PPPs. Durante o período de implementação do Projeto Maré na cidade universitária da Ilha do Fundão, o Escritório Modelo da FND, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, dada a precariedade de sua infra-estrutura e a ausência de docentes efetivos de prática jurídica, ainda não apresentava todas as condições materiais necessárias para uma reformulação acadêmica da sua concepção de trabalho. 151 Soma-se a este fato a ausência de condições político-acadêmicas no âmbito da instituição como um todo que propiciassem a institucionalização de uma concepção não assistencialista de atuação do NPJ. De fato, o quadro docente efetivo não apresentava, no geral, qualificação acadêmica e interesse político suficientes que pudessem direcionar sua reformulação em outro sentido. Uma demonstração disso foi a nomeação de pelo menos duas comissões, compostas majoritariamente de professores efetivos152, que não conseguiram apresentar um diagnóstico dos problemas enfrentados no Escritório Modelo e uma proposta de reformulação institucional condizente com as diretrizes tanto da reforma político-pedagógica proposta como com as diretrizes nacionais para o ensino jurídico.153 150 Chauvet, Luiz Eduardo. Prática Jurídica Interdisciplinar: o saber além das fronteiras. Monografia sob orientação de Luiz Eduardo Figueiras. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. Pág 32 151 Ainda vigorava no Escritório Modelo a idéia de um espaço de manipulação da linguagem técnica do direito, diante de demandas práticas colocadas pelas comunidades. Assim, privilegiava-se um “uso” do direito para manutenção de uma ordem social. Mendes, André Luiz Conrado. Assessoria jurídica (prática jurídica educativa) X assistência jurídica (prática jurídica tradicional): diluição das lutas simbólicas nas faculdades de Direito. Rio de Janeiro: I Seminário de Sociologia e Direito – PPGSD/UFF, 2011. Pág 10. 152 Vale ressaltar essas comissões, conforme demonstra Relatório de Gestão da Faculdade Nacional de Direito (2005-2009), não eram majoritariamente compostas de professores efetivos da disciplina de prática jurídica, visto que a referida disciplina contava apenas com professores de contrato temporário no período de 2005 a 2009. A realização de concursos públicos para o preenchimento do quadro efetivo da disciplina de prática jurídica apenas veio a ser realizada nos anos de 2009 e 2010, após expirarem os contratos. 153 Relatório de Gestão da Faculdade Nacional de Direito - 2005-2009. Pág 14 93 Diante de tais dificuldades, estudantes do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, professores substitutos de prática jurídica, muitos deles ex-alunos da instituição com histórico de atuação no movimento estudantil, além de professores das áreas do Serviço Social e da Psicologia uniram esforços no sentido de criar um projeto piloto que pudesse servir tanto como um parâmetro de uma concepção não assistencialista de extensão universitária como estímulo à reformulação do Escritório Modelo ou do Núcleo de Prática Jurídica da FND. Cabe ressaltar que, embora as condições políticas e institucionais internas da FND não tenham criado um cenário propício à reformulação, no âmbito da universidade, a Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ – PR-5 havia iniciado processo de institucionalização de atividades de extensão universitária. Tal processo possuía como diretrizes: a) a proposição de atividades de extensão que permitam maior articulação entre as atividades de pesquisa e ensino, estimulando, também, a interdisciplinaridade; b) a articulação das diferentes iniciativas e projetos das unidades acadêmicas em programas de extensão; c) a flexibilização curricular e implementação de créditos de extensão nos cursos de graduação, conforme determinação do Plano Nacional de Educação PNE; d) o cumprimento das diretrizes do Plano Nacional de Extensão Universitária, contribuindo com a reformulação das mesmas através do debate permanente sobre a Política Nacional de Extensão; e) a participação na formulação de políticas públicas de desenvolvimento social e econômico que atendam às demandas das esferas federal, estaduais e municipais. 154 A institucionalização de atividades de extensão até então iniciada criou na universidade ambiente propício à implementação de propostas como a do Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar. Por isso, a equipe de professores e alunos que se uniu em torno do projeto encontrou na cidade universitária da Ilha do Fundão, no prédio anexo da PR-5, a possibilidade de criação de um núcleo interdisciplinar de atendimento. Ainda assim, como o processo de institucionalização havia sido recém inaugurado, a equipe teve que gradualmente conquistar espaço político, acadêmico e físico na universidade. Quais eram as características dessa proposta 154 Souza, Amanda Alves de. Estudo da nova práxis extensionista na Faculdade de Direito da UFRJ. Monografia sob orientação de Marilson dos Santos Santana. