UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
FACULDADE NACIONAL DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD/UFRJ)
PARA UMA PEDAGOGIA COMUNICATIVA NO ENSINO JURÍDICO: UMA
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE APRENDIZAGEM
DESENVOLVIDAS EM ATIVIDADES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
AMANDA ALVES DE SOUZA
RIO DE JANEIRO
2013
AMANDA ALVES DE SOUZA
PARA UMA PEDAGOGIA COMUNICATIVA NO ENSINO JURÍDICO: UMA
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE APRENDIZAGEM
DESENVOLVIDAS EM ATIVIDADES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Direito.
Orientadora: Cecilia Caballero Lois
RIO DE JANEIRO
2013
Souza, Amanda Alves de.
Para uma pedagogia comunicativa no ensino jurídico: uma análise de
experiências inovadoras de aprendizagem desenvolvidas em atividades de
extensão universitária / Amanda Alves de Souza – 2013.
104 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito
Bibliografia: f. 101-104
Orientadora: Cecilia Caballero Lois
1. Teoria do direito 2. Sociologia do direito 3. Ensino Jurídico 4.
Extensão universitária – Dissertação I. Lois, Cecilia Caballero. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Jurídicas e
Econômicas. Faculdade de Direito. III. Título.
CDD 340.2
AMANDA ALVES DE SOUZA
PARA UMA PEDAGOGIA COMUNICATIVA NO ENSINO JURÍDICO: UMA
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE APRENDIZAGEM
DESENVOLVIDAS EM ATIVIDADES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Direito.
Data da aprovação: 05 de junho de 2013
_______________________________________________________
Presidente da Banca – Profa. Dra. Cecilia Caballero Lois
Associada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
______________________________________________________
______________________________________________________
"É fundamental diminuir a distância
entre o que se diz e o que se faz, de
tal maneira que num dado momento
a tua fala seja a tua prática."
Paulo Freire
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos à Professora Cecilia Caballero Lois pelos ensinamentos durante o
período de orientação e pelas lições no estágio docência.
Agradeço à Professora Juliana Neuenschwander Magalhães, coordenadora do Programa
de Pós-graduação em Direito da UFRJ, e à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa pelo
financiamento concedido a esta pesquisa, sem o qual não teria sido possível desenvolver todo
esse trabalho.
Agradeço aos funcionários da Biblioteca Carvalho de Mendonça da Faculdade Nacional
de Direito pelo suporte dado na pesquisa de bibliografia e resgate de monografias no acervo da
Graduação.
Ao Professor Marilson dos Santos Santana pelo incentivo ao ingresso no mestrado, por
todos os ensinamentos desde a Graduação, por toda dedicação, pela amizade e pelas longas
conversas que enriqueceram este trabalho e contribuíram significativamente para minha
formação política, acadêmica e profissional.
Não posso deixar também de agradecer aos Professores Marcos Silva, Gabriela Lema,
André Luiz Conrado Mendes e Fernando Fontainha pela torcida e apoio ao longo de todo o
mestrado e principalmente para que eu ingressasse na carreira docente.
Agradeço a Eduardo Nicácio, André Rubião e toda equipe do Núcleo de Mediação da
comunidade Serra do Programa Pólos de Cidadania da UFMG pela cessão de dados empíricos e
materiais bibliográficos.
Ao Professor José Geraldo de Sousa Junior por ter gentilmente me recebido na cidade de
Brasília, por todos os livros doados e pelas brilhantes contribuições acadêmicas.
Aos Professores Alexandre Bernardino Costa e Roberto Aguiar pelas conversas e
contribuições que enriqueceram essa pesquisa.
Aos meus colegas do mestrado Julia Rodrigues, Eric dos Santos Lima, Ana Catarina e
Fernanda Lage pela solidariedade nos momentos difíceis e pelos momentos de alegria.
Aos meus amigos Leonardo Paulistano, Renata Aguiar Leite e Juliana Peralta Conde pelo
companheirismo, pelo apoio e pelo carinho desde a Graduação na Faculdade Nacional de Direito
– UFRJ.
Aos meus amigos e companheiros de lutas Augusto Cesar, Romero Bruno, Vasco
Rodrigo, Roberto Monteiro, Sergio Machado, Bruno Isaac e Elias Khalil Jabbour pelo apoio,
pelos momentos de alegria e descontração.
A todos os integrantes do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ
pelos debates, leituras e discussões que vão ficar pra sempre marcados na minha formação
acadêmica, trajetória e memoria.
A todas as forças políticas do movimento estudantil, do Centro Acadêmico Cândido de
Oliveira e da União Nacional dos Estudantes que inspiraram e em certa medida influenciaram
este trabalho.
A todos e todas que estiveram e estão em luta pela democratização da universidade
brasileira.
RESUMO
Esta dissertação consiste na análise de uma concepção não assistencialista de extensão
universitária e procura compreender a origem histórica e o desenvolvimento desta concepção na
universidade e no ensino jurídico. Para elaborar esta análise recorremos num primeiro momento
às contribuições de Paulo Freire, quando este colocava o problema da concepção assistencialista
e dos modos de apredizagem nela implícitos, associando a estudos sobre a linguagem. A
proposta de Freire de substituição do conceito de extensão pelo de comunicação coloca a
linguagem como ponto chave para a rediscussão de processos de aprendizagem e de produção de
conhecimento. Luis Alberto Warat já havia proposto uma crítica a pressupostos epistemológicos
e teóricos no direito, atravessando a teoria saussuriana da linguagem. Paulo Freire e Warat, não
chegaram a formular, no entanto, uma teoria da comunicação relacionada com uma teoria da
sociedade contemporânea. Por isso, recorremos à teoria do agir comunicativo de Jurgen
Habermas para compreensão mais aprofundada dos processos comunicacionais que se
estabelecem em atividades autênticas de aprendizagem. Com o auxílio desta teoria, passamos a
compreender que a extensão universitária, na sua vertente não assistencialista, pela sua origem
histórica associada a projetos de democratização da universidade e pelo modo como se
desenvolvem suas atividades, constitui-se em verdadeira ação comunicativa. No direito, a
racionalidade comunicativa presente em experiências inovadoras de extensão contrasta com
outra hegemônica de caráter instrumental presente no modelo de ensino jurídico. Além disso, a
extensão como comunicação pode nos levar a repensar uma concepção problemática de direito
que permeia o ensino jurídico, ora baseada na idéia de direito como sistema, ora baseada num
senso comum teórico que conduz a um tratamento irracional e não reflexivo de demandas e
institutos jurídicos. As experiências ocorridas no Programa Pólos de Cidadania da Universidade
Federal de Minas Gerais, na Escola do Direito Achado na Rua da Unb e no Núcleo
Interdisciplinar de Ações para Ciaddania da UFRJ oferecem subsídios maiores para que
possamos compreender as tensões não apenas entre a concepção não assistencialista de extensão
e o ensino jurídico, mas também a relação entre direito, sistema e mundo da vida.
Palavras-Chave: extensão universitária, ensino jurídico, comunicação, linguagem, sistema,
mundo da vida
RÉSUMÉ
Cette dissertation comporte une analyse d’une conception non assistentialiste de l’extension
universitaire et cherche à comprendre l’origine historique et le développement de cette
conception dans l’université et dans l’ enseignement juridique. Pour élaborer cette analyse nous
nous sommes reportés d’abord aux contributions de Paulo Freire, quand il posait le problème de
la conception assistentialiste et des moyens d’apprentissage implicites, en l’associant à des
études sur le langage. La proposition de Freire de remplacement du concept d’ extension par
celui de communication, considère le langage comme le point-clé pour la remise en discussion
des procédés d’ apprentissage et de production du savoir. Luis Alberto Warat avait déjà proposé
une critique aux présuppositions épistemologiques et théoriques dans le droit, parcourant la
théorie saussurienne du langage. Paulo Freire et Warat, ne sont pas arrivés à formuler, cependant,
une théorie de la communication associée à une théorie de la société contemporaine. Pour cette
raison, nous avons eu recours à la théorie de l’action communicative de Jürgen Habermas pour
une compréhension plus approfondie des procédés communicatifs qui s’établissent dans les
activités authentiques d’apprentissage. Grâce à cette théorie, nous avons pu comprendre que
l’extension universitaire, dans son côté non assistencialiste, par son origine historique associée à
des projets de démocratisation de l’université et par la manière dont ses activités sont
développées, représente une véritable action
communicative. Dans le droit, la rationalité
communicative présente dans des expériences innovatrices d’ extension contraste avec une autre
dominante de caractère instrumental présente dans le modèle d’enseignement juridique. En plus,
l’ extension comme communication peut nous amener à repenser une conception problématique
du droit qui traverse l’ enseignement juridique, tantôt basée sur l’idée de droit comme système,
tantôt basée sur un sens commum théorique qui aboutit à un traitement irrationnel et non réfléchi
des demandes et instituts juridiques. Les expériences développées dans le Programa Pólos de
Cidadania de l’ Université Fédérale de Minas Gerais, dans l’Escola do Direito Achado na Rua
de l’ Unb (Université de Brasília) et dans l’ Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania
(Université Fédérale de Rio de Janeiro) offrent des subsides plus importants pour que nous
puissions comprendre les tensions pas seulement entre la conception non assistentialiste d’
extension et l’ enseignement juridique mais aussi la relation entre droit, système et monde-de-lavie. Mots-Clés: extension universitaire, enseignement juridique, communication, langage,
système, monde-de-la-vie
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 9
Capítulo 1. EXTENSÃO OU COMUNICAÇÃO – Apresentação de uma concepção não
assistencialista
de
extensão
universitária
e
de
conceitos
da
teoria
habermasiana...............................................................................................................................16
1.1 A extensão como comunicação e os equívocos gnosiológicos da concepção
assistencialista.....................................................................................................................................18
1.2 Extensão, comunicação e a proposta de construção de uma semiologia política.......................... 23
1.3 Racionalidade comunicativa, epistemológica e teleológica...............................................................27
1.4 Ação comunicativa, ação estratégica e os diferentes modos de utilização da linguagem................32
1.5 Sistema e mundo da vida..............................................................................................................36
1.6 O direito como linguagem ou medium entre sistema e mundo da vida.........................................40
1.7 Princípio do discurso, princípio da democracia e a gênese lógica do direito..................................45
Capítulo 2. EXTENSÃO, COMUNICAÇÃO, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE
MUDANÇA DO MODELO DE ENSINO JURÍDICO................................................................49
2.1 Extensão e democratização da universidade: histórico do processo de institucionalização de uma
concepção não assistencialista de extensão universitária e sua relação com o modelo de ensino
jurídico...............................................................................................................................................49
2.2 Origem histórica de uma concepção não assistencialista de extensão nas faculdades de
direito............................................................................................................................. ............................58
2.3 A Extensão no direito à luz da proposta de Paulo Freire de substituição do conceito de extensão
pelo de comunicação e da teoria de Habermas........................................................................................62
2.4 Diagnóstico e problemas do modelo de ensino jurídico.................................................................68
Capítulo 3. EXPERIÊNCIAS NÃO ASSISTENCIALISTAS DE PESQUISA-EXTENSÃO:
O CASO DO PROGRAMA PÓLOS DE CIDADANIA DA UFMG, DA ESCOLA DO
DIREITO ACHADO NA RUA DA UNB E DO NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE
AÇÕES PARA CIDADANIA DA UFRJ...................................................................................77
3.1. Programa Pólos de Cidadania da UFMG........................................................................................77
3.1.1 Análise Crítica de políticas públicas, comunicação e o resgate da dignidade política do curso
de direito: breve relato sobre a atuação do Programa Pólos de Cidadania no contexto de
implementação do “Programa Vila Viva Serra” de Belo Horizonte................................................84
3.2 Escola do Direito Achado na Rua da Unb.......................................................................................88
3.2.1 Relato sobre a contribuição do Projeto Promotoras Legais Populares – PLPs para a formação
dos estudantes de direito.............................................................................................................91
3.3 Núcleo Interdisciplinar de Ações Para Cidadania da UFRJ..................................................................94
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................101
ANEXO A
ANEXO B
REFERÊNCIAS
9
Introdução
A extensão universitária, na sua vertente não assistencialista, tem uma origem histórica
associada a projetos de democratização da universidade brasileira, reivindicados pelo movimento
estudantil. Os estudantes, ao colocarem a necessidade de uma reforma universitária,
demonstravam sua insatisfação com um modelo de universidade indiferente a demandas sociais e
aos anseios de uma maioria. Nas faculdades de direito, tal descontentamento se refletiu na criação
dos Serviços de Assessoria Jurídica Gratuitos – os SAJUs pelos estudantes1, tendo estes como um
dos seus objetivos principais discutir no curso de direito o problema da democratização do acesso
a justiça na sociedade.
Com o fim dos governos militares e a conseqüente abertura da universidade para o
atendimento de reivindicações do movimento estudantil, passou-se a discutir políticas de
institucionalização de uma concepção não assistencialista de extensão universitária. Nos cursos
de direito especificamente, esse processo de institucionalização começou a ser debatido no início
dos anos de 1990, quando reunida a Comissão de Ensino Jurídico da OAB, constatou -se a crise
do modelo de ensino jurídico e o problema da reprodução de conhecimento descontextualizado
ou não condizente com demandas concretas da maioria da sociedade.2
Diante disso, foram traçadas novas diretrizes como as de exigência de cumprimento de
atividades complementares e a de implantação de atividades supervisionadas nos Núcleos de
Prática Jurídica. Ainda assim, muitos dos problemas diagnosticados no processo de reformas
permanecem. Que problemas são esses? De que maneira pode a extensão universitária apontar
caminhos para superação de problemas presentes no ensino jurídico? Que tipo de formação vem
oferecendo as faculdades de direito?
1
Ver em www.ufrgs.br/saju
Porto, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação – construção do projeto didático no
ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. Págs. 40-41
2
10
Essas são algumas das questões que procuraremos enfrentar neste estudo. Apesar das
mudanças provocadas pelas reformas de 1994 editadas pelo Ministério da Educação e, mais
adiante as de 2004 editadas pelo Conselho Nacional de Educação3, procuraremos identificar
problemas que ainda sustentam a permanência de um determinado modelo de ensino jurídico e de
que maneira esse modelo oferece resistência ao desenvolvimento de experiências de extensão
consideradas inovadoras na área do direito.
Analisaremos porque essas experiências são consideradas inovadoras e que impactos elas
podem provocar na formação dos estudantes. Para elaborar esta análise, nos utilizaremos das
contribuições de Paulo Freire4, Jürgen Habermas na Teoria da Ação Comunicativa 5 e Teoria do
Direito6, além de material bibliográfico ou dados empíricos fornecidos pelas equipes do
Programa Pólos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais 7, da Escola do Direito
Achado na Rua da Universidade de Brasília 8 e do Núcleo Interdisciplinar de Ações para
Cidadania – NIAC/UFRJ Apresentaremos, no Capítulo 1, conceitos como os de racionalidade
comunicativa e ação comunicativa, por exemplo, para, em seguida, no Capítulo 2, verificarmos
como esses conceitos podem explicar o modo como se desenvolvem experiências de
aprendizagem em atividades de extensão de caráter não assistencialista.
Trabalhamos, neste estudo, inicialmente com a hipótese de que a extensão, enquanto
atividade essencialmente estruturada em ações comunicativas, se rege por uma racionalidade que
3
Ver Portaria 1.886/94 do Ministério da Educação e Resolução n. 9 do Conselho Nacional de Educação.
4
Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques
Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983 .
5
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas;
tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012.
6
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio
Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003.
7
8
Ver em Extensão no site www.direito.ufmg.br
SOUSA JR., José Geraldo; COSTA, Alexandre Bernardino e SAID FILHO, Mamede (Org.). A prática
jurídica na Unb: reconhecer para emancipar. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito,
2007. (Coleção Prática Jurídica; v.1).
11
parece contrastar com uma outra instrumental e hegemônica no contexto do ensino jurídico, que
tende a levar seus atores a perquirirem quase que exclusivamente êxitos pessoais ou orientarem
suas ações segundo “os imperativos sistêmicos do poder e do dinheiro”.9
Essa hipótese foi construída a partir de observações e de pesquisa bibliográfica sobre
ensino jurídico em que se pode verificar uma certa tendência entre docentes e alunos de tratar
realidades sociais complexas de forma objetificante e puramente instrumental, transformando
demandas sociais ou por direitos em objeto e “termômetro” da eficácia de suas intervenções
judiciais ou de outras intervenções nas estruturas administrativas do Estado. Quanto mais
“eficazes” são suas intervenções judiciais na resolução de determinados conflitos, ainda que esta
resolução seja apenas aparente, ou quanto mais especializada na burocracia administrativa do
Estado é a formação oferecida, tanto mais próximos estarão da hegemônica racionalidade
sistêmica. Isso dificulta, por outro lado, uma compreensão mais ampla de demandas por direitos
em uma perspectiva participante de processos presentes no mundo da vida.
Na contramão da mencionada tendência, em atividades de caráter não assistencialista,
observamos inicialmente que os alunos possuem como preocupação principal o conhecimento da
realidade social na qual estavam imersas demandas por direitos, procurando entender sentidos e
saberes pré-teóricos produzidos por aqueles que vivenciam aquela realidade. Ao longo de seis
anos de participação em atividades do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIACUFRJ 10 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, percebemos que os alunos integrantes dessas
atividades possuíam, em geral, uma profunda capacidade de se colocarem como co-participantes
9
Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em
Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro
Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Pág. 190-191.
10
O Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania é um programa de extensão da Universidade Federal
do Rio de Janeiro que reune a Escola de Serviço Social, o Instituto de Psicologia, a Faculdade Nacional de
Direito e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Teve sua origem em um projeto elaborado por
estudantes de Direito do Centro Acadêmico Candido de Oliveira, denominado Escritório Modelo de
Atendimento Interdisciplinar, mas ficou conhecido como Projeto Maré, devido à proposta inicial de
promover ações integradas na área dos Direitos Humanos no complexo de favelas da Maré no Rio de
Janeiro.
Ver Souza, Amanda. Estudo sobre a nova praxis extensionista na Faculdade de Direito da UFRJ.
Monografia de Graduação em Direito. Orientação: Marilson Santana. Rio de Janeiro: Faculdade de
Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010.
12
de processos de entendimento dessa mesma realidade bem como habilidades de estabelecerem,
conjuntamente com as comunidades demandantes, planos consensuais de ação para intervenção
naquele contexto.
Além disso, o contato com outras áreas de conhecimento como a Psicologia, Serviço
Social, Arquitetura e Urbanismo no NIAC-UFRJ parece ter oferecido aos estudantes de direito
uma compreensão mais panorâmica da realidade das comunidades e provocado nos mesmos uma
postura crítica às concepções de direito que subjazem na formação em geral oferecida na
faculdade. Constatamos ainda nessas atividades um ponto comum entre as diferentes áreas
acadêmicas de resistência a uma concepção assistencialista de atuação da universidade,
resistência essa que pode encontrar em Paulo Freire 11 um primeiro suporte teórico e
metodológico para se explicar o que significa produzir conhecimento a partir de atividades de
pesquisa integradas à extensão universitária.
Aliás, encontrar referências bibliográficas constitui um problema para quem desenvolve
pesquisa integrada a atividades de extensão, especialmente na área do direito. A área do direito
não possui em geral um debate acadêmico sobre uma formação integrada à extensão que
possibilite o surgimento constante de referências acadêmicas com perfil diferenciado. Apesar de
ser precipuamente um divisor de águas para a área da educação, Freire pode suprir essa falta de
debate no direito, pois seus argumentos e criticas podem funcionar também como uma referência
para os processos de aprendizagem que se estabelecem em experiências de extensão consideradas
inovadoras como as do Programa Polos de Cidadania da UFMG, por exemplo.
Isso porque Freire constrói suas formulações sobre o que significam processos de
aprendizagem na extensão, associando a estudos sobre a linguagem 12. Algo semelhante foi feito
também no direito por Warat
13
quando este procurava explicar o fenômeno jurídico ou os modos
de atuação dos juristas em geral, associando tais explicações a estudos sobre a linguagem. Além
11
Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques
Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Pág. 79.
12
13
Ibidem Pág. 21.
Warat, Luis Alberto. Colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua Linguagem. 2ª. Edição.
Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1995. Pág. 20.
13
disso, a linguagem vem sendo elemento constitutivo da teorização contemporânea do direito de
Habermas14 e Luhmann, ao afirmar este ultimo que o sistema jurídico, como sistema parcial da
sociedade, não se reproduz senão através da comunicação. 15
Discutir extensão no direito perpassa necessariamente pelo debate sobre concepção de
ensino/educação jurídica e discutir ensino jurídico significa tratar da compreensão do que venha a
ser mesmo o fenômeno jurídico. Como nos ensinou Lyra Filho 16, uma concepção equivocada do
que venha a ser o direito explica os equívocos de sua pedagogia e vice-versa. Mas discutir as
concepções de direito implícitas no modelo de ensino jurídico também significa na
contemporaneidade problematizar, em alguma medida, as diferentes concepções de linguagem
nelas colocadas.
Verificamos que a substituição do conceito de extensão pelo de comunicação produzida
por Freire pode promover, para quem se propõe a entender processos de aprendizagem em
atividades de extensão no direito, uma abertura para um diálogo com as teorias de Habermas, o
que pode também nos auxiliar na problematização do modelo de ensino jurídico e das concepções
de direito nele implicadas.
Em sua teoria do direito, Habermas está preocupado em explicar o fenômeno jurídico em
uma sociedade marcada por complexidades e conflitos que põem constantemente à prova sua
legitimidade. Além disso, preocupa-se em explicar a existência dos direitos subjetivos, que
garantem aos cidadãos liberdades individuais e políticas de participação, rompendo tanto com
uma fundamentação relacionada a direitos naturais quanto com uma fundamentação teórica que
extrai da legalidade como que implicitamente a legitimidade da garantia desses direitos. 17
14
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução:
Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003.Págs 27-28.
15
El derecho de la sociedad / Niklas Luhmann; formatação eletrônica de Joao Protasio Farias Domingues
de Vargas, Marjorie Correa Marona e Juliana Neuenschwander Magalhaes – Versão 5.0 de 13/01/2003.
Pág. 22.
16
LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da Unb,
1980.
17
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução:
Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003.Págs 116-122
14
Habermas enxerga uma tensão constante entre facticidade e validade, entre coercitividade
do direito e a sua pretensa legitimidade, encontrando nos direitos subjetivos de participação
política uma das chaves para explicar essa tensão permanente na qual se estrutura o direito. Para
o autor, o direito coercitivo somente consegue garantir sua força se a totalidade dos destinatários
singulares das normas jurídicas puder considerar-se autora racional dessas normas.18 Esse
processo de avaliação da condição de autores do mesmo direito de que são destinatários perpassa
pelo exercício de direitos subjetivos que garantem também a participação política de cidadãos em
debates públicos ou em processos comunicativos que ocorrem numa esfera pública autônoma.
Uma outra questão que nos interessa na teoria do direito de Habermas e que nos parece
fundamental para a discussão do ensino jurídico, refere-se à sua crítica à concepção de direito
como sistema. Nesta concepção, os processos políticos, a esfera pública e a cultura são
subsistemas que circundam o sistema jurídico, possuindo linguagens próprias que, muitas das
vezes, o sistema jurídico não necessariamente compreende. E, se compreende essas linguagens, o
faz traduzindo-a segundo linguagens, mecanismos e interesses próprios do sistema jurídico,
dando uma conotação diversa daquela gerada nos processos políticos originários. Isto quer dizer
que enxergar o sistema jurídico como um sistema significa analisar o Direito e a Política, o
sistema jurídico e o mundo da vida, de maneira não necessariamente articulada, já que o
subsistema do direito é concebido como relativamente autônomo e se diferencia do seu entorno
graças a operações e a uma linguagem específica que lhe é própria.19
Interessa-nos analisar as diferenças entre a noção que concebe o direito como um sistema
e a concepção de direito como algo presente tanto em sistemas de códigos especializados como
no mundo da vida onde podem ser iniciados processos de legitimação e deslegitimação do direito
positivo. A partir dessa diferenciação, verificaremos de que maneira o modelo de ensino jurídico
pode se aproximar, em alguma medida, de uma concepção de direito como sistema e de que
maneira a extensão, entendida como ação comunicativa, abre outras perspectivas de compreensão
18
19
Ibidem Pág. 54-60
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução:
Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Págs. 74-75
15
do fenômeno jurídico, aproximando-o da esfera pública e dos processos comunicativos a ela
inerentes.
Processos de aprendizagem apoiados em ações comunicativas podem criar as condições
necessárias para compreensão do direito como linguagem ou médium entre sistema e mundo da
vida, resignificando assim a concepção de ensino e de direito que subjaz a formação que vem
sendo normalmente oferecida. Por isso, a extensão, na sua vertente não assistencialista, pode nos
apontar novas perspectivas teóricas e metodológicas, ao promover uma aproximação entre
fenômeno jurídico e mundo da vida e desenvolver processos pedagógicos que se regem segundo
uma racionalidade comunicativa. A extensão pode, assim, indicar de que maneira o fenômeno
jurídico pode ser compreendido sem que se exclua a possibilidade de estar também implicado em
processos sociais que ocorrem no mundo da vida ou numa esfera pública que encontra na
comunicação a sua força vital.
16
Capítulo 1: Extensão ou comunicação - Apresentação de uma concepção não
assistencialista de extensão universitária e de conceitos da teoria
habermasiana
Neste capítulo, apresentaremos a proposta de Freire de substituição do conceito de
extensão pelo de comunicação a fim de iniciarmos a colocação do problema de como se
desenvolvem processos de aprendizagem em uma concepção não assistencialista de extensão
universitária. Freire teceu passos relevantes a fim de que possamos compreender o papel que
cumpre uma concepção não assistencialista de extensão dentro de um determinado modelo de
ensino jurídico.
O autor dedicou-se a criticar o assistencialismo extensionista, desde 1968, ao
problematizar o conceito de extensão e propor a sua substituição pelo conceito de comunicação. 20
Com isso, promoveu a desconstrução de uma concepção assistencialista historicamente presente
na universidade. O extensionismo assistencialista foi amplamente difundido no Brasil em
projetos da época como o Rondon e os Centros Rurais de Treinamento e Aperfeiçoamento
Técnico – CRUTACs.21
Em linhas gerais, a concepção assistencialista pressupõe o ato de estender saber técnico
ou científico a agricultores e trabalhadores, o que, para Freire, traduziria um equívoco
gnosiológico e uma verdadeira invasão cultural, pois compreende a extensão como comunicação
ou situação gnosiológica que se caracteriza pela relação dialógica intersubjetiva para o
entendimento de algo no mundo. Na construção dessa relação, educadores encontraram
dificuldades de ordem material, acadêmica e cultural, inerentes a um modelo de universidade
ainda calcado em uma educação bancária que pressupõe a transferência de conhecimento daquele
que sabe àqueles que nada sabem.
Estas dificuldades vão desde a não oferta de infraestrutura necessária ao desenvolvimento
constante do próprio diálogo com camponeses até os limites da própria formação universitária
20
Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques
Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Pág 11-13
21
Sousa, Ana Luiza Lima. A história da extensão universitária. Campinas: Editora Alínea, 2000. Págs. 6163
17
que muitas vezes não oferece todo suporte teórico e metodológico necessário à produção de
conhecimento científico a partir de processos dialógicos e/ou pedagógicos. As comunidades de
trabalhadores e camponeses, por sua vez, encontrarão dificuldades de estabelecer essa relação,
visto que estão submetidas constantemente a relações sociais de exploração econômica e
dominação que lhes emudecem ou vão tolhendo gradativamente sua capacidade de analisar
criticamente ao falarem sobre sua própria realidade.
Apesar de todos esses limites, quando a relação dialógica se estabelece, conforme
veremos mais detalhadamente, não estamos mais falando em extensão, mas em comunicação. A
partir desta concepção de aprendizagem baseada na comunicação, pode-se apontar para as
faculdades de direito caminhos para promoção de mudanças na concepção de ensino jurídico ou
mesmo de direito. Preocupação semelhante a esta que temos com o ensino jurídico pode ser
encontrada nas formulações de Warat sobre o esgotamento da produção discursos jurídicos
elaborada por juristas. O autor dedicou-se a construção de criticas a pressupostos epistemológicos
presentes no direito, entendendo que a construção de uma nova concepção de ciência e de direito,
pressupunha uma analise critica de diferentes concepções linguagem/comunicação que, em
alguma medida, estariam influenciando os discursos jurídicos.22 Antes de entrarmos nessa
discussão acerca dos problemas do modelo de ensino jurídico e, portanto, de problemas contidos
na concepção de ensino, ciência e de direito implícitos nesse modelo, vejamos como Freire
construiu a mencionada proposta de substituição.
Freire, porém, não se propõe a construir uma teoria que tenha a linguagem e a
comunicação como elemento central, embora não tenha deixado de levar em consideração a
linguística para desenvolver suas formulações e raciocínios. 23 De igual maneira, no direito,
Warat, apesar de lançar e tecer passos significativos para a construção de uma semiologia politica
ou de uma produção de conhecimento critica dos processos de significação produzidos pelo
22
Warat, Luis Alberto. Com colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua linguagem. 2ª
Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 17-18
23
Freire inicia sua critica a concepção assistencialista pela aproximação semântica do termo extensão e
apoiando-se em estudos modernos da semântica.
Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques
Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Pág. 21
18
direito na sociedade, também não chegou a formular uma teoria que possa servir de marco para
compreensão do nosso objeto.
Por isso, verificaremos como a teoria do agir comunicativo oferece maiores subsídios para
explicar processos de aprendizagem em uma concepção não assistencialista de extensão.
Conceitos como os de racionalidade comunicativa, racionalidade instrumental, ação
comunicativa, ação estratégica, sistema e mundo da vida podem nos servir de suporte para esta
explicação. Assim, apresentaremos neste Capítulo as noções preliminares para que, no Capítulo
2, possamos analisar nosso objeto de estudo, a saber, experiências e processos de aprendizagem
ocorridos em atividades de extensão desenvolvidas no interior de um determinado modelo de
ensino jurídico.
1.1 A Extensão como comunicação e os equívocos gnosiológicos da concepção
assistencialista
Neste momento, analisaremos mais detalhadamente as contribuições de Paulo Freire para
uma compreensão não assistencialista das atividades de extensão e a sua proposta de substituição
do termo extensão pelo de comunicação. Embora Freire tenha tomado em seu texto a experiência
de agrônomos com camponeses como referência para suas formulações24, não valem elas apenas
para estes profissionais, mas para educadores em geral que se propõem a desenvolver atividades
semelhantes em outras áreas do conhecimento, pois tais atividades possuem um caráter
pedagógico que deve ser discutido criticamente. 25
Freire começa a problematizar a concepção assistencialista das atividades implementadas
por agrônomos pela análise semântica do termo extensão que indica a ação de estender algo
àquele que recebe o conteúdo objeto da ação. No contexto do agrônomo, o termo extensão
24
Ibidem. Pág. 24.
25
Embora Freire tome o exemplo especifico da experiência dos agrônomos, pode-se inferir que seus
argumentos são universalizáveis a ponto de servirem de diretrizes para outras categorias profissionais,
visto que a partir desse exemplo particular ele passa a problematizar formas de aprendizagem e produção
de conhecimento de uma maneira mais genérica ou ampla.
19
significa, nesta primeira acepção, que ele estende conhecimentos e técnicas àqueles presentes em
regiões rurais ou de reforma agrária. 26 A presença de um outro elemento humano no contexto de
interferência do agrônomo é elemento essencial a ser considerado para que o termo passe a ter
plenitude de sentido. Sua intervenção se daria, portanto, no domínio humano e não natural, para
que os camponeses possam implementar mudanças em seus contextos gerais de vida através de
técnicas e conhecimentos científicos.
Como se pode perceber, o termo extensão aparece com um sentido diretamente
relacionado à ideia de transmissão, entrega ou mesmo persuasão. Esta relação de associação de
sentidos foi explicada através da teoria dos “campos associativos”, cujo objetivo consiste
principalmente em comprovar que existe uma relação estrutural de dependência entre as palavras
que se dá através dos chamados “campos linguísticos”, ou seja, dos campos de significação
conceitual que expressam uma determinada visão de mundo. 27 Vale ressaltar que o estruturalismo
de Saussure já havia inaugurado anteriormente a ideia de que a linguagem constitui-se enquanto
sistema dotado de unidades linguísticas que, por regras de diferenciação intrínsecas, encontramse inter-relacionadas, formando assim um campo de significação e compreensão. A linguagem
funcionaria como um sistema de unidades que induz naturalmente, pela sua estruturação, a um
determinado campo de compreensão dos termos e a determinada visão de mundo. 28
Assim, a análise semântica do termo extensão nos remete quase que naturalmente à ideia
de que a atividade extensionista consiste no trabalho de ida do agrônomo até um outro contexto
social para estender a ele, à sua maneira, os seus conhecimentos e técnicas e, com eles, a sua
26
Ibidem Pág. 20
27
Ibidem Pág. 21.
28
Warat afirma que a semiologia saussuriana se encarregou de estudar as leis e os conceitos
metodológicos gerais que poderiam ser considerados validos para todos os sistemas signicos. Ou seja,
seria um estudo voltado à determinação das categorias fundantes e as regras metodológicas pertinentes à
constituição de uma ciência dos signos em sentido estrito. No livro, O Direito e sua linguagem o autor
promove uma leitura critica do direito como ciência e fenômeno social atravessando pressupostos
estruturalistas da linguagem. Afirma que um de seus propósitos neste livro seria denunciar o esgotamento
da produção linguístico-semiológica dos juristas.
Warat, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Colaboração de Leonel Severo da Rocha. 2ª. Edição.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. Pág. 99
20
visão de mundo. Existe, incutida na concepção assistencialista de extensão, a idéia de que é papel
do agrônomo “normalizar” uma outra realidade, sendo que os êxitos de sua ação estariam
relacionados a resultados objetivos provocados pelo controle técnico por camponeses de
fenômenos de causas consideradas naturais. Isto implicaria ainda na transformação do outro em
“objeto indireto de uma ação” ou “ser abstratamente concebido” e, por outro lado, na negação
deste mesmo outro como agente e sujeito também de ações no mundo.
Outra implicação desta compreensão da atividade extensionista reside no fato de não se
perceber nela um que-fazer educativo libertador 29, fato este que pode explicar o papel secundário
que ainda cumpre a extensão dentro do conjunto de funções sociais compreendidas como próprias
da universidade. 30 A extensão passa a ser vista como simples instrumento de divulgação de
resultados provenientes de pesquisas teóricas, essas últimas sim consideradas atividades
essencialmente acadêmicas. Se compreendermos a atividade do agrônomo-extensionista como
atividade educativa e comunicativa, perceberemos nela um processo de aprendizagem com
sujeitos que atuam de maneira livre de coerção ou “domesticação”, cujo objetivo seria tão
somente chegar, pela via racional e discursiva, a um entendimento ou sentido sobre o mundo.31
O equivoco gnosiológico implícito na utilização do termo extensão reside justamente no
fato de não se perceber que a atividade do agrônomo insere-se numa dialogicidade de sujeitos em
torno de um objeto cognoscível que buscam ambos conhecer. O ato de conhecer autêntico
implica na transformação de ambos, o agrônomo e o camponês, em sujeitos que, buscando
conhecer o objeto, procuram, numa relação intersubjetiva, reinventá-lo ou revelá-lo criticamente
através da linguagem. 32 O ato de estender algo a alguém, ao contrário, implica em considerar
29
Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
30
Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão na América Latina In Construção
conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos de Faria (Org.). Brasília,
Universidade de Brasília, 2001. Págs 16-19
31
A partir dessa compreensão, justifica-se mais adiante a adoção da teoria do agir comunicativo como
marco para se explicar de maneira mais aprofundada formas de aprendizagem ocorridas em experiências
não assistencialistas de extensão.
32
Critica-se aqui o processo de absolutização da ignorância dos camponeses, como se estes não fossem
portadores de um saber, ainda que pré-científico, capaz de colocá-los na condição de sujeitos da ação e
que deve ser levado em consideração no processo de produção do conhecimento, já que também o
21
que o outro apenas vai “dar-se conta” de algo tido como transmissível e não como cognoscível. 33
O outro é um ser abstratamente concebido que tão somente receberá de maneira mecanicista algo
supostamente estático e transmissível que vem a ser o conhecimento. O outro é indiretamente
posto na posição de objeto da ação de transmitir, cujos objetivos são fazer com que se substitua
um conhecimento por outro e provocar, através dessa operação, um determinado resultado no
mundo objetivo.
A propósito da questão de provocar resultados objetivos, muitos agrônomos argumentam
que, movidos pela urgência do tempo e da necessidade de aumento de produtividade agrícola em
áreas de reforma agraria, não conseguem estabelecer uma relação de diálogo com os camponeses,
o que os leva ainda a não observação das condições culturais em que ocorrem as atividades
extensionistas e a uma postura em defesa da invasão cultural. 34
O problema da invasão cultural reside no fato de que ela pressupõe a descaracterização da
cultura invadida para o fim de preenchê-la com produtos da cultura invasora, o que envolve não
apenas a substituição de conhecimentos, mas linguagens, valores e visões de mundo. Em
realidade, a dificuldade dos agrônomos em estabelecer uma relação dialógica com os camponeses
se deve, em parte, por conta de um histórico de dominação dos camponeses e de sua submissão a
relações sócio-culturais verticais provenientes de estruturas como o latifúndio monocultor. Os
camponeses estiveram por muito tempo submetidos há uma relação sócio-cultural anti-dialógica,
o que exige um certa transição para um outro contexto de reforma agrária.
O equívoco implicitamente presente no termo extensão implica em não reconhecer o ato
de conhecer em si como uma relação dialógica, o que vai de encontro à própria compreensão de
si mesmo daquele que julga-se detentor de saber. Mesmo este sujeito, no ato de pesquisa
científica tradicional, no qual encontra-se aparentemente só, trava um diálogo com uma
comunidade de outros tantos homens que anteriormente a ele já havia problematizado e
agrônomo, quando ainda busca conhecer a razão de ser dos fenômenos, insere-se também ele num
domínio de conhecimento pré-científico.
33
Extensão ou Comunicação? / Paulo Freire. Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. Prefácio de Jacques
Chonchol. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Págs. 79-81
34
Ibidem Pág 45
22
empreendido formulações acerca do objeto cognoscível. 35 Passa também por um processo de
auto-reflexão36, pois, para chegar à aprendizagem autêntica tem de afastar-se criticamente de suas
opiniões, convicções e pressupostos, a fim de por estes a prova nesta relação dialógica com a
comunidade de pensadores que possui um acúmulo que não há como ser desprezado. A idéia de
extensão, portanto, não se sustenta enquanto produção autêntica de conhecimento, já que parece
desprezar uma dialogicidade implícita ao ato de conhecer.
De fato, Freire ressalta que “dar-se conta” de algo pertence ao domínio do sensível ou da
“doxa”, no qual se encontram formas desarmadas ou puramente experimentais de aquisição de
conhecimento pré-científico, em que ainda não se atingiu o conhecimento da razão de ser das
coisas. Isso difere de “desvelar” relações existentes nesse mesmo mundo, algo que pertence ao
domínio do “logos”, domínio este reflexivo que impõe um afastamento crítico do mundo para
encontrar de maneira racional uma explicação científica para o que ocorre no mesmo.
A partir dessas distinções, o autor convence-se de que o problema implícito no termo
extensão está relacionado a um problema epistemológico, ou seja, relacionado à forma como se
concebe a produção de conhecimento, problema esse que atinge inevitavelmente valores
culturais, concepções e modos de utilização da linguagem. Convence-se ainda de que qualquer
esforço de educação popular, esteja ele associado ou não a uma capacitação profissional, seja em
âmbito rural ou urbano, deve ter determinados objetivos fundamentais: problematizar as relações
homem-mundo ou homem-homem no mundo e criar condições para que tomem racionalmente
consciência do que ocorre na realidade ou no contexto em que estão inseridos, o que
transformaria o conhecimento pré-científico em técnico ou científico. Mais do que um técnico
distante, o que-fazer fundamental do agrônomo consiste no trabalho de um educador que
35
Ibidem Pág 79
36
A expressão auto-reflexão foi utilizada por Habermas nos anos de 1960 quando este colocava a
importância da abertura da universidade para temas políticos. Para o autor, a discussão desses temas leva a
universidade a uma auto-reflexão, visto que os debates seguem o mesmo princípio pelo qual deve se
pautar a reflexão científica, ou seja, segundo o princípio do discurso, segundo o qual não deve prevalecer
nenhuma outra força que não seja a do melhor argumento.
The University in a democracy: democratization on the university In Toward to a rational society: students
and politics / Jurgen Habermas. Translated by Jeremy J. Shapiro. Boston: Bacon Press, 1970. Págs. 7 e 8
23
compromete-se e se insere com os camponeses na transformação, como sujeito, com outros
sujeitos, e até mesmo outros educadores, do contexto de reforma agrária.
1.2
Extensão, comunicação e a proposta de construção de uma semiologia
política
Embora a linguagem ou as teorias da linguística não sejam objeto das preocupações
principais de Freire em Extensao ou Comunicacao? , o autor recorre à linguística como primeiro
passo para tecer suas críticas a concepção assitencialista de extensão. Como ponto de partida de
suas formulações, vimos anteriormente que Freire encontra, na aplicação de parte da teoria
saussuriana dos signos, um início do problema que envolve a utilização do termo extensão para
designar atividades de aprendizagem desenvolvidas a princípio por agrônomos com camponeses.
De maneira semelhante, embora estivesse com preocupações teóricas voltadas as condições de
produção discursiva e de conhecimento no direito, Warat parte da teoria saussuriana para
construir uma analogia entre a semiologia e a teoria kelseniana ou, em outras palavras, entre
linguística e ciênca jurídica. Com isso teceu os primeiros passos, para formulação da proposta de
construção de uma semiologia política no direito.
Warat explica que as pretensões da teoria saussuriana de criar uma ciência pura dos
signos partiam da divisão entre plano dos fatos e plano das ideias ou do conhecimento, divisão
esta que pode ser traduzida através da distinção entre língua e fala. Assim, intentou-se
reconstruir, no plano do conhecimento, um sistema teórico que explicasse um funcionamento
lógico dos diversos tipos de signos. Os diferentes tipos de unidades sígnicas traduzem
verdadeiros esquemas ideais de interpretação do que ocorre no mundo da linguagem natural e/ou
da fala 37, sendo tarefa da ciência dos signos, como meta-linguagem, esquematizar as leis ou os
critérios de diferenciação, semelhança e inter-relacionamento entre as diversas unidades
identificadas. 38 Tal esquematização pressupõe, portanto, uma separação do mundo dos fatos ou
da fala para poder contraditoriamente explicá-lo.
37
Neste sentido, os signos são a meta-linguagem do que ocorre com a linguagem-objeto que passa a ser a
linguagem natural.
38
Warat, Luis Alberto. Com colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua linguagem. 2ª
Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 12
24
Por conta dessas pretensões teóricas e epistemológicas, Warat promove uma analogia
entre a teoria saussuriana e kelseniana. Além disso, encontra, por exemplo, em conceitos
fundamentais como de língua e fala39 uma correspondência entre dever-ser e ser
respectivamente. 40 Não pretendeu com isso afirmar uma influência direta de Saussure em Kelsen,
mas que há no estatuto epistemológico das referidas ciências semelhanças que podem indicar
caminhos semelhantes para a construção de novos pressupostos científicos e teóricos.
A reação à concepção de linguagem presente na semiologia veio com a Filosofia da
Linguagem Ordinária que, invertendo a postura teórica e epistemológica da linguística
semiológica, propõe a fala como ponto de partida para explicar a maneira como se constitui a
linguagem e seus processos de significação. Se foram verificadas deficiências nas teorias que
procuram explicar os modos de funcionamento da linguagem isso se deve, segundo esta filosofia,
a uma não observância do usos linguísticos em contextos de fala.
41
Warat chama, entretanto, a atenção para o fato de que a análise da Filosofia da Linguagem
Ordinária apoia-se em certos pressupostos psicologistas, ignorando a inserção histórica da
linguagem, assim como a articulação no nível pragmático com a sociedade, vista em sua
totalidade. Afirma esse mesmo autor que a análise funcional que a Filosofia de viés pragmático
pretende elaborar não considera os componentes ideológicos e políticos da sociedade, centrandose nos propósitos do emissor. Isso significaria um equívoco, já que, ao transmitir uma mensagem,
o homem não apenas reflete seus propósitos, como também reproduz uma concepção do mundo.
Por esta razão, na classificação dos usos da linguagem sugerida pela Filosofia da Linguagem
Ordinária pode-se dizer que estão ausentes os usos ou os modos emergentes da função social da
linguagem.42
39
A fala seria o conjunto de linguagens naturais heterogêneas ou fatos sígnicos concretos. A língua é
sistematização ou o esquema ideal e lógico de interpretação destes fatos, sendo, portanto, o objeto da
ciência linguística.
40
Ibidem Pág. 21.
41
Ibidem Pág. 63
42
Ibidem Pág. 67
25
Por conta disso é que Habermas, embora tenha se utilizado da mecionada filosofia,
quando se apoiou nos efeitos perlocucionários e ilocucionários43 dos diferentes tipos de atos de
fala para explicar mais adiante em sua teoria a diferenciação entre as ações estratégicas e o agir
comunicativo, não deixou de relacionar tais conceitos aos de sistema e mundo da vida. O
conceito de agir comunicativo, enquanto ação de fala sustentada em uma relação intersubjetiva
orientada ao entendimento, apenas pode ser explicado como conceito complementar do conceito
de mundo da vida. Neste último conceito, encontram-se processos de socialização dos individuos,
de formação de indentidades culturais e relações socio-políticas de ordens legítimas que influem
ou permeiam os processos de significação e de utilização da linguagem.
Apesar das críticas e releituras da filosofia da linguagem ordinária feitas no sentido de
atualizá-la de acordo com uma concepção ou teoria da sociedade, podemos dizer que tais estudos
abriram, em alguma medida, a possibilidade de no direito se questionar tanto a ideia de que as
palavras da lei contêm uma significação unívoca, bastando a alteração do texto para que se
transforme a compreensão do direito, como a ideia de direito como sistema, já que esta última
pressupõe assim como na linguística, a ideia de um sistema logica e tecnicamente ordenado do
direito que guarda uma unidade interna.
Análises pragmáticas das linguagens jurídicas denunciam a relação entre enunciações
jurídicas e práticas político-ideológicas da sociedade bem como o caráter persuasivo do discurso
jurídico, baseadas na ideia dos fins implícitos ou explícitos nos usos linguísticos do direito. Com
isso, colocam para a ciência jurídica a análise do fenômeno jurídico a partir de um paradigma
43
No ato perlocucionario, ao contrario do ilocucionario, ha uma intenção do agente pressuposta na fala de
instrumentaliza-la para garantir êxitos ou resultados objetivos que lhe tragam alguma vantagem. As
intenções do agente não estão explicitas na fala, sendo a manipulação um outro efeito que caminha em
paralelo com o efeito perlocucionario. Verificaremos as diferenças entre ilocucao e perlocucao mais
adiante.
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução
Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2012. Pag 502
26
linguístico. Mas não situam a produção discursiva do direito na produção social geral.
44
Daí, se
propõe a ideia de construção de uma semiologia política ou do poder como contraponto tanto a
semiologia dominante, cujo propósito é chegar a uma análise do discurso puramente linguística,
como a uma análise psicologista dos modos de utilização da linguagem.
Se transportarmos a proposta de construção de uma semiologia política para o âmbito da
rediscussão do modelo de ensino jurídico, verificaremos que nos processos de aprendizagem da
concepção não assistencialista de extensão universitária encontram-se perspectivas concretas de
passarmos a produzir conhecimento que situe a produção discursiva do direito na produção social
geral. Isso porque esta concepção, entendida como comunicação, leva não apenas em
consideração os modos de utilização da linguagem, relacionando-os as intenções ou fins do
agente, mas coloca a necessidade de observar as relações comunicativas dentro de contextos que
possuem uma determinada cultura e modo de vida. Quando Freire aponta que a extensão como
comunicação não se destina a persuadir o camponês para que ele se adeque a uma outra cultura
ou visão de mundo, colocando assim a problemática da invasão cultural em processos de
aprendizagem, leva em consideração que a atividade comunicativa implementada está situada
num contexto maior da sociedade. Percebemos, entretanto, que embora Freire e Warat apontem a
necessidade de situar a produção discursiva/comunicativa em um contexto social, cultural e
político mais amplo, não chegaram a formular uma teoria que explicasse com profundidade esta
relação. Em realidade, não conseguimos identificar se podemos colocar como seus esses
propósitos. Por isso, recorremos à teoria do agir comunicativo de Habermas a fim de
entendermos as relações entre produção discursiva, política e sociedade. Mais adiante
verificaremos como estas relações podem ser analisadas no âmbito da produção discursiva no
direito dentro de uma perspetiva habermasiana.
44
Warat, Luis Alberto. Com colaboração de Leonel Severo da Rocha. O Direito e sua linguagem. 2ª
Edição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 100.
27
1.3 Racionalidade comunicativa, epistemológica e teleológica
Iniciaremos a compreensão da produção de discursos na sociedade e de conhecimento em
geral pelo conceito de racionalidade comunicativa. Antes da teoria do agir comunicativo, a
produção de conhecimento humana estava, em grande medida, baseada no autoconhecimento
intuitivo de um sujeito singular. A partir desta teoria, passa-se a pensar que a produção de
conhecimento não poderia se dar senão numa relação intersubjetiva. Assim, os sujeitos que
buscam conhecer o mundo, enquanto seres capazes de fala, já se encontram preliminarmente
numa situação na qual não poderão estar situados senão em uma relação com outros sujeitos.
Nessas relações intersubjetivas que constituem formas de vida predomina um tipo de
racionalidade chamado de comunicativa.
O conceito de racionalidade comunicativa tem a sua origem principal no debate que
Habermas promove com a filosofia kantiana e a tradição filosófica alemã da consciência em uma
perspectiva crítica das relações sujeito-objeto e indivíduo-sociedade.45 Tal conceito também
parece ter ganhado densidade no debate de caráter epistemológico e sociológico com a teoria dos
sistemas de Parsons e com a teoria social de Weber. 46
Ao substituir o paradigma da consciência pelo paradigma da linguagem, Habermas afirma
que a reflexão ou a atitude reflexiva do sujeito, que pretende conhecer e agir, não se dá num
processo singular consigo mesmo, carregando predisposições que o fazem um sujeito racional.
Esta atitude reflexiva ocorre numa relação dialógica na qual utiliza-se a linguagem no seu modo
mais originário.47
45
Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em
Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro
Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Págs. 183-186.
46
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas;
tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012. Págs 25-29
47
Verificaremos que a análise dos diferentes tipos de atos de fala traduz usos diferenciados da linguagem.
A utilização da linguagem no seu modo originário ocorre quando o objetivo do sujeito é realmente se fazer
entender ou apresentar aos demais constatações, vivências e impressões e, conjuntamente com elas, todas
as suas razões ao emití-las.
28
A partir dessa interação com outros sujeitos que problematizam-se uns aos outros (e a si
mesmos) e reconhecem a validade de suas expressões, sob determinadas condições que
estruturam a própria ação de falar, como a do reconhecimento de que o outro pode atribuir
sentidos e formas de compreensão idênticas ao do emissor da fala, vai se formando um
conhecimento pré-teórico construído pela vivência desses sujeitos que agem ao se comunicar. A
partir desse conhecimento pré-teórico oriundo da utilização da linguagem no seu modo mais
originário, o conhecimento pode expandir-se e aperfeiçoar-se.
A atitude de refletir desse sujeito que age e conhece ao se comunicar traduz determinada
racionalidade que pode assumir diferentes conotações. A atitude reflexiva pode significar as
possibilidades de distanciamento do sujeito em relação a juízos de verdade, em relação às suas
intenções na persecução de objetivos/fins em suas ações ou um distanciamento de si mesmo,
enquanto ser capaz de fala, ao pretender que um outro tão somente entenda aquilo que quer
comunicar.48 Por isso, Habermas promove uma distinção entre racionalidade epistemológica,
teleológica/instrumental e comunicativa.
Não deixa o mesmo autor de salientar que no meio linguístico e, principalmente na
estrutura da linguagem, essas racionalidades encontram-se como que inter-relacionadas, pois a
atitude de refletir e afastar-se de si mesmo, própria da ação de comunicar-se, induz
necessariamente a processos de aprendizagem, de construção de conhecimentos e identidades e,
na falta desta atitude, falha a comunicação, o que induz o sujeito a necessariamente agir segundo
uma racionalidade mais objetiva e instrumental. 49
De fato, a racionalidade epistemológica surge interligada com a ação e a utilização da
linguagem. Este tipo de racionalidade diz respeito à estrutura proposicional da linguagem e a uma
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas; tradução
Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2012. Págs. 500-504
48
49
Ibidem Págs. 34-37
Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em
Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro
Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Págs. 185-187.
29
natureza intrinsecamente linguística do conhecimento. 50 Tal estrutura proposicional significa que
nossos juízos acerca da realidade sempre estão como que implicitamente acompanhados do
porque julgamos um contexto de uma determinada maneira e não de outra, ou seja, de uma base
de sustentação composta de razões pretensamente universais. As razoes universais tem que ser
aceitáveis tanto para quem participa aqui e agora dos processos comunicativos como para um
“auditório universal” pressuposto na emissão de falas. 51
Tais razões podem desmoronar diante da realidade, caso, na utilização da linguagem,
fique evidente o caráter de falsidade dos juízos emitidos nos atos de fala ou caso se constate que a
utilização da linguagem não acompanhou determinado conteúdo normativo que rege a própria
ação de falar nesse contexto. Essa falibilidade do conhecimento enquanto expressão linguística
proposicional é o que possibilita lidarmos com o mesmo de maneira racional. A justificação
necessária e implicada na linguagem é, portanto, a chave para a compreensão da racionalidade
epistemológica e dos processos de aprendizagem que acompanham a constatação da falibilidade
de juízos emitidos em atos de fala diante de seus contextos.
Por outro lado, a racionalidade teleológica ou instrumental está relacionada ao cálculo
que terá de fazer o agente que pretende a obtenção de determinado êxito ou finalidade previa e
intencionalmente traçada. Neste cálculo, reside um conjunto de razões que podem ser testadas e
que justificam a tomada de decisões em um determinado sentido numa ação. Por isso, Habermas
afirma que um agente bem sucedido terá agido racionalmente apenas se souber o porquê desse
sucesso, pois é na existência de uma motivação ou de razões para ação que encontra-se a
condição principal que serve como base da racionalidade da mesma. E, como estas razões podem
ser problematizadas, antes mesmo da tomada de decisão, é que a racionalidade teleológica está,
em alguma medida, relacionada às outras duas racionalidades.
50
51
Ibidem. Págs 188-189
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I / Jurgen Habermas; tradução: Flavio Beno
Siebneicher – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Pág. 37-39.
30
Por conta disso, Habermas52 também explicita o problema da tomada de decisões de
agentes que são orientados de modo egocêntrico pelas suas respectivas preferências e
expectativas de sucesso pessoais, por não considerarem que, mesmo o cálculo de suas ações e o
atingimento de seus objetivos, se relacionam a um conjunto de razões que podem ser
problematizáveis por outros agentes que também possuem seus planos de ação e seus respectivos
objetivos. O fato é que, orientados egocentricamente ou levando em conta os planos de ação de
outros agentes, o sujeito que age de acordo com uma racionalidade teleológica ou instrumental o
faz segundo intenções de obter um determinado resultado ou algum êxito no mundo objetivo,
mas, para isso, utiliza-se da linguagem não apenas para se fazer entender, mas principalmente
para provocar no outro um efeito que lhe traga alguma vantagem.
Ao contrário da racionalidade teleológica, a racionalidade comunicativa rege as ações de
sujeitos que pretendem extrair do modo mais originário de utilização da linguagem o máximo
possível de entendimento. O conceito de entendimento remete a um acordo almejado pelos
participantes e racionalmente motivado, que se mede segundo pretensões de validade
criticáveis.53
Esse entendimento assegura aos falantes um mundo intersubjetivamente partilhado que
funciona como um pano de fundo sobre o qual podem se referir como um contexto em comum.
Tal entendimento é alcançado por conta de um determinado modo de utilização da linguagem em
que o agente pretende levantar algo sobre o mundo, seja ele objetivo, subjetivo ou social comum
a todos, que apenas será aceito se o interlocutor se convencer das razões implicitamente contidas
nessa pretensão. Para tanto, terá de voluntariamente se afastar de suas convicções/impressões
subjetivas iniciais a fim de formar um consenso.54 Assim, interlocutor e agente passam a partilhar
52
Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em
Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro
Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Pág. 191.
53
Ações, atos de fala, interações linguisticamente mediadas e o mundo da vida (1988) In Racionalidade e
comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da tradução Pedro Bernardo.
Lisboa: Edições 70, LDA, 2002. Págs. 110-112.
54
Habermas identifica quatro pretensões de validade contidas na estrutura da fala: as pretensões de
verdade para o conteúdo proposicional afirmado; as de retitude ou adequação, para com as normas que
justificam a relação que quer estabelecer; veracidade na manifestação de suas intenções e a pretensão a
inteligibilidade que tem que ser cumprida como pressuposto da própria compreensão do ato.
31
de um mesmo ponto de vista, pois utilizam a linguagem segundo uma racionalidade
comunicativa, ou seja, segundo uma lógica em que a linguagem possui o papel de comunicar algo
passível de crítica e, portanto, também de consenso sobre essa mesma crítica.
