PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Diogo Henrique Bispo Dias Lógicas Paraconsistentes de um Ponto de Vista Filosófico MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Diogo Henrique Bispo Dias Lógicas Paraconsistentes de um Ponto de Vista Filosófico MESTRADO EM FILOSOFIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica orientação de São do Prof. Gonçalves de Souza. SÃO PAULO 2013 Paulo, Dr. sob a Edelcio Banca Examinadora __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ Ao vô João e vô Zezinho, por terem me ensinado mais do que a minha tenra idade permitia aprender; À vó Vanay e vó Lusia, por continuarem me ensinando muito mais do que minha idade jamais permitirá entender. Agradecimentos Gostaria de agradecer à minha famı́lia, pelo apoio e incentivo durante minha vida acadêmica. À CAPES, por permitir que, nos últimos anos, minhas principais preocupações fossem restritas ao campo da Lógica. Ao Prof. Dr. Edelcio Gonçalves de Souza, pela orientação cuidadosa e sempre presente, pela amizade, e por me ajudar a entender como uma demonstração formal pode ser elegante. Ao Prof. Dr. Lafayette de Moraes e Prof. Dr. Alexandre Costa-Leite, que participaram da minha banca de qualificação, pela leitura minuciosa do texto preliminar deste trabalho, e pelas valiosas crı́ticas e sugestões. Ao Lucas Alessandro Duarte Amaral, Arthur Heller Brito e à Renata Karla Magalhães, por lerem versões iniciais deste trabalho, pelas crı́ticas, sugestões e, principalmente, discussões sobre o tema. Aos demais amigos e amigas que, sempre que necessário, me lembravam que há vida para além da lógica. À Ellen Cristine Borges, pela revisão de inumeráveis versões desta dissertação, pela paciência infinita em me ouvir falar de paradoxos, contradições e inconsistências e, acima disso, pela companhia. Ladies and jellyspoons, hobos and tramps, cross-eyed mosquitos and bow-legged ants, I stand before you and sit behind you to tell you something I know nothing about. Next Thursday, which is Good Friday, there’s a Mother’s Day meeting for fathers only; wear your best clothes if you haven’t any. Please come if you can’t; if you can, stay at home. Admission is free, pay at the door; pull up a chair and sit on the floor. It makes no difference where you sit, the man in the gallery’s sure to spit. The show is over, but before you go, let me tell you a story I don’t really know. One bright day in the middle of the night, two dead boys got up to fight. The blind man went to see fair play; the mute man went to shout ”hooray!” Back to back they faced each other, drew their swords and shot each other. A deaf policeman heard the noise, and came and killed the two dead boys. A paralysed donkey passing by kicked the blind man in the eye; knocked him through a nine-inch wall, into a dry ditch and drowned them all. If you don’t believe this lie is true, ask the blind man; he saw it too, through a knothole in a wooden brick wall. And the man with no legs walked away. - Poema infantil americano Resumo Este trabalho abordará os aspectos filosóficos das lógicas paraconsistentes. Analisaremos a história dos princı́pios lógicos fundamentais para esta lógica, a saber: a lei de não-contradição e o princı́pio de explosão, bem como a história do surgimento da paraconsistência. Ademais, discutiremos uma interpretação da paraconsistência que defende a existência de contradições verdadeiras, denominada dialeteismo, e as possı́veis crı́ticas ao dialeteismo e, de forma geral, às lógicas paraconsistentes. O caráter filosófico do trabalho não significa que o texto estará isento de teoremas, fórmulas, demonstrações e outras questões formais. Porém, este aspecto formal não será tratado como um fim em si mesmo. O formalismo será utilizado para apresentar dois sistemas proposicionais paraconsistentes - lógica paraclássica e lógica paraclássica com inclusão - e compará-los com a lógica proposicional clássica. O arcabouço teórico construı́do para tal fim é filosoficamente relevante para discutir questões centrais à lógica, como a existência de leis lógicas, seu caráter a priori e, até mesmo, a própria definição de lógica. Por fim, será apresentado um método para encontrar, a partir de uma lógica dada, sua versão paraconsistente. Face à multiplicidade de sistemas lógicos paraconsistentes, este estudo é importante, pois permite explorar as possı́veis caracterı́sticas gerais das lógicas paraconsistentes, suas especificidades e, principalmente, métodos abstratos para gerar lógicas paraconsistentes. Palavras-chave: Lógica paraconsistente, dialeteismo, lógica paraclássica, lei de não-contradição, explosão, paraconsistentização. Abstract This master´s thesis comprehends the philosophical aspects of paraconsistent logic. It will analyze the history of the fundamental logical principles to this particular logic, namely: the law of non-contradiction and the principle of explosion, as well as the history of paraconsistency. Moreover, an interpretation of paraconsistency that defends the existence of true contradiction, known as dialetheism, will be discussed, as well as the criticism to this position, and, in general, to paraconsistent logics. The philosophical character of this thesis does not mean that the text will be exempt from theorems, formulas, demonstrations and other formal questions. But this formal aspect will not be treated as a end in itself. The formalism will be used to present two proposicional paraconsistent systems, namely: paraclassical logic and paraclassical logic with inclusion, and to compare them with classical logic. The theoretical framework built for such aim is philosophically relevant, for the discussion on central points in logic, such as the existence of logical laws, its a priori character, and even the very definition of logic. Finally, a method will be proposed in order to find, from a given logic, its paraconsistent version. Due to the multiplicity of paraconsistent systems, this study is important in order to explore the general features of paraconsistent logics, their specificities and, mainly, abstract methods for generation of paraconsisent logic. Key-words: Paraconsistent logics, dialetheism, paraclassical logic, Law of non-contradiction, explosion, paraconsistentization. Sumário Introdução 3 1 Breve Histórico Conceitual 7 1.1 1.2 Princı́pio de Explosão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 1.1.1 Explosão na Lógica Antiga . . . . . . . . . . . . . . . . 