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Pág 31. 94 que se pretendia implementar? Como se daria a atuação desse núcleo de atendimento? Em que o Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar se diferenciava do Escritório Modelo? Conforme relatamos em trabalho monográfico anterior, os princípios norteadores básicos do projeto eram a interdisciplinaridade, a ênfase na integração ensino-pesquisa-extensão, a identificação e construção do discurso jurídico informal, o respeito às dessemelhanças, a preparação de corpo de extensionistas-pesquisadores e a publicização do conhecimento por meio da produção de materiais bibliográficos. 155 O projeto inicial, embora previsse a interdisciplinaridade como princípio, não trazia elementos concretos que definissem como se daria a implementação de tal diálogo entre saberes diferentes. Por isso, a transformação do Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar em Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ representou um amadurecimento político-acadêmico da proposta inicial, pois se decidiu, entre outras questões, as unidades acadêmicas que constituiriam a equipe geral: Faculdade de Direito, Escola de Serviço Social, Instituto de Psicologia e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, sendo que esta última unidade não constava na proposta originária. Além disso, as unidades em comum acordo elaboraram uma dinâmica de atendimento que previa uma oitiva conjunta ou “literária” no primeiro atendimento, o registro em banco de dados, a identificação das possibilidades de intervenção e o acompanhamento integrado de demandas individuais e coletivas. Traçaram ainda projetos de pesquisa que se baseariam em dados coletados na dinâmica de atendimento em desenvolvimento. 156 155 Ibidem Pág 33 156 Dois exemplos de projetos de pesquisas traçados são: i) o “Requalificação Urbana e Habitabilidade no Centro do Rio de Janeiro”, nascido da parceria entre Serviço Social e Direito, com o objetivo de analisar os discursos produzidos por juristas, pelos órgãos oficiais do Estado e pelos movimentos sociais sobre conflitos urbanos relacionados à questão do acesso ao direito à moradia e à cidade; ii) o Fórum de Criminologia Crítica, nascido da parceria entre Direito, Psicologia e Serviço Social, cujo objetivo foi discutir estratégias para o enfrentamento da violência, com atenção aos movimentos sociais e às políticas de atendimento aos setores vulneráveis à violação dos Direitos Humanos. Chauvet, Luiz Eduardo. Prática Jurídica Interdisciplinar: o saber além das fronteiras. Monografia sob orientação de Luiz Eduardo Figueiras. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. Págs 25-26 95 Vale ressaltar que, na contramão de uma certa tendência a adotar a autonomia quase que absoluta em relação a outras ciências como pressuposto epistemológico ou de ação, a equipe de professores e alunos do direito apresentava projeto que na sua origem previa uma racionalidade interdisciplinar de aprendizagem e ação.157. Por isso, o NIAC constitui-se em um programa inovador, pois inverte na sua origem uma lógica epistemológica presente no direito ao propor uma racionalidade comunicativa entre ciências distintas como base de sustentação da sua produção de conhecimento sobre direitos humanos, cidadania e justiça social. Tal racionalidade se justificava pela própria complexidade da realidade social a ser pesquisada. A ação interdisciplinar junto ao complexo de favelas da Maré se justificava inicialmente pelo fato de os indicadores sociais levantados sobre a localidade pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no Censo 2000,158 e pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM159 indicarem a existência de uma maioria jovem entre os moradores que conviviam com problemas de caráter sócio-jurídico como o de exploração econômica do trabalho infanto-juvenil, mortalidade infantil e analfabetismo por exemplo.160 A análise de dados quantitativos coletados e disponibilizados pelo IBGE indicavam a existência dos mencionados problemas ou da violação de uma série de direitos humanos, mas não explicavam concretamente como eles passaram a aparecer como problemas. 157 Embora a equipe de Direito do NIAC tenha adotado o princípio da interdisciplinaridade como pressuposto do processo de aprendizagem, a Faculdade de Direito como um todo não parecia partir desse mesmo pressuposto. Enquanto as unidades de Psicologia, Serviço Social e Arquitetura começaram a participar do Congresso de Extensão da UFRJ desde a sua primeira edição em 2004, a Faculdade Nacional de Direito passou a dar sua contribuição somente na sua 4ª edição em 2007 com apenas três trabalhos inscritos integrados a apenas um Programa de Extensão (o NIAC/UFRJ). A 4ª Edição do Congresso de Extensão reuniu em seus Anais mais de 378 trabalhos acadêmicos inscritos, sendo 36 deles dentro do tema Direitos Humanos e Justiça, em que questões jurídicas eram debatidas pela comunidade acadêmica sem a participação de profissionais e estudantes de direito e sob perspectivas teóricas de outras ciências. Souza, Amanda Alves de. Estudo da nova práxis extensionista na Faculdade de Direito da UFRJ. Monografia sob orientação de Marilson dos Santos Santana. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Pág 39. 158 www.ibge.gov.br 159 www.ceasm.org.br 160 Ibidem. Pág 33-34 96 A equipe do NIAC passou então a perceber a necessidade de uma avaliação qualitativa de dados coletados a partir de uma atitude performativa junto à comunidade, ou seja, de uma atitude que resgatasse através dos discursos dos sujeitos envolvidos naquela realidade como estava sendo produzida uma dinâmica social de violação de direitos. Além disso, buscava-se compreender de que maneira esse processo de violação afetava processos de socialização, de formação de identidades bem como a produção de subjetividades naquela região. O objetivo era compreender através de uma análise mais qualitativa de que maneiras o discurso jurídico e/ou o fenômeno jurídico se inseria dentro de um contexto social complexo e amplo. 161 Essa compreensão passou a se dar por uma atitude performativa assumida por todas as áreas do conhecimento integradas através de uma racionalidade comunicativa e interdisciplinar. A implementação dessa racionalidade e forma de produzir de conhecimento exigiram da equipe de pesquisadores e alunos esforços em dois sentidos. De um lado, o esforço entre as distintas ciências de traduzir umas às outras suas respectivas linguagens técnicas para uma linguagem científica mais abrangente que permitisse o desenvolvimento de uma racionalidade comunicativa dentro da equipe de atendimento. Paiva relata a relevância de um estudo e observação constante da linguagem para o direito ao apontá-lo como elemento chave para o estabelecimento de uma racionalidade comunicativa na relação entre pesquisadores e estudantes do NIAC e destes com a comunidade. “Uma questão interessante que é constantemente trabalhada pelos estagiários do direito é a linguagem. Como vimos no Capítulo 1, o ensino do direito tem como característica a geração de uma linguagem técnica e dificilmente compreensível pelos não-especialistas na área. Tanto no contato com as outras áreas integrantes do Núcleo quanto no diálogo com o público atendido, os estagiários são orientados a falar de forma clara e objetiva, sem mencionar termos essencialmente jurídicos, numa preocupação constante com seu papel de educadores jurídicos populares e de construtores de um conhecimento interdisciplinar que deve evitar a utilização de categorias e conceitos que dificultem a compreensão das outras áreas.”162 161 Ibidem Pág 36 162 Paiva, Ludmila Ribeiro. Acesso à justiça via assessoria jurídica popular: a experiência do NIAC. Orientação: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de janeiro, 2009. Pág 26 97 De fato, havia também um esforço de traduzir a linguagem científica para uma linguagem acessível não apenas aos moradores da favela, mas a entidades e grupos organizados que, apesar de não possuírem uma linguagem científica, não deixavam de produzir conhecimento pré-teórico fruto da vivência diária na comunidade. Esse segundo esforço de tradução permitiria uma dinâmica constante de confirmação ou o refutação de dados, análises elaboradas e sugestões de intervenção feitas pela universidade e indicariam, portanto, que efeitos sociais, culturais, jurídicos e políticos da ação de pesquisadores e alunos produzia de fato naquela comunidade. Neste mesmo sentido, Paiva coloca que havia um princípio discursivo presente nas atividades, não no sentido de persuadir a comunidade demandante, mas de comunicar percepções e possibilidades de ações dentro daquele contexto que poderiam ser acolhidas ou refutadas. “O princípio é o de que se dê ao usuário uma resposta prática ou pedagógica àquela demanda que lhe encorajou a buscar o Programa, sem delimitá-la em apenas uma esfera de conhecimento, além de apresentar múltiplas possibilidades para que o usuário tenha a faculdade de decidir sobre a condução do seu caso, inclusive discordando das vias indicadas pela equipe.”163 A interdisciplinariedade surge, portanto, de uma racionalidade orientada ao entendimento entre diferentes áreas do conhecimento, produzindo consensos e uma ação discursiva condizente com uma realidade complexa que não comportaria, conforme vimos, esquemas de interpretação de caráter positivista e/ou formalista, herança de uma ótica sistêmica que torna sujeitos e conflitos em peças de suas engrenagens. 163 Ibidem Pág 19. 