Uma outra forma de compreender a racionalidade comunicativa, além da análise dos
modos de utilização da linguagem, é sugerida por Habermas na aplicação de seu método
reconstrutivo das condições de fala em processos argumentativos. O autor sugere que a teoria da
argumentação oferece subsídios para reconstruir as condições sob as quais é possível alcançar um
acordo intersubjetivo e racionalmente motivado com base na pura força do melhor argumento, ou
seja, com base na pertinência do argumento frente a um determinado contexto no qual estão
inseridos os participantes. 55 Tais condições encontram-se apoiadas principalmente nas
pressuposições que fazem os participantes no ato de argumentar de que seus interlocutores são
capazes de analisar, livres de quaisquer coerções, a pertinência dos argumentos ao contexto e de
que, ao adotar uma atitude hipotética, podem problematizar argumentos e verificar as condições
de aceitabilidade e as possibilidades de universalização dos mesmos.56
Assim, a racionalidade comunicativa, sob a ótica de uma teoria da argumentação, está na
suscetibilidade de crítica das razões e no procedimento, livre de coerções, de exame da
pertinência de argumentos sem os quais não seria possível alcançar um acordo racionalmente
motivado sobre o contexto dos participantes. E esta suscetibilidade de crítica é o que possibilita a
análise da relação entre racionalidade comunicativa e epistemológica, pois nos processos de
Dutra, Delamar Jose Volpato. Razão e Consenso: uma introdução ao pensamento de Habermas. Pelotas:
Editora Universitária/UFPEL , 1993. Págs. 18-20
55
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas;
tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012. Págs. 57-62
56
Importa a observação feita por Habermas de que a força do argumento jurídico está para além dos
efeitos que provoca no processo judicial. A força do argumento jurídico encontra-se principalmente na sua
justificação com base em expectativas legítimas de comportamento. O argumento jurídico possui sua base
de fundamentação em contextos práticos em que se discute coletivamente a legitimidade de ações que tem
por razão de ser o cumprimento de normas.
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2ª Ed. / Jurgen Habermas; tradução: Flavio
Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Págs. 75-76
32
aprendizagem ou construção de conhecimento, os quais ocorrem com a identificação da
falibilidade de juízos, a argumentação desempenha um papel relevante.
1.4 Ação comunicativa, ação estratégica e os diferentes modos de utilização da
linguagem
A discussão acerca das diferentes conotações que pode assumir a racionalidade prepara o
terreno para a análise sociológica das ações humanas, estando esta relacionada tanto aos modos
de utilização da linguagem nessas ações como também ao sistema de referências culturais e
sociais dos quais se utilizam implicitamente os participantes ou que se tornam objeto mesmo
destas interações quando há a intenção de compreendê-lo ou problematizá-lo.
Esse sistema de referências é reconstruído na teoria habermasiana principalmente a partir
do diálogo com as teorias de Popper e Weber. Em linhas muito gerais, podemos dizer que, de
Popper, Habermas extrai a lição de que a relação do sujeito com o mundo objetivo nem sempre se
estabelece de uma forma direta 57, mas simbolicamente mediada. Em Popper, seguindo-se em
grande medida uma tradição platônica, o terceiro mundo de produtos simbólicos funciona como
um sistema de referencias complexo pré-estabelecido. O terceiro mundo funciona como um
acervo de referenciais ao qual poderá ter acesso aquele sujeito racional que, no ato de conhecer,
descobre problemas previamente estabelecidos e, numa atitude crítica e criativa, procura resolvêlos desenvolvendo explicações, técnicas e teorias. 58 Da teoria weberiana Habermas extrai a lição
de que é possível diferenciar ações humanas e levantar pretensões de validade diferenciadas
acerca da realidade com base em esferas especiais de valor que seriam uma espécie de
57
Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução
Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 149-150
58
A teoria do interacionismo simbólico de Mead, que possui algumas de suas raízes nas reflexões de
Peirce, também trará elementos neste sentido. O interacionismo simbólico de Mead surge como uma
espécie de derivação ou evolução de uma interação humana primitiva baseada na interpretação de gestos e
ações concretas no mundo objetivo.
Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução Flavio
Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 9-13
33
subproduto de um todo maior formado pela tradição cultural. Sugere-se, portanto, que há toda
uma tradição cultural consolidada pelo avanço de processos de racionalização da sociedade e que
rege como um todo as ações humanas. 59
A partir desses diálogos, Habermas sugere, por sua vez, que as relações do sujeito com o
mundo podem ser simbolicamente mediadas pela linguagem, sendo que os usos linguísticos
pressupõem um pano de fundo formado pelo mundo da vida, no qual está inserida uma
compreensão pré-compartilhada não apenas do mundo objetivo, mas do mundo subjetivo
(formado pelas vivências dos próprios falantes) e do mundo social (formado por relações
reconhecidamente reguladas por normas e valores culturais).60
Forma-se um acervo cultural que funciona como pano de fundo reproduzido por
processos comunicativos61 e que, ao mesmo tempo, é formado por esses processos no mundo da
vida.
A constatação da existência desse acervo cultural e social que forma um consenso de
fundo foi o que possibilitou que Habermas pudesse falar de ação comunicativa em um sentido
forte. Na ação comunicativa em um sentido forte, as pretensões de validade são julgadas não
apenas com relação à intenção real do agente em comunicar algo sobre o mundo, mas também
com relação à aceitabilidade que possuem essas pretensões, tendo em vista valores e relações
consolidados que regulam o seu contexto. Esta percepção nos parece relevante se levarmos em
conta que os processos comunicativos se desencadeiam num contexto de democracia com
determinados direitos e valores consolidados ou em vias de serem aprofundados.
Esse mundo de referências formado por valores culturais e sociais compartilhados
interfere na ação de comunicar na medida em que está pressuposto nos atos de fala ou é ele
mesmo invocado pelos agentes comunicadores quando o próprio pano de fundo passa a ser o
problema ou parte dos problemas enfrentados pelos sujeitos nas suas interações comunicativas.
59
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas;
tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012. Págs. 489-492
60
61
Ibidem Págs. 192-193
Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade comunicativa (1996) em
Racionalidade e Comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da Tradução Pedro
Bernardo. Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70 LDA, 2002. Págs. 204-206
34
Se está pressuposto na fala dos agentes ou pode ser invocado através de atos de fala, conclui-se,
então, que esse mundo de valores culturais e sociais somente pode ser acessível e problematizável
através da linguagem e em interações em que figuram pelo menos dois sujeitos.
Com isso, chegamos a um dos pontos principais de caracterização das ações
comunicativas que é o da utilização da linguagem no seu modo mais originário, como caminho
para se chegar a um entendimento. Nas ações comunicativas, negociam-se definições sobre o
mundo que passarão a coordenar, como um pano de fundo, outros tipos de ações humanas, sendo
que é somente neste tipo de ação que podem os sujeitos assumir uma postura reflexiva ou crítica
do mundo ao qual se referem na linguagem.62
Ao utilizarem a linguagem no seu modo originário, ou seja, com o intuito de realmente se
fazerem entender e chegarem a um consenso, os sujeitos assumem uma postura reflexiva,
afastando-se de suas convicções ou razões originais implícitas nas suas manifestações e
esperando, assim, que elas sejam criticadas ou aceitas por todos os demais participantes num
determinado contexto.63
As unidades de análise desse modo de utilização da linguagem nas ações encontram-se
principalmente na releitura habermasiana da classificação dos atos de fala em ilocucionários e
perlocucionários feita por Austin. 64 Com atos ilocucionários, o falante executa uma ação ao dizer
algo, objetivando que o ouvinte queira compreender o significado da externação proposta e
aceitá-la segundo um procedimento de exame reflexivo livre de coerções. Não há outra intenção
do agente que não seja mobilizar a linguagem para o mutuo entendimento. Com atos
perlocucionários, o falante almeja desencadear um efeito no ouvinte, mas sua intenção de
62
O modelo de ação comunicativa tem sua origem na teoria do interacionismo simbólico de Mead, na
concepção de jogos de linguagem de Wittgenstein, na teoria dos atos de fala de Austin e na hermenêutica
de Gadamer.
63
Os agentes podem manifestar de maneira implícita três tipos de pretensões: a pretensão de que o
enunciado seja verdadeiro (referência ao mundo objetivo); a pretensão de que a ação de fala esteja correta,
tendo como referência um contexto normativo vigente (referência ao mundo social) e a pretensão de que a
postura assumida na expressão de suas intenções, emoções e vivências seja reconhecida como uma postura
ética (referência ao mundo subjetivo).
64
Teoria do agir comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social / Jurgen Habermas;
tradução Paulo Astor Soethe; revisão da tradução Flavio Beno Siebeneichler – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012. Págs 502-504.
35
provocar e/ou manipulá-lo permanece como que oculta na própria fala. E esta intenção apenas
poderia ser revelada se analisarmos a fala diante de um contexto objetivo de ação, pois, para que
o falante atinja seus objetivos perlocucionários, jamais deixará exposto aquilo que realmente
pretende.
Essa ocultação de um objetivo que não é o de comunicar algo sobre o mundo de maneira
fundamentada é o que difere as ações estratégicas das ações comunicativas. Sabe-se que nas
ações teleológicas e estratégicas o agente, dotado de informações, opiniões e vontades acerca da
realidade, deseja obter um êxito ou atingir um fim que pode esbarrar nos objetivos de outros
sujeitos em interações.
Para atingir esse fim, além de promover um cálculo racional dos meios, o agente deverá
selecionar um modo de utilização da linguagem que provoque naquele outro sujeito, que possui
também seus respetivos interesses e objetivos, um efeito capaz de lhe trazer vantagens. Ao
utilizar a linguagem segundo objetivos perlocucionários, ele terá de se utilizar da mesma, ainda
que indiretamente, de maneira ilocucionária. Por isso, é que Habermas afirma que nas ações
estratégicas utiliza-se de maneira parasitária da força ilocucionária que pode possuir a linguagem,
sendo ela apenas mais um dentre os diferentes meios de se conseguir determinado resultado. Há
um aproveitamento da função de inteligibilidade da linguagem para outro fim que não é, de fato,
o de chegar a uma definição acordada sobre algo no mundo.
O critério de julgamento dessas ações estratégicas é principalmente o da eficiência.
Quanto mais eficaz for o modo de utilização da linguagem através de atos perlocucionários, mais
rapidamente atinge-se o êxito, tornando-se esta ação, portanto, eficaz, segundo uma racionalidade
que observa objetivamente as ações com base no critério da eficiência. Este mesmo critério não
pode ser aplicado às ações comunicativas, pois estas, além de utilizarem a força ilocucionária da
linguagem de maneira irrestrita, funcionam segundo uma racionalidade comunicativa que orienta
os agentes ao entendimento do mundo, seja ele objetivo ou social e não à obtenção de êxitos
pessoais numa dada realidade objetiva. Por isso, afirma-se que os critérios de julgamento ou
36
validação de uma ação comunicativa não são egocêntricos, mas públicos, visto que são social e
intersubjetivamente partilhados no mundo da vida.65
1.5
Sistema e mundo da vida
No tópico anterior, vimos como o conceito de mundo da vida e agir comunicativo são
complementares, visto que este último reproduz e, ao mesmo tempo, é reproduzido pelo primeiro
porque nele está implicado. Além disso, o mundo da vida 66 constitui um consenso de fundo
formado por elementos como tradições culturais, processos de socialização e experiências
constitutivas da personalidade aos quais os agentes se referem, ainda que indireta ou
implicitamente na fala, o que implica na diluição dos riscos de dissenso. 67 Vejamos agora nesse
tópico como os conceitos de sistema e de mundo da vida representam modos diferenciados de
compreender a sociedade, as coordenações das ações e também diferentes posturas
metodológicas pelas quais pode optar o cientista social no ato de conhecer a realidade.
Em primeiro lugar, o conceito de sistema traduz um determinado modo de compreender a
sociedade desenvolvido principalmente por Parsons. Se as tradições culturais, sociais e da
personalidade aparecem em Habermas como estruturas inter-relacionadas formadoras de um
mesmo consenso de fundo, em Parsons, essas estruturas são subsistemas diferenciados, sendo a
cultura e a personalidade meros entornos do subsistema da sociedade formado pelas instituições e
pelas normas sociais. 68 Se as estruturas do mundo da vida aparecem em Parsons diferenciadas na
65
Ações, atos de fala, interações linguisticamente mediadas e o mundo da vida (1988) em Racionalidade e
comunicação / Jurgen Habermas. Tradução Paulo Rodrigues. Revisão da tradução Pedro Bernardo.
Lisboa: Edições 70, LDA, 2002. Págs.108 e 109
66
O conceito de mundo da vida foi formulado principalmente por Husserl, sendo que este ainda seguia
uma tradição da filosofia da consciência, remetendo este a um mundo previamente dado de experiências
originárias somente acessível por uma consciência transcendental subjetiva. Este conceito foi reformulado
por Habermas pela influência da filosofia heideggeriana, da hermenêutica de Gadamer e de alguma
maneira pelas sociologias de Durkheim e Weber.
67
Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução
Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs. 252-253
68
Vale ressaltar também que em Habermas as estruturas componentes do mundo da vida encontram-se
interelacionadas horizontalmente, diferentemente do que ocorre na teoria social de Parsons que concebe a
37
forma de subsistemas parcialmente especializados em determinadas funções, que orientam as
ações num determinado sentido, então não há que se falar em agir comunicativo ou em agentes
comunicantes/comunicadores, mas em sistemas de ação, nos quais o sujeito possui um papel de
mera unidade abstrata, isto é, o sujeito constitui uma espécie de “peça das engrenagens e
operações sistêmicas”. 69
As funções subsistêmicas são cumpridas por meio de controles que são modos
especializados de utilização da linguagem para o atendimento de fins. A linguagem, na
perspectiva da teoria dos sistemas, tende a se especializar para cumprir funções no interior dos
diferentes subsistemas. Passa a cumprir um papel de controle e manutenção/reprodução dos
sistemas e de sua racionalidade teleológica destinada ao atendimento de fins e objetivos. Neste
ponto, há uma diferença radical para a teoria do agir comunicativo, pois nesta última a tendência
da sociedade no mundo da vida é de reproduzir-se e integrar-se por meio de um modo de
utilização da linguagem originário e, portanto, não especializado. Um modo de utilização da
linguagem orientado ao entendimento que ocorre devido à própria estrutura proposicional da
linguagem e do saber nela implícito.
Habermas critica a concepção de linguagem contida na teoria dos sistemas principalmente
pelo fato de que esta teoria tende a extrair da linguagem qualquer meio de controle, não
aventando a possibilidade de que a própria estrutura proposicional da linguagem poderia
submeter esse processo de especialização que dá origem aos sistemas a certas limitações. Em
outras palavras, Habermas afirma que exclui-se em grande medida a possibilidade de o mundo da
vida controlar o processo de complexificação social e especialização funcional em sistemas,
passando-se a um raciocínio, de certa forma determinista, da sociedade, como se houvesse uma
tendência ao controle das ações e sujeitos através da especialização da linguagem, sendo o
“dinheiro” e o “poder” os que principalmente se destacam.
70
possibilidade de uma autonomia relativa e hierarquia entre a esfera cultural, da personalidade e da
sociedade bem como do mundo objetivo físico-químico.
69
Ibidem Págs. 435-442
70
Ibidem Págs 266
38
A teoria do agir comunicativo não nega que possa haver um controle sistêmico de ações e
sujeitos por meio da codificação e especialização da linguagem. Mas afirma, por outro lado, que
esse processo de controle ocorre em determinados domínios de reprodução material, restando
ainda domínios sociais do mundo da vida em que se utiliza a linguagem para negociar sentidos,
domínios esses que não podem ser negligenciados pela ciência porque formam um conhecimento
ainda que pré-teórico.
Neste ponto, compreende-se porque o conceito de mundo da vida exige uma postura
metodológica diferenciada daquela proposta pela teoria dos sistemas. Isto porque o mundo da
vida preserva domínios em que a formação linguística dos sentidos é construída livre do controle
de meios ou de uma racionalidade funcional. Como não são controláveis, esses domínios não
podem ser observados de maneira objetiva, segundo critérios de eficiência no atingimento de
êxitos ou segundo critérios funcionais. Os sentidos formados no mundo da vida não são
acessíveis, portanto, por meio da mera observação reiterada dos fenômenos de controle
funcionais. Por conta disso, Habermas propõe uma postura participante dos processos de
produção de sentido, visto que é por dentro desses processos, numa postura de sujeito
participante e não observador, que o cientista social consegue ter acesso ao modo como eles são
produzidos intersubjetivamente no mundo da vida.
Outra questão que está colocada na diferenciação entre os domínios sistêmicos de
reprodução material e os domínios sociais do mundo da vida diz respeito aos efeitos que
produzem sobre a coordenação das ações sociais. Quando os domínios do mundo da vida passam
a ser controlados por uma linguagem codificada de tal maneira em que fica prejudicado o agir
comunicativo, ocorre o que chamamos de tecnicização do mundo da vida. A relevância da
linguagem técnica ou codificada passa então a se sobrepor e se impor diante daquela contida nos
processos comunicativos do cotidiano ou do mundo da vida. Orientam-se em geral as ações não
mais pela formação linguística do consenso ou por uma racionalidade comunicativa, mas por
meios de controle que pressupõem certa ruptura com o mundo da vida, segundo uma
racionalidade teleológica, cujos imperativos ultrapassam a capacidade reflexiva dos sujeitos.
Meios como o dinheiro e o poder codificam e exteriorizam uma racionalidade teleológica,
tornando não apenas possível a quantificação e mensuração de valores, mas também uma
influenciacão nas decisões do outro que prescinde de maiores esforços de reflexão, interpretação
39
e formação linguística de consenso. Porém, é preciso ressaltar que, embora esses dois meios de
controles sistêmicos funcionem de maneira semelhante dentro de um processo de tecnicização de
um mundo da vida, os dois se diferenciam com respeito ao nível de dependência que
contraditoriamente podem ter com o mundo da vida no momento em que se institucionalizam.
O poder, diferentemente do dinheiro, institucionaliza-se e necessariamente é mantido por
via de um direito público que encontra nos processos de legitimação um dos seus maiores pilares.
Segundo Habermas, o direito privado de possuir dinheiro ou ser proprietário de algo implica o
acesso a mercados em que é possível efetuar transações, enquanto o direito de exercer poder
implica, via de regra, a ocupação de um posto no quadro de uma organização destinada ao
atendimento de fins coletivos. Justamente por ser destinada ao atendimento de fins coletivos é
que esta mesma organização necessita de uma base que lhe confira confiança e reafirme
constantemente o compromisso com seus propósitos públicos. Essa base de confiança no
cumprimento de fins coletivos pelas organizações é denominada legitimidade. 71
Ao contrário do dinheiro, o poder necessita legitimar-se para continuar a manter suas
estruturas. Esta relação com a legitimidade dos fins a que se destina a organização é o que a torna
vinculável em grande medida a uma formação linguística de consenso e, portanto, ao mundo da
vida, pois os destinatários avaliam, segundo critérios públicos, os êxitos da organização com
relação às suas pretensões no cumprimento de determinadas funções. Esta relação entre a
institucionalização do poder por meio de direitos públicos e os seus processos de legitimação
ligados à formação de consensos linguísticos nos parece aprofundada na teoria do direito de
Habermas que será analisada no próximo tópico
1.6
O Direito como linguagem ou médium entre sistema e mundo da vida
A teoria do agir comunicativo ensaia, através da análise das diferenças entre os meios do
poder e do dinheiro, os primeiros passos para a discussão acerca do caráter duplo de
coercibilidade e liberdade de que se reveste a validade jurídica. Isso porque já na teoria do agir
71
Teoria do agir comunicativo, 2: sobre a critica da razão funcionalista / Jurgen Habermas; tradução
Flavio Beno Siebeneichler. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. Págs 329-333
40
comunicativo Habermas aponta para uma relação entre o meio de controle do poder e a ideia de
legitimação através da institucionalização do poder promovida pelo direito público. Na teoria do
agir comunicativo, Habermas compreende que o sistema administrativo do poder não está de todo
desconectado de processos comunicativos do mundo da vida, pois os fins da organização
sistêmica, garantidos pelo direito, são em geral fins coletivos que devem ser reconhecidos como
tais para que se garanta a legitimidade ou mesmo a existência desse sistema.
Naquela teoria, Habermas já aponta que a tensão entre facticidade e validade é
intrinsecamente constitutiva da estrutura da linguagem, pois a linguagem argumentativa deve a
sua força racionalmente motivadora tanto ao significado do que comunica quanto com a sua
validade segundo critérios públicos de utilização da linguagem estabelecidos no mundo da vida.
Conforme vimos, tais critérios que podem ser, inclusive, tematizados ou reforçados. As
pretensões de validade ou os modos de sua utilização podem ser constantemente postos a prova
justamente por constituírem-se de uma estrutura proposicional.
Essa tensão própria da estrutura proposicional da linguagem encontra-se também no
direito de maneira intensificada72, pois é através de processos discursivos relativos a pretensões
de validez normativas que o direito é tematizado e abre-se a possibilidade de sua validação e
positivação, ou seja, a sua possibilidade de coagir legitimamente. Em outras palavras, Habermas
afirma que direito e linguagem possuem, portanto, estruturas muito semelhantes e é justamente
isto que possibilita o estabelecimento de articulações entre linguagem codificada e linguagem
coloquial, sistema e mundo da vida, positividade e legitimação, direito e política.
Habermas73 encontrará nos direitos subjetivos de participação política ou numa
democracia deliberativa garantida por tais direitos a principal chave para explicar essa
permanente tensão entre facticidade e validade, entre coercibilidade e a pretensa legitimidade do
72
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume I 2. Ed. / Jurgen Habermas; tradução:
Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Págs 60-61
73
Ibidem Págs 113-116
41
direito, sendo que é nesta tensão que também reside uma relação entre sistema e mundo da vida
por intermédio do direito que se estrutura como a linguagem. 74
O direito possui um duplo caráter de coercibilidade e garantia de liberdades. Após o
estabelecimento do Estado de Direito, as teorias que fundamentavam o Direito com base num
direito natural e explicavam a força de integração social do Direito com base numa força de
coerção soberana e externa às relações da sociedade civil, por sua vez entendida como reunião de
interesses teleológicos ou egoísticos, se tornaram descontextualizadas.
Isso porque foram positivados e legitimados direitos civis de liberdade nos processos de
instalação das principais democracias que, inclusive, consolidaram ações civis contra possíveis
excessos cometidos pelo próprio Estado em nome do Direito. Habermas afirma que, para Kant, a
relação entre facticidade e validade, estabilizada na validade jurídica, apresenta-se como uma
relação interna entre coerção e liberdade, fundada pelo direito. 75 O direito encontra-se, portanto,
ligado à autorização para o uso da coerção, mas esse uso somente se justifica quando “elimina
empecilhos à liberdade”, ou seja, quando se opõe a abusos da liberdade de cada um ou quando se
garante a liberdade de todos.
A elaborações kantianas, porém, não parecem desenvolver a ideia de liberdade contida no
direito vinculada à idéia de legitimação como resgatabilidade discursiva.76 A ideia da
resgatabilidade ganha relevância após o surgimento de ordens jurídicas que, apesar de positivas e,
portanto, formalmente válidas, ofuscavam o seu caráter ilegítimo através de uma força intrínseca
da legalidade. Segundo Habermas, a legitimidade de regras, e principalmente o grau de utilização
de direitos subjetivos, se mede pela resgatabilidade discursiva das mesmas nos processos
legislativos racionais ou de justificação mais amplos. Resgatam-se nos discursos ou no exercício
74
Ressalte-se a observação de Habermas sobre a fusão entre facticidade e validade nas sociedades em que
o direito aparece relacionado a “imagens de mundo sagradas” e “a autoridade de instituições” como a
família, por exemplo. O direito nessas sociedades consideradas arcaicas é aceito e não aceitável, isto é,
não se tematiza o direito segundo pretensões de validade normativa e muito menos valores autoritários que
nele estão implícitos e que formam um aparente consenso de fundo para os que agem comunicativamente.
Ibidem Pág. 42-43.
75
Ibidem Págs 48-49
76
Ibidem Págs 50-51
42
de direitos subjetivos de liberdade e participação política as razões que motivaram a formação de
um consenso intersubjetivo em torno da validade de uma determinada ordem normativa.
De fato, os direitos de participação política assumem a forma de direitos subjetivospúblicos e podem ser interpretados como liberdades subjetivas de ação. Instituem liberdades para
os cidadãos decidirem como usar direitos de comunicação, assumindo estes uma postura de
utilização da liberdade e da linguagem orientada a formação de um acordo mutuo. Tais direitos
são responsáveis pela consolidação de uma cultura politica democrática que pode ser analisada
por conta de uma resgatabilidade discursiva das regras de direito como um todo positivadas.
Para compreender, no entanto, essa resgatabilidade discursiva, é preciso adotar um
enfoque performativo 77 da ordem jurídica ou uma perspectiva participante de processos
comunicativos que levam a acordos racionalmente motivados. Tal enfoque se diferencia do
enfoque objetivador no qual o ator compreende o direito como fato social e a norma como
limitador de seus interesses egoísticos e de seus planos estratégicos de ação. O direito é
compreendido, segundo este último enfoque, como limitação da liberdade subjetiva de agir e não
como fenômeno capaz de gerar coerção e ao mesmo tempo liberdade. O direito como fato social
não está relacionado com o agir comunicativo e não gera expectativas obrigatórias de
comportamento apoiadas em acordos racionais motivados por processos comunicativos de
entendimento.
Os acordos racionalmente motivados que estão implicados no processo de positivação do
direito são construídos somente se os sujeitos de direitos puderem se considerar reciprocamente e
ao mesmo tempo destinatários e autores dos direitos. Esse reconhecimento recíproco, garantido
por direitos subjetivos, entre cidadãos da condição de destinatários e autores de direitos ocorre
com o agir comunicativo, no qual se levantam pretensões de validade normativa e, a partir disso,
pode-se tomar livremente uma posição de aceitação ou rejeição dessa pretensão com fundamento
em razões.
77
Habermas indica aqui que a metodologia de compreensão do direito traduz uma determinada concepção
do direito. O enfoque objetivista tenderá a retratar o direito como um fato social e o enfoque performativo
traduzirá um direito formado a partir de processos comunicativos dinâmicos e acordos racionalmente
motivados num contexto de democracia.
Ibidem Pág. 36-37
43
O fato de o direito legitimar-se e manter-se positivo através de acordos racionalmente
motivados é o que principalmente diferencia a concepção de direito de Habermas daquela
existente na teoria de Luhmann. O direito é concebido neste último como um subsistema do
sistema social capaz de estabilizar expectativas de comportamento e não como produto de um
arranjo comunicativo. Para Habermas, não seria possível estabilizar expectativas de
comportamento de maneira deslocada de processos comunicativos inerentes ao mundo da vida. 78
O direito como subsistema autopoietico tem a função de estabilizar expectativas de
comportamento através de uma linguagem especializada em código, funcionando e interagindo
com outros subsistemas como o da política ou o da cultura segundo critérios e observações
específicas e próprias. A linguagem codificada não apenas estabiliza expectativas de
comportamento discutidas em conflitos especificamente jurídicos, mas também funciona como
mecanismo de manutenção do próprio direito enquanto subsistema.
Habermas diverge de Luhmann nesse ponto, pois o direito estaria não apenas relacionado
a uma linguagem codificada, mas também a uma linguagem coloquial presente nos seus
processos de legitimação ou nos acordos racionalmente motivados que o sustentam e emergem do
mundo da vida.79 O direito institui uma linguagem codificada no sistema de poder, mas esta
linguagem codificada apenas existe porque existem processos comunicativos que ocorrem no
mundo da vida que levantam ou colocam a prova pretensões de validade normativa formando
assim um pano de fundo. O sistema de poder estruturado em direitos públicos, por sua vez,
garante a continuidade desses processos comunicativos de legitimação porque impõe
coercitivamente uma gama de direitos subjetivos que garantem aos cidadãos o próprio direito de
opinar sobre o direito que institui o poder.
Por isso, Habermas conclui que o direito funciona como médium entre sistema e mundo
da vida.80 O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro
lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora, se rompa, quando garante
direitos subjetivos de participação politica numa esfera publica. O direito garante, portanto, a sua
78
Ibidem Pág. 57
79
Ibidem Págs. 75-81
80
Ibidem Págs. 111 - 112
44
própria tematização em uma esfera pública de linguagem coloquial através da institucionalização
de procedimentos e direitos subjetivos de participação política. Ao mesmo tempo, sem a tradução
para o código especializado do direito contido no sistema, que é complexo, porém
cognitivamente aberto ao mundo da vida, os processos comunicativos de legitimação e
questionamento que ocorrem no mundo da vida não encontrariam eco em universos de ação
dirigidos por meios de controle.
1.7
Princípio do discurso, princípio da democracia e a gênese lógica do
direito
Vimos no tópico anterior que os direitos subjetivos constituem a principal chave para
compreensão da tensão entre facticidade e validade na medida em que sem eles não se consegue
explicar os processos de positivação e legitimação do direito. Vejamos agora a relação entre
autonomia pública e privada traduzida pelos direitos subjetivos e de que maneira essas
autonomias, quando entendidas como co-originárias, operacionalizam a tensão entre facticidade e
validade do direito.
O sentido da co-orignaridade da autonomia pública e privada somente é entendido se
reconstruirmos antes os passos de Habermas na sua crítica tanto à concepção de autonomia de
Hobbes quanto de Rousseau. Em linhas muito gerais, podemos dizer que tal critica significa que
Habermas não mais aposta na figura clássica abstrata de um contrato social para explicar a
origem da autonomia tanto privada quanto política dos cidadãos. Em vez disso, aposta em
processos democráticos discursivos garantidos por direitos subjetivos que ao mesmo tempo
traduzem e garantem autonomias e possibilitam a legitimação do sistema de direitos.