8 1.1.2 Explosão na Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 1.1.3 Explosão na Lógica Moderna . . . . . . . . . . . . . . 16 Lei de não-contradição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 2 Aspectos Filosóficos 2.1 24 Independência formal entre a lei de não-contradição e o princı́pio de explosão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 2.2 2.1.1 Linguagem Proposicional . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 2.1.2 Lógica de Paradoxos (LP ) . . . . . . . . . . . . . . . . 26 2.1.3 Lógica de Lacunas (gaps) (LG) . . . . . . . . . . . . . 28 Paraconsistência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 2.2.1 Dialeteismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 2.2.2 Paradoxos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 2.2.3 Crı́ticas ao Dialeteismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 1 SUMÁRIO 2.2.4 2.3 2 Crı́ticas à Paraconsistência . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Consequências Filosóficas das Lógicas Paraconsistentes . . . . 43 3 Lógica Proposicional Paraclássica 3.1 Modelo e Valorações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 3.1.1 3.2 3.3 3.4 52 Propriedades de (X, |=K ) . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Lógica Proposicional Clássica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 3.2.1 Propriedades de C . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 3.2.2 Inconsistência e Trivialidade em C . . . . . . . . . . . 59 Lógica Proposicional Paraclássica . . . . . . . . . . . . . . . . 60 3.3.1 Propriedades da Lógica Paraclássica . . . . . . . . . . . 61 3.3.2 Inconsistência e Trivialidade em P . . . . . . . . . . . 64 Lógica Paraclássica com Inclusão . . . . . . . . . . . . . . . . 65 3.4.1 Propriedades de P ∗ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 3.4.2 Inconsistência e Trivialidade em P ∗ . . . . . . . . . . . 67 4 Paraconsistência e Categoria 70 4.1 Categoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 4.2 Lógica via Categorias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 Considerações Finais 79 Referências Bibliográficas 82 Introdução Let contradictions prevail! Let one thing contradict another! and let one line of my poem contradict another! - Walt Whitman, Leaves of Grass Este trabalho tem um objetivo duplo. Em primeiro lugar, pretende-se apresentar as lógicas paraconsistentes de um ponto de vista filosófico, isto é, analisando as possı́veis contribuições do surgimento desses sistemas formais para a filosofia e, em particular, para a epistemologia. Além disso, serão apresentados dois sistemas proposicionais paraconsistentes especı́ficos, estabelecendo suas propriedades particulares e comparando-as com a lógica clássica. Por se tratar de lógicas não-clássicas precisamos, em primeira instância, caracterizar precisamente o que se entenderá, neste trabalho, por lógica. Sua definição formal será apresentada no segundo capı́tulo. Em linhas gerais, qualquer sistema que contenha um conjunto (de fórmulas) e uma relação de consequência será considerado uma lógica. Para compreender o que são lógicas paraconsistentes, retomemos a definição clássica de validade. Um argumento é válido se e somente se não existe situação em que suas premissas sejam verdadeiras, e sua conclusão falsa. Na lógica clássica, essa definição tem uma consequência particular. Tomemos o seguinte exemplo, chamado de argumento independente de Lewis: 3 INTRODUÇÃO 4 Hoje chove. Hoje não chove. Hoje chove ou há vida em Marte. Portanto, há vida em Marte. Este argumento usa dois princı́pios aceitos pela lógica clássica: Adição (α |= α ∨ β) e Silogismo Disjuntivo (¬α, α ∨ β |= β). Ainda que as premissas não tenham a menor relevância para a conclusão - isto é, tratam de assuntos completamente diferentes - como não existe situação em que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa, este é um argumento válido, ainda que contraintuitivo. Dito de outra forma, na lógica clássica, a partir de premissas contraditórias, pode-se deduzir qualquer conclusão, isto é, o sistema se torna trivial. Esta propriedade era chamada, pelos latinos, de ex contradictione quodlibet, que significa “de uma contradição, tudo se segue”. Na lógica contemporânea, esta é chamada de explosão, e uma lógica que contenha tal propriedade é considerada explosiva. O objetivo das lógicas paraconsistentes, portanto, é constituir-se como um sistema formal subjacente a teorias que contenham informações contraditórias sem, no entanto, permitir que qualquer informação seja deduzida. Neste sentido, há diversas formas de caracterizar uma lógica paraconsistente. Podemos defini-la como um sistema inconsistente (ou contraditório), mas não-trivial1 ; ou como uma lógica que contenha um operador unário não explosivo2 . O ponto central é que, numa lógica paraconsistente, o princı́pio de explosão deve ser refutado. Isso garante que, a partir de premissas contraditórias, seja possı́vel fazer inferências, sem deduzir qualquer conclusão. Sendo assim, neste trabalho, aceitaremos a simples definição de lógicas paraconsistentes como lógicas não-explosivas, ou seja, quando temos (α, ¬α 2 β). 