98 Considerações Finais Neste estudo, constatamos que a extensão, na sua vertente não assistencialista, por sua gênese histórica associada a projetos de democratização da universidade e tensões provocadas pelo movimento estudantil no sentido de fazê-la contribuir para o aprofundamento de conquistas democráticas, pode ser entendida como ação comunicativa. Isso porque atua segundo uma racionalidade orientada ao entendimento e, portanto, necessariamente inserida no contexto do mundo da vida, procurando compreender, através de uma atitude performativa, sentidos partilhados, subjetividades, valores culturais e sociais nele produzidos. Nessa atuação, procura -se utilizar a linguagem no seu modo mais originário, não havendo outro objetivo senão atingir processos autênticos de aprendizagem. Com isso, a extensão promove o encontro entre cientistas e estudantes com um saber précompartilhado existente no mundo da vida que é expandido e aperfeiçoado segundo processos de aprendizagem e produção de conhecimento que respeitem diferenças e proporcionem a tematização ou questionamento do mundo segundo uma igualitária situação de fala entre os envolvidos. A extensão, como ação comunicativa, exige necessariamente do cientista uma postura reflexiva, própria do tratamento racional de pretensões de validez, postura essa em que ele se afasta de convicções, juízos e certezas, colocando-os à prova num debate público. O critério de validade das pretensões levantadas não se encontram engessados, mas partilhados numa esfera de discussão com diferentes sujeitos que sem encontram numa relação horizontalizada. Chegamos a essas conclusões não apenas com as contribuições teóricas de Habermas, mas com as problematizações feitas por Freire, quando este propunha a substituição da extensão pela comunicação, entendendo que nas atividades desenvolvidas junto a trabalhadores e camponeses podem ser criadas as condições para um que-fazer educativo libertador. Propunha, então, o reconhecimento do equívoco gnosiológico contido no termo extensão, pois, como este estava normalmente relacionado à idéia de transmissão ou salvacionismo, não se reconhecia no ato de conhecer em si uma relação dialógica. Afirmava que mesmo aquele que produz conhecimento através da pesquisa tradicional e solitária, travava um diálogo com uma comunidade de outros 99 sujeitos que anteriormente consolidaram determinados entendimentos acerca do objeto cognoscível. Se esta dialogicidade vale para aquele que opta pela pesquisa tradicional e solitária, tanto mais ela valeria para aquele que se propõe a produzir conhecimento em atividades de extensão. Freire chegou a essas formulações por estar em um contexto em que persistia na universidade a idéia de extensão como transmissão de conhecimento ou prestação de serviço. Além disso, a extensão, com o seu viéis paternalista, vinha se tornando componente de desmobilização de estudantes e da sociedade, ao ser incorporada pelo Estado ao conjunto de políticas de segurança e integração nacional até então traçadas e implementadas de maneira unilateral. Nas faculdades de direito, refletindo-se esse contexto mais geral da universidade, desenvolveram-se também concepções assistencialistas e não-assistencialistas de atuação junto a comunidades demandantes de acesso à justiça. A vertente não-assistencialista de extensão no direito teve a sua origem nos SAJUs (Serviços de Assessoria Jurídica Gratuitos) criados por estudantes e centros acadêmicos nos anos de 1960. Atualmente verificamos que os SAJUs atuam a margem da estrutura acadêmica e curricular das faculdades de direito, traduzindo, por um lado, uma demanda estudantil por uma formação jurídica contextualizada e, de outro, a resistência de um determinado modelo de ensino jurídico avesso à concepção de extensão ou aprendizagem por eles defendidos. Tal resistência a uma concepção não-assistencialista de extensão universitária traduz-se ainda na dificuldade de desenvolvimento de atividades deste gênero mesmo nas universidades em que elas possuem um histórico mais avançado de experiência como é o caso da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG e Universidade de Brasília - Unb. Essas dificuldades podem ser percebidas, por exemplo, pelo reduzido número de instituições de ensino e professores com preparo pedagógico e aptidão para lidar com questões sócio-jurídicas que vêm à tona com o desenvolvimento dessas atividades. Atribuímos essa resistência ao fato de que as faculdades de direito seguem um modelo de ensino jurídico em que atua uma racionalidade instrumental, por um lado, e uma equivocada compreensão do fenômeno jurídico, por outro, compreensão esta que oscila entre a noção de direito como subsistema e um senso comum teórico de maneira irracional estereótipos, 100 preconceitos e valores hegemônicos. Isso implica que seus agentes passem a atuar segundo os controles sistêmicos do poder e do dinheiro, dirigindo a produção do conhecimento ao eficiente aprimoramento da máquina estatal ou do mercado. Além disso, a reprodução dessa racionalidade vai implicar na constante tradução em linguagem estritamente técnica de demandas jurídicas, negligenciando em alguma medida elementos presentes no mundo da vida e o papel de contribuição de diferentes sujeitos para produção desse mesmo conhecimento. Para a maioria dos autores que se dedicam à temática do ensino jurídico a relação deste com o mundo da vida ainda é um tanto quanto problemática. Estamos ainda diante de um modelo de ensino jurídico que não atenta para a sua gradual perda de dignidade política perante a sociedade. Ressalte-se, no entanto, que essa resistência ou mesmo aversão ao diálogo com o mundo da vida parece ter criado contraditoriamente as condições para o surgimento no interior desse mesmo modelo de uma concepção não assistencialista de extensão que se desenvolve segundo uma racionalidade comunicativa e que proporciona por isto a estudantes e professores um conhecimento do fenômeno jurídico de maneira integrada ao mundo da vida. Essa racionalidade comunicativa exige que juristas assumam uma postura reflexiva, afastando-se com isso de juízos iniciais e colocando à prova razões que a princípio fundamentam suas pretensões de validade. Atinge-se desta forma processos autênticos de aprendizagem, por um lado, e a preservação das condições de outros sujeitos envolvidos de suas condições de sujeitos cognoscentes e capazes de fala. Além disso, problematiza-se a concepção de direito que subjaz nos institutos e conceitos reproduzidos no interior do modelo de ensino jurídico e que parece ocultar o fato de que o direito, por constituir em uma linguagem que funciona como médium entre sistema e mundo da vida, necessita ser compreendido segundo uma atitude performativa. O direito como linguagem não poderia ser compreendido senão numa relação comunicativa que se estabelece, conforme vimos, no interior do modelo de ensino jurídico em atividades de extensão de caráter não assistencialista. Abre-se com essas atividades a possibilidade de resgate da dignidade política ou legitimidade dos cursos de direito, pois o papel de facilitadora de diálogos exercido pela extensão promove, ao propor a retomada da condição de sujeitos daqueles que são geralmente oprimidos 101 nas mais diversas relações sociais, uma mobilização destes em torno e suas demandas e interesses. Com isso, abre-se a possibilidade de tematização do direito, de políticas públicas e uma efetiva intervenção da comunidade no funcionamento dos sistemas do Estado e do mercado. As experiências das Faculdades de Direito da UFMG, da Unb e do NIAC, em determinado período, colocam para juristas, estudantes e professores metodologias e ensino e concepções de direito consideradas inovadoras e que apontam perspectivas de mudança do modelo de ensino jurídico, do seu modo de produção do conhecimento e, conseqüentemente, de sua concepção de direito. O Programa Pólos de Cidadania e a Escola do Direito Achado na Rua constituem exemplo práticos de como a extensão, na sua vertente não assistencialista, pode resignificar a relação entre ensino jurídico e mundo da vida e entre, direito, política, cultura e sociedade. ANEXO A ANEXO B Entrevista com ROBERTO AGUIAR Brasília, 06 de abril de 2013. AMANDA: Meu objeto de estudo tem sido experiências de extensão consideradas inovadoras. Comecei por Belo Horizonte e depois Brasília para estudar um pouco dessas experiências... É claro que o tempo de estudo limita o aprofundamento de uma série de questões... Mas basicamente o meu objeto é esse e qual o papel dessas atividades dentro de um determinado modelo de ensino jurídico... AGUIAR: Eu acredito que nós estamos num momento muito importante na juridicidade. O mundo mudou, está com outras configurações institucionais, sociais, cidadãs, está com novos problemas e o direito ainda está referenciado a uma realidade que já passou. Isso se reflete nas faculdades inclusive... As faculdades não se abrem para fora... Elas têm uma “parede” entre elas e a realidade social e a gente começou a perceber isso aqui em Brasília quando os alunos não conheciam nem a periferia. Quer dizer, eram pessoas que ficavam nas chamadas cidades satélites, eram pessoas que não tinham o menor interesse justamente naqueles que são o foco do direito, isto é, os pobres, os excluídos, os marginalizados. Daí porque quase toda a experiência jurídica é uma experiência de uma legislação para as classes dominantes e não uma legislação de tutela daqueles que podem vir a ser partícipes da ordem social. Então, nós vimos que nós tínhamos que fazer duas coisas: de um lado, atualizar a visão de mundo. Nós não estamos mais na lógica clássica, nós não estamos mais na ciência do século XIX, nós não estamos mais nas estruturas sociais do início do século XX até a metade. Nós estamos em rede... Nesse momento, você está aqui me entrevistando e está com um gravador e um computador. A rede está presente no cotidiano das pessoas. Isso leva a outros exercícios de poder. Outras tensões políticas. Há uma história interessante em que os mendigos de Paris tiveram problemas nos seus albergues, estavam em albergues muito mal tratados, muito mal cuidados e eles quiseram fazer um movimento para conscientizar a prefeitura a mudar isso. Então, eles pegaram uns computadores PC 286... E hoje a gente faz café com eles porque a gente não tem nem mais programa para eles... Fizeram gambiarras em postes e começaram a escrever para a prefeitura, para órgãos do município e depois para a ONU, para a organização mundial de saúde, entidades internacionais. Aos poucos eles criaram, via computador de rua, uma grande rede. Fez uma pressão imensa em cima da prefeitura de Paris que mudou os albergues. O computador foi usado na contramão dos próprios programas porque eles são feitos pelas metrópoles e a gente só ratifica, repete. Houve um grande avanço e hoje, para se ter uma idéia, já tem o jornal deles. Tudo a partir dessas experiências. Então, como a gente faz essa guerra política via computador? Esse aumento de espaço de cidadania via computador? Isso é coisa de jurista! E o jurista ta aí... Você vê os escritórios, né... Todo computador é um “maquinão de escrever”... O cara fica sabendo da jurisprudência, quando é a audiência dele, faz as petições do jeito que eu fazia no início da minha carreira, com uma Lettera 22 que era uma maquininha pequenininha... AMANDA: Então, pro senhor, o jurista tem que se ocupar da comunicação também... AGUIAR: Também da comunicação e você se ocupar da atualização de seus conceitos. O jurista é démodé... Eu tava ontem conversando com o pessoal e até me lembrei de uma coisa... O único lugar que me saúdam como “meu líder!” é na OAB. Ninguém me chama assim. Nem eu. Não sou líder de coisa nenhuma... Mas é a expressão formal das coisas... Eu tenho uma filha muito esperta que agora tá na Holanda e não tem nada a ver com o direito. Mas ela identifica na rua assim as pessoas... “Esse está ligado ao meio jurídico... Esse não está...”. Pelo modo de falar, pelo modo de se portar. É um “carimbo” que uniformiza esse pessoal. E que, ao mesmo tempo, tira do contexto. No fundo, dentro do que você está trabalhando, é a gente superar o trato somente com o texto, mas entrar no contexto. AMANDA: Professor, no seu livro, o senhor fala que o modelo de ensino jurídico dentro de uma sociedade mercantilizada, ele, tal como essa sociedade, ele vai tolhendo subjetividades, desejos humanos... O ensino jurídico que reflete essa sociedade ele como que valoriza habilidades que, para o senhor, são superficiais. Habilidades que são superficiais que estão aí a serviço do mercado ou da máquina burocrática do Estado. Que outras habilidades o senhor entende que sejam importantes de serem desenvolvidas na formação do jurista? AGUIAR: Primeiro compreender o outro. A gente fala tanto em alteridade, mas ninguém sabe o que é alteridade e muito menos trabalha com ela. Não existe direito sem a compreensão do outro. A primeira habilidade é se abrir para o mundo e entendê-lo para poder absorver o que é esse outro. Não conte para ninguém, mas é o outro que marca a minha subjetividade e que define a minha subjetividade. Não sou eu que defino a dele. É preciso que se abra. É preciso que se abra a novos valores. No máximo o que se fala é tolerância... Mas tolerância já é uma palavra com uma conotação muito esquisita... Eu tolero você... A palavra tolerar quer dizer que eu sei que você é diferente de mim e eu tenho que, por respeito, tolerar seu modo de ser. Mas é a tolerância... Ela já é posição de superioridade minha. Eu sou adepto àquilo que o Derrida chama de hospitalidade. Você aceita receber o outro. Daí, a extensão... A faculdade de direito só poderá estar no mundo com uma extensão que não seja uma extensão desigual que eu vou ensinar uma coisa pra periferia e tal... Se aprenderem com a periferia já é uma grande coisa. Entender os problemas que eles têm. Eu nunca mais me esqueço que aqui em Brasília as delegadas estavam muito chateadas porque as mulheres que apanhavam e davam queixa de seus maridos uma semana depois iam lá e tiravam a queixa. “- Mas que gente sem consciência!”, diziam elas. É porque as mulheres que rejeitavam os seus maridos íam sofrer nas mãos de seus vizinhos. Piores ferimentos do que apanhar... Entender esse mundo é muito importante. Entender, por exemplo, também o mundo das crianças... Foi feita uma pesquisa, não me lembro se foi no Serviço Social, que dizia que o grande desejo das crianças era ir no supermercado. Serve?! São sonhos que para nós burgueses é um negócio que, óh!, completamente desprezível... Que nada! É outro mundo. Se a gente não entende o outro mundo, o mundo oprimido, o mundo explorado, você não pode aprender direito. E o direito tem uma tendência de estar com os vencedores e nunca com os vencidos. E a extensão, se bem trabalhada, pode ser um belo instrumento para isso. AMANDA: A Portaria 1.886/94 ela internalizou ou apontou para uma internalização da extensão, dos núcleos de prática... Posteriormente, a Resolução nº 9 de 2004 atualizou a portaria no sentido de colocar parâmetros mínimos para que esse modelo pudesse se desenvolver. De 2004 pra cá, que balanço o senhor faria dessas atividades práticas dentro do modelo? Como o senhor avalia o desenvolvimento do próprio modelo? AGUIAR: Balanço é um negócio meio pesado... (risos...) Eu diria que você não avança se você não tiver sujeitos bem preparados. O grande problema das faculdades de direito é que qualquer um acaba sendo professor... Não é porque você é um bom juiz que você vai ser um bom professor. Não é porque você é um promotor reconhecido que você é um bom professor. Não é porque você é um advogado que ganha muito dinheiro que você vai ser um bom professor. Por que essas experiências de extensão não avançam em grande parte do Brasil? Porque as cabeças são pequenas! Porque a formação é pequena, elitista... Nem a linguagem do outro eles entendem... Eles têm um vocabulário muito deles... É muito comum, você já deve ter visto, o seu cliente ganhar uma ação, mas ele não entendeu a sentença. E ele vem pra você com um olhar e fala “O que esse cara tá dizendo?” A própria sentença, a linguagem nela utilizada, é uma linguagem de separação... O caminho da extensão é um caminho para a união, para a aproximação das pessoas. Qual é a avaliação que eu tenho? Eu penso que há uma enorme dificuldade dessas experiências irem pra frente. Tem algumas experiências muito respeitadas, mas elas são pequenas... O que a gente tem de faculdade de direito nesse Brasil... A última estatística que eu li é que só na cidade de São Paulo tinham 118... Sabe... Não tem quadros! O interessante é que a gente para formar novos quadros pegou o modelo norte americano que pergunta “Quantos papers você escreveu?” e coisas assim... Interessante que eu tenho um colega na universidade que se apresenta como o joãozinho da silva que tem 38 citações! Ele se apresenta como o cara que foi citado 38 vezes em papers... Hoje deve ter mais... Mas quando falou comigo era isso... Então, isso mostra bem uma visão contábil, bancária do mundo que o Paulo Freire já vem falando isso há tantos anos. A educação bancária... Ele tá fazendo isso no terceiro e no quarto grau na formação de professores. Por outro lado, a relação ainda nas escolas particulares é mercantil. Então, você paga pra não fazer. “- Você acha que eu vou fazer extensão universitária?! Eu já to pagando não sei quantos reais por mês com uma dificuldade incrível!” Você pergunta: “- Você gosta da aula? – Não, os professores são repetitivos.”. As aulas são de uma chatice impressionante! AMANDA: (risos...) AGUIAR: Mas é verdade! Você pega aí 90% dos casos as aulas são um horror! Eu fui ao Piauí... Ontem tinha uma piauiense no meu grupo aqui... Eu fui em uma dada faculdade lá fazer uma conferência e tinha um corredor cumprido... E eu fui passando pelas classes... Eu fui ouvindo o que os professores tavam dizendo e, de raspão, ouvi dois erros crassos em segundos de passagem. Uma confundindo Platão com Aristóteles... E outra confundindo a metalinguagem do direito com a linguagem, quer dizer, o pessoal pensa que o discurso sobre o direito é o discurso jurídico também. Então, embanana tudo... E eu passando pelos menininhos que são as vítimas lá... Isso aí era uma universidade pública. Pra você ter uma idéia, que é preciso uma grande mudança no mestrado (que você tá fazendo...), uma grande mudança na formação dos professores e uma grande mudança da instituição, isto é, a gente ter uma outra visão do que é uma escola, né... De vez em quando eu tenho vontade de... eu estudei com os gregos antigos... e vocês alunos se reuniam e perguntavam “- Qual é o bom professor?” e íam lá e perguntavam “O senhor tá a fim de dar uma aula pra nós?”. O sujeito nunca pensava aonde eu vou dar aula. Ele saía andando. Pelas alamedas, pelas ruas... Daí a palavra peripatus... A escola peripatética... A escola que anda... É preciso que alunos e professores se unam... AMANDA: O ensino jurídico está num contexto maior da universidade... E a nossa universidade segue em parte um modelo calcado no ensino, modelo francês, e em parte um modelo norteamericano, em que se tem investimentos em nichos de pesquisa, aquela coisa do produtivismo que o senhor falou... Que políticas podem ensejar um outro modelo de universidade? Que outro modelo de universidade seria esse? AGUIAR: Tem uma história triste da Unb... Eu fui procurador geral da Unb. E fui pegar aqueles documentos originais da fundação... de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro... Pra ver o que eles tinham na cabeça e o que eles criaram até então em termos normativos. Tinham uma universidade livre, que recebia subsídios do MEC, mas não ficava sob a tutela do MEC, experimental, isto é, experimentar novos modos de agir dentro do ensino, pesquisa e extensão, e ao mesmo tempo uma universidade libertária, em que você podia optar por aquilo que você quisesse. Aí, veio o golpe de 64 que foi matando... matando... matando... E hoje ela é uma autarquia de regime especial totalmente voltada... Eu fui o último grito da universidade... Isso eu me orgulho. Agora, por exemplo, o procurador da universidade não pode agir contra o MEC. Agora ele é um funcionário da Advocacia Geral da União dentro da universidade. As universidades federais brasileiras estão indefesas. No lugar de ter os seus procuradores e seus defensores, os procuradores são seus fiscais. Então, eu fui um dos últimos que fez uma ação violenta contra o Ministro da Educação. Com isso, eu garanti vencimentos maiores para as universidades. E eles foram cortando, cortando, cortando em termos de competência, de criatividade... E essa universidade, nessa história específica que estou te contando, sofreu um baque terrível. E aqui em Brasília puseram um Reitor que era pra acabar com ela. Tanto é verdade que 129 professores saíram. Saiu a nata! AMANDA: Isso em...? AGUIAR: Isso em 64, 65, 66, 67... Muitos deles foram anistiados. Mas eu, como procurador, em 98, digo 96, ainda estava anistiando gente. E o mais triste foi o seguinte... Eu fui pra Europa, em seminários por lá, e encontro professores que não voltaram mais. Tavam lá em Paris, na Suécia, tavam não sei onde... Pronto, encontraram lá o seu canto e nós perdemos esse saber. O Brasil perdeu o investimento que fez sobre essas pessoas. A gente normalmente não apoia as atividades educacionais no país. É tudo retórica... Não há uma efetiva contribuição. É um negócio impressionante... Eu tive uma outra experiência horrorosa quando eu tava na UNESCO e eu vim ajudar o Cristovam que era ministro da educação... Do Lula... “Roberto, eu tava numa viagem e me demitiram por telefone...”. E era um sujeito que era símbolo da educação. Tinham que ter um mínimo de respeito independentemente de concordar ou não... É tratado assim como se fosse um pedaço do bolo... AMANDA: O senhor acha que não há como construir política educacional dessa forma... AGUIAR: Exatamente. É outro problema no Brasil. Toda hora muda a política das coisas. Eu fui duas vezes secretário de segurança. Aqui e no Rio. Me perguntaram “ - O senhor vai fazer isso?” Eu disse “- Vou. Eu num sou um lutador dos direitos humanos?! Vamos lá dentro fazer isso...” E o pessoal não entra, né... Lá em não posso e tal... Aí um camarada me disse “- Eu quero ser pedra e não ser vidraça”. Eu falei “Como é que faz se vc não vai botar a mão naquilo...?” No meu discurso, quando eu assumi aqui, que foi antes do Rio, eu disse aos policiais “Eu conheço bem vocês... Como preso político, como advogado e agora como chefe de vocês...”. Botar a mão na massa... Eu acho que é isso... AMANDA: Verificar a política real... AGUIAR: Exatamente. Menina, o que tem de gente agora que se coloca como sofredor do golpe. Mas que não foram... Então, entrando dentro do seu tema, você vai ter um trabalho muito grande pra ver o que é farsa e o que é o real. As vezes numas experiências de extensão que eu também fui ver e tal, sem a complexidade e a profundidade sua, não era aquilo que eles diziam. Eles entravam num congresso pra dizer “ - Nós fazemos A, B, C...”. E não faziam! Em compensação os quietinhos lá, faziam... Num trabalho seu como cientista, ver o que é farsa e o que é o real... Pra você ver um padrão, pra sugerir... No fundo, o inferno está cheio de boas intenções... AMANDA: Agora, não especificamente sobre o meu tema, mas sobre a universidade... A gente está vivendo um momento em que, por um lado, a universidade vem adotando práticas inclusivas, seja no acesso à universidade, seja em fóruns de discussão, ainda que esses fóruns estejam incipientes... Mas a universidade vem adotando essas práticas inclusivas. Daqui pra frente, o que o senhor acha que teremos de transformação com relação ao acesso? Até que ponto as políticas inclusivas reconfiguram o modelo de universidade? AGUIAR: Eu acho muito importante a adoção de práticas inclusivas. Nós temos um débito brutal com grande parcela da população. Como princípio, não tenho nem o que discutir. O grande problema é o poder de envolvimento dos grupos dominantes. Eles colocam um negro na universidade e no último período ele já vai estar branco. Aqueles que se mantém com a sua negritude, a sua cultura, esses têm, mas são raros. Os outros vão entrando na máquina de moer carne dos brancos. Nunca me esqueço de um juiz que foi meu aluno... Deu uma empombada de tal maneira que não olha nem para os colegas. Meu deus do céu! Ele é filho de uma lavadeira, negra, oprimido, no tempo em que nem havia essas cotas. Pra mostrar a você que de um lado é bom. De outro lado, é preciso que a máquina se abra ainda mais para que não embranqueça os índios, os negros... Que não tornem machos as mulheres... Tem mulher ficando “macha” com o tempo. Pensando como homem... Aí, vai criar um homem preconceituoso como a gente vê... Há uma tensão institucional, mas no fundo ela vai virando uma tensão ideológica. Não basta incluir, é preciso que a inclusão signifique o respeito à diversidade. REFERÊNCIAS AGUIAR, Roberto A. R de. 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