A crítica de Habermas a concepção hobbesiana de autonomia reside no fato de esta estar
baseada numa concepção privatista dos direitos subjetivos e num estado natural em que as ações
dos indivíduos são regidas segundo uma racionalidade teleológica. 81 A saída deste estado de
81
Direito e democracia: entre a facticidade e validade, volume 1. 2ª. Ed. / Jurgen Habermas; tradução:
Flavio Beno Siebeneichler – Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Pág. 123
45
natureza é garantida através da abdicação parcial pelos indivíduos de seus respectivos planos
autônomos de ação, depositando no contrato social, em nome do qual passará a atuar um
soberano, toda a força legitimadora de uma vontade geral abstratamente concebida. O contrato
social hobbesiano significa ainda a transportação para o âmbito público de um instrumento
privado como o contrato que traduz um pacto ou acordo de vontades individuais.
Já a crítica de Habermas a Rousseau reside no fato de a autonomia política dos cidadãos
estar baseada numa autonomia natural dos indivíduos que se sustenta graças a fundamentos
morais e éticos abstratos e universais. 82 Tal autonomia naturalmente concebida consegue se
impor socialmente quando estes indivíduos passam a exercitar/defender politicamente suas
liberdades originais, orientando esse exercício a formação de um consenso geral que permita a
manutenção tanto do próprio exercício de todos quando da autonomia individual original.
A força legitimadora desse exercício da autonomia, orientada à formação de um consenso,
é depositada num contrato social que sustenta a fundação de um Estado, representante da
totalidade dos indivíduos livres, que, por sua vez, produzirá um direito igualmente universal e
abstrato, espelho daquela autonomia natural anterior à sua própria existência. Nesse ponto,
Habermas também diverge de Rousseau, pois entende que o surgimento de um direito universal e
abstrato, espelho de uma ordem natural, não explica por si só a integração social promovida pelo
direito nem tampouco a gênese do fenômeno jurídico.
83
Habermas entende que existe uma relação interna entre autonomia pública e privada
construída no meio linguístico, a qual não pode ser explicada por nenhuma das teorias acima
mencionadas. O autor entende que os modos de utilização da linguagem possuem um conteúdo
normativo que permanece no modo de exercício da autonomia política. Tal conteúdo normativo
assegura uma formação discursiva da opinião e da vontade, na qual são utilizadas as forças
ilocucionárias da linguagem, ou seja, as forças linguísticas capazes de provocar entendimento
pela via racional. Essa formação discursiva da vontade é o que possibilita a existência de um
direito legítimo e indica, portanto, que o fenômeno jurídico se apoia, em última instância, num
arranjo comunicativo.
82
Ibidem Pág. 128
83
Ibidem Págs. 136-137
46
Além disso, a formação discursiva da vontade indica que não é possível formar um
consenso racional sem que autonomia pública e privada sejam exercitadas simultaneamente, pois
traduzem liberdades sem as quais não é possível tomar uma posição acerca da condição de
autoria e destinação do direito. O indivíduo, enquanto ser humano dotado de liberdade, e o
cidadão que é reconhecidamente parte de uma comunidade política ou esfera pública autônoma
são figuras que se confundem e que não se separam em Habermas e é exatamente por isso que,
em sua teoria, não se pode falar na formação coletiva de uma vontade sem que haja, de fato,
exercício de liberdade em todos os sentidos do termo. 84
Tal exercício pleno de liberdades ou autonomias pode ser explicitado pela via discursiva
ou pela análise da formação da opinião no meio linguístico. Diante de tal constatação, Habermas
formula o princípio do discurso que simboliza teoricamente um amálgama entre exercício da
autonomia pública e privada na formação discursiva da opinião e da vontade que fundamenta e
legitima, em ultima instância, o sistema de direitos. Nas palavras do autor, o princípio do discurso
simboliza, portanto, a co-originariedade entre autonomia pública e privada na utilização da
linguagem na esfera pública. 85 No exercício da autonomia politica, que se da através da via
discursiva, os sujeitos em condições iguais de fala, respeitando-se o principio da democracia,
atribuem-se mutuamente direitos e constroem racionalmente uma vontade comum, fato este que
explicaria como um todo a gênese do fenômeno jurídico.
O princípio do discurso, que constitui símbolo de um amálgama, institucionaliza-se
juridicamente através da consolidação da via democrática de normatização ou regulação das
ações em geral. A democracia institucionaliza-se com o fundamento no discurso, com o
equilíbrio entre autonomia pública e privada, expresso num determinado modo de exercício de
autonomia política, de formação da opinião e da vontade, garantido através de uma forma
jurídica.
84
Chegou-se neste estudo a conclusão de que, embora Habermas tenha se filiado mais a tradição
republicana que a liberal, ele radicaliza o sentido da formação de uma vontade geral presente na teoria
contratualista de Rousseau, ao exigir um exercício pleno de liberdades pela via discursiva e racional numa
esfera pública.
Ibidem Págs. 133-134
85
Ibidem Págs. 158
47
O direito institucionaliza a via democrática através da garantia de uma formação
discursiva da opinião e da vontade e é através dessa institucionalização que ele garante o seu
próprio processo de existência e legitimação. 86
Tal garantia de formação discursiva deve ser expressa por direitos fundamentais
atribuídos reciprocamente pelos cidadãos no intuito de regularem legitimamente sua convivência.
Os direitos fundamentais traduzem, portanto, tipos de normas de ação, atribuíveis o máximo
possível a todos participantes da esfera pública, que garantem um agir comunicativo para
formação de um consenso racional, essencial à sustentação de um sistema geral de direitos que
possa ser considerado legítimo.
No exercício dos direitos fundamentais, os cidadãos ou agentes comunicadores refletem
ou devem poder refletir como devem ser os direitos que institucionalizam princípios, valores e a
própria via democrática. Como esse processo de reflexão se da num nível discursivo, sugere-se
na teoria do direito de Habermas uma análise pragmática da formação discursiva da opinião e da
vontade e não uma análise semântica de um sistema estabelecido, pois esta ultima não expressa
de fato o real grau de sua legitimidade, ao extrair o sentido do direito da sua forma geral e
abstrata, ou seja, ao explicar a legitimidade do direito a partir da forma legal, diferentemente da
analise pragmática que busca o sentido do direito pela via dos modos de utilização do discurso ou
do exercício discursivo da autonomia politica orientado ao entendimento.
86
Neuenschwander Magalhaes, dentro de uma perspectiva luhmanniana, compreende que o princípio do
discurso representa um “substituto funcional” da noção de Moral, sendo seu papel fundante o mesmo da
Moral moderna que funcionou como uma Religião secularizada. Tal compreensão parece, entretanto,
partir do pressuposto de que o direito, enquanto subsistema recursivamente fechado, mantem-se a si
mesmo através de fundamentos como o princípio do discurso. Embora possua uma certa circularidade, o
princípio do discurso, se realmente compreendido como uso linguístico orientado ao entendimento, não
poderia expressar apenas um recurso de auto reprodução do subsistema jurídico, mas algo mais amplo,
relacionado ao mundo da vida onde se utiliza a linguagem no seu modo mais originário, uso linguístico
esse que está necessariamente implicado nos processos de legitimação do direito.
Neuenschwander Magalhaes, Juliana. Reconstruindo Direito e Democracia em Uma sociologia indignada:
diálogos com Luiz Wenerck Vianna / Rubem Barboza Filho, Fernando Perlatto. – Juiz de Fora. Ed.: UFJF,
2012. Págs 278-279
48
Capítulo 2: Extensão, comunicação, problemas e perspectivas de mudança do
modelo de ensino jurídico
Neste capítulo, iniciaremos a análise de diferentes experiências e concepções de extensão
no interior de um determinado modelo de ensino jurídico à luz da teoria do agir comunicativo e
teoria do direito de Habermas. Verificaremos também porque a extensão, antes mesmo de ser
compreendida no contexto do ensino jurídico, representou em determinado período histórico
tensões ocorridas no interior da universidade, provocadas principalmente por estudantes, para que
cumprisse funções sociais que estão para além da mera instrução para fins de atender exigências
do mercado ou da máquina burocrática do Estado. A ideia de uma aproximação mais orgânica
entre universidade e sociedade possuiu historicamente uma variação de sentidos, mas a sua
vertente não assistencialista se sustenta historicamente na construção de uma produção de
conhecimento baseada numa relação horizontalizada e comprometida com questões do mundo da
vida.
2.1 Extensão universitária e democratização da universidade: histórico do
processo de institucionalização de uma concepção não assistencialista de
extensão e sua relação com o modelo de ensino jurídico
Embora não tenha tratado especificamente do tema do desenvolvimento de atividades de
extensão universitária, ao refletir sobre o processo de democratização da universidade, numa
conferência ocorrida em Berlim em 1967, Habermas 87 enfrentou questões semelhantes as trazidas
pelo movimento estudantil no Brasil e na América Latina, conforme veremos mais adiante no
texto. Preocupava-se a época com o problema da sua autonomia frente ao mercado e procurou
explicar quais seriam suas principais funções sociais.
Para o autor, a universidade possui três responsabilidades básicas: a primeira consiste em
qualificar os estudantes com habilidades consideradas extrafuncionais, ou seja, habilidades que
87
The University in a democracy: democratization on the university In Toward to a rational society:
students and politics / Jurgen Habermas. Translated by Jeremy J. Shapiro. Boston: Bacon Press, 1970.
Págs. 2 e 3
49
não servem exclusivamente a uma função num determinado nicho profissional; segunda
responsabilidade é a de interpretar, desenvolver ou influenciar criticamente nas tradições
culturais, entendendo que a universidade, sobretudo as ciências sociais, historicamente
desempenha o papel de promover uma auto-reflexão da sociedade; a terceira seria relacionada a
formar uma consciência política entre estudantes, responsabilidade essa que foi negligenciada em
período anterior na Alemanha, o que fez a universidade se autocompreender como “apolítica” e
servir ideologicamente à manutenção de uma elite com um pensamento homogêneo.88
Ao colocar essas três responsabilidades como fundamentais da universidade, Habermas
questiona a sua autonomia na produção do conhecimento e se coloca contrariamente a uma
tendência da universidade naquele momento histórico de se voltar a produção de um
conhecimento técnica e economicamente explorável. Para que a universidade promovesse uma
autocrítica e revisse essa tendência seria necessário que as mais diversas ciências revissem não
apenas suas respectivas metodologias de aplicação do conhecimento, mas retomassem uma
avaliação crítica de seus pressupostos filosóficos e epistemológicos. 89 O autor coloca o exemplo
dos métodos pedagógicos das escolas primárias, voltados para os cursos de gramática dos
diversos idiomas, e sugere que os desenvolvedores desses métodos poderiam aperfeiçoá-los
retornando a pressupostos da filosofia da linguagem e confrontando diferentes perspectivas de
conceber a linguagem e o fenômeno da comunicação.
De fato, Habermas, ao analisar o papel que pode cumprir a universidade numa sociedade
democrática, sugere que a universidade pode criar possibilidades de abertura para discussão de
temas políticos, pois as discussões de temas dessa magnitude se pautam pelas mesmas regras de
racionalidade pelas quais a reflexão científica deve se pautar. Esse processo de abertura de
possibilidades de discussão de temas políticos que levam não apenas a uma auto-reflexão da
sociedade, mas da própria universidade, na medida em que as ciências, principalmente as sociais,
se voltam nesse processo também a uma rediscussão de seus pressupostos filosóficos, Habermas
chama de democratização da universidade.
88
89
Ibidem Págs 3-5
Essas conclusões de Habermas sugerem que, para que o ensino jurídico se transforme e aperfeiçoe, fazse necessário retomar uma avaliação crítica dos pressupostos filosóficos da ciência jurídica.
50
Embora esteja debatendo a universidade num contexto europeu, Habermas não está de
todo enfrentando questões distantes da universidade brasileira. No Brasil, a universidade
experimentou muito recentemente a possibilidade de produzir conhecimento com relativa
autonomia, em um contexto de democracia, mas vai se servir durante praticamente toda sua
história em parte do modelo francês de universidade, voltado à atividade do Ensino de
determinadas profissões e à preparação de quadros para compor a máquina burocrática do Estado.
Neste modelo, outras atividades acadêmicas como a pesquisa e a extensão, que possivelmente
levariam as ciências a uma atitude reflexiva, se desenvolvem fora dos muros da universidade.
Por outro lado, a universidade brasileira também se servirá do modelo norte-americano,
na medida em que passa a associar-se acriticamente a projetos estatais de desenvolvimento
econômico, principalmente no período da ditadura militar, investindo em determinados nichos de
pesquisa tecnicamente explorável e tendo a extensão a função de promover a formação
continuada de egressos ou difundir conhecimento técnico, mediante prestação de serviço.
A atividade extensionista das Escolas Superiores de Lavras e Viçosa é exemplo disso,
pois tinha como objetivo principal promover o desenvolvimento rural regional, com a difusão
técnico-científica aos agropecuaristas, servindo-se do modelo norte-americano de extensão
universitária e representando uma determinada concepção de universidade.90
Somente a partir da criação da União Nacional dos Estudantes - UNE, em 1937, os
estudantes e parcela significativa da sociedade civil começam a questionar de maneira mais
organizada e permanente no Brasil as funções e o papel que cumpria a universidade na
sociedade.91 Os estudantes levaram a universidade a uma rediscussão de atividades como as de
pesquisa e de extensão no cumprimento do que se compreendia como suas funções sociais. A
UNE, desde os seus primeiros congressos, em um contexto de oposição de estudantes ao nazi-
90
Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão universitária na América Latina.
In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora –
Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Pag 17
91
Poerner, Arthur Jose. O poder jovem: historia da participação politica dos estudantes brasileiros. 5ª.
Edição. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. Pág. 119-120
51
fascismo, demandava uma reforma da universidade relacionada à idéia de Universidade Popular 92
já contida no Manifesto de Córdoba de 1918.93 O movimento estudantil nascido da tradição de
Córdoba tinha basicamente dois objetivos: democratizar o governo universitário e alterar a
relação da universidade com a sociedade, tornando a universidade solidária aos destinos da
maioria.
Em uma palestra ministrada em 1967 em Nova Iorque sobre o movimento estudantil na
República Federal da Alemanha ou “Alemanha Ocidental”, Habermas94 ressalta o papel que
cumpriram protestos estudantis no sentido de impulsionar reformas na universidade mesmo em
sociedades industrializadas e economicamente avançadas do chamado Primeiro Mundo. Ele
concluiu estar diante de uma geração estudantil que, apesar de ter surgido num contexto de
relativa estabilidade econômica e livre da hegemonia do nazismo, ou seja, num contexto em que
deveria estar gozando dos supostos benefícios de seu desenvolvimento econômico e tecnológico,
demonstrava-se insatisfeita com instituições sociais como a universidade e com a filosofia de
vida em sociedade instaurada pelo avanço do capitalismo.
Essa geração estudantil não queria nem a universidade tradicional elitista, nem a
universidade de massa como mera escola de profissionais especialistas e muito menos uma
universidade que representasse uma combinação de ambos os modelos. Uma geração que
92
As Universidades Populares surgem na Inglaterra em meados do sec. XIX por conta de críticas feitas à
universidade pelo movimento operário. Na Espanha, na Universidade de Oviedo, uma organização de
orientação anarquista, criou alianças com setores populares, ofertando cursos livres, programas de
melhoramento da vida dos trabalhadores e programas de difusão cultural. A Universidade de Oviedo será
de importância fundamental para o movimento latino-americano em sua formulação, pois será ela, por
seus dirigentes e docentes, o núcleo de apoio e articulação politico-acadêmica da experiência na
Argentina, influenciando fortemente a construção do conceito de extensão do Movimento de Córdoba.
Para tal movimento, a extensão significava um instrumento para a criação de uma relação orgânica entre
universidade e a classe operária e para despertar nessa mesma classe a consciência de que possuíam
direitos.
Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão na America Latina In Construção
conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos de Faria (Org.). Brasília,
Universidade de Brasília, 2001. Págs 16-19
93
Ver
manifesto
produzido
pela
juventude
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/10/399447.shtml
94
argentina
em
1918
em
Student Protest in the Federal Republic of Germany In Toward to a rational society: students and
politics / Jurgen Habermas. Translated by Jeremy J. Shapiro. Boston: Bacon Press, 1970. Págs. 24 -26
52
colocava em questão o direito à livre expressão no espaço acadêmico, reivindicava direitos de
participação nas instâncias decisórias da universidade e questionava o modo de produção de
conhecimento, diante de uma universidade que não conseguia se organizar para promover
reformas e não funcionava eficientemente nem para propósitos acadêmicos relativos ao avanço
de pesquisas nem para objetivos de adequada formação profissional.
Isso quer dizer que os estudantes brasileiros deste mesmo período, embora estivessem
num contexto específico de repressão dos governos militares, estavam também imersos num
contexto geral de insatisfação entre os jovens com instituições sociais como a universidade. O
movimento estudantil brasileiro, nesse mesmo contexto, além de denunciar políticas de acordo
entre o governo militar e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
(acordos MEC-USAID), através de documentos editados pela União Nacional dos Estudantes,
propunha um amplo conjunto de medidas no sentido de democratizar o acesso das classes
populares à universidade e mais especificamente medidas que despertassem a conscientização de
direitos como a de criação de escritórios de assistência judiciária aos trabalhadores.95 Propunhase um conjunto de medidas que criassem uma relação mais orgânica da universidade com as
classes populares sem que isso significasse o estabelecimento de uma relação paternalística 96.
Assim, se desenvolvia, no interior das tensões sociais promovidas pelo movimento estudantil, a
construção de uma nova concepção de universidade associada a um projeto de democratização
que encontra numa concepção não assistencialista de extensão universitária um de seus pilares.
Tais tensões sociais reverberaram nas Faculdades de Direito, provocando, ainda que
somente nos anos de 1980 e principalmente a partir dos anos de 1990, um debate público sobre o
modelo de ensino jurídico, o que demandou de professores e especialistas um diagnóstico acerca
95
A proposta de um amplo conjunto de medidas de democratização da universidade pode ser encontrada
em documentos como a Declaração da Bahia de 1961. A Declaração da Bahia de 1961 tratava de dois
eixos básicos: da análise da realidade social brasileira e da universidade pública no Brasil. Propunha-se
como diretriz da luta pela reforma universitária e democratização do ensino, o compromisso com a classe
trabalhadora através da criação nas faculdades de cursos de alfabetização de adultos, cursos para lideres
sindicais nas Faculdades de Direito, entre outras medidas.
Rocha, Jose Claudio. A reinvenção solidaria e participativa da universidade: estudos sobre redes de
extensão universitária no Brasil – Salvador: EDUNEB, 2008. Pág. 150
96
Sousa, Ana Luiza Lima. A história da extensão universitária. Campinas, SP: Editora Alínea, 2000. Págs.
31-33
53
dos principais pontos de fragilidade deste modelo. Uma das fragilidades apontadas é a
descontextualização dos currículos e dos conteúdos reproduzidos, constatação esta que traduz
ainda certa inadequação da formação oferecida diante do novo contexto de democratização da
sociedade brasileira inaugurado pela Constituição de 1988, no qual se faz notar a centralidade e
amplitude dos direitos fundamentais. 97
Antes de passarmos à análise do modelo de ensino jurídico apresentada pela Comissão de
Ensino Jurídico da OAB e, portanto, ao problema da descontextualização dos currículos e
conteúdos, verificamos que a Extensão, por sua gênese histórica, é atividade que pode apontar
perspectivas de transformação desse mesmo modelo, por provocar no interior do mesmo e
principalmente na própria estrutura da universidade tensões que, em realidade, emergem de crises
sociais que impõem mudanças institucionais.
É preciso, no entanto, ressaltar que a extensão nem sempre esteve relacionada a projetos
de democratização da universidade, já que entre as variações de definições para o termo podemos
encontrar algumas associadas a uma concepção assistencialista. Tal concepção associa a extensão
à prestação de serviços à comunidade, sendo atividade através da qual ocorre a transmissão de
conhecimento tecnicamente explorável produzido no interior da universidade. De outro lado,
encontra-se a concepção não assistencialista que compreende a extensão como processo
educativo, cultural e científico, associado a um projeto de democratização da universidade
oriundo de tensões historicamente provocadas pelo movimento estudantil.
De acordo com esta segunda concepção, a produção do conhecimento deve estar
articulada a demandas sociais colocadas principalmente pelas classes populares nos debates
públicos, ou seja, a segunda concepção de extensão está de alguma maneira vinculada à
identificação de problemas no modo internalizado como a universidade vem procedendo suas
formulações ou produzindo conhecimento. Por isso, cabe aqui a classificação feita por Silva 98 que
coloca a concepção assistencialista de extensão como Funcionalista e a concepção não
97
Santos, André Luiz Lopes dos. Ensino Jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas:
Edicamp, 2002. Págs. 287 e 288
98
Silva, Maria das Graças Martins da. Extensão Universitária no sentido do Ensino e da Pesquisa In
Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora –
Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Págs 97-98
54
assistencialista como Processualista. Além delas, a autora identifica uma terceira concepção de
extensão que chama de Crítica. Esta última concepção compreende a extensão como uma
tendência do Ensino e da Pesquisa, sendo a própria essência dessas atividades quando
transformadas e comprometidas com as reais funções da universidade. As duas primeiras
concepções, predominantes em momentos históricos distintos da universidade, coexistem até os
dias atuais provocando contradições internas que refletem em grande medida uma gama de
tensões existentes na própria sociedade.
Conforme já vimos anteriormente, a concepção assistencialista de extensão está
relacionada a um modelo de universidade, cujo compromisso social é basicamente cumprido
através do ensino especializado e voltado para determinadas profissões como as da área de
Medicina, Engenharia e Direito. Pesquisa e Extensão constituem, segundo esse modelo, “funções
secundárias” da universidade, exercidas segundo interesses voluntários do seu corpo social. Esse
modelo, calcado principalmente no Ensino, sofre algumas transformações na medida em que a
integração Ensino-Pesquisa encontra condições favoráveis ao seu desenvolvimento no contexto
das chamadas Reformas Francisco Campos, promovidas pelo Decreto-lei 19.851/31, em que se
verifica a influência do modelo norte-americano.
A extensão, segundo estes modelos, é atividade reconhecida, apesar de não
necessariamente obrigatória. A extensão constituiria uma espécie de resposta a uma suposta
demanda da sociedade por cursos regulares de aperfeiçoamento e capacitação técnica, visando
atender necessidades de atualização profissional. Nogueira ressalta que a extensão como
formação continuada, oferecida através de cursos regulares, na prática, beneficiou a classe que já
tinha acesso ao ensino superior, mantendo excluídas as classes populares, pois funcionava como
meio de complementação da formação de alunos e egressos da universidade . 99
Somente após o golpe militar de 1964, a extensão vai ser incorporada como atividade da
universidade com a instituição do tripé ensino-pesquisa-extensão pela Lei 5.540 de 1968 ( Lei de
Reforma Universitária ). Dentro do tripé, a extensão é instituída com os objetivos de divulgação
de resultados da pesquisa e transmissão do conhecimento através do Ensino, aproximando-se da
99
Nogueira, Maria das Dores Pimentel. Extensão Universitária no Brasil: uma revisão conceitual In
Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos Faria, organizadora –
Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Págs 63-64
55
concepção assistencialista que mencionamos anteriormente. A extensão será, portanto, entendida
como projeção do Ensino e da Pesquisa no meio social e, embora as atividades extensionistas não
estivessem nesse período totalmente sobre o controle e coordenação da universidade,
verificaremos que é no regime militar que se intensifica a participação de estudantes em projetos
de escala nacional como o Projeto Rondon.
Em 1968, a Extensão passa, então, por intenso processo de institucionalização na
universidade. De fato, tal processo estabelecido pela Reforma Universitária não significou,
porém, o desenvolvimento de uma nova concepção de universidade. Significou, em vez disso,
uma apropriação do discurso estudantil pelo Governo e a incorporação no plano meramente
formal de suas revindicações, pois, na realidade, grande parte do corpo social da universidade vai
se tornar instrumento de concretização de políticas estatais traçadas pelas Forças Armadas via
projetos como o Rondon ou os Centros Rurais Universitários de Treinamento e Capacitação –
CRUTACs.100
Os programas de integração do estudante com a comunidade, criados pelos militares em
parceria com alguns docentes, como o Projeto Rondon e a operação Mauá, eram programas nos
quais os estudantes podiam desenvolver atividades profissionais. Além do caráter assistencialista,
havia um controle político e ideológico. Na ótica dos representantes do governo militar que
passaram a comandar a política educacional, vista como assunto de segurança nacional, os
objetivos do Projeto Rondon poderiam solucionar vários problemas: ajudariam a disciplinar os
estudantes que a época vinham se organizando em oposição as políticas governamentais;
realizariam uma política "integração nacional” em territórios como a Região Norte e CentroOeste e serviriam a projetos desenvolvimentistas traçados para o país.
De fato, a concepção de extensão de caráter não assistencialista presente nas
reivindicações do movimento estudantil sofrerá um processo de institucionalização somente com
a democratização da sociedade brasileira e, mais especificamente, a partir da criação do Fórum
Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas em 1987 101. Com a criação do
100
Rocha, Roberto Mauro Gurgel. A Construção do conceito de extensão na América Latina In
Construção conceitual da extensão universitária na América Latina / Dóris Santos de Faria (Org.).
Brasília, Universidade de Brasília, 2001. Pág. 21-22
56
Fórum, as instituições de ensino passam efetivamente a discutir uma política nacional de
extensão com relativa autonomia de políticas governamentais. Esse segundo processo de
institucionalização não significou uma apropriação do discurso estudantil pela máquina do
Estado, mas o início de um processo de democratização da universidade a partir de pressões
estudantis. Antes de nos profundarmos sobre esse segundo processo de institucionalização de
uma nova concepção, é importante observar que mesmo antes da ditadura militar, estudantes de
direito já reforçavam a idéia de uma nova concepção através da criação de núcleos estudantis de
assessoria jurídica.
2.2 Origem histórica de uma concepção não assistencialista de extensão nas
faculdades de direito
Segundo Luz102, a assessoria jurídica universitária desenvolvida por estudantes de Direito,
organizados pelo conjunto da militância política, se intensificou nos anos de 1990, mas possui
uma origem histórica nos movimentos estudantis de assessoria surgidos entre 1950 e 1964. A
assessoria jurídica estudantil iniciou-se com a preocupação de discentes dos cursos de Direito
com a questão do acesso a justiça às classes populares, o que deu origem a criação do Serviço de
Assistência Jurídica Gratuita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU-RS), na
época vinculado ao Centro Acadêmico André da Rocha, e do Serviço de Assistência Judiciária da
Universidade Federal da Bahia (SAJU-BA), fundado nos anos de 1960 103.
101
Cria-se o Fórum Nacional de Pró-reitores de Extensão das Universidades Publicas - FORPROEXT em
função de necessidades acadêmicas e institucionais. No nível externo às universidades, somente as
atividades de Ensino, de graduação e pós-graduação, e Pesquisa contavam com políticas específicas e
interlocutores no Ministério da Educação e de Ciência e Tecnologia. Nas universidades, a ação
extensionista carecia de orientações comuns e diretrizes políticas de atuação e institucionalização.
Nogueira, Maria das Dores Pimentel In Construção conceitual da extensão universitária na América
Latina / Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Págs. 68-69
102
103
Luz, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurídica popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
Os SAJUs modificaram suas nomenclaturas a partir dos anos de 1980 para Serviço de Assessoria
Jurídica, entendendo suas equipes que esta nomenclatura era mais abrangente, pois traduzia uma atuação
dos estudantes ampliada para demandas coletivas, para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores
e para o fortalecimento da organização política das camadas populares. (www.ufrgs.br/saju)
57
A discussão acerca da relação entre o modelo de ensino jurídico e as demandas populares
surge, portanto, a margem da estrutura acadêmica e curricular, vinculando-se a organizações
estudantis políticas de base como os centros acadêmicos. Constrói-se através dessas organizações
estudantis no interior dos cursos de Direito uma concepção de extensão que se aproximava
também daquela proposta pelo movimento estudantil nacional e que vai ser posteriormente
reprimida pela ditadura militar 104, pois os SAJUs vão praticamente interromper suas atividades
até meados dos anos de 1970, quando recomeçam novas discussões sobre a questão da relação
entre ensino jurídico e sociedade.
Entre os anos de 1980 e 1990 os SAJUs, especialmente os da UFRGS e da UFBA, vão
intensificar sua atuação junto ao movimento social e as camadas populares, estimulando uma
rede de assessorias que posteriormente ensejaria a criação da Rede Nacional de Assessorias
Jurídicas Universitárias – RENAJU em 1996. Embora essas assessorias estudantis tenham sido
criadas à margem da estrutura curricular, muitas delas, mesmo depois do fim da ditadura e no
contexto de institucionalização de uma nova concepção de extensão nas universidades públicas,
continuaram a atuar de forma autônoma em relação às atividades de Ensino e Pesquisa
desenvolvidas no interior dos cursos de Direito. Essa posição das assessorias em relação à
estrutura acadêmica e ao modelo de ensino jurídico revela, de um lado a continuidade de uma
posição de resistência por parte dos estudantes de manterem sua autonomia politicoorganizacional em relação ao corpo docente e, de outro lado, um modelo de ensino que parece
funcionar segundo uma racionalidade hegemônica diversa daquela que nos parece permear as
atividades dos SAJUs.