1 2 Cf. [19], [39]. Cf. [10]. Neste mesmo artigo, são discutidas outras possı́veis formulações para as lógicas paraconsistentes. INTRODUÇÃO 5 Não obstante, esta definição não é de todo isenta de problemas. Tome, por exemplo, a lógica minimal3 . Ainda que esta seja paraconsistente, a inferência (α, ¬α |= ¬β) é válida. Isto significa que, de premissas contraditórias, pode-se concluir a negação de qualquer sentença, o que parece ir contra a motivação paraconsistente. Outras formulações de paraconsistência foram oferecidas. Mas, como todas apresentam algum tipo de problema, manteremos a definição anunciada, pela sua simplicidade e elegância. Notem que, ao definir paraconsistência, a expressão lógicas paraconsistentes está sendo usada no plural. Isto significa que há mais de um sistema lógico que refute o princı́pio de explosão4 . Do ponto de vista formal, é simples construir uma lógica paraconsistente. Basta, por exemplo, tomar a lógica clássica sem, no entanto, assumir que verdade e falsidade são exclusivas, isto é, sem rejeitar a possibilidade de uma mesma sentença ser verdadeira e falsa. Para tanto, basta entender uma valoração não como uma função de uma sentença em um valor de verdade - Verdadeiro e Falso - mas como uma relação entre sentenças e os valores. Mantendo a definição clássica de validade, este sistema paraconsistente refuta o argumento de Lewis, mas mantém a lei de não-contradição como verdade lógica. Este sistema chama-se LP , lógica de paradoxo, e foi formulado por Graham Priest5 . Voltemos à definição de lógica paraconsistente. Pode parecer que, à primeira vista, rejeitar a explosão implicaria rejeitar a lei de não-contradição, que afirma que, de duas sentenças contraditórias, uma deve ser falsa6 . A despeito das possı́veis formulações diferentes - e não exatamente equivalentes - esta lei e a ideia de explosão são formal e historicamente independentes. Para discutir tais assuntos, este trabalho será dividido em quatro capı́tulos. O primeiro apresentará o desenvolvimento histórico da lei de não-contradição 3 Trata-se da lógica intuicionista, sem a explosão. De fato, podem existir infinitas lógicas paraconsistentes. 5 Cf. [52]. 6 Formalmente, (¬(α ∧ ¬α)). 4 INTRODUÇÃO 6 e princı́pio de explosão, evidenciando os diferentes momentos nos quais tais princı́pios se tornaram aceitos de forma hegemônica. O segundo capı́tulo constitui o cerne da dissertação. Primeiro, serão definidas duas lógicas diferentes, com o intuito de demonstrar a independência formal entre a lei de não-contradição e o princı́pio de explosão. Em seguida, será exposto brevemente a origem da ideia de paraconsistência, bem como sua motivaçao. Outrossim, será apresentada uma posição metafı́sica defendida a partir da lógica paraconsistente, que afirma a existência de contradições verdadeiras, chamada de dialeteismo. Analisaremos, então, algumas crı́ticas às lógicas paraconsistentes - e, em particular, ao dialeteismo - e, principalmente, a importância filosófica destas. O terceiro e quarto capı́tulo terão um caráter mais formal. Começaremos com uma conceituação abstrata de Lógica - explorando algumas propriedades derivadas deste conceito -, que será subjacente à construção das lógicas proposicionais clássica e paraclássica. A partir destes dois sistemas, analisaremos quais propriedades são invariantes, e quais dependem das definições lógicas utilizadas. O último capı́tulo consiste em uma tentativa inicial de abordar o problema da paraconsistentização de lógicas 7 a partir da teoria de categorias. Será discutida a possibilidade de, a partir de uma dada lógica, construir sua contraparte paraconsistente. O capı́tulo encerra com comentários acerca da importância de tal procedimento, bem como as possı́veis ramificações desta abordagem. 7 De forma geral, trata-se do estudo dos métodos de construção de uma lógica paracon- sistente, a partir de uma dada lógica. Capı́tulo 1 Breve Histórico Conceitual O inı́cio da sabedoria está em chamar as coisas pelos seus nomes corretos. - Provérbio chinês Comecemos nossa análise pelos dois conceitos centrais à discussão sobre paraconsistência, a saber: a lei de não-contradição e o princı́pio - ou lei - de explosão. Como vimos, estes dois conceitos são frequentemente confundidos. O desenvolvimento das lógicas paraconsistentes permitiu um entendimento mais profundo dessas ideias, analisando as possı́veis relações e distinções entre as mesmas, tanto do ponto de vista formal, histórico quanto filosófico. Primeiro, vejamos como as duas ideias são historicamente independentes. É fundamental ressaltar que a discussão se limitará à relação lógica entre tais conceitos. Isso significa que não discutiremos os possı́veis aspectos metafı́sicos ou psicológicos dessa distinção. Em particular, não discutiremos as ideias de alguns pré-socráticos (como Heráclito e Parmênides), bem como as de Hegel, sobre contradição, visto que estas extrapolam o campo puramente lógico do presente trabalho. 7 CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 1.1 8 Princı́pio de Explosão 1.1.1 Explosão na Lógica Antiga A primeira formalização conhecida da lógica é a silogı́stica aristotélica. Ainda que Aristóteles não discuta expressamente o princı́pio de explosão, a silogı́stica é paraconsistente. Para ver isto, tome a seguinte inferência: Nenhum planeta é objeto vermelho Algum planeta é objeto vermelho. Todo objeto vermelho é objeto vermelho. ∴ Mesmo com premissas contraditórias, o silogismo não é válido, visto que ele refuta uma de suas regras, a saber: se uma premissa é negativa, a conclusão deve ser negativa. Portanto, de premissas contraditórias, não é possı́vel deduzir tudo1 . Aristóteles não formalizou uma lógica proposicional. Há poucos e esparsos comentários sobre inferência proposicional em sua obra. Não obstante, é possı́vel afirmar que tampouco esta lógica seria explosiva. Nos Primeiros Analı́ticos, o Estagirita afirma que uma mesma conclusão não pode seguir de uma proposição e de sua negação2 . A primeira lógica proposicional foi desenvolvida pelos estoicos. Estes estabelecem cinco formas indemonstráveis de argumentos válidos, a saber: (i) Se p, então q; p; portanto q (modus ponens); (ii) Se p, então q; não q; portanto, não-p (modus tollens); (iii) Não é o caso que (p e q); p; portanto não-q; 1 O fato de que, neste exemplo, dois termos são iguais, não significa que não se trata de um silogismo. O próprio Aristóteles utiliza esse recurso. Cf. [3], vol. 1, 63b23-64a16. Ademais, poderı́amos ainda considerar o caso em que os termos são diferentes, mas com extensões equivalentes como, por exemplo, ‘homem’ e ‘animal racional’. 2 [3], vol. 1, 57b3. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 9 (iv) Ou p ou q; p; portanto não-q; (v) Ou p ou q; não-p; portanto q; Entre a documentação disponı́vel, não há nenhuma menção à explosão. Mas podemos conjecturar se esta seria uma propriedade aceita desse sistema lógico. Sabemos que os estoicos aceitavam claramente o Silogismo Disjuntivo (¬α, α ∨ β |= β). Como vimos, esta regra é utilizada no Argumento de Lewis para demonstrar a explosão. Sendo assim, era de se esperar que, mesmo sem nenhum comentário especı́fico sobre esse assunto, este argumento fosse válido na lógica estoica. Mas não é. Além do silogismo disjuntivo, o argumento de Lewis usa a adição (α |= α∨ β). Essa regra não é aceita pelos estoicos em consequência da interpretação do conectivo “ou”em sua lógica. Segundo Lukasiewicz, “é evidente a partir do quarto silogismo que a disjunção é concebida como um conectivo ‘ou...ou’ exclusivo”3 . Ou seja, para os estoicos, uma disjunção é verdadeira quando apenas um de seus disjuntos for verdadeiro. Desta forma, a adição é inválida e, por consequência, o argumento de Lewis também o é. Mas isso seria suficiente para afirmar que a lógica estoica também é paraconsistente? A explosão pode ser estabelecida por outros meios. Por exemplo, se aceitarmos a definição moderna de implicação como implicação material, de premissas contraditórias podemos inferir qualquer coisa. Formalmente: Há vida em Marte. Se a Lua não é feita de queijo, então há vida em Marte. Não há vida em Marte. Então, a Lua é feita de queijo. No entanto, não podemos afirmar que a implicação estoica seguia esta definição. Segundo Sexto Empı́rico, há, entre os estoicos, um debate acerca da natureza dos condicionais, com quatro tratamentos diferentes possı́veis: 3 [43], p. 74. Citado por [40], p. 498. Esta, e as demais citações do inglês, são de tradução própria. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 10 [1] Filo diz que uma frase declarativa condicional perfeita é uma que não começa com uma verdade e acaba com uma falsidade, p. ex., quando é dia e eu estou a conversar, a frase ‘Se é dia estou a conversar’. [2] Mas Diodoro diz que é uma que nem podia nem pode começar com uma verdade e acabar com uma falsidade. Para ele a frase declarativa condicional citada parece ser falsa, uma vez que quando for dia e eu estiver calado começará com uma verdade e acabará com uma falsidade. Mas a frase seguinte parece ser verdadeira: ‘Se os elementos atômicos das coisas não existem, então os elementos atômicos das coisas existem’. Diodoro defende que começará sempre com o falso antecedente ‘Os elementos atômicos das coisas não existem’ e acabará com o consequente verdadeiro ‘Os elementos das coisas existem’. [3] E aqueles que introduzem a noção de conexão dizem que uma frase declarativa condicional é perfeita quando a contraditória de seu consequente é incompatı́vel com o seu antecedente. De acordo com estes as frases declarativas condicionais acima mencionadas não são perfeitas mas a seguinte é verdadeira ‘Se é dia, é dia’. [4] E aqueles que julgam pela implicação dizem que uma frase declarativa condicional verdadeira é aquela cujo consequente está contido potencialmente no seu antecedente. Para estes a frase ‘Se é dia, é dia’ e todas as frases condicionais que forem repetitivas serão, ao que parece, falsas; porque é impossı́vel para uma coisa estar contida em si própria4 . Visto que não há um conceito bem estabelecido de implicação na lógica estoica, não podemos utilizar o argumento anterior para chegar à explosão. Sendo assim, ao que parece, a lógica estoica também é paraconsistente. 1.1.2 Explosão na Idade Média A invenção (ou descoberta) do argumento de Lewis é incerta. Alguns a atribuem ao lógico francês William de Soissons, no século XII5 ; outros argumentam que as primeiras discussões sobre o tema aparecem nas obras de Garlando Compotista e Pedro Abelardo6 . O que sabemos, a partir dos documentos disponı́veis, é que a propriedade da explosão - à época chamada de ex 4 [41], p.128-9. A numeração é de Kneale e Kneale. Cf. [54], p. 294. 6 Cf. [34]. Segundo este autor, Abelardo também seria o primeiro entre os medievais a 5 recusar a validade deste argumento. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 11 contradictione quolibet, ou ex impossibili sequitur quodlibet, foi amplamente discutida durante o século XIV. Vejamos por que. A lógica medieval é responsável pela primeira tentativa de sistematizar teorias de consequências, isto é, determinar em que consiste um argumento válido. Com este propósito, há uma ampla discussão a respeito da validade de regras de inferências fundamentais; do comportamento dos conectivos lógicos e, principalmente, da própria noção de consequência lógica. Por algum motivo desconhecido (já que o assunto ainda é motivo de disputa entre os especialistas), no século XIV, começaram a surgir vários tratados sobre este último tema especı́fico. Uma hipótese possı́vel é a de que se trata de uma tradição que remonta ao quinto livro do Organon, de Aristóteles, intitulado “Tópicos”, que aborda os padrões de raciocı́nio válidos que não são reduzidos ao silogismo. No entanto, não há nenhum indı́cio na literatura do século XIII, sobre os “Tópicos”, da discussão acerca de consequência que surgiria no século seguinte. Por outro lado, a discussão a respeito dos conectivos lógicos “e”, “ou”, “se...então”, indica uma possı́vel influência dos estoicos - considerados os primeiros a discutir o que hoje chamamos de lógica proposicional. No entanto, ainda que elementos comuns possam ser encontrados nos textos medievais, não há referência direta alguma aos estoicos. Portanto, tal influência ainda precisa ser estabelecida - ou refutada. O princı́pio de explosão não é uma propriedade hegemônica na Idade Média essencialmente por três motivos7 . Em primeiro lugar, há uma confusão acerca da noção de consequência lógica, uma vez que o conceito consequentia é usado tanto para consequência lógica, quanto para condicionais8 . Em segundo lugar, não há um consenso a respeito da definição de consequência lógica. Ora, se não há tal consenso, segue-se que as propriedades decorrentes da noção escolhida também variam. E, por fim, os lógicos medievais 7 8 Quatro, se contarmos a escassez de documentação deste perı́odo. Esta tese não é aceita por todos os estudiosos. Segundo [51], a distinção entre con- sequência lógica e condicional estava clara para a maior parte dos medievais. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 12 distinguem tipos diferentes de consequência lógica, fazendo uso dos mesmos conceitos, mas com significados diferentes. A lógica contemporânea distingue diversas relações possı́veis entre proposições. A relação de derivar uma proposição de outras proposições dadas é chamada de inferência; a relação entre o antecedente e o consequente em um proposição do tipo “se...então”é chamada de implicação 9 ; há outra relação que determina que uma proposição não pode ser verdadeira, e outra falsa, e é chamada de implicação lógica (entailment). Claramente, são três relações distintas. No entanto, durante a Idade Média, as três eram chamadas de consequentiae. Assim, alguns lógicos medievais apresentam dificuldades em classificar uma consequentia como vera (verdadeira), ou como valet (válida). Da mesma forma, ora dividem uma consequentia em antecedente e consequente, ora em premissas e conclusão. Ademais, havia, neste perı́odo, uma ampla discussão sobre os tipos - ou subtipos - de consequentiae, a saber10 : (i)Simplices vs. ut nunc; Uma consequentia simplex é necessária e atemporal, isto é, “o antecedente não pode, em qualquer tempo, ser verdadeiro sem que o consequente o seja”11 , ao passo que uma consequentia ut nunc vale em um momento especı́fico ou de acordo com hipóteses especı́ficas. Por exemplo, a consequência ‘Sócrates é um homem e, portanto Sócrates é um homem ou Sócrates é um asno’ é simplex, de acordo com Pseudo-Scotus, que defendia que de uma proposição, segue uma proposição disjuntiva, tal que a primeira inicial é um dos disjuntos da segunda. Já a proposição ‘Sócrates está correndo, portanto um homem está correndo’ não apresenta uma relação de necessidade lógica entre suas partes, mas depende de outra proposição contingente, a saber: ‘Sócrates é 9 Note que há varios tipos de implicação, tais como implicação relevante, intuicionista, linear, contrafactual etc. Para uma introdução ao tema, Cf. [64]. 10 Estas divisões não são necessariamente subdivisões de consequências. A hierarquia ou a falta dela - varia de acordo com o autor. 11 [41], p. 289. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 13 um homem’; sendo assim, esta é uma consequentia ut nunc. Esta definição tem formulações similares nos diferentes autores deste perı́odo. A diferença entre eles está na posição hierárquica deste tipo de consequência. Para Buridan e Pseudo-Scotus, esta distinção só se aplica a consequências materiais. Outros autores, como Peter de Mantua, aceitam este tipo de consequência como primário, e estabelecem consequências formais e materiais como subdivisões de consequentia simplex. ii) Formal vs. Material12 ; Esta distinção aparece, pela primeira vez, em Ockham13 . Segundo tal autor, uma consequência é formal quando há a necessidade de um intermédio adicional validando a consequência. Caso não haja esse intermédio, e a consequência vale apenas por causa de seus termos, trata-se de uma consequência material. Assim, a consequência ‘Sócrates não corre, portanto um homem não está correndo’ é formal, pois depende da informação adicional de ‘Sócrates é um homem’. A passagem de Ockham que define uma consequência material é considerada espúria por muitos estudiosos14 . Sendo assim, contamos apenas com dois exemplos de consequência material dados pelo autor: ‘Um homem está correndo, portanto Deus existe’ (ou seja, uma proposição necessária segue de tudo); e ‘O homem é um asno, portanto Deus não existe’ (ou seja, do impossı́vel, tudo se segue ou, ainda, ex impossibili sequitur quodlibet)15 . Como, na lógica medieval, a conjunção de duas sentenças contraditórias é o caso paradigmático de impossibilidade, este segundo exemplo é bem próximo do que chamamos, hoje, de princı́pio de explosão. 12 Além disso, há outra distinção, ora implı́cita, ora explı́cita, que é a distinção bona de forma vs. Bona de materia. Em alguns autores, esta distinção coincide com a formal vs. material, mas isto tampouco é um consenso. 13 [51], p. 474. 14 Cf. [41], p. 290, para uma possı́vel correção de um erro das primeiras versões do texto de Ockham. 15 Obviamente, Ockham pressupõe que a existência de Deus é uma verdade necessária. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 14 Em Buridan, por sua vez, a definição de consequência formal e material segue a tradição Aristotélica da noção de forma e matéria. Assim, uma consequência formal vale em virtude de sua forma (seus termos sincategoremáticos), ao passo que uma consequência material depende do significado de seus elementos (seus termos categoremáticos). Assim, a consequência formal segue o princı́pio de substituição, isto é, a consequência vale para qualquer substituição uniforme de seus termos16 . Pseudo-Scotus apresenta a distinção mais clara - neste perı́odo - entre consequência formal e material, a saber: Uma consequência formal é aquela que vale para todos os termos, desde que o arranjo e forma dos termos permaneçam iguais em todos os aspectos. (...) Uma consequência material é aquela que não vale para todos os termos, desde que o arranjo e forma sejam mantidos similares em todos os respeitos, de forma que não haja mudança senão nos termos17 . Ao analisar as consequências dessa definição, Pseudo-Scotus apresenta uma prova de que, em uma consequência formal, tudo se segue de proposições contraditórias: A partir da proposição ‘Sócrates existe e Sócrates não existe’, que implica uma contradição formal, segue-se ‘Um homem é um asno’ ou ‘Há um bastão na esquina’, ou qualquer outra coisa. Prova: ‘Sócrates existe e Sócrates não existe; portanto, Sócrates não existe’ é um argumento válido, já que há uma consequência formal entre uma proposição conjuntiva e qualquer uma de suas partes. Deixemos essa consequência em reserva. Seguindo, temos que ‘Sócrates existe e Sócrates não existe; portanto, Sócrates existe’ é válido pela mesma regra. E de ‘Sócrates existe’ segue que ‘Portanto Sócrates existe ou um homem é um asno’, já que qualquer proposição implica formalmente na combinação dela mesma com qualquer outra proposição em uma 16 Para aqueles que aceitam o critério de substituição, a distinção entre bona de forma e bona de materia é equivalente à distinção formal e material. Outros, como Ockham e Paul de Venice, definem consequentia bona de forma como aquela que vale de acordo com seus termos sincategoremáticos. 17 [41], p. 761. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 15 única proposição disjuntiva. Então, a partir do consequente, argumentamos que ‘Sócrates existe ou um homem é um asno, mas Sócrates não existe (de acordo com a consequência reservada anteriormente); portanto, um homem é um asno’. Um argumento deste tipo pode ser feito com qualquer outra proposição, já que todas as consequências são formais18 . Ainda que esta formulação seja bem próxima da atual, esta definição de consequência formal não era hegemônica no século XIV. Os três autores anteriormente citados defendem a ideia de que do impossı́vel, tudo se segue. No entanto, em Ockham, esta é uma propriedade da consequência material, ao passo que, para Buridan e Pseudo-Scotus, isto segue da definição de consequência formal19 . Passemos ao estabelecimento da validade de uma consequência. A maioria dos autores do século XIV aceita a definição clássica de consequência (o antecedente não pode ser verdadeiro e o consequente falso20 ) como uma condição necessária para a validade da consequência. No entanto, nem todos aceitavam isto como condição suficiente. Havia outra formulação presente nos tratados de Albert de Saxony e Marsilius de Inghen, que pode ser chamada de critério de inclusão (containment notion): uma consequência é formal se e somente se o consequente está contido no antecedente, de tal forma que quem quer que entenda o antecedente necessariamente entende o consequente21 . Temos, portanto, além da noção substitucional de consequência formal, uma noção epistêmica de consequência formal22 . 18 19 [41], p. 762. Há, ainda, outra distinção, a saber: natural vs. acidental, que não será discutida, já que, ainda que seja importante nas primeiras discussões medievais sobre consequência, no século XIV, ela aparece apenas em Burley. 20 Cf. [41], p. 472, para formulações equivalentes. 21 [51], p. 476. 22 Para Abelardo, o critério epistêmico era condição necessária para todas as consequências válidas. No século XIII, Kilwardby defende a mesma posição. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 16 Pseudo-Scotus, além de analisar as definições anteriores, apresenta outra formulação para consequência, a saber: uma consequência é válida se e somente se é impossı́vel que o antecedente seja verdadeiro e o consequente, falso, quando ambos são formulados conjuntamente23 . O resultado de diferentes noções de consequência é claro: há diferentes regras válidas de inferência, de acordo com a noção de consequência estabelecida. O princı́pio de explosão resulta naturalmente da definição modal de consequência como uma condição suficiente para sua validade. Isto é, dado que β é consequência de α se e somente se é impossı́vel para α ser verdadeira, e β falsa, segue-se que, sempre que α for impossı́vel de ser verdadeira, a consequência é válida independente de β. No entanto, outros lógicos refutam a definição modal como um critério suficiente para uma consequência válida. Drukken de Dácia e Richard Ferrybridge, bem como os filósofos da Cologne School, do final do século XV, exigem uma relação de relevância entre o antecedente e o consequente. Isto é, o critério de inclusão (containment) deve ser necessário e suficiente para todas as consequências válidas. Ademais, estes últimos rejeitavam expressamente o silogismo disjuntivo e a adição - justamente as regras que permitem inferir qualquer conclusão a partir de premissas contraditórias. Em suma, o princı́pio de explosão - aqui tratado como a ideia de que do impossı́vel tudo se segue - não era aceito de forma hegemônica durante este perı́odo. Esta propriedade só torna parte essencial da lógica após o estabelecimento, a partir do século XIX, do que se chama, hoje, de lógica clássica. 1.1.3 Explosão na Lógica Moderna A explosão só se tornou uma propriedade aceita de forma praticamente 23 [41], p. 287. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 17 hegemônica no final do século XIX, com o desenvolvimento formal da lógica moderna, levada a cabo, principalmente, por Boole, Frege e Russell. Segundo Priest24 , há dois motivos essenciais para esta mudança. Em primeiro lugar, temos a junção de duas ideias fundamentais para o lógica clássica, a saber, o conceito de negação e o de validade lógica. Boole formulou o tratamento clássico da negação, hoje chamada de negação booleana. Porém, esta negação não é a mesma da lógica proposicional moderna. A negação booleana comporta-se como um operador de complementação de conjuntos. O operador booleano de complementação não tem o efeito de reverter o valor de verdade de uma proposição, qualquer que ela seja, à qual o operador é aplicado (...). Em vez disso, o operador booleano para complementação N OT aplica-se apenas aos sı́mbolos de predicado, distinguindo uma classe complementar de propriedades25 . Tomemos a seguinte proposição como exemplo: “Algumas pessoas são felizes”. Aplicando o operador de negação como complementação de classe, temos “Algumas pessoas não são felizes”. Isso significa que a negação determina a classe de objetos que não tem determinada propriedade, isto é, que pertencem à classe complemento desta propriedade. No entanto, este tratamento da negação não é, necessariamente, funcional-veritativo. Se aceitarmos a proposição “algumas pessoas são felizes”como falsa, isso significa que “algumas pessoas não são felizes”é verdadeira. No entanto, se considerarmos a mesma proposição como verdadeira, nada sabemos sobre o valor de verdade de “algumas pessoas não são felizes”. Neste perı́odo estabelece-se também a noção clássica de validade, que determina que um argumento é valido se e somente se não existir situação em que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão, falsa. Nenhuma dessas ideias - negação booleana e validade clássica - é, per se, explosiva. Porém, 24 25 [53], p. 135. [38], p. 335. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 18 se tomadas conjuntamente, elas levam à explosão. Como consequência da negação booleana, temos que α, ou ¬α vale em cada situação. Dada a definição clássica de validade, segue-se que não há situação em que α e ¬α são verdadeiras, e β é falsa. Portanto, essa lógica é explosiva. O segundo fator foi estabelecido, essencialmente, por Frege e Russell, que foram responsáveis pela redução da análise dos conectivos lógicos a uma análise funcional-veritativa. Frege é responsável pela definição moderna dos conectivos lógicos como funções tais que o valor de verdade de uma sentença formada a partir destas funções é determinado puramente a partir do valor de verdade de seus componentes26 . Esta formulação é adotada pois, segundo o filósofo alemão, no que diz respeito à matemática, estou convencido de que nela não ocorrem pensamentos compostos com outra formação. Também em fı́sica, quı́mica e astronomia, dificilmente será diferente27 . Tendo em mente que, em Frege, o pensamento é o sentido de uma sentença assertiva28 , podemos reformular a tese do parágrafo anterior utilizando o vocabulário lógico contemporâneo, afirmando que todas as proposições matemáticas - e cientı́ficas - são formadas a partir de conectivos funcionaisveritativos. Ainda que este tratamento dos conectivos apareça já no Begriffsschrift 29 , encontramos sua formulação mais precisa nos textos Função e Conceito 30 e Pensamentos compostos. Uma investigação lógica 31 . Nos dois primeiros textos, o autor toma a negação e a implicação como conectivos primitivos, 26 Russell é responsável por definir esse tipo de função como função de verdade (truth function). 27 [30], pp.85-6. 28 [31], p. 137. 29 [28]. 30 [29]. 31 [30]. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 19 e define os demais a partir destes. No último texto, a negação e a conjunção são aceitas como primitivas. Do ponto de vista lógico-formal, ambas as formulações são equivalentes. Vejamos o caso da implicação e da disjunção. Como vimos, não havia um consenso a respeito do tratamento deste conectivo na lógica estoica. O mesmo se dá durante a Idade Média. Porém, ao definir o condicional como funcional-veritativo, estes autores adotam o que chamamos de implicação material 32 . Assim, uma implicação é verdadeira quando o antecedente for falso, ou o consequente verdadeiro33 . De acordo com Frege, ainda que esta definição não seja reflexo do uso de “se...então...”na linguagem natural, é a mais adequada para o rigor necessário em demonstrações lógicas e matemáticas . Portanto, a implicação (α → β) é definida como uma disjunção (¬α ∨ β). Percebam que, dessa forma, a inferência modus ponens (α, α → β |= β) torna-se logicamente equivalente ao silogismo disjuntivo (¬α, α ∨ β |= β). Uma disjunção, por sua vez, é verdadeira quando ao menos um dos disjuntos é verdadeiro. Obviamente, a adição, (α |= α ∨ β), torna-se uma regra de inferência válida. A partir dessas duas regras, temos novamente o argumento de Lewis. Portanto, ainda que contra-intuitivo, (α, ¬α |= β). Há uma anedota curiosa sobre Russell a este respeito34 . Ao afirmar para um colega que, de premissas contraditórias, tudo pode ser deduzido, este pediu a Russell que provasse, a partir do fato de que 2=3, que Russell era o Papa. Ao que Russell replicou: ‘subtraindo 1 dos dois lados da equação, temos que 1=2. Eu e o Papa somos dois. Como 1=2, eu e o Papa somos um. Portanto, eu sou o Papa’. Por motivos já conhecidos, esta lógica tornou-se o paradigma de sistema lógico-formal e, com ela, a explosão foi aceita como uma propriedade lógica 32 33 Este denominação foi cunhada por Russell. Ainda que os estoicos não tivessem uma formulação única de implicação, esta definição coincide com a posição defendida por Filo de Mégara (300 a.C). Cf. [41], pp. 128-32. 34 [53], p.132. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 20 elementar. 1.2 Lei de não-contradição A discussão sobre a lei de não-contradição é, do ponto de vista lógicoformal, menos controversa ao longo da história. Esta lei foi aceita como evidente - ou uma verdade universal e necessária - por quase toda a história da lógica. A formulação - e a defesa desta - remonta a Aristóteles35 . No entanto, a caracterização e a validade destes argumentos são altamente duvidosas. Deste modo, é notável que, desde então, não haja nenhum outro trabalho significativo que justifique adequadamente a lei de não-contradição e que, até o inı́cio do século XX, esta lei seja aceita como princı́pio mais evidente e fundamental da lógica36 . Por curiosidade, note o que Avicena afirma sobre aquele que pretende refutar tal lei: Quanto ao obstinado, deve-se atirá-lo ao fogo, já que o fogo e o não-fogo são idênticos. Deixe-o sofrer, já que o sofrimento e o não-sofrimento são iguais. Deixe-o sem comer e beber, já que comer e beber são idênticos à abstinência37 . Uma das primeiras crı́ticas à lei de não-contradição está em um artigo intitulado Sobre a Lei da contradição em Aristóteles 38 , publicado em 1910, pelo lógico e filósofo polonês Lukasiewicz. Segundo este autor, o avanço da lógica moderna permite uma análise pormenorizada das chamadas leis fundamentais da lógica e, da mesma forma que uma análise cuidadosa da 35 36 Os argumentos a seu favor encontram-se na Metafı́sica, livro γ. Cf. [3], vol. 2. Aristóteles afirma que “esse princı́pio é o mais seguro de todos”. Cf. [3], vol. 2, 1005b19-20. 37 [37]. 38 [44]. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 21 geometria euclidiana deu origem às geometrias não-euclidianas, esta análise possibilita o surgimento de sistemas lógicos não-aristotélicos. Caso tais leis fossem provadas fundamentais, ao menos seriam estabelecidas as relações - de dependência ou outras - entre elas. Além disso, o autor questiona quais as justificativas para aceitar uma lei como fundamental ou irrefutável. Esse artigo se propõe a analisar a definição e defesa da lei de contradição apresentada por Aristóteles, principalmente, no livro γ da Metafı́sica. Lukasiewicz afirma que há três formulações diferentes para a lei de não contradição na Metafı́sica de Aristóteles, a saber: psicológica, ontológica e lógica. Focaremos na formulação lógica. De acordo com o Estagirita, esta lei é fundamental e indemonstrável. Portanto, todo os que demonstram alguma coisa remetem-se a essa noção última porque, por sua natureza, constitui o princı́pio de todos os outros axiomas39 . No entanto, após afirmar isto, Aristóteles apresenta vários argumentos para demonstrar tal lei. Além dessa argumentação aristotélica não ser suficiente para defender sua posição inicial, essa lei não é a mais fundamental nem mesmo na silogı́stica aristotélica. O princı́pio do silogismo é independente e anterior a tal lei, e isto é evidenciado pelo próprio filósofo grego: Que