104
Dados históricos publicados no site do SAJU-UFRGS demonstram que em 1971 os serviços de
assistência promovidos pelos alunos foram drasticamente reduzidos, em razão da criação pela Direção da
Faculdade de um órgão, cujo objetivo era realizar a preparação técnica dos estudantes do curso de Direito,
denominado Serviço e Preparação Profissional. Com a criação deste órgão, foram definitivamente
encerrados os serviços gratuitos e o contato com a população, de modo que uma das justificadas
empregadas era a de que o Estado Brasileiro já havia intensificado o acesso à justiça através de órgãos
próprios da Consultoria Geral.
58
Muitas das assessorias universitárias estudantis ainda são criadas atualmente de maneira
voluntarista pelos estudantes105 e não contam com uma participação docente estruturada através
da Pesquisa, o que possibilitaria uma abertura do modelo de ensino e um retorno a pressupostos
filosóficos de determinadas concepções de ciência jurídica. Além disso, as assessorias estudantis
por se desenvolverem a margem dos currículos podem não estar atentas à realização das novas
diretrizes curriculares estabelecidas em 2004 pela Resolução n. 9 do Conselho Nacional de
Educação, dentre elas a de justamente fomentar uma sólida formação humanística que provoque
uma postura reflexiva e crítica nos estudantes bem como uma capacidade dinâmica de
aprendizagem, indispensável ao desenvolvimento da cidadania e aprofundamento de conquistas
democráticas.
Tal fato demanda uma análise ainda mais precisa acerca das fragilidades do modelo de
ensino jurídico e do problema de sua descontextualização106, pois há evidente demanda estudantil
por uma formação acadêmica e profissional que se comprometa efetivamente com as novas
diretrizes curriculares e o processo de democratização social e universitário iniciado. Mesmo
aquelas assessorias que passaram muito recentemente por uma institucionalização na
universidade, como é o caso do SAJU-UFGRS, incorporado como atividade acadêmica em 1997
via Pró-Reitoria de Extensão, ou NAJUP-PUC/RS, que passou a contar com apoio institucional
em 2005
107
, encontram dificuldades de inserção nos cursos de Direito, possuindo problemas de
organização e administração de suas atividades.
105
A Renaju, atualmente, conta com a participação de grupos estudantis que atuam em grande medida de
forma voluntária e espontânea, como o Najupak-PA, Isa Cunha-PA, NEP “Flor de Mandacaru”-PB, Najup
“Direito nas Ruas”-PE, Negro Cosme-MA, Cajuína-PI, Mandacaru-PI, Najuc-CE, Caju-CE, Paje-CE,
Najup “Produzir Direitos”-RJ, Saju-SP, Najup-GO, Sajup-PR, Nepe-SC, Saju-RS, Najup-RS, Najupi-RS,
Nijuc-RS.
Ribas, Luiz Otavio. Assessoria jurídica popular universitária In Revista Captura Criptica: direito, política
e atualidade. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, v. 1, n. 1, jul./dez, 2008.
Porto, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação – construção do projeto didático
no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. Págs. 40-41
106
107
Assessoria Jurídica popular: leituras fundamentais e novos debates / Paulo Abrão Pires Junior, Marcelo
Dalmas Torelly (organizadores); Allan Hahnemann Ferreira et all – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
59
No contexto geral da universidade, o Fórum de Pró-reitores de Extensão das
Universidades Publicas - FORPROEXT, além de procurar incorporar ideias e reivindicações do
conjunto do movimento estudantil, se preocupou em conceituar a Extensão a fim de procurar
consolidar uma nova concepção que reorientasse políticas de institucionalização no interior das
instituições de ensino superior. A Extensão passa então a ser compreendida como processo
educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e
viabiliza uma relação transformadora e não paternalística entre universidade e sociedade. Além
disso, passa ser entendida como instrumento viabilizador da função social da universidade e
estratégia para se estabelecer práticas acadêmicas interdisciplinares, integrando na sua ação
articuladora diferentes áreas do conhecimento 108.
As discussões pareciam caminhar no sentido da institucionalização de uma nova
concepção de extensão das universidades quando, em 1994, a Extensão como prestação de
serviço, ou seja, a concepção assistencialista de extensão volta ao centro dos debates nacionais.
Sousa 109 afirma que, no Fórum de Vitória – ES, além de ganhar nova centralidade, a prestação de
serviços passa a ser vista como instrumento para captação de recursos financeiros pela
universidade. Com que parcela da sociedade estaria, afinal, comprometida a universidade? Que
segmentos sociais poderiam pagar pelos seus serviços?
Tais indagações demonstram, em realidade, um retorno às discussões iniciais promovidas
pelo próprio Fórum no contexto de sua criação, pois, em vez de se discutirem avanços e políticas
no sentido de aprofundar o processo de institucionalização de uma nova concepção de Extensão e
de universidade, voltava-se a questionar compromissos e funções que a universidade deveria
assumir junto à sociedade, tendendo o Fórum a apresentar como solução uma concepção que
Em uma postura crítica, Demo afirma que, em realidade, a extensão se tornou a “má consciência” da
universidade na medida em que sua existência apenas se justifica porque Ensino e Pesquisa não cumprem
suas reais funções sociais.
108
Demo, Pedro. Lugar da Extensão In Construção conceitual da extensão universitária na América Latina /
Dóris Santos Faria, organizadora – Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
109
Sousa, Ana Luiza Lima. A história da extensão universitária. Campinas, SP: Editora Alínea, 2000.
Págs. 105-106
60
possui suas raízes históricas em um contexto superado pelo processo de democratização
brasileiro.
A extensão vive atualmente três dilemas no contexto geral da universidade: o primeiro diz
respeito ao enfrentamento da extensão “caça-níquel” que se caracteriza por promover cursos
variados, seja de aperfeiçoamento profissional ou formação continuada, cujo objetivo seria
arrecadar fundos para centros de pesquisa ou unidades universitárias com a cobrança de taxas e
mensalidades; o segundo dilema diz respeito ao enfrentamento de uma espécie de ideologia que
se caracteriza pelo culto ao “purismo do saber”, que se agrava nas ciências sociais aplicadas
como o direito, e que redunda no seu não engajamento com questões sociais e na sua
despolitização; o terceiro esta relacionado a um equivoco na auto-compreensão de muitos que se
propõe a criar atividades de extensão em não se enxergarem como produtores de ciência ou saber
cientifico, o que leva a comunidade acadêmica a entender a extensão como uma espécie de “mero
favor” que a universidade faz de “transmitir” o seu saber a sociedade.
O modelo de ensino jurídico reflete em alguma medida esse contexto mais geral da
universidade, tendo a Extensão nesse modelo uma tendência a assumir um caráter assistencialista
ou a ter dificuldades de se articular a outras atividades acadêmicas. Apesar dos esforços
promovidos por docentes e especialistas da Comissão de Ensino Jurídico da OAB no sentido de
promover um diagnóstico das fragilidades presentes nesse modelo e assim propor novos
parâmetros que culminaram em novas diretrizes editadas pelo MEC, a Extensão como prestação
de serviços à comunidade, de caráter evidentemente paternalista, parece permanecer em práticas
desenvolvidas no interior dos Escritórios Modelos, Núcleos de Prática Jurídica e até mesmo de
SAJUs institucionalizados, refletindo as características de um modelo avesso a uma auto-reflexão
de seus pressupostos e a investigação de perspectivas de atuação condizentes com uma nova
agenda de direitos e um novo contexto social.
61
2.3 A Extensão no Direito à luz da proposta de Paulo Freire de substituição do
conceito de Extensão pelo de Comunicação e da Teoria de Habermas
Como dissemos no Capitulo anterior, embora Freire tome a atividade do agrônomo como
exemplo para suas formulações, estas podem servir de referência também para educadores em
geral, podendo também ser problematizado o desenvolvimento de atividades de mesma natureza
no âmbito do ensino jurídico. Interessa-nos neste momento verificar a relação de
complementariedade entre as formulações de Freire e Habermas e de que maneira esses dois
autores contribuem para repensarmos criticamente a relação de assistência jurídica estabelecida
entre profissionais/estudantes do direito e trabalhadores urbanos ou camponeses nas instituições
de ensino.
Ressalte-se que a Portaria 1.886/94 do Ministério da Educação instituiu como obrigatório
o estágio supervisionado nas faculdades de direito, podendo este ser cumprido nas dependências
dos Núcleos de Prática Jurídica – NPJs das instituições de ensino, atividade esta que, por um
lado, tem os objetivos de preparar estudantes para a prática jurídica e exercício profissional e, de
outro lado, promover o acesso a direitos e à justiça a trabalhadores urbanos e camponeses. 110 A
partir dessa diretriz educacional, instituída não apenas por força da portaria, mas principalmente
do acúmulo de debates entre professores, estudantes e especialistas acerca de deficiências
presentes no modelo de ensino jurídico, as faculdades de direito podem também desenvolver, no
Pesquisas recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA em parceria com a Associação
Nacional dos Defensores Públicos revelaram que os estados de Góias, Paraná e Santa Catarina não
possuem ainda uma Defensoria Pública atuante. Além disso, constatou-se que somente 28% das comarcas
espalhadas por todo país contam com a atuação de defensores públicos, fato este que indica que
trabalhadores e camponeses não dispõem ainda de todos os canais institucionais necessários ao diálogo ou
reivindicação de direitos junto ao Poder Público. Embora as faculdades de direito possuam um papel
diferenciado dos órgãos estatais e não possam elas substituí-los em suas tarefas institucionais, há evidente
demanda de pesquisa detalhada acerca dos problemas decorrentes da ausência de canais institucionais de
acesso ao poder público e à justiça. Além disso, abre-se a possibilidade de investigação acerca do papel
que as próprias faculdades de direito e, mais especificamente os NPJs e programas de extensão, cumprem
no atual contexto de demanda de acesso à justiça.
110
MOURA, Tatiana Whately de. e outros. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. 1ª Edição. Brasília,
Distrito Federal: edição dos autores, 2013.
62
interior de seus NPJs, programas e projetos de pesquisa-extensão que ampliem as possibilidades
de atendimento desses e outros objetivos educacionais 111.
O fato do atendimento de trabalhadores e camponeses para oitiva de demandas jurídicas
ter se tornado atividade constitutiva da estrutura curricular, nos impõe ainda mais uma reflexão
acerca das diferentes concepções de atendimento jurídico que se desenvolveram no interior das
faculdades de direito, passando estas a conviver tanto com uma concepção assistencialista quanto
com uma concepção não assistencialista desta mesma atividade. Além disso, as faculdades de
direito passaram também a supervisionar estágios cumpridos no interior da máquina do Estado e
instituições privadas, que funcionam segundo uma racionalidade que lhe é própria, atribuindo a
estas outras instituições uma co-responsabilidade pedagógica.
Algumas instituições, preocupadas com os estágios supervisionados e com o modelo de
ensino jurídico, mesmo antes da edição da Portaria 1.886/94, como no caso do Programa Pólos de
Cidadania (UFMG), da Escola do Direito Achado na Rua (Unb) e SAJUs, passaram a diferenciar
suas atividades das tradicionalmente oferecidas nas faculdades de direito e daquelas assistenciais
cumpridas nas dependências das faculdades, em escritórios privados ou instituições públicas,
como o Ministério Público e cartórios das varas dos tribunais. Para tanto, desenvolveram
experiências de aprendizagem que estimulassem uma relação dialógica com trabalhadores e
camponeses e uma produção de conhecimento que se constitui da articulação entre esse diálogo e
atividades permanentes de pesquisa. 112
Os exemplos acima mencionados revelam a existência nas faculdades de direito de uma
concepção não assistencialista de extensão ou atendimento jurídico que se propõe a criar uma
relação entre juristas e trabalhadores muito semelhante àquela proposta por Freire no sentido de
111
A Resolução nº 9 de 2004, além de manter a obrigatoriedade do estágio supervisionado, atualiza a
Portaria 1.886/94, ao apontar mais explicitamente, no Art. 2º parágrafo 1º, para a necessidade de uma
articulação mais orgânica entre extensão e pesquisa no interior da estrutura curricular e iniciação
científica.
112
Gustin, Miracy B. de Sousa. (Re)pensando a inserção da universidade na sociedade brasileira atual In
Educando para direitos humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade / Jose Geraldo de
Sousa Jr. [et al.] (organizadores) – Porto Alegre: Síntese, 2004. Pág. 62
63
estabelecer uma comunicação. Em outras palavras, no sentido de se agir em determinados
contextos segundo uma racionalidade orientada ao entendimento, racionalidade esta inerente a
processos autênticos de aprendizagem em que se constatam a falibilidade de nossos juízos através
de uma postura reflexiva dos sujeitos e graças à estrutura proposicional presente na linguagem
que impõe aos sujeitos um esforço de justificação até que se atinja um consenso acerca do sentido
atribuído à realidade.
Apesar das diretrizes e debates educacionais apontarem no sentido de se estimular nos
estudantes de direito habilidades que estão para além das estritamente técnico-profissionais, esta
proposta de estabelecimento de uma relação de ensino regida por uma racionalidade
comunicativa encontra no direito certa resistência.113 Uma demonstração disso é a transcrição do
relato de Menelick de Carvalho Netto sobre a criação do Programa Pólos de Cidadania que
aponta que, mesmo no contexto de discussões sobre a reforma do ensino jurídico no âmbito da
OAB, a ideia do Polos não encontrou aceitação no corpo docente da Faculdade de Direito da
UFMG.114 Outra demonstração disso é a caracterização dos núcleos de prática jurídica e
assessorias populares como “espaços alternativos” de construção de uma concepção crítica do
direito, como se partisse-se do pressuposto de que há um modelo de ensino estruturado que segue
uma racionalidade, no qual experiências baseadas em outra racionalidade estão como que há
margem desse modelo. 115
Além disso, há uma tendência entre estudantes e juristas em receber as demandas dos
trabalhadores e traduzirem estas, como que numa operação matemática, para uma linguagem
codificada, que possui uma espécie de “vida própria” relativamente independente dos sujeitos que
113
Não foram encontrados neste trabalho dados sobre a quantidade de professores que se dedicam a
atividades em núcleos de prática ou projetos de extensão nas universidades públicas em geral. Mas há
indícios, pela observação das reduzidas equipes constituídas (em média três ou quatro professores) nas
Faculdades de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade de Brasília e na
Universidade de Minas Gerais, que revelam que é baixo o número de profissionais com efetiva
experiência pedagógica em atividades de extensão que adotem uma metodologia de ensino diferenciada.
Rubião, André. “A universidade participativa” – Uma análise a partir do Programa Pólos de Cidadania.
Tese de Doutorado. Orientação: Yves Santomer (Paris 8) e Leonardo Avritzer (UFMG). Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais; Paris: Université Paris 8 Vincennes – Saint Denis, 2010.
114
115
Sousa Junior, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Ed., 2011. Pág. 90
64
a utilizam. O fim desta tradução é ou de apenas dizer o que está e o que não está conforme ao
direito ou de movimentar eficientemente a máquina do Estado. Além disso, há uma tendência em
considerar as demandas jurídicas como termômetro da eficiência dessa tradução em relação aos
êxitos atingidos e não como partes integrantes de um processo de aprendizagem.
Apesar de todas as discussões críticas empreendidas pela Comissão de Ensino Jurídico da
OAB, da Associação Brasileira de Ensino do Direito e as mais recentes atualizações das diretrizes
educacionais feitas pelo Conselho Nacional de Educação, atribuímos a existência dessa tendência
a um modelo de ensino jurídico ainda estruturado a partir da noção de que sua função social
primária é a do ensino técnico-profissionalizante, como se Pesquisa e a Extensão fossem funções
secundárias na formação profissional. Além disso, esse modelo estrutura-se a partir de uma
concepção de direito centrada na idéia de sistema, concepção esta que leva a um conhecimento
parcial do fenômeno jurídico e centrado na figura do jurista e numa interpretação tipicamente
juridicista da realidade.
A tradução para a linguagem sistêmica específica evidentemente é uma atividade que não
se pode subtrair do contexto de formação de estudantes e profissionais do direito. O problema
está em resumir a atividade dos NPJs e projetos de extensão à tradução em linguagem
codificada/técnica das demandas jurídicas e transmitir aos trabalhadores os resultados e êxitos
obtidos no sistema do mercado ou do Estado com esta operação. Isto significaria transportar para
os NPJs, que fazem parte da estrutura curricular das instituições de ensino, uma racionalidade
teleológica proveniente do mundo sistêmico e que não é aquela própria dos processos de
aprendizagem ou mesmo de reflexão científica.
Ocorre que mesmo as ações regidas por uma racionalidade teleológica ou instrumental,
para serem justamente consideradas racionais, devem estar acompanhadas de uma base de
fundamentação bem estruturada. Diante de um modelo de ensino jurídico que oscila entre o
raciocínio do direito segundo esta racionalidade e o raciocínio do direito segundo um senso
comum teórico116, isto e, segundo um “suposto saber” carente de cientificidade, questiona-se
116
Warat, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, V. II, A epistemologia da modernidade. Porto
Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. Pág. 284.
65
ainda se de fato o tratamento de demandas jurídicas que vem sendo implementado nos NPJs e em
outras instituições pode, de fato, atingir o grau de eficiência almejado por eles mesmos.
Por outro lado, a atividade de atendimento jurídico no âmbito das faculdades de direito,
quando compreendida segundo uma racionalidade comunicativa, tende a considerar que o
objetivo principal da atividade é chegar a um entendimento acerca do fenômeno jurídico,
relacionando-o não apenas ao sistema, mas também à sua inserção no mundo da vida. O objetivo
da relação estabelecida no atendimento não seria outro senão desenvolver um processo de
aprendizagem e isto implica que juristas e estudantes de direito assumam uma postura reflexiva,
colocando à prova juízos, valores bem como pressupostos e conceitos jurídicos numa relação
intersubjetiva de comunicação. A postura reflexiva, ao colocar à prova pressupostos jurídicos,
possibilita ainda um certo retorno crítico aos pressupostos filosóficos da ciência jurídica.
Tal relação comunicativa implica em necessariamente considerar as problematizações do
outro (não-jurista) que, ao tematizar livremente o direito numa linguagem não codificada, impõe
tanto um exercício de justificação por parte dos juristas ao emitirem suas pretensões de validade
quanto um esforço de tradução inverso daquele normalmente sugerido, o que exige, por sua vez,
uma atitude performativa e de imersão no mundo da vida, a fim de que se compreenda ou se
preservem os sentidos nele produzidos e partilhados. Esse esforço de tradução do conhecimento
jurídico para a linguagem presente no mundo da vida implica, consequentemente, na utilização da
linguagem no seu modo mais originário, mobilizando as suas forças ilocucionárias capazes de
promover entendimento e consenso na ação.
A atitude performativa exige do jurista e do estudante do direito certa imersão no
contexto de uma cultura e sociedade em que se tematizam e ao mesmo tempo se consolidam
valores via acordos racionalmente motivados e se acumulam experiências que não podem ser por
ele desprezados, sob pena de incompreensão do que venha a ser de fato o fenômeno jurídico.
Assim, quando um grupo de juristas ou estudantes de direito passa a assessorar uma entidade
representativa da sociedade civil como as associações de moradores de favelas, por exemplo,
deve considerar todo um histórico de formação política, cultural, organizacional e de
compreensão de seu próprio contexto formado pelos moradores, ou seja, deve considerar um
66
pano de fundo, sem o qual terá dificuldades de se inserir numa relação autêntica de
aprendizagem, de comunicação e compreensão do direito.
Além disso, a atitude performativa possibilita uma politização dos conteúdos jurídicos em
questão, já que, com ela, compreende-se a relação do direito não apenas com o sistema, mas com
o mundo da vida. Com ela, abre-se a possibilidade do jurista e do estudante resgatarem
discursivamente as razões que motivaram a validade de um direito considerado legítimo bem
como problematizarem discursivamente, por via do estímulo ao exercício de direitos subjetivos
de participação política, a tensão entre a coercibilidade e garantia de liberdades permanente no
fenômeno jurídico. Abre-se a possibilidade ainda de questionamento real, pela via discursiva, da
facticidade de direitos positivos.
Nas ações comunicativas desenvolvidas pelos estudantes através de determinados
programas de pesquisa-extensão, apesar das dificuldades, coloca-se a possibilidade de o direito
ser entendido de maneira articulada com a idéia de legitimação, estimulando uma relação com os
trabalhadores em que se preserva e aprofunda uma cultura democrática na qual procura-se que
autonomia pública e privada sejam exercitadas simultaneamente por todos os sujeitos envolvidos
e não se compreende o fenômeno jurídico senão através da forma democrática.
2.4 Diagnóstico e problemas do modelo de ensino jurídico
É recorrente entre os principais autores que se dedicam à investigação das características
do modelo de ensino jurídico uma preocupação com a sua contextualização que designa desde
uma atenção a problemas e demandas jurídicas presentes nos contextos em que se inserem os
educandos até o adequado tratamento acadêmico de temas inaugurados pela constituição de 1988
como o do direito ao acesso à justiça. Considera-se a descontextualização um problema que
envolve ainda o reconhecimento do caráter pedagógico de que deve se revestir a atuação dos
profissionais em direito num contexto em que se demanda a efetivação e acesso a direitos
fundamentais numa sociedade ainda marcada por desigualdades sociais. 117
117
Santos sugere que num país em que a grande maioria dos trabalhadores tem pouco ou nenhum acesso
ao conhecimento de direitos e procedimentos institucionais de reivindicação de direitos, a atividade dos
67
Em outras palavras, é recorrente entre os autores considerados referência no tema, a
problematização da relação entre ensino jurídico e mundo da vida, contexto próprio das ações
comunicativas que congrega cultura, subjetividades e as relações sociais, o que envolve não
apenas a discussão de metodologias e concepções de ensino, mas também de concepções de
direito a partir das quais se estrutura esse mesmo ensino.
Santos começa por destacar que há nos currículos de direito um ranço privatista que se
caracteriza pela ênfase no estudo do direito privado, em detrimento de um enfoque educacional
que permitisse um aprofundamento no conhecimento do direito público, o que revelaria uma
aguda falta de sintonia entre o ensino jurídico e os propósitos democratizantes, inclusive os
direcionados às instituições ensino, do texto constitucional vigente. O autor coloca como centro
dos debates educacionais mais atuais a busca por uma formação profissional renovada no direito,
capaz de tornar o estudante apto, mais do que de lidar de forma tecnicamente eficiente com o
instrumental técnico e jurídico, mas de fazer do direito um elemento de democratização da
sociedade brasileira, enfrentando para isso princípios e valores democráticos em vias de
consolidação.118
Além disso, coloca que o problema da descontextualização faz transparecer que o
problema do ensino jurídico não é conjuntural, mas representa uma forma de perceber o Direito
que esbarra em uma cultura jurídica arraigada nas instituições de ensino. Uma forma de perceber
o direito que filtra o fenômeno jurídico e o reduz a um conjunto de operações e linguagens
específicas para o exercício imediato de funções dentro do Estado e do mercado.
Outro problema que se soma ao da descontextualização diz respeito à fragmentação do
saber jurídico que, segundo o mencionado autor, tem por base uma racionalidade cartesiana que
juristas e estudantes de direito deve se revestir de um caráter pedagógico, o que coloca suas atividades no
sentido da ampliação das possibilidades de consolidação do Estado Democrático de Direito. Neste sentido,
contextualizar o ensino jurídico significa aproximar saber jurídico da sociedade como forma de perceber o
fenômeno jurídico em diferentes níveis de organização política e social.
Santos, André Luiz Lopes dos. Ensino Jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas:
Edicamp, 2002. Pag. 30
118
Ibidem Pág. 30-31
68
propunha a decomposição da realidade ou do objeto de investigação em partes fundamentais para
melhor conhecê-lo segundo uma ordem lógica. Seguindo essa mesma racionalidade objetivista, o
ensino jurídico acabou por desenvolver seus conteúdos de forma fragmentada, o que levou o
conhecimento a crescentes especializações e a uma perda de visão global do fenômeno jurídico
indispensável aos profissionais do Direito. Contextualizar o ensino jurídico significaria então
provocar o questionamento da radical separação entre direito e política, ou direito e sociedade,
que tem como pano de fundo a concepção positivista de ciência jurídica, cujos subprodutos são
institutos jurídicos desconexos de suas respectivas origens históricas, filosóficas e sociais. 119
Um dos caminhos apontados por Santos para um emprego crítico da linguagem e
conhecimentos técnicos bem como para a contextualização da produção de conhecimento e
conteúdos curriculares nos cursos jurídicos, passa, em alguma medida, pela ideia de
democratização da interpretação constitucional, baseada na constatação de que a sociedade como
um todo deve conhecer, compreender e interpretar orientações constitucionais, de modo a extrair
delas as condições de efetivo alargamento da noção de direito e (vivência) de cidadania. 120
Além de Santos, através do diagnóstico feito pela comissão de ensino jurídico da OAB,
Porto121 também verificou que a crise do ensino jurídico se situa num contexto mais amplo de
questionamento de instituições sociais e formas de organização da sociedade. Tal crise também
não é para ela conjuntural, mas resultado de sucessivas crises, tendo o ensino jurídico assumido
um caráter ensimesmado, fechando-se num delírio egocêntrico. A partir desta percepção, aponta
como primeira característica desse modelo de ensino a descontextualização122 que seria resultado
119
Santos ressalta que na ditadura militar o propósito do acobertamento da dimensão política das mais
diversas práticas jurídicas e culturais nas faculdades de direito contribui em alguma medida para a sua
manutenção. Segundo ele, esse acorbertamento da dimensão política era traduzido num fetiche legalista,
disfarçando-se com isso valores conservadores e o seu teor autoritário.
120
Ibidem Pag. 27
Porto, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação – construção do projeto didático
no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000. Págs. 40-41
121
122
Outras características acompanham esta primeira como: o dogmatismo que significa a organização do
conhecimento segundo esquemas, regras lógicas e um raciocínio baseado em operações interiorizadas; e a
unidisciplinaridade que significa o isolamento da ciência jurídica de outras ciências ou uma produção
fragmentada de saber.
69
do ocultamento de contextos jurídicos variados, desprezando-se saberes de outros contextos
sociais construídos a partir das especificidades de suas práticas sociais. Isto se reflete na
pedagogia implementada, baseada na idéia de instrução ou transmissão de conhecimento, cuja
principal característica é não revelar os seus pressupostos ou os pressupostos filosóficos dos quais
se parte para produzir um determinado conhecimento. Além disso, a idéia de transmissão parece
colocar os sujeitos, professores e estudantes, juristas e não-juristas, numa posição de assimetria.
Para chegar a estas conclusões, Porto parte da idéia de pluralismo jurídico que se edifica a partir
da compreensão de que o fenômeno jurídico é um fenômeno complexo e, portanto, está contido
em contexto diferenciados com especificidades, juridicidades e práticas próprias.
Verificaremos que, em realidade, o fenômeno jurídico pode ser compreendido através de
uma determinada concepção de linguagem, o que aponta que ele, na verdade, funcionaria como
médium de diferentes estruturas e instituições sociais, ou seja, o direito é capaz de promover a
interlocução social, por se apoiar, em última instância, num arranjo comunicativo. Quando este
arranjo comunicativo é atingido ou mesmo se rompe, seja pela crescente tecnicização do mundo
da vida, seja por outros fatores históricos e sociais, o direito passa a funcionar precipuamente
como linguagem-instrumento de movimentação da máquina estatal, do sistema do poder e do
mercado.
Voltaremos ainda neste tópico, mas, por ora, nos concentraremos na noção de que este
modelo de ensino jurídico tem se apoiado em automatismos, operações e esquemas inconscientes
de percepção que enclausuram o aprendizado numa atividade de reprodução de valores,
estereótipos e de um poder simbólico (ou imperceptível), baseado na ignorância do que há de
arbitrário em seu funcionamento. O processo de aprendizagem aconteceria segundo um acúmulo
de informações, ou, nas palavras de Freire, apoiado numa “educação bancária”.
Segundo Aguiar 123, uma educação que não trate de desenvolver uma gama de habilidades
certamente será receituário ideológico de noções paralisantes que não tocam nem a interioridade
123
Aguiar, Roberto A. R de. Habilidades: ensino jurídico e contemporaneidade. Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: DP&A, 2004.
70
dos educandos, nem sua interferência no mundo ou nas relações sociais.124 Para Aguiar, em
sociedades mercantilizadas, a subjetividade dos indivíduos foi aos poucos sendo tolhida,
passando estes a serem definidos tão-somente por habilidades superficiais ou perfis
estereotipados, ou seja, perfis adequados à realização dos padrões e objetivos de uma sociedade
de massas, de consumo, de trabalho e exploração.
Desenvolver habilidades que servem não apenas ao atendimento de objetivos da
sociedade de massas ou a lógica instrumental por ela imposta significa criar condições de
problematizar a realidade social, dando um outro sentido as ações, e de ligar essas ações aos
desejos humanos e à subjetividade. Em entrevista concedida a autora deste estudo, Aguiar coloca
a relevância do desenvolvimento da habilidade de “compreender o outro”, entendendo que esse
outro define em grande medida a subjetividade daquele que se propõe a compreendê-lo e não ser
possível obter uma formação em direito sem que se parta desse pressuposto. 125
Já Rodrigues126 atribui, como uma das causas principais do não desenvolvimento de
outras habilidades no âmbito do ensino jurídico, como a habilidade comunicativa, ao fato de não
haver uma formação/preparação pedagógica entre os profissionais em Direito, o que implica em
relegar as atividades do ensino e pesquisa à condição de atividades secundárias frente a outros
interesses profissionais. Assim, passa-se a reproduzir nas instituições de ensino de maneira
irrefletida percepções, conteúdos e esquemas de raciocínio próprios da prática ou do meio
profissional que muitas vezes traduzem um senso comum teórico 127 e não um estudo baseado em
critérios e metodologias que gozem de maior rigor científico. Apesar da aparente cientificidade, o
discurso docente goza de uma autoridade que significa a reprodução simbólica do poder nas
124
As formulações de Aguiar nos parecem ir ao encontro daquelas feitas por Habermas quando discutia o
papel da universidade na sociedade contemporânea, colocando a relevância do desenvolvimento de
habilidades chamadas por ele de extrafuncionais.
125
Entrevista em anexo concedida em Brasília no dia 06 de abril de 2013.
126
RODRIGUES, Horácio Wanderley. O Ensino Jurídico de Graduação no Brasil Contemporâneo: análise
e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho. Tese Mestrado. Orientação:
WARAT, Luis Alberto. Universidade Federal de Santa Catarina, 1987.
127
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: epistemologia jurídica da modernidade. Volume
2. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.
71
instituições de ensino e, mais adiante, a reprodução de estruturas de poder na sociedade pelo tipo
de formação que oferece.
Constata o mencionado autor, tendo como referência Lyra Filho, que uma equivocada
compreensão do que venha a ser o direito explica fragilidades presentes na pedagogia do ensino
jurídico e vice-versa. Lyra Filho128 questiona em seus escritos muitos dos pressupostos presentes
nas teorias positivistas que embasam as concepções de ensino jurídico. Questiona a tomada da
norma pelo direito, a definição do direito pela sua sanção ou poder de coercitividade, como se
mantivesse sempre uma pauta negativa de exercício da liberdade, ou seja, como se as liberdades
garantidas pelo direito fossem tudo aquilo que restasse do elenco de proibições impostas.
Ao questionar tais pressupostos, denuncia a despolitização de tal concepção e da
equivocada noção de legitimidade porque nela está implícita a idéia de que a legitimidade se
extrai como que de sobressalto da própria legalidade. Como se não pudesse haver um direito
positivo antijurídico e as contradições que existem na sociedade não fossem a origem da
manutenção e, ao mesmo tempo, também da mudança de tal direito. Afirma o autor que o direito
surge de tensões sociais entre espoliados e espoliadores e é exatamente por isso que não se pode
defini-lo apenas pela sua coercitividade, reconhecendo-se que há direitos, como os direitos
subjetivos, que garantem uma existência positiva da liberdade, ou seja, direitos que garantem, em
grande medida, o questionamento a todos aqueles que entendem ilegítimo o direito positivo.
Partindo dessas formulações, se levarmos em consideração que a tensão entre espoliados e
espoliadores se reflete em grande medida no discurso e na linguagem, que há uma tensão entre
facticidade e validade existente na linguagem e que tal tensão está também ela presente no
direito, não há como compreender o direito criticamente se não compreendermos a estrutura
proposicional da linguagem, a racionalidade comunicativa que dela se deriva, os processos de
legitimação e atitude performativa através da qual é possível compreender o direito na sua
relação com o mundo da vida.
128
Lyra Filho, Roberto. Pesquisa em QUE Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984. Pág 12.
72
A facticidade do direito é em geral identificada pelo fato de haver o uso da coerção, mas
esta coercibilidade somente pode ser considerada jurídica se for legítima, isto é, se estiver de
acordo com critérios públicos estabelecidos através de acordos racionalmente motivados. Tais
acordos racionalmente motivados foram gerados por conta da existência de direitos subjetivos
que garantem igual participação a todos em debates públicos, em que a ação comunicativa é
elemento central para o seu desenvolvimento. Como o ambiente próprio da ação comunicativa é o
mundo da vida, não há como compreender o processo de legitimação (ou mesmo de
deslegitimacão) do direito via debates públicos sem que se adote uma atitude performativa em
que se procura conhecer e preservar os sentidos neles partilhados.
No ensino jurídico, esta atitude performativa é muitas das vezes tolhida em processos
pedagógicos por conta de uma equivocada compreensão do direito que leva em consideração
principalmente o aspecto de sua coercibilidade, deixando muitas das vezes de discutir os modos
em que se pode processar a sua legitimação e a sua inserção no mundo da vida. Não se
compreende o direito como uma linguagem que pode estar relacionada também com o mundo da
vida e muito menos a maneira como os direitos subjetivos de participação política garantem o
direito ao uso da linguagem/comunicação para questionar ou validar pretensões de validade
normativa no mundo da vida.
Por outro lado, o direito é muitas das vezes visto como um subsistema que possui funções
que lhes são próprios como a de estabilizar expectativas de comportamento através de
fundamentos criados por ele mesmo a partir de dentro. Essas funções são garantidas através do
manejo eficiente de uma linguagem técnica específica e de esquemas de percepções que
funcionam segundo uma racionalidade dirigida a fins. Diante disso, o ensino do direito deveria,
em tese, se voltar à compreensão dessas funções e da linguagem que possibilite o acesso a elas.
Assim, as demandas jurídicas são traduzidas para uma linguagem que opera o sistema de poder
que, para se manter, reproduz-se através de uma racionalidade que lhe é própria. Com isso, o
fenômeno jurídico fica descolado do mundo da vida, o que acaba por provocar uma espécie de
perda da visão global do fenômeno.
73
Os sujeitos envolvidos nas demandas jurídicas passam a ser considerados peças de
engrenagens sistêmicas e de um repertório linguístico que possui uma espécie de vida própria
relativamente independente de quem as utiliza e do contexto sócio-cultural em que é produzido.
O direito, segundo o modelo de ensino jurídico, passa ser muitas vezes explicado pela facticidade
ou a coercibilidade que produz, mas esta pretensa facticidade quando confrontada em debates
públicos pode desmoronar, já que junto com ela se tematiza sua legitimidade, questões culturais e
valores sociais.
Por outro lado, conforme demonstraram alguns autores mencionados, o ensino do direito
também reproduz institutos e conceitos que em realidade emergem de um senso comum teórico
partilhado por juristas que se solidifica numa espécie de tradição presente nas carreiras jurídicas.
Esse senso comum teórico não esta fundamentado num tratamento racional de pretensões de
validade ou de saberes, mas em estereótipos, valores hegemônicos e num habitus129 que se
constitui por uma espécie de modo de reprodução do poder simbólico de um suposto saber que
não encontra sua autoridade na força do melhor argumento diante de um contexto, mas em
disputas pelo poder de dizer o direito entre juristas, seguindo uma determinada tradição do campo
jurídico.
Isso nos leva a concluir que o modelo de ensino jurídico parece se voltar ora para a
preservação de uma racionalidade sistêmica, teleológica ou instrumental no tratamento de
demandas jurídicas ora para a preservação de um suposto saber baseado em um habitus teórico e
linguístico, ou seja, em uma linguagem estereotipada, o que dificulta uma produção do
conhecimento através de processos autênticos de aprendizagem ou baseada na interlocução com
elementos do mundo da vida que, por sua vez, fazem parte de uma concepção ampliada de
direito. Isso se reflete numa pedagogia ou metodologia de ensino resistente a uma racionalidade
comunicativa, baseada numa intersubjetividade orientada a negociação de sentidos sobre o
mundo e numa atitude reflexiva que põe sempre a prova juízos e pressupostos jurídicos que
fundamentam institutos, conceitos e a prática jurídica.
129
Veras, Mariana Rodrigues. Campo do ensino jurídico e travessias para mudança de habitus:
desajustamentos e (des)construção do personagem. Dissertação de Mestrado. Orientação: Jose Geraldo
Sousa Junior. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.Pág 65-66
74
Capítulo 3: Experiências não assistencialistas de pesquisa-extensão: o caso do
Programa Pólos de Cidadania da UFMG, da Escola do Direito Achado na Rua
da Unb e do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania
3.1 Programa Pólos de Cidadania da UFMG
No contexto de debates nacionais acerca da necessidade de reformas nas diretrizes
educacionais para os cursos de direito, promovidos pela Comissão de Ensino Jurídico da OAB e
principalmente no contexto de discussão da construção de um pensamento jurídico crítico130 e
uma “nova cultura jurídica”, professores e estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais
propunham a criação de um programa de pesquisa-extensão, denominado Pólos de Cidadania,
cuja temática central é a efetivação de direitos humanos. Essa temática foi desdobrada no eixo da
cidadania que trata da inserção política e participativa dos sujeitos nas mais diversas relações
sociais, da subjetividade que reflete sobre as condições de expressão da personalidade ou dos
desejos desses sujeitos e eixo da emancipação, centrado no desenvolvimento da democracia e da
capacidade de organização desses sujeitos.
A fim de diferenciar-se da visão assistencialista de extensão universitária, o Pólos
procurava aproximar a concepção de extensão da faculdade de direito daquela discutida pelo
Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das universidades públicas bem como desconstruir
uma visão “salvacionista” ou messiânica de atuação dos juristas junto a trabalhadores urbanos e
camponeses. A idéia, desde o princípio era criar, através de uma metodologia diferenciada das
que vigoravam, pólos de discussão pública, nos quais se tematizaria o direito, fomentando o
exercício de autonomias por todos os envolvidos e ações no sentido de reivindicar direitos junto
ao poder público. Para os estudantes, a principal proposta era oferecer a oportunidade de
construção, através de uma racionalidade diferenciada, de um conhecimento interdisciplinar,
articulado de maneira reflexiva com a complexa produção de sentidos do mundo da vida.
Essa discussão foi impulsionada pelos movimentos do “Direito Alternativo” na Região Sul e pela
“Nova Escola Jurídica Brasileira” de Lyra Filho em Brasília.
130
75
A metodologia adotada para o atendimento dos mencionados objetivos passou a ser a da
pesquisa-ação. Nesta metodologia, a participação e o envolvimento dos sujeitos da realidade
social investigada é fundamental, ou seja, a mobilização social é peça chave para o seu
desenvolvimento, mas para que essa mobilização ocorra é preciso que os sujeitos tomem
discursivamente consciência do contexto em que estão inseridos.
Rubião131 elencou em sua tese de doutorado os pressupostos principais desta metodologia:
a) em primeiro lugar, a pesquisa-ação deve partir de uma situação ou demanda social concreta e
deve se inspirar constantemente nas transformações e elementos novos que surgem no contexto
social durante o processo da pesquisa; b) em segundo lugar, deve-se partir do pressuposto que os
fenômenos sociais não são dados estáticos e que, portanto, não podem ser observados de um
ponto de vista externo; c) em terceiro lugar, na pesquisa-ação, o pesquisador deve assumir
constantemente dois papéis complementares o de pesquisador e o de participante do grupo, o que
implica, de um lado, em partilhar coletivamente sentidos e dinâmicas adotados pelo grupo no
contexto social em questão e, de outro lado, transformar os sujeitos envolvidos em co-autores das
formulações científicas. Com isso, a pesquisa-ação sugere uma inversão epistemológica ou uma
mudança de atitude acadêmica do pesquisador em ciências humanas, desconstruindo a
exacerbada objetividade contida nas metodologias de observação de inspiração positivista e a
relação sujeito-objeto nelas implicadas. Além disso, busca-se com essa metodologia uma
avaliação qualitativa e crítica dos dados compreendidos, sem a qual não é possível chegar a um
diagnóstico completo dos sentidos e dos discursos produzidos dentre uma determinada realidade
social.
A metodologia da pesquisa-ação serve então de suporte para o desenvolvimento de três
núcleos temáticos: o da subjetividade, que compreende a análise do desenvolvimento de
personalidades, da autonomia e dos desejos humanos numa dada realidade; da cidadania, que
envolve formas jurídico-políticas de exercício de direitos subjetivos, bem como a democratização
Rubião, André. “A universidade participativa” – Uma análise a partir do Programa Pólos de Cidadania.
Tese de Doutorado. Orientação: Yves Santomer (Paris 8) e Leonardo Avritzer (UFMG). Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais; Paris: Université Paris 8 Vincennes – Saint Denis, 2010. Pág 310
131
76
das relações sociais com o desvelamento de formas variadas de opressão/dominação; e o da
emancipação que consiste na capacidade permanente de avaliação crítica de estruturas sociais de
opressão ou violação de direitos subjetivos fundamentais e no aprofundamento de relações
baseadas na organização e no associativismo comunitário.
Ao analisarmos cada um desses núcleos temáticos, verificamos que o Pólos lida com
todos os elementos que Habermas caracterizou como pertencentes ao mundo da vida, a saber: a
personalidade que se constitui como a dimensão do mundo da vida em que ocorrem processos de
socialização dos indivíduos e a formação de identidades; a sociedade que se regula por ordens
legítimas pelas quais um indivíduo cria sentimentos de pertença e laços de solidariedade dentro
de um grupo ou com outros grupos sociais; e a cultura que se caracteriza pelo acúmulo de saberes
e interpretações do mundo através de um histórico de ações comunicativas no mundo da vida.
Cada um dos núcleos temáticos pode estar relacionado direta ou indiretamente com todos
os elementos que compõem o mundo da vida. Além disso, dependendo da demanda sóciojurídica abordada os núcleos temáticos, tal como os elementos do mundo da vida, podem estar
inter-relacionados a ponto de não se poder discutir um eixo sem se abordar outro. Porém, se
pudéssemos esquematizar uma relação entre os núcleos temáticos do Programa Pólos e os
elementos do mundo da vida, sugeriríamos que: a) o núcleo temático da subjetividade está em
grande medida relacionado à dimensão da personalidade, visto que lida com a complexa relação
entre autonomia subjetiva e socialização, ou seja, com o desenvolvimento dos desejos humanos e
das identidades de grupo num determinado contexto em que encontram-se consolidados
determinados valores e estruturais sociais; b) o núcleo temático da cidadania está relacionado à
dimensão da sociedade, já que lida com formas jurídico-politicas de exercício da autonomia, com
um conteúdo normativo ou, em outras palavras, com o exercício de direitos subjetivos
fundamentais sem os quais não seria possível regular a pertença dos sujeitos a grupos sociais ou
ao conjunto das relações sociais; c) o núcleo temático da emancipação está ligado à dimensão da
cultura, pois não é possível avaliar criticamente estruturas sociais de opressão sem enfrentar
interpretações, valores e o imaginário social que compõem o pano de fundo das ações sociais.
77
Os núcleos temáticos constituem, portanto, a “moldura interpretativa” ou “moldura
temática” dentro da qual se desenvolvem as ações do Programa Pólos, ações essas que, segundo a
metodologia empregada, estariam reguladas por uma racionalidade comunicativa ou orientada ao
entendimento, proporcionando a todos os envolvidos processos autênticos de aprendizagem e
produção de conhecimento.
Vale ressaltar que esses processos de aprendizagem vem oferecendo preparação
pedagógica a ponto de inserir ex-alunos da Faculdade de Direito na carreira docente . Para além
da preparação pedagógica, essas ações objetivam, em primeiro lugar, o aumento do capital social
em determinadas comunidades do estado de Minas Gerais, ou seja, o aumento da capacidade de
cooperação dos indivíduos e o desenvolvimento de normas de reciprocidade que possibilitem o
acesso a direitos e o exercício da cidadania através da intensificação da mobilização social. 132
Em segundo lugar, as ações implementadas objetivam desenvolver processos de mediação
com métodos interdisciplinares de estímulo a ações comunicativas que aprimorem o
entendimento entre sujeitos, nos casos menos complexos, e dentro da comunidade como um todo
em casos que envolvam questões sociais maiores. Essas ações criam as condições para que as
comunidades desenvolvam elas próprias processos de entendimento através da comunicação,
mesmo nos casos em que, a princípio, há dissenso e divergência de opiniões, o que as aproxima
de processos de emancipação da burocracia estatal, de um lado, e a processos de mobilização, de
outro, para a reivindicação coletiva de direitos, com acordos internos duradouros, frente à
máquina do Estado.
Outro objetivo do Pólos é desenvolver uma economia solidária, baseada na criação de
cooperativas populares, articulando-se formas de geração de emprego e renda, a fim de integrar a
132
A experiência do Programa Polos de Cidadania em comunidades do Vale do Jequitinhonha (Minas
gerais), localizadas em áreas rurais de baixo IDH, demonstrou que a existência de Conselhos de Direitos
em que havia a interlocução entre o poder público e comunidades organizadas guardava relação com o
controle da violação de direitos de crianças e adolescentes ou com a salvaguarda de direitos humanos.
Publicação do Programa Polos de Cidadania sobre o tema “Responsabilidade Social da Administração
Pública na efetividade dos Direitos Humanos”. Belo Horizonte: Movimento Editorial, Universidade
Federal de Minas Gerais – Faculdade de Direito, 2003.
78
comunidade ao sistema do mercado, sem que isso signifique uma adesão a ele. A criação das
incubadoras de cooperativas populares surge do estímulo a ações comunicativas no interior das
comunidades que possibilitem a mobilização das mesmas em torno de interesses coletivos
relacionados ao problema de baixa remuneração e capacitação profissional dos envolvidos.133
Com isso, são discutidas e estudadas formas de geração de emprego e renda que insiram as
comunidades no sistema do mercado, sem, contudo, se render de todo a racionalidade deste,
preservando-se no interior das comunidades laços de solidariedade que sustentam a sua
organização e mobilização em torno de interesses coletivos.134
Já o eixo de ações estabelecido pela Trupe a Torto e a Direito é um dos mais antigos do
Pólos, cujo objetivo é trabalhar temas-problemas das comunidades por meio da linguagem
teatral/dramatúrgica e de forma integrada a outros tipos de ações que compõem o programa. A
Trupe a Torto e a Direito tem a sua origem numa iniciativa voluntária de estudantes de
Graduação do curso de Direito que buscavam no teatro um discurso político ou formas de
intervenção política. O grupo de teatro se consolidou institucional e academicamente através da
Pró-Reitoria de Extensão da UFMG e foi incorporado ao ate então recém-inaugurado Projeto
Pólos Reprodutores de Cidadania, coordenado pelos professores Menelick de Carvalho Netto e
Miracy Gustin. Além disso, a Trupe passou mais adiante a contar com financiamentos do
Ministério da Justiça pelo programa “Direitos Humanos em Cena”.
O objetivo é enfrentar questões sociais, valores e estereótipos presentes no imaginário
popular a fim de provocar uma reflexão através da dramaturgia. Segundo Nicácio135, a Trupe se
No caso da “Vila Acaba Mundo”, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte onde há
intensa atividade de empresas do ramo da mineração, constatou-se através de pesquisa quantitativa e
qualitativa que 13 % dos moradores estavam desempregados e 45% recebia ate um salario mínimo, sendo
que mais da metade dos assalariados não possuía carteira assinada. Além disso, constatou-se que 15%
eram analfabetos e que 77% não havia frequentado nenhum tipo de curso profissionalizante. A grande
maioria desse publico era composta de jovens de ate 29 anos.
133
134
Ainda no caso da Vila Acaba Mundo, a formação de cooperativas populares não apenas contribuiu para
a geração de renda para suas integrantes (maioria delas eram mulheres) como consolidou uma rede de
associações e organizações comunitárias que deu origem ao Fórum de Entidades do Entorno da Área de
Mineração (FEMAN).
135
Nicacio, Antônio Eduardo Silva. A Torto e a Direito: um ensaio para a realidade. Monografia sob
Orientação de Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Faculdade de Direito, Universidade
Federal de Minas Gerais, 2003.Pág 50-51
79
inspira na atuação no “Teatro do Oprimido” que, desde os anos de 1970, ficou reconhecido
internacionalmente como prática autêntica de problematizar e incitar comportamentos para uma
organização política e socialmente emancipada do público. 136 A influência do Teatro do
Oprimido sobrecai principalmente no modo de produção dos textos das peças que se dá num
processo coletivo ou dialógico entre os atores-pesquisadores, no qual se verifica um processo de
aprendizagem que trata coletivamente de demandas públicas por direitos.
Assim, nesse processo coletivo, os dados ou códigos científicos são transformados em
linguagem artística, lúdica, compreensível e condizente com o contexto em que ocorrerá a cena.
Como relata Nicácio, o que se vê é a tensão constante entre o tratamento do dado objetivo e a
necessidade da técnica ou recursos artísticos que transformam o teatro em prática didáticopedagógica e provocadora de reflexão. 137 O desafio consiste, portanto, em transformar
criticamente a linguagem produzida pela ciência (jurídica) em ação cênica. Para tanto, são
utilizados elementos da cultura popular (ou do mundo da vida) com o intuito de gerar a
implicação do público na discussão ou no diálogo objeto da cena. Além disso, recorre-se a
técnicas como a da “cena modelo” que promove uma interação mais direta do público com os
personagens, provocando, de um lado, o público a intervir na cena e, de outro, o despertar da
reflexividade..
A “cena modelo” convida o público a uma atitude reflexiva inerente as ações
comunicativas, pois promove possibilidades de distanciamento dos sujeitos de juízos de verdade
136
A Trupe também foi influenciada pela experiência do Programa Jurisdrama da Universidade Federal do
Rio de Janeiro nos anos de 1995 e 1996. A metodologia de trabalho do programa Jurisdrama se baseava na
montagem de peças que, por sua vez, era estruturada no estudo da legislação, da doutrina e jurisprudência
correlata à determinada área do direito. As peças simulavam situações em que se discutiam questões e
institutos jurídicos numa linguagem mais próxima de pessoas não-juristas, configurando atividades de
educação jurídica popular num formato teatral. Além do Jurisdrama, a Trupe foi influenciada pelo Teatro
Universitário da UFMG, somando às preocupações sociais, políticas e jurídicas técnicas teatrais diversas e
outras preocupações de caráter estético e artístico.
Ibidem Pág 19
137
Como forma de provocar a reflexão do público, a Trupe recorre constantemente às tragicomédias.
Segundo Fernando Limoeiro, o riso ou o humor é iconoclasta, isto é, promove um juízo crítico de crenças,
estereótipos e imagens de mundo, sendo capaz de despertar comportamentos de mudança ou de
indignação que geram efeitos sociais maiores do que uma cena dramática qualquer.
80
sobre a realidade que vivenciam diariamente, sem, contudo, tomarem uma postura curiosa diante
dela. Os personagens e envolvidos tendem a constatar desta forma a falibilidade de juízos e
visões de mundo até então solidificadas como um pano de fundo e passam a reconstruir, ainda
que num momento lúdico, suas próprias formas de enxergar seus contextos de vida. Além disso, a
“cena modelo” provoca o público a observar-se a si mesmo como sujeito capaz de ação e de fala,
criando, assim, as condições para que se apropriem e penetrem em uma realidade cênica
construída consensualmente através de uma linguagem diferenciada.
Como se pode perceber, as ações do Programa Pólos de Cidadania estão, portanto,
relacionadas com elementos do mundo da vida e são promovidas basicamente segundo uma
racionalidade comunicativa que implica na tomada de uma atitude reflexiva por todos os sujeitos
envolvidos. Para profissionais e estudantes de direito, esta atitude possibilita um retorno crítico, a
partir da fala dos demandantes, a pressupostos ainda presentes na ciência jurídica e reproduzidos,
em alguma medida, por um determinado modelo de ensino jurídico ainda considerado
descontextualizado, frente a uma sociedade que demanda a efetivação de direitos fundamentais
como os referentes ao exercício da autonomia politica e da cidadania na sua plenitude.
Além disso, possibilita a confrontação entre uma determinada concepção de direito
contida nesse mesmo modelo, basicamente estruturada na ideia de direito como sistema, e
processos discursivos em que o direito e a sua pretensa legitimidade são constantemente
tematizados. Com isso, exige-se, por um lado, maior esforço de fundamentação e justificação de
conceitos e institutos jurídicos por uma via racional e, por outro, uma atualização dos mesmos,
tendo em vista o contexto ou pano de fundo em que eles são utilizados. Exige-se o
desenvolvimento e adoção de uma metodologia apta a compreender o direito como linguagem e
as tensões presentes nos contextos em que o mesmo é tematizado.
81
3.1.1. Análise crítica de políticas públicas, comunicação e o resgate da
dignidade política do curso de direito: breve relato sobre a atuação do
Programa Pólos de Cidadania no contexto de implementação do “Programa
Vila Viva Serra”.
Verificaremos nesse tópico como uma abordagem baseada na comunicação permite uma
avaliação da efetividade de políticas públicas de acesso a direitos bem como contextualiza
conceitos ou relações sociais que lidam com institutos jurídicos como o de propriedade, posse ou
direito a moradia. Além disso, aponta para o resgate da legitimidade e dignidade política dos
cursos de direito ao chegar a conclusões que podem significar mudanças nas condições de vida
das comunidades objeto de análise. Nos concentraremos na averiguação da experiência do
Núcleo de Mediação do Pólos, localizado na comunidade Serra e nas conclusões obtidas em
pesquisas, cujo objetivo principal era promover uma análise crítica políticas implementadas pela
Prefeitura da cidade. Até então tais políticas não tinham sido objeto de discussão nem na
sociedade e nem na comunidade acadêmica.
Durante o ano de 2010 e 2011, o Núcleo de Mediação do Pólos debruçou-se sobre
políticas públicas de urbanização e regularização fundiária implementadas pelo Programa Vila
Viva no Aglomerado Serra, complexo de favelas localizado na região Centro-Sul de Belo
Horizonte.138 Apesar da ausência de debates públicos sobre tais políticas, seus recursos eram da
ordem de R$ 171,2 milhões de reais e se propunham a interferir no acesso ao direito de moradia
de mais de 11 mil famílias naquela localidade.
Ressalte-se que atualmente o direito à moradia abarca não apenas a regularização formal
da posse ou propriedade de terras pelo poder público, mas o acesso a uma gama de direitos
sociais no processo de assentamento em áreas urbanas ou rurais. 139 Acompanhando esse
Relatório Final de Pesquisa. “Os efeitos do Vila Viva Serra na condição socioeconômica dos afetados”.
Núcleo de Mediação e Cidadania Comunitária Serra. Programa Polos de Cidadania. Belo Horizonte,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2011.
138
139
Lema, Gabriela Icasuriaga (coord.). O papel do Estado na Efetivação do Direito à Moradia no Rio de
Janeiro In Desafios da Constituição: Democracia e Estado no Século XXI. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2012. Págs. 189-193
82
entendimento, a proposta do Programa Vila Viva Serra era em princípio não apenas garantir o
direito à moradia das referidas famílias, assentando-as em conjuntos habitacionais ou
indenizando-as pela sua remoção de áreas consideradas inadequadas geográfica e socialmente
para o exercício de tal direito (“áreas de risco”), mas interferir no acesso a saúde, educação e
lazer, com a construção de escolas, áreas sociais de convívio ou desenvolvendo programas sociais
que criassem condições de acesso a tais direitos. Além disso, havia a possibilidade de os
moradores da região colocarem reivindicações, sugestões e críticas a atuação do poder público
nas etapas de planejamento e execução das políticas.
Através de análise crítica, a equipe de pesquisadores do Pólos constatou que, embora a
proposta do Programa Vila Viva abarcasse uma série de políticas que permitiriam o acesso a um
conjunto de direitos sociais e, portanto, a “moradia digna”, na prática, tal política deu ênfase no
aspecto urbanístico do processo de regularização fundiária, concentrando esforços na abertura de
rodovias e no reassentamento de famílias em conjuntos habitacionais, removendo-as de “áreas de
risco”, ou indenizando aquelas que optaram por não serem reassentadas. Algumas melhorias na
área educacional foram apontadas, mas outras demandas sócio-jurídicas foram diagnosticadas
como não cumpridas pelo programa. Por conta disso, o Pólos caracterizou o “Vila Viva” como
uma política “expulsora”, já que não criou ainda todas as condições de acesso a “moradia digna”
e tampouco garantiu que indenizados permanecessem na localidade com maior qualidade de vida.
Para chegar a essa constatação, optou-se metodologicamente por uma abordagem
qualitativa de dados que implica na oitiva de um determinado universo de pessoas direta ou
indiretamente afetadas pelas políticas públicas, resgatando-se pela via discursiva e da
comunicação a compreensão dos sentidos e interpretação dos que vivem a realidade. Esse
universo de pessoas, embora tenha sido reduzido em termos quantitativos, permitiu extrair
algumas conclusões pela análise crítica de significados e sentidos atribuídos a realidade pelos
moradores nos diálogos estabelecidos. Assim, a metodologia serviu não apenas para aproximar o
Núcleo de Mediação do Pólos de uma concepção de extensão baseada em ações comunicativa,
mas também serviu para superar dificuldades materiais no curso da pesquisa relativas à
disponibilização de dados (como telefones e endereços, por exemplo) de moradores afetados por
parte de empresas e administradores públicos responsáveis pelas mencionadas políticas bem
83
como as relativas à precariedade das condições materiais de pesquisa de estudantes e
professores.140
No bojo do desenvolvimento dessa abordagem, foram discutidos e apontados alguns
indicadores sociais que permitiriam um diagnóstico dos efeitos das políticas públicas de acesso
ao direito a moradia. Para o caso do eixo relacionado ao acesso a políticas sociais, foi verificada a
localização de escolas, as vagas disponíveis, a percepção quanto à qualidade do ensino (acesso à
educação); serviços de saúde utilizados, localização dos postos de atendimento (acesso à saúde);
condições de acesso ao local de trabalho, a oferta de cursos profissionalizantes, o conhecimento
de cooperativas (trabalho e geração de renda); utilização de transporte público e serviços como o
de coleta de lixo (níveis de urbanização e sustentabilidade); a satisfação quanto ao atual local de
moradia e a participação em reuniões de acompanhamento do programa (consciência acerca das
políticas implementadas).
Da análise qualitativa dos indicadores relativos ao eixo de acesso a políticas sociais,
chegou-se à conclusão de que a verificação do efetivo acesso a moradia depende de outros
indicadores sociais que extrapolam os limites formais de institutos que permeiam a regularização
fundiária. Chegou-se ainda à conclusão que o acesso a direitos sociais como a educação, por
exemplo, é geralmente garantido quando não há uma ruptura com o local em que crianças e
adolescentes vêm normal e gradativamente desenvolvendo não apenas suas atividades
educacionais.
Com isso, verificou-se que as políticas públicas que em geral preservam identidades e
processos de socialização podem garantir mais efetivamente uma gama de direitos fundamentais
até então negligenciados. A abordagem qualitativa da realidade demonstrou que políticas que
preservam processos de socialização e formação de identidades presentes no mundo da vida,
embora sejam de iniciativa do Estado, podem romper, em alguma medida, com a racionalidade
140
Uma abordagem quantitativa exigiria recursos financeiros e materiais maiores do que uma abordagem
qualitativa dos dados empíricos. Além disso, uma abordagem qualitativa de dados empíricos permite uma
penetração maior na realidade estudada, ao exigir dos estudantes de direito uma atitude performativa ou
um atitude de participante dos processos discursivos sobre a realidade para melhor compreensão dos
sentidos produzidos.
84
sistêmica que, na persecução de fins/resultados objetivos, pode provocar a violação de direitos
subjetivos e fundamentais. Além de atenderem a fins objetivos traçados por seus órgãos,
concluiu-se que as politicas públicas de iniciativa do Estado, para se legitimarem enquanto
públicas, devem se sustentar em elementos que extrapolam a realidade sistêmica tais como a
cultura e as ordens de valores consolidados simbolicamente num pano de fundo.
Compreendeu-se na ação do Polos questões mais amplas como o porquê o Programa Vila
Viva segue ainda um perfil muito semelhante ao das políticas públicas de regularização fundiária
baseadas em remoções e na ênfase à segurança formal da posse ou da propriedade, pois não
garante como um todo o acesso a direitos fundamentais, ao criar desníveis sociais entre
moradores que optaram por permanecer na comunidade em conjuntos habitacionais e moradores
que foram indenizados e se viram obrigados a sair do local seja pelo baixo valor da indenização,
seja pelo tempo de espera do seu recebimento, seja pelo aumento do valor dos imóveis ocorrido
na região por conta de especulações imobiliárias.
Embora o poder público tenha apresentado proposta que contemplava a intervenção das
comunidades através de debates e apresentação de sugestões para evitar os mencionados
desníveis, essa interlocução demonstrou um limite. Isso porque, de um lado, a comunidade não
possuía um histórico de exercício de sua autonomia política e, de outro, é próprio do poder
público agir segundo uma racionalidade instrumental, baseada na consecução de determinados
fins traçados, o que o faz, muitas das vezes, não observar todos os elementos presentes no
contexto social como a cultura local e as identidades alí construídas. Na medida em que a
comunidade legitima ou questiona o atendimento destes fins, que, aliás, devem ser públicos, é
que a máquina do Estado vai se aprimorando em suas ações/funções. Por isso, a intervenção do
Pólos de Cidadania, no sentido de provocar ações comunicativas e estimular com isso a
mobilização social em torno de direitos ou o exercício da cidadania, constitui-se fundamental
para o aprimoramento de políticas públicas.
De fato, a opção metodológica e abordagem de dados feita pelos Pólos permitiu não
apenas um diagnóstico acerca da efetividade de políticas de acesso a direitos sociais, mas abriu a
85
possibilidade de o curso de direito interferir em políticas públicas, apontando seus problemas e
dando a possibilidade de a comunidade se mobilizar para a resolução de questões concretas,
diagnosticadas nas pesquisas. Com isso, abre-se, portanto, a perspectiva de resgate da dignidade
política dos cursos de direito ao levantarem-se questões que afetam diretamente as condições de
vida em sociedade das comunidades.
3.2 Escola do Direito Achado na Rua da Unb
Podemos dizer que a Escola do Direito Achado na Rua da Universidade de Brasília se
inspira na Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) fundada por Lyra Filho entre o final dos anos
de 1970 e início dos anos de 1980. A NAIR buscava principalmente desconstruir alguns
pressupostos tomados pelo positivismo legalista como o da tomada da norma pelo Direito, o da
definição da norma pela sanção ou coercibilidade que produz e o da tomada do direito como
restrição à liberdade. Com isso, pretendia-se pensar o direito desde uma perspectiva politizadora.
Nas palavras de Sousa Junior 141, a NAIR tinha como objetivo geral construir um outro modo de
pensar o direito, em que a sua compreensão não fosse uma dedução do legal, mas uma construção
ou legítima organização social da liberdade.
Segundo Lyra Filho142, a NAIR se estrutura, embora não se esgote, em cinco proposições
básicas: a primeira diz respeito à sua concepção de direito, baseada na idéia de direito como
consciência e processo histórico de afirmação do exercício da liberdade, contrariando a idéia de
uma ordem social coercitiva deslocada da idéia de legitimidade; a segunda diz respeito à noção
de que a justiça histórica e concreta não se determina senão pelo estabelecimento gradual da
Segundo Sousa Junior, Lyra já havia utilizado a metáfora do “Direito Achado na Rua”, fazendo alusão
a um poema em que o jovem Marx dizia: “Kant e Fitche buscavam o país distante pelo gosto de andar lá
no mundo da Lua, eu por mim tento ver, sem viéis deformante, o que pude encontrar bem no meio da
rua.”
141
Entrevista de José Geraldo de Sousa Junior concedida à equipe do Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e
Direito – Observatório da Constituição e Democracia. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de
Direito, jan. e fev. de 2008. Págs. 12-13
142
LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em QUE Direito? Brasília: Edições Nair Ltda.,1984. Págs. 16-18
86
liberdade e pela dialética entre opressores e oprimidos, espoliados e espoliadores, contrariando a
idéia de uma justiça abstrata ou calcada em princípios universais metafísicos; a terceira afirma
que o padrão de legitimidade está na história da correlação de forças de luta pela afirmação de
direitos humanos, não podendo apenas se extrair de declarações oficiais a conclusão de que
determinadas ordens são de fato legítimas; a quarta refere-se a idéia de que a liberdade perquirida
encontra limites na própria história e correlação de forças, significando a emancipação de
privilégios de classe, a abolição de todo mínimo de classe ou a efetivação de direitos e deveres
iguais; a quinta busca problematizar a idéia de positivação confrontando a noção de direito
positivo com a sua materialidade e legitimidade diante de polarizações entre classes e grupos que
ocorrem historicamente na sociedade.
Essas cinco proposições refletem proposta de desconstrução, de um lado, de
fundamentações metafísicas para o direito e, de outro, de pressupostos positivistas que
demarcaram um objeto para a ciência jurídica deslocado da realidade social. Tal proposta de
desconstrução se desenvolveu, na prática, com estudos sociológico-jurídicos sobre a produção de
jurisprudência contra legem ou de interpretações jurídicas baseadas em princípios
ressocializadores do estabelecido pelo legislador. Além desses, havia ainda estudos que
confrontavam parâmetros da Criminologia tradicional de definição da figura do criminoso e as
situações sociais de estrutura e de classe surgidas com o aprofundamento do capitalismo que
motivam determinados comportamentos sociais como os de agressividade, violência, indiferença
ou individualismo acentuado. Assim, a Nova Escola Jurídica Brasileira formou juristas e
professores que mais adiante integrariam na Universidade de Brasília a Escola do Direito Achado
na Rua que, tal como a NAIR, promove estudos sociológico-jurídicos integrados a atividades de
extensão em favelas e regiões populares do Distrito Federal.
De acordo com Sousa Junior 143, a Escola do Direito Achado na Rua quer compreender o
processo histórico onde ocorre a afirmação de novos sujeitos e em que se criam concretamente as
condições para se explicar a existência ou processo de realização do direito. Procura -se refletir
sobre a atuação desses novos sujeitos e experiências por eles desenvolvidas de criação de direitos.
143
Sousa Junior, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Ed., 2011. Págs 46 e 47.
87
Além disso, desenvolve-se um modelo de investigação do fenômeno jurídico que: a) procura
determinar o espaço político do qual emergem direitos contra legem; b) definir a natureza jurídica
do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político e a sua própria representação teórica
como sujeito; c) compreender os sentidos derivados dos dados extraídos das práticas sociais
criadoras de direitos e, a partir disso, formular institutos e categorias jurídicas.
Este modelo de investigação científica conta com a contribuição de projetos de extensão
como o das Promotoras Legais Populares que visava capacitar lideranças comunitárias a lidar
qualificadamente com demandas de mulheres vítimas de violência doméstica ou de violação de
direitos humanos em geral, fortalecer ações pela garantia de direitos junto aos poderes públicos e
acompanhar a implementação de políticas públicas que afetam diretamente as mulheres; o Projeto
“Advogados Voluntários” que, integrado ao Núcleo de Prática Jurídica e Cidadania da Unb e,
portanto, à estrutura curricular e acadêmica obrigatória do curso144, objetivava não apenas
discutir e assessorar juridicamente moradores da comunidade de Cinelândia em demandas
individuais e coletivas nas mais diversas áreas do direito, mas permitir que alunos egressos da
Faculdade de Direito da Unb retornassem ao NPJ, dando continuidade à sua formação
pedagógica e profissional nas dependências da universidade e contribuindo para a formação de
outros alunos; o Projeto Tororó que, com o objetivo de discutir o acesso à educação, atuou como
facilitador da mobilização da Comunidade do Tororó para a reivindicação do acesso a escolas por
jovens e adultos da comunidade junto ao poder público; e o Projeto Cabaret Macunaíma que,
através da experiência do fazer artístico pelos alunos, explorava a compreensão da relação entre
Direito e Arte, de maneira integrada à proposta do curso de Arqueologia Crítica das Teorias
Jurídicas do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unb, ministrado pelo Prof. Luis Alberto
Warat.145
144
O currículo da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília inova em relação ao de outras
universidades ao considerar atividade obrigatória do curso o Estágio Supervisionado nas dependências do
Núcleo de Prática Jurídica.
145
A experiência da Extensão Universitária da Faculdade de Direito da Unb. Série: O que se pensa na
colina. Vol.3. Alexandre Bernardino Costa (org.). Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de
Direito, 2007.
88
Esses projetos de extensão adotam, por sua vez, uma metodologia baseada em princípios
educacionais formulados por Freire em que direito e educação traduzem-se em uma prática
emancipatória. Reflete-se com essa metodologia sobre o diálogo entre saber jurídico acadêmico e
o saber jurídico popular, de maneira horizontal, permitindo a construção de um saber
interdisciplinar e contextualizado. Assim, o resultado dessa reflexão constitui-se em uma
apropriação crítica de instrumentais jurídicos trabalhados e outras categorias de gênero, raça ou
classe que possibilita aos sujeitos envolvidos um atuar no mundo que observa criticamente e até
mesmo transforma condições sociais de vida.
3.2.1 Relato sobre a contribuição do Projeto Promotoras Legais Populares –
PLPs para a formação dos estudantes de direito.
O projeto das Promotoras Legais Populares surge do debate público estabelecido no ano
de 2005 entre a Unb, instituições como o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, a
ONG AGENDE – Ações em Gênero e Cidadania e Desenvolvimento, o Centro Dandara de
Promotoras Legais Populares e a comunidade de Ceilândia/DF acerca de questões relativas à
violação ou garantia de direitos entre as mulheres. O projeto constitui-se, nas palavras de uma de
suas integrantes, além de uma ação afirmativa de gênero, uma iniciativa no campo da educação
jurídica popular, sendo ele fundamentado na defesa dos direitos humanos, em princípios
democráticos e no ideal de construção de relações humanas igualitárias e justas. 146
Realizam-se encontros dinamizados por seminários e oficinas no Núcleo de Prática
Jurídica da Faculdade de Direito, sendo estes mediados por professores da Graduação e Pósgraduação e profissionais de diferentes carreiras jurídicas e áreas do conhecimento. O objetivo é
tornar as participantes do curso agentes multiplicadoras do aprendizado acumulado e da defesa de
direitos em questões de gênero dentro da comunidade. Para os estudantes de direito, exige-se uma
146
Farias, Fabiana Perillo de.; Tokarski Carolina. Promotoras Legais Populares In A Pratica Juridica na
Unb: reconhecer para emancipar / Jose Geraldo Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa e Mamede
Said Filho (Orgs.) – Brasilia: Universidade de Brasilia, Faculdade de Direito, 2007. Pág 402.
89
análise mais detalhada do significado desta experiência, visto que ela integra o conjunto de
atividades curriculares, estando, portanto, inserida num determinado contexto de ensino.
Segundo relato de alunas da Graduação da Unb do projeto147, a discussão contribuiu para
análise na afirmação da mulher em espaços sociais e políticos como sujeitos de direitos e para
compreensão da necessidade de criação de fóruns de discussão que contemplem questões do
gênero feminino, visando fortalecer subjetividades em contextos sociais em que diversidades e
diferenças devam ser respeitadas. A discussão com a comunidade ainda proporcionou
aprendizado no sentido de que as atividades de educação jurídica popular promovidas pelo
projeto de extensão adotam metodologia baseada em uma dialogicidade ou comunicação capaz
de promover uma reflexão crítica sobre a linguagem jurídica. As alunas, em um primeiro ciclo de
debates/oficinas oferecido à comunidade, constataram a necessidade de encontrar palestrantes
que conseguissem traduzir a linguagem estritamente técnica do direito em uma linguagem que se
aproximasse daquela do cotidiano da comunidade e, conseqüentemente, de sua visão de mundo.
Além disso, constataram que quanto maiores eram os espaços de fala, discordância e diálogo
abertos no seio da comunidade, maiores eram as possibilidades vislumbradas de exercício da
cidadania, ou seja, de exercício das autonomias subjetiva e política, ou de formação de uma
cultura democrática naquele determinado contexto social.
Outro relato relevante e que atesta contribuição diferenciada do projeto das PLPs para a
formação de estudantes de direito diz respeito às dificuldades percebidas pelos mesmos em
encontrar respostas para questões ou demandas jurídicas concretas apresentadas pelas
comunidades em oficinas realizadas no ano de 2006. Muitas dessas questões diziam respeito a
institutos jurídicos como o da posse e propriedade que geralmente são aplicados/interpretados por
juristas, diante da realidade daquelas comunidades, de maneira diversa daquela empreendida na
realidade social dos próprios juristas. Com isso, os estudantes começaram a se questionar se a
concepção de direito que se refletia nos institutos jurídicos aprendidos em sala de aula realmente
dava conta de explicar relações jurídicas concretas do cotidiano e da vida social. Percebe-se tal
fato no seguinte relato:
147
Ibidem. Pág. 89-91.
90
“- Por que ocupação de pobre é invasão e de rico é condomínio?” Nas aulas de
Direito das Coisas estas questões não haviam sido trabalhadas. Na sala de aula
da Faculdade foi-nos apresentado o instituto da posse, o instituto da
propriedade, como estes institutos desenvolveram-se juridicamente ao longo dos
anos, a natureza jurídica de cada um, os meios processuais para assegurá-los,
ação possessória, ação de imissão na posse e ação reivindicatória. O desenlace
destes institutos com a realidade, na luta pelo direito à moradia, no entanto foi
omitido. E agora, como daríamos respostas as insurgentes questões sobre o
direito, afinal não estávamos ali para isto, dizer o direito?148
Assim, constatou-se a falibilidade das categorias jurídicas apreendidas em sala de aula
através da sua tematização pelos sujeitos envolvidos nos ciclos de debate, pois estes apresentaram
questões e fundamentos que além de confrontar aqueles implícitos nas categorias construídas,
possuíam como pano de fundo elementos constitutivos de uma visão de mundo diferenciada.
Observou-se que a falibilidade das categorias jurídicas foi percebida pelos estudantes através de
uma atitude reflexiva exigida em contextos próprios de ações comunicativas, o que os levou a se
afastar de convicções, valores e juízos embutidos no saber jurídico, colocando a prova pretensões
de validade.
O direito, muitas das vezes concebido como fenômeno que integra um sistema de
linguagens técnicas, operações específicas e engrenagens capazes de estabilizar expectativas de
comportamento com suas decisões, passa a ser percebido como linguagem que pode ser
tematizada fora do sistema, integrando, portanto, um mundo da vida em que subjetividades,
valores sociais e culturais vão influir na sua formação.
No processo de aprendizagem demonstrado, percebe-se ainda que a noção de validade que
subjaz na concepção de direito própria do modelo de ensino jurídico, tradicionalmente tida como
validade oriunda de procedimentos legislativos e de ato decisório datado, não comporta as
tensões que ocorrem em ações comunicativas em que o direito é constantemente posto à prova,
148
CARVALHEDO, Ana Zélia; PERILLO, Fabiana; XAVIER, Hanna; TOKARSKI, Carolina;
MIRANDA, Adriana Andrade.; LOSADA, Paula Ravanelli In A experiência da Extensão Universitária da
Faculdade de Direito da Unb. Série: O que se pensa na colina. Vol.3. Alexandre Bernardino Costa (org.).
Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, 2007, Pág. 100.
91
exigindo-se razões e fundamentos, baseados em critérios públicos, para que se sustente como
válido. Além disso, os estudantes puderam compreender que os critérios públicos de validade ou
invalidade de pretensões não estão consolidados num texto apenas, mas numa esfera pública em
que, com o exercício de direitos subjetivos, eles vêm à tona impondo-se e demonstrando quais
direitos são válidos e porque são válidos.
A concepção de direito do modelo de ensino com o qual lidam os estudantes de direito,
estruturada no ocultamento da tensão entre a facticidade e a validade do direito, revela uma
metodologia pedagógica anti-dialógica, pois só é possível perceber essas tensões em ações
comunicativas ou em espaços públicos de discussão que funcionem como possibilidades de livre
tematização do direito. Isso, conseqüentemente, traduz ainda um deslocamento entre ensino
jurídico e mundo da vida, pois a constatação da ausência de uma atitude reflexiva, própria das
ações comunicativas e de processos autênticos de aprendizagem, não pode ser revertida por
completo senão com a integração com os sentidos e ações que ocorrem no mundo da vida.
3.3 Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ
A Faculdade Nacional de Direito da UFRJ experimentou nos anos de 2007, 2008 e 2009
experiências de aprendizagem, semelhantes às relatadas nos tópicos anteriores, após a
inauguração de Programa de extensão universitária denominado Núcleo Interdisciplinar de Ações
para Cidadania – NIAC/UFRJ. O Programa tem a sua origem no projeto Escritório Modelo de
Atendimento Interdisciplinar149, datado de 2006, que ficou mais conhecido dentro da
universidade como Projeto Maré e contou com contribuições político-acadêmicas de estudantes
do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO).
149
Verificar anexos.
92
O Projeto Maré não significou apenas o resgate histórico de uma linha de trabalho
anteriormente desenvolvida pela Faculdade Nacional de Direito - FND 150 junto ao complexo de
favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, mas um projeto piloto de reformulação do Núcleo
de Prática Jurídica - NPJs e uma nova concepção de estagio supervisionado, dentro de um
contexto institucional de reforma curricular via Projeto Político-Pedagógico – PPPs.
Durante o período de implementação do Projeto Maré na cidade universitária da Ilha do
Fundão, o Escritório Modelo da FND, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, dada a
precariedade de sua infra-estrutura e a ausência de docentes efetivos de prática jurídica, ainda não
apresentava todas as condições materiais necessárias para uma reformulação acadêmica da sua
concepção de trabalho. 151 Soma-se a este fato a ausência de condições político-acadêmicas no
âmbito da instituição como um todo que propiciassem a institucionalização de uma concepção
não assistencialista de atuação do NPJ. De fato, o quadro docente efetivo não apresentava, no
geral, qualificação acadêmica e interesse político suficientes que pudessem direcionar sua
reformulação em outro sentido. Uma demonstração disso foi a nomeação de pelo menos duas
comissões, compostas majoritariamente de professores efetivos152, que não conseguiram
apresentar um diagnóstico dos problemas enfrentados no Escritório Modelo e uma proposta de
reformulação institucional condizente com as diretrizes tanto da reforma político-pedagógica
proposta como com as diretrizes nacionais para o ensino jurídico.153
150
Chauvet, Luiz Eduardo. Prática Jurídica Interdisciplinar: o saber além das fronteiras. Monografia sob
orientação de Luiz Eduardo Figueiras. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2009. Pág 32
151
Ainda vigorava no Escritório Modelo a idéia de um espaço de manipulação da linguagem técnica do
direito, diante de demandas práticas colocadas pelas comunidades. Assim, privilegiava-se um “uso” do
direito para manutenção de uma ordem social.
Mendes, André Luiz Conrado. Assessoria jurídica (prática jurídica educativa) X assistência jurídica
(prática jurídica tradicional): diluição das lutas simbólicas nas faculdades de Direito. Rio de Janeiro: I
Seminário de Sociologia e Direito – PPGSD/UFF, 2011. Pág 10.
152
Vale ressaltar essas comissões, conforme demonstra Relatório de Gestão da Faculdade Nacional de
Direito (2005-2009), não eram majoritariamente compostas de professores efetivos da disciplina de prática
jurídica, visto que a referida disciplina contava apenas com professores de contrato temporário no período
de 2005 a 2009. A realização de concursos públicos para o preenchimento do quadro efetivo da disciplina
de prática jurídica apenas veio a ser realizada nos anos de 2009 e 2010, após expirarem os contratos.
153
Relatório de Gestão da Faculdade Nacional de Direito - 2005-2009. Pág 14
93
Diante de tais dificuldades, estudantes do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira,
professores substitutos de prática jurídica, muitos deles ex-alunos da instituição com histórico de
atuação no movimento estudantil, além de professores das áreas do Serviço Social e da Psicologia
uniram esforços no sentido de criar um projeto piloto que pudesse servir tanto como um
parâmetro de uma concepção não assistencialista de extensão universitária como estímulo à
reformulação do Escritório Modelo ou do Núcleo de Prática Jurídica da FND. Cabe ressaltar que,
embora as condições políticas e institucionais internas da FND não tenham criado um cenário
propício à reformulação, no âmbito da universidade, a Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ – PR-5
havia iniciado processo de institucionalização de atividades de extensão universitária.
Tal processo possuía como diretrizes: a) a proposição de atividades de extensão que
permitam maior articulação entre as atividades de pesquisa e ensino, estimulando, também, a
interdisciplinaridade; b) a articulação das diferentes iniciativas e projetos das unidades
acadêmicas em programas de extensão; c) a flexibilização curricular e implementação de créditos
de extensão nos cursos de graduação, conforme determinação do Plano Nacional de Educação PNE; d) o cumprimento das diretrizes do Plano Nacional de Extensão Universitária, contribuindo
com a reformulação das mesmas através do debate permanente sobre a Política Nacional de
Extensão; e) a participação na formulação de políticas públicas de desenvolvimento social e
econômico que atendam às demandas das esferas federal, estaduais e municipais. 154
A institucionalização de atividades de extensão até então iniciada criou na universidade
ambiente propício à implementação de propostas como a do Escritório Modelo de Atendimento
Interdisciplinar. Por isso, a equipe de professores e alunos que se uniu em torno do projeto
encontrou na cidade universitária da Ilha do Fundão, no prédio anexo da PR-5, a possibilidade de
criação de um núcleo interdisciplinar de atendimento. Ainda assim, como o processo de
institucionalização havia sido recém inaugurado, a equipe teve que gradualmente conquistar
espaço político, acadêmico e físico na universidade. Quais eram as características dessa proposta
154
Souza, Amanda Alves de. Estudo da nova práxis extensionista na Faculdade de Direito da UFRJ.
Monografia sob orientação de Marilson dos Santos Santana. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de
Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Pág 31.
94
que se pretendia implementar? Como se daria a atuação desse núcleo de atendimento? Em que o
Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar se diferenciava do Escritório Modelo?
Conforme relatamos em trabalho monográfico anterior, os princípios norteadores básicos
do projeto eram a interdisciplinaridade, a ênfase na integração ensino-pesquisa-extensão, a
identificação e construção do discurso jurídico informal, o respeito às dessemelhanças, a
preparação de corpo de extensionistas-pesquisadores e a publicização do conhecimento por meio
da produção de materiais bibliográficos. 155
O projeto inicial, embora previsse a interdisciplinaridade como princípio, não trazia
elementos concretos que definissem como se daria a implementação de tal diálogo entre saberes
diferentes. Por isso, a transformação do Escritório Modelo de Atendimento Interdisciplinar em
Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania – NIAC/UFRJ representou um amadurecimento
político-acadêmico da proposta inicial, pois se decidiu, entre outras questões, as unidades
acadêmicas que constituiriam a equipe geral: Faculdade de Direito, Escola de Serviço Social,
Instituto de Psicologia e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, sendo que esta última unidade
não constava na proposta originária. Além disso, as unidades em comum acordo elaboraram uma
dinâmica de atendimento que previa uma oitiva conjunta ou “literária” no primeiro atendimento,
o registro em banco de dados, a identificação das possibilidades de intervenção e o
acompanhamento integrado de demandas individuais e coletivas. Traçaram ainda projetos de
pesquisa que se baseariam em dados coletados na dinâmica de atendimento em
desenvolvimento. 156
155
Ibidem Pág 33
156
Dois exemplos de projetos de pesquisas traçados são: i) o “Requalificação Urbana e Habitabilidade no
Centro do Rio de Janeiro”, nascido da parceria entre Serviço Social e Direito, com o objetivo de analisar
os discursos produzidos por juristas, pelos órgãos oficiais do Estado e pelos movimentos sociais sobre
conflitos urbanos relacionados à questão do acesso ao direito à moradia e à cidade; ii) o Fórum de
Criminologia Crítica, nascido da parceria entre Direito, Psicologia e Serviço Social, cujo objetivo foi
discutir estratégias para o enfrentamento da violência, com atenção aos movimentos sociais e às políticas
de atendimento aos setores vulneráveis à violação dos Direitos Humanos.
Chauvet, Luiz Eduardo. Prática Jurídica Interdisciplinar: o saber além das fronteiras. Monografia sob
orientação de Luiz Eduardo Figueiras. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2009. Págs 25-26
95
Vale ressaltar que, na contramão de uma certa tendência a adotar a autonomia quase que
absoluta em relação a outras ciências como pressuposto epistemológico ou de ação, a equipe de
professores e alunos do direito apresentava projeto que na sua origem previa uma racionalidade
interdisciplinar de aprendizagem e ação.157. Por isso, o NIAC constitui-se em um programa
inovador, pois inverte na sua origem uma lógica epistemológica presente no direito ao propor
uma racionalidade comunicativa entre ciências distintas como base de sustentação da sua
produção de conhecimento sobre direitos humanos, cidadania e justiça social.
Tal racionalidade se justificava pela própria complexidade da realidade social a ser
pesquisada. A ação interdisciplinar junto ao complexo de favelas da Maré se justificava
inicialmente pelo fato de os indicadores sociais levantados sobre a localidade pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no Censo 2000,158 e pelo Centro de Estudos e
Ações Solidárias da Maré - CEASM159 indicarem a existência de uma maioria jovem entre os
moradores que conviviam com problemas de caráter sócio-jurídico como o de exploração
econômica do trabalho infanto-juvenil, mortalidade infantil e analfabetismo por exemplo.160 A
análise de dados quantitativos coletados e disponibilizados pelo IBGE indicavam a existência dos
mencionados problemas ou da violação de uma série de direitos humanos, mas não explicavam
concretamente como eles passaram a aparecer como problemas.
157
Embora a equipe de Direito do NIAC tenha adotado o princípio da interdisciplinaridade como
pressuposto do processo de aprendizagem, a Faculdade de Direito como um todo não parecia partir desse
mesmo pressuposto. Enquanto as unidades de Psicologia, Serviço Social e Arquitetura começaram a
participar do Congresso de Extensão da UFRJ desde a sua primeira edição em 2004, a Faculdade Nacional
de Direito passou a dar sua contribuição somente na sua 4ª edição em 2007 com apenas três trabalhos
inscritos integrados a apenas um Programa de Extensão (o NIAC/UFRJ). A 4ª Edição do Congresso de
Extensão reuniu em seus Anais mais de 378 trabalhos acadêmicos inscritos, sendo 36 deles dentro do tema
Direitos Humanos e Justiça, em que questões jurídicas eram debatidas pela comunidade acadêmica sem a
participação de profissionais e estudantes de direito e sob perspectivas teóricas de outras ciências.
Souza, Amanda Alves de. Estudo da nova práxis extensionista na Faculdade de Direito da UFRJ.
Monografia sob orientação de Marilson dos Santos Santana. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de
Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Pág 39.
158
www.ibge.gov.br
159
www.ceasm.org.br
160
Ibidem. Pág 33-34
96
A equipe do NIAC passou então a perceber a necessidade de uma avaliação qualitativa de
dados coletados a partir de uma atitude performativa junto à comunidade, ou seja, de uma atitude
que resgatasse através dos discursos dos sujeitos envolvidos naquela realidade como estava sendo
produzida uma dinâmica social de violação de direitos. Além disso, buscava-se compreender de
que maneira esse processo de violação afetava processos de socialização, de formação de
identidades bem como a produção de subjetividades naquela região. O objetivo era compreender
através de uma análise mais qualitativa de que maneiras o discurso jurídico e/ou o fenômeno
jurídico se inseria dentro de um contexto social complexo e amplo. 161
Essa compreensão passou a se dar por uma atitude performativa assumida por todas as
áreas do conhecimento integradas através de uma racionalidade comunicativa e interdisciplinar.
A implementação dessa racionalidade e forma de produzir de conhecimento exigiram da equipe
de pesquisadores e alunos esforços em dois sentidos. De um lado, o esforço entre as distintas
ciências de traduzir umas às outras suas respectivas linguagens técnicas para uma linguagem
científica mais abrangente que permitisse o desenvolvimento de uma racionalidade comunicativa
dentro da equipe de atendimento.
Paiva relata a relevância de um estudo e observação constante da linguagem para o direito
ao apontá-lo como elemento chave para o estabelecimento de uma racionalidade comunicativa na
relação entre pesquisadores e estudantes do NIAC e destes com a comunidade.
“Uma questão interessante que é constantemente trabalhada pelos
estagiários do direito é a linguagem. Como vimos no Capítulo 1, o ensino
do direito tem como característica a geração de uma linguagem técnica e
dificilmente compreensível pelos não-especialistas na área. Tanto no
contato com as outras áreas integrantes do Núcleo quanto no diálogo
com o público atendido, os estagiários são orientados a falar de forma
clara e objetiva, sem mencionar termos essencialmente jurídicos, numa
preocupação constante com seu papel de educadores jurídicos populares
e de construtores de um conhecimento interdisciplinar que deve evitar a
utilização de categorias e conceitos que dificultem a compreensão das
outras áreas.”162
161
Ibidem Pág 36
162
Paiva, Ludmila Ribeiro. Acesso à justiça via assessoria jurídica popular: a experiência do NIAC.
Orientação: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito,
Universidade Federal do Rio de janeiro, 2009. Pág 26
97
De fato, havia também um esforço de traduzir a linguagem científica para uma linguagem
acessível não apenas aos moradores da favela, mas a entidades e grupos organizados que, apesar
de não possuírem uma linguagem científica, não deixavam de produzir conhecimento pré-teórico
fruto da vivência diária na comunidade. Esse segundo esforço de tradução permitiria uma
dinâmica constante de confirmação ou o refutação de dados, análises elaboradas e sugestões de
intervenção feitas pela universidade e indicariam, portanto, que efeitos sociais, culturais, jurídicos
e políticos da ação de pesquisadores e alunos produzia de fato naquela comunidade.
Neste mesmo sentido, Paiva coloca que havia um princípio discursivo presente nas
atividades, não no sentido de persuadir a comunidade demandante, mas de comunicar percepções
e possibilidades de ações dentro daquele contexto que poderiam ser acolhidas ou refutadas.
“O princípio é o de que se dê ao usuário uma resposta prática ou
pedagógica àquela demanda que lhe encorajou a buscar o Programa,
sem delimitá-la em apenas uma esfera de conhecimento, além de
apresentar múltiplas possibilidades para que o usuário tenha a faculdade
de decidir sobre a condução do seu caso, inclusive discordando das vias
indicadas pela equipe.”163
A interdisciplinariedade surge, portanto, de uma racionalidade orientada ao entendimento
entre diferentes áreas do conhecimento, produzindo consensos e uma ação discursiva condizente
com uma realidade complexa que não comportaria, conforme vimos, esquemas de interpretação
de caráter positivista e/ou formalista, herança de uma ótica sistêmica que torna sujeitos e
conflitos em peças de suas engrenagens.
163
Ibidem Pág 19.
98
Considerações Finais
Neste estudo, constatamos que a extensão, na sua vertente não assistencialista, por sua
gênese histórica associada a projetos de democratização da universidade e tensões provocadas
pelo movimento estudantil no sentido de fazê-la contribuir para o aprofundamento de conquistas
democráticas, pode ser entendida como ação comunicativa. Isso porque atua segundo uma
racionalidade orientada ao entendimento e, portanto, necessariamente inserida no contexto do
mundo da vida, procurando compreender, através de uma atitude performativa, sentidos
partilhados, subjetividades, valores culturais e sociais nele produzidos. Nessa atuação, procura -se
utilizar a linguagem no seu modo mais originário, não havendo outro objetivo senão atingir
processos autênticos de aprendizagem.
Com isso, a extensão promove o encontro entre cientistas e estudantes com um saber précompartilhado existente no mundo da vida que é expandido e aperfeiçoado segundo processos de
aprendizagem e produção de conhecimento que respeitem diferenças e proporcionem a
tematização ou questionamento do mundo segundo uma igualitária situação de fala entre os
envolvidos. A extensão, como ação comunicativa, exige necessariamente do cientista uma
postura reflexiva, própria do tratamento racional de pretensões de validez, postura essa em que
ele se afasta de convicções, juízos e certezas, colocando-os à prova num debate público. O
critério de validade das pretensões levantadas não se encontram engessados, mas partilhados
numa esfera de discussão com diferentes sujeitos que sem encontram numa relação
horizontalizada.
Chegamos a essas conclusões não apenas com as contribuições teóricas de Habermas, mas
com as problematizações feitas por Freire, quando este propunha a substituição da extensão pela
comunicação, entendendo que nas atividades desenvolvidas junto a trabalhadores e camponeses
podem ser criadas as condições para um que-fazer educativo libertador. Propunha, então, o
reconhecimento do equívoco gnosiológico contido no termo extensão, pois, como este estava
normalmente relacionado à idéia de transmissão ou salvacionismo, não se reconhecia no ato de
conhecer em si uma relação dialógica. Afirmava que mesmo aquele que produz conhecimento
através da pesquisa tradicional e solitária, travava um diálogo com uma comunidade de outros
99
sujeitos que anteriormente consolidaram determinados entendimentos acerca do objeto
cognoscível. Se esta dialogicidade vale para aquele que opta pela pesquisa tradicional e solitária,
tanto mais ela valeria para aquele que se propõe a produzir conhecimento em atividades de
extensão.
Freire chegou a essas formulações por estar em um contexto em que persistia na
universidade a idéia de extensão como transmissão de conhecimento ou prestação de serviço.
Além disso, a extensão, com o seu viéis paternalista, vinha se tornando componente de
desmobilização de estudantes e da sociedade, ao ser incorporada pelo Estado ao conjunto de
políticas de segurança e integração nacional até então traçadas e implementadas de maneira
unilateral. Nas faculdades de direito, refletindo-se esse contexto mais geral da universidade,
desenvolveram-se também concepções assistencialistas e não-assistencialistas de atuação junto a
comunidades demandantes de acesso à justiça. A vertente não-assistencialista de extensão no
direito teve a sua origem nos SAJUs (Serviços de Assessoria Jurídica Gratuitos) criados por
estudantes e centros acadêmicos nos anos de 1960.
Atualmente verificamos que os SAJUs atuam a margem da estrutura acadêmica e
curricular das faculdades de direito, traduzindo, por um lado, uma demanda estudantil por uma
formação jurídica contextualizada e, de outro, a resistência de um determinado modelo de ensino
jurídico avesso à concepção de extensão ou aprendizagem por eles defendidos. Tal resistência a
uma concepção não-assistencialista de extensão universitária traduz-se ainda na dificuldade de
desenvolvimento de atividades deste gênero mesmo nas universidades em que elas possuem um
histórico mais avançado de experiência como é o caso da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG e Universidade de Brasília - Unb. Essas dificuldades podem ser percebidas, por exemplo,
pelo reduzido número de instituições de ensino e professores com preparo pedagógico e aptidão
para lidar com questões sócio-jurídicas que vêm à tona com o desenvolvimento dessas atividades.
Atribuímos essa resistência ao fato de que as faculdades de direito seguem um modelo de
ensino jurídico em que atua uma racionalidade instrumental, por um lado, e uma equivocada
compreensão do fenômeno jurídico, por outro, compreensão esta que oscila entre a noção de
direito como subsistema e um senso comum teórico de maneira irracional estereótipos,
100
preconceitos e valores hegemônicos. Isso implica que seus agentes passem a atuar segundo os
controles sistêmicos do poder e do dinheiro, dirigindo a produção do conhecimento ao eficiente
aprimoramento da máquina estatal ou do mercado. Além disso, a reprodução dessa racionalidade
vai implicar na constante tradução em linguagem estritamente técnica de demandas jurídicas,
negligenciando em alguma medida elementos presentes no mundo da vida e o papel de
contribuição de diferentes sujeitos para produção desse mesmo conhecimento.
Para a maioria dos autores que se dedicam à temática do ensino jurídico a relação deste
com o mundo da vida ainda é um tanto quanto problemática. Estamos ainda diante de um modelo
de ensino jurídico que não atenta para a sua gradual perda de dignidade política perante a
sociedade. Ressalte-se, no entanto, que essa resistência ou mesmo aversão ao diálogo com o
mundo da vida parece ter criado contraditoriamente as condições para o surgimento no interior
desse mesmo modelo de uma concepção não assistencialista de extensão que se desenvolve
segundo uma racionalidade comunicativa e que proporciona por isto a estudantes e professores
um conhecimento do fenômeno jurídico de maneira integrada ao mundo da vida.
Essa racionalidade comunicativa exige que juristas assumam uma postura reflexiva,
afastando-se com isso de juízos iniciais e colocando à prova razões que a princípio fundamentam
suas pretensões de validade. Atinge-se desta forma processos autênticos de aprendizagem, por
um lado, e a preservação das condições de outros sujeitos envolvidos de suas condições de
sujeitos cognoscentes e capazes de fala. Além disso, problematiza-se a concepção de direito que
subjaz nos institutos e conceitos reproduzidos no interior do modelo de ensino jurídico e que
parece ocultar o fato de que o direito, por constituir em uma linguagem que funciona como
médium entre sistema e mundo da vida, necessita ser compreendido segundo uma atitude
performativa. O direito como linguagem não poderia ser compreendido senão numa relação
comunicativa que se estabelece, conforme vimos, no interior do modelo de ensino jurídico em
atividades de extensão de caráter não assistencialista.
Abre-se com essas atividades a possibilidade de resgate da dignidade política ou
legitimidade dos cursos de direito, pois o papel de facilitadora de diálogos exercido pela extensão
promove, ao propor a retomada da condição de sujeitos daqueles que são geralmente oprimidos
101
nas mais diversas relações sociais, uma mobilização destes em torno e suas demandas e
interesses. Com isso, abre-se a possibilidade de tematização do direito, de políticas públicas e
uma efetiva intervenção da comunidade no funcionamento dos sistemas do Estado e do mercado.
As experiências das Faculdades de Direito da UFMG, da Unb e do NIAC, em
determinado período, colocam para juristas, estudantes e professores metodologias e ensino e
concepções de direito consideradas inovadoras e que apontam perspectivas de mudança do
modelo de ensino jurídico, do seu modo de produção do conhecimento e, conseqüentemente, de
sua concepção de direito. O Programa Pólos de Cidadania e a Escola do Direito Achado na Rua
constituem exemplo práticos de como a extensão, na sua vertente não assistencialista, pode
resignificar a relação entre ensino jurídico e mundo da vida e entre, direito, política, cultura e
sociedade.
ANEXO A
ANEXO B
Entrevista com ROBERTO AGUIAR
Brasília, 06 de abril de 2013.
AMANDA: Meu objeto de estudo tem sido experiências de extensão consideradas inovadoras.
Comecei por Belo Horizonte e depois Brasília para estudar um pouco dessas experiências... É
claro que o tempo de estudo limita o aprofundamento de uma série de questões... Mas
basicamente o meu objeto é esse e qual o papel dessas atividades dentro de um determinado
modelo de ensino jurídico...
AGUIAR: Eu acredito que nós estamos num momento muito importante na juridicidade. O
mundo mudou, está com outras configurações institucionais, sociais, cidadãs, está com novos
problemas e o direito ainda está referenciado a uma realidade que já passou. Isso se reflete nas
faculdades inclusive... As faculdades não se abrem para fora... Elas têm uma “parede” entre elas
e a realidade social e a gente começou a perceber isso aqui em Brasília quando os alunos não
conheciam nem a periferia. Quer dizer, eram pessoas que ficavam nas chamadas cidades
satélites, eram pessoas que não tinham o menor interesse justamente naqueles que são o foco do
direito, isto é, os pobres, os excluídos, os marginalizados. Daí porque quase toda a experiência
jurídica é uma experiência de uma legislação para as classes dominantes e não uma legislação de
tutela daqueles que podem vir a ser partícipes da ordem social. Então, nós vimos que nós
tínhamos que fazer duas coisas: de um lado, atualizar a visão de mundo. Nós não estamos mais
na lógica clássica, nós não estamos mais na ciência do século XIX, nós não estamos mais nas
estruturas sociais do início do século XX até a metade. Nós estamos em rede... Nesse momento,
você está aqui me entrevistando e está com um gravador e um computador. A rede está presente
no cotidiano das pessoas. Isso leva a outros exercícios de poder. Outras tensões políticas. Há uma
história interessante em que os mendigos de Paris tiveram problemas nos seus albergues,
estavam em albergues muito mal tratados, muito mal cuidados e eles quiseram fazer um
movimento para conscientizar a prefeitura a mudar isso. Então, eles pegaram uns computadores
PC 286... E hoje a gente faz café com eles porque a gente não tem nem mais programa para
eles... Fizeram gambiarras em postes e começaram a escrever para a prefeitura, para órgãos do
município e depois para a ONU, para a organização mundial de saúde, entidades internacionais.
Aos poucos eles criaram, via computador de rua, uma grande rede. Fez uma pressão imensa em
cima da prefeitura de Paris que mudou os albergues. O computador foi usado na contramão dos
próprios programas porque eles são feitos pelas metrópoles e a gente só ratifica, repete. Houve
um grande avanço e hoje, para se ter uma idéia, já tem o jornal deles. Tudo a partir dessas
experiências. Então, como a gente faz essa guerra política via computador? Esse aumento de
espaço de cidadania via computador? Isso é coisa de jurista! E o jurista ta aí... Você vê os
escritórios, né... Todo computador é um “maquinão de escrever”... O cara fica sabendo da
jurisprudência, quando é a audiência dele, faz as petições do jeito que eu fazia no início da minha
carreira, com uma Lettera 22 que era uma maquininha pequenininha...
AMANDA: Então, pro senhor, o jurista tem que se ocupar da comunicação também...
AGUIAR: Também da comunicação e você se ocupar da atualização de seus conceitos. O jurista
é démodé... Eu tava ontem conversando com o pessoal e até me lembrei de uma coisa... O único
lugar que me saúdam como “meu líder!” é na OAB. Ninguém me chama assim. Nem eu. Não
sou líder de coisa nenhuma... Mas é a expressão formal das coisas... Eu tenho uma filha muito
esperta que agora tá na Holanda e não tem nada a ver com o direito. Mas ela identifica na rua
assim as pessoas... “Esse está ligado ao meio jurídico... Esse não está...”. Pelo modo de falar,
pelo modo de se portar. É um “carimbo” que uniformiza esse pessoal. E que, ao mesmo tempo,
tira do contexto. No fundo, dentro do que você está trabalhando, é a gente superar o trato
somente com o texto, mas entrar no contexto.
AMANDA: Professor, no seu livro, o senhor fala que o modelo de ensino jurídico dentro de uma
sociedade mercantilizada, ele, tal como essa sociedade, ele vai tolhendo subjetividades, desejos
humanos... O ensino jurídico que reflete essa sociedade ele como que valoriza habilidades que,
para o senhor, são superficiais. Habilidades que são superficiais que estão aí a serviço do
mercado ou da máquina burocrática do Estado. Que outras habilidades o senhor entende que
sejam importantes de serem desenvolvidas na formação do jurista?
AGUIAR: Primeiro compreender o outro. A gente fala tanto em alteridade, mas ninguém sabe o
que é alteridade e muito menos trabalha com ela. Não existe direito sem a compreensão do outro.
A primeira habilidade é se abrir para o mundo e entendê-lo para poder absorver o que é esse
outro. Não conte para ninguém, mas é o outro que marca a minha subjetividade e que define a
minha subjetividade. Não sou eu que defino a dele. É preciso que se abra. É preciso que se abra a
novos valores. No máximo o que se fala é tolerância... Mas tolerância já é uma palavra com uma
conotação muito esquisita... Eu tolero você... A palavra tolerar quer dizer que eu sei que você é
diferente de mim e eu tenho que, por respeito, tolerar seu modo de ser. Mas é a tolerância... Ela
já é posição de superioridade minha. Eu sou adepto àquilo que o Derrida chama de hospitalidade.
Você aceita receber o outro. Daí, a extensão... A faculdade de direito só poderá estar no mundo
com uma extensão que não seja uma extensão desigual que eu vou ensinar uma coisa pra
periferia e tal... Se aprenderem com a periferia já é uma grande coisa. Entender os problemas que
eles têm. Eu nunca mais me esqueço que aqui em Brasília as delegadas estavam muito chateadas
porque as mulheres que apanhavam e davam queixa de seus maridos uma semana depois iam lá e
tiravam a queixa. “- Mas que gente sem consciência!”, diziam elas. É porque as mulheres que
rejeitavam os seus maridos íam sofrer nas mãos de seus vizinhos. Piores ferimentos do que
apanhar... Entender esse mundo é muito importante. Entender, por exemplo, também o mundo
das crianças... Foi feita uma pesquisa, não me lembro se foi no Serviço Social, que dizia que o
grande desejo das crianças era ir no supermercado. Serve?! São sonhos que para nós burgueses é
um negócio que, óh!, completamente desprezível... Que nada! É outro mundo. Se a gente não
entende o outro mundo, o mundo oprimido, o mundo explorado, você não pode aprender direito.
E o direito tem uma tendência de estar com os vencedores e nunca com os vencidos. E a
extensão, se bem trabalhada, pode ser um belo instrumento para isso.
AMANDA: A Portaria 1.886/94 ela internalizou ou apontou para uma internalização da
extensão, dos núcleos de prática... Posteriormente, a Resolução nº 9 de 2004 atualizou a portaria
no sentido de colocar parâmetros mínimos para que esse modelo pudesse se desenvolver. De
2004 pra cá, que balanço o senhor faria dessas atividades práticas dentro do modelo? Como o
senhor avalia o desenvolvimento do próprio modelo?
AGUIAR: Balanço é um negócio meio pesado... (risos...) Eu diria que você não avança se você
não tiver sujeitos bem preparados. O grande problema das faculdades de direito é que qualquer
um acaba sendo professor... Não é porque você é um bom juiz que você vai ser um bom
professor. Não é porque você é um promotor reconhecido que você é um bom professor. Não é
porque você é um advogado que ganha muito dinheiro que você vai ser um bom professor. Por
que essas experiências de extensão não avançam em grande parte do Brasil? Porque as cabeças
são pequenas! Porque a formação é pequena, elitista... Nem a linguagem do outro eles
entendem... Eles têm um vocabulário muito deles... É muito comum, você já deve ter visto, o seu
cliente ganhar uma ação, mas ele não entendeu a sentença. E ele vem pra você com um olhar e
fala “O que esse cara tá dizendo?” A própria sentença, a linguagem nela utilizada, é uma
linguagem de separação... O caminho da extensão é um caminho para a união, para a
aproximação das pessoas. Qual é a avaliação que eu tenho? Eu penso que há uma enorme
dificuldade dessas experiências irem pra frente. Tem algumas experiências muito respeitadas,
mas elas são pequenas... O que a gente tem de faculdade de direito nesse Brasil... A última
estatística que eu li é que só na cidade de São Paulo tinham 118... Sabe... Não tem quadros! O
interessante é que a gente para formar novos quadros pegou o modelo norte americano que
pergunta “Quantos papers você escreveu?” e coisas assim... Interessante que eu tenho um colega
na universidade que se apresenta como o joãozinho da silva que tem 38 citações! Ele se
apresenta como o cara que foi citado 38 vezes em papers... Hoje deve ter mais... Mas quando
falou comigo era isso... Então, isso mostra bem uma visão contábil, bancária do mundo que o
Paulo Freire já vem falando isso há tantos anos. A educação bancária... Ele tá fazendo isso no
terceiro e no quarto grau na formação de professores. Por outro lado, a relação ainda nas escolas
particulares é mercantil. Então, você paga pra não fazer. “- Você acha que eu vou fazer extensão
universitária?! Eu já to pagando não sei quantos reais por mês com uma dificuldade incrível!”
Você pergunta: “- Você gosta da aula? – Não, os professores são repetitivos.”. As aulas são de
uma chatice impressionante!
AMANDA: (risos...)
AGUIAR: Mas é verdade! Você pega aí 90% dos casos as aulas são um horror! Eu fui ao Piauí...
Ontem tinha uma piauiense no meu grupo aqui... Eu fui em uma dada faculdade lá fazer uma
conferência e tinha um corredor cumprido... E eu fui passando pelas classes... Eu fui ouvindo o
que os professores tavam dizendo e, de raspão, ouvi dois erros crassos em segundos de
passagem. Uma confundindo Platão com Aristóteles... E outra confundindo a metalinguagem do
direito com a linguagem, quer dizer, o pessoal pensa que o discurso sobre o direito é o discurso
jurídico também. Então, embanana tudo... E eu passando pelos menininhos que são as vítimas
lá... Isso aí era uma universidade pública. Pra você ter uma idéia, que é preciso uma grande
mudança no mestrado (que você tá fazendo...), uma grande mudança na formação dos
professores e uma grande mudança da instituição, isto é, a gente ter uma outra visão do que é
uma escola, né... De vez em quando eu tenho vontade de... eu estudei com os gregos antigos... e
vocês alunos se reuniam e perguntavam “- Qual é o bom professor?” e íam lá e perguntavam “O senhor tá a fim de dar uma aula pra nós?”. O sujeito nunca pensava aonde eu vou dar aula. Ele
saía andando. Pelas alamedas, pelas ruas... Daí a palavra peripatus... A escola peripatética... A
escola que anda... É preciso que alunos e professores se unam...
AMANDA: O ensino jurídico está num contexto maior da universidade... E a nossa universidade
segue em parte um modelo calcado no ensino, modelo francês, e em parte um modelo norteamericano, em que se tem investimentos em nichos de pesquisa, aquela coisa do produtivismo
que o senhor falou... Que políticas podem ensejar um outro modelo de universidade? Que outro
modelo de universidade seria esse?
AGUIAR: Tem uma história triste da Unb... Eu fui procurador geral da Unb. E fui pegar aqueles
documentos originais da fundação... de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro... Pra ver o que eles
tinham na cabeça e o que eles criaram até então em termos normativos. Tinham uma
universidade livre, que recebia subsídios do MEC, mas não ficava sob a tutela do MEC,
experimental, isto é, experimentar novos modos de agir dentro do ensino, pesquisa e extensão, e
ao mesmo tempo uma universidade libertária, em que você podia optar por aquilo que você
quisesse. Aí, veio o golpe de 64 que foi matando... matando... matando... E hoje ela é uma
autarquia de regime especial totalmente voltada... Eu fui o último grito da universidade... Isso eu
me orgulho. Agora, por exemplo, o procurador da universidade não pode agir contra o MEC.
Agora ele é um funcionário da Advocacia Geral da União dentro da universidade. As
universidades federais brasileiras estão indefesas. No lugar de ter os seus procuradores e seus
defensores, os procuradores são seus fiscais. Então, eu fui um dos últimos que fez uma ação
violenta contra o Ministro da Educação. Com isso, eu garanti vencimentos maiores para as
universidades. E eles foram cortando, cortando, cortando em termos de competência, de
criatividade... E essa universidade, nessa história específica que estou te contando, sofreu um
baque terrível. E aqui em Brasília puseram um Reitor que era pra acabar com ela. Tanto é
verdade que 129 professores saíram. Saiu a nata!
AMANDA: Isso em...?
AGUIAR: Isso em 64, 65, 66, 67... Muitos deles foram anistiados. Mas eu, como procurador, em
98, digo 96, ainda estava anistiando gente. E o mais triste foi o seguinte... Eu fui pra Europa, em
seminários por lá, e encontro professores que não voltaram mais. Tavam lá em Paris, na Suécia,
tavam não sei onde... Pronto, encontraram lá o seu canto e nós perdemos esse saber. O Brasil
perdeu o investimento que fez sobre essas pessoas. A gente normalmente não apoia as atividades
educacionais no país. É tudo retórica... Não há uma efetiva contribuição. É um negócio
impressionante... Eu tive uma outra experiência horrorosa quando eu tava na UNESCO e eu vim
ajudar o Cristovam que era ministro da educação... Do Lula... “Roberto, eu tava numa viagem e
me demitiram por telefone...”. E era um sujeito que era símbolo da educação. Tinham que ter um
mínimo de respeito independentemente de concordar ou não... É tratado assim como se fosse um
pedaço do bolo...
AMANDA: O senhor acha que não há como construir política educacional dessa forma...
AGUIAR: Exatamente. É outro problema no Brasil. Toda hora muda a política das coisas. Eu fui
duas vezes secretário de segurança. Aqui e no Rio. Me perguntaram “ - O senhor vai fazer isso?”
Eu disse “- Vou. Eu num sou um lutador dos direitos humanos?! Vamos lá dentro fazer isso...” E
o pessoal não entra, né... Lá em não posso e tal... Aí um camarada me disse “- Eu quero ser pedra
e não ser vidraça”. Eu falei “Como é que faz se vc não vai botar a mão naquilo...?” No meu
discurso, quando eu assumi aqui, que foi antes do Rio, eu disse aos policiais “Eu conheço bem
vocês... Como preso político, como advogado e agora como chefe de vocês...”. Botar a mão na
massa... Eu acho que é isso...
AMANDA: Verificar a política real...
AGUIAR: Exatamente. Menina, o que tem de gente agora que se coloca como sofredor do golpe.
Mas que não foram... Então, entrando dentro do seu tema, você vai ter um trabalho muito grande
pra ver o que é farsa e o que é o real. As vezes numas experiências de extensão que eu também
fui ver e tal, sem a complexidade e a profundidade sua, não era aquilo que eles diziam. Eles
entravam num congresso pra dizer “ - Nós fazemos A, B, C...”. E não faziam! Em compensação
os quietinhos lá, faziam... Num trabalho seu como cientista, ver o que é farsa e o que é o real...
Pra você ver um padrão, pra sugerir... No fundo, o inferno está cheio de boas intenções...
AMANDA: Agora, não especificamente sobre o meu tema, mas sobre a universidade... A gente
está vivendo um momento em que, por um lado, a universidade vem adotando práticas
inclusivas, seja no acesso à universidade, seja em fóruns de discussão, ainda que esses fóruns
estejam incipientes... Mas a universidade vem adotando essas práticas inclusivas. Daqui pra
frente, o que o senhor acha que teremos de transformação com relação ao acesso? Até que ponto
as políticas inclusivas reconfiguram o modelo de universidade?
AGUIAR: Eu acho muito importante a adoção de práticas inclusivas. Nós temos um débito
brutal com grande parcela da população. Como princípio, não tenho nem o que discutir. O
grande problema é o poder de envolvimento dos grupos dominantes. Eles colocam um negro na
universidade e no último período ele já vai estar branco. Aqueles que se mantém com a sua
negritude, a sua cultura, esses têm, mas são raros. Os outros vão entrando na máquina de moer
carne dos brancos. Nunca me esqueço de um juiz que foi meu aluno... Deu uma empombada de
tal maneira que não olha nem para os colegas. Meu deus do céu! Ele é filho de uma lavadeira,
negra, oprimido, no tempo em que nem havia essas cotas. Pra mostrar a você que de um lado é
bom. De outro lado, é preciso que a máquina se abra ainda mais para que não embranqueça os
índios, os negros... Que não tornem machos as mulheres... Tem mulher ficando “macha” com o
tempo. Pensando como homem... Aí, vai criar um homem preconceituoso como a gente vê... Há
uma tensão institucional, mas no fundo ela vai virando uma tensão ideológica. Não basta incluir,
é preciso que a inclusão signifique o respeito à diversidade.
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