seja impossı́vel simultaneamente afirmar e negar, isso não é pressuposto por nenhuma demonstração [silogismo], a menos quando a própria conclusão devesse demonstrar tal coisa. Isso, então, demonstra-se na medida em que se supõe ser verdadeiro predicar o primeiro termo do termo médio e nãoverdadeiro não predicá-lo. Mas, no que diz respeito ao termo médio e também ao terceiro termo, não faz qualquer diferença supor que ele é e não é. Seja dado um objeto qualquer [por exemplo, Cálias], do qual se possa dizer com 39 [3], vol. 2, 1005b32-4. CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 22 verdade que ele é homem, apenas sendo homem um animal e não um nãoanimal; será, então, verdadeiro predicar de Cálias que ele é um animal e não é um não-animal, ainda que homem fosse não-homem e Cálias fosse não-Cálias. A razão disso é que o primeiro termo vale não apenas do termo médio, mas também de outros objetos, uma vez que ele tem um âmbito de aplicação maior [do que o termo médio], de modo que não faz qualquer diferença para a conclusão que o termo médio seja e não seja o mesmo40 . Portanto, um silogismo pode ser válido, mesmo que refute a lei de nãocontradição. Lukasiewicz conclui dizendo que deve-se rejeitar de uma vez por todas a opinião falsa, ainda que muito difundida, segundo a qual a lei da contradição é o princı́pio mais superior de toda demonstração!41 O lógico polonês vai além, e defende que, tomada irrestritamente, a lei de nao-contradição é simplesmente falsa. Seguindo Meinong, afirma que objetos impossı́veis podem conter propriedades contraditórias. A esse respeito, Meinong declara que Russell põe a verdadeira ênfase em que, através da aceitação de tais objetos [impossı́veis], a lei da contradição perderia sua validade ilimitada. Naturalmente, eu não posso de modo algum deixar passar essa consequência. (...) De fato, a lei da contradição nunca foi aplicada por ninguém a outra coisa que o real e o possı́vel42 . Em seguida, Lukasiewicz ressalva que, por um lado, nunca teremos certeza de que construções conceituais são isentas de contradição - como mostra, por exemplo, o paradoxo de Russell - e, por outro, tampouco somos capazes de afirmar que nenhum objeto real contenha contradição43 . 40 [3], vol. 1, 77a10-22. Citado por [44], p. 17. [44], p. 19. 42 [48], p. 16. Citado por [44], p. 24. 43 A tese de que há contradições verdadeiras será discutida posteriormente. 41 CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO CONCEITUAL 23 Este artigo, que pode parecer como uma crı́tica irremediável à lei de nãocontradição termina, não obstante, de forma desapontadora. Ainda que não se trate de uma lei lógica fundamental e irrefutável, seria a “única arma contra o engano e a mentira”44 , visto que, se fosse refutada completamente, um acusado de assassinato não conseguiria provar sua inocência, já que provar que não cometeu o assassinato não seria suficiente para refutar a acusação de que ele é o assassino. Posteriormente, analisaremos outra crı́tica à lei de não-contradição. Esta posição é denominada dialeteismo, e defende a existência de contradições verdadeiras. Portanto, ao menos uma formulação da lei de não-contradição, que assevera que toda contradição é falsa, é considerada errônea. 44 [44], p. 21. Capı́tulo 2 Aspectos Filosóficos In formal logic, a contradiction is the signal of defeat, but in the evolution of real knowledge it marks the first step in progress towards a victory. - Alfred North Whitehead Este capı́tulo constitui o centro do trabalho. Começaremos demonstrando, no nı́vel proposicional, a independência dos conceitos discutidos anteriormente. Ainda que se trate de uma prova formal, este resultado tem importantes consequências filosóficas, como veremos adiante. O restante do capı́tulo lidará com os aspectos filosóficos das lógicas paraconsistentes. 2.1 Independência formal entre a lei de nãocontradição e o princı́pio de explosão Iremos demonstrar que os princı́pios de não-contradição e de explosão são logicamente independentes. Para isso, apresentaremos dois sistemas 24 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 25 lógicos. O primeiro refuta o princı́pio de explosão, mas mantém a lei de nãocontradição como uma verdade lógica. O segundo, por sua vez, é explosivo e, no entanto, refuta a lei de não-contradição. Esse resultado é fundamental, pois a relação entre essas duas ideias é comumente confundida no estudo das lógicas paraconsistentes, e boa parte das crı́ticas a esses sistemas é fruto desta confusão. Em primeiro lugar, estabeleceremos as noções comuns aos dois sistemas. Em seguida, definiremos os conceitos particulares de cada sistema e, por fim, demonstraremos a independência dos princı́pios estudados. 2.1.1 Linguagem Proposicional Os sı́mbolos primitivos de L são os seguintes: 1. Operadores Lógicos: (i) Negação: ¬ ; (ii) Conjunção: ∧ ; (iii) Disjunção: ∨ ; 2. Variáveis Proposicionais Utilizaremos x1 , x2 , x3 ..., y1 , y2 , y3 ... para variáveis proposicionais. Consideraremos V ar o conjunto de todas essas variáveis. 3. (Sı́mbolos Auxiliares) Utilizaremos parênteses para evitar possı́veis ambiguidades e indicar, de forma análoga às operações matemáticas, a ordem a ser seguida nas operações lógicas. Quando não houver risco de confusão, os parênteses serão omitidos1 . 1 Assumiremos, também, a notação usual da teoria de conjuntos. Em particular, se A e B são conjuntos, ℘(A) denota o conjunto das partes de A, e A × B denota o produto cartesiano de A e B. Cf. [36]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 26 Definição 2.1.1 Uma lógica L é uma estrutura L = hFL , |=L i tal que: (i) FL é um conjunto, cujos elementos são chamados fórmulas de L; (ii) |=L é uma relação em ℘(FL ) × FL chamada relação de consequên2 cia de L. Notem que estamos utilizando uma noção abstrata de lógica3 . Não estamos fixando um conjunto especı́fico, tampouco estamos imponto restrições à relação de consequência. Esta definição permite-nos estabelecer um pano de fundo comum para estudar sistemas lógicos diferentes. Definição 2.1.2 (i) Toda variável proposicional é fórmula; (ii) Se α e β são fórmulas4 , então ¬α, (α ∧ β), (α ∨ β), também o são. Passemos, então, às caracterı́sticas particulares de cada sistema 2.1.2 Lógica de Paradoxos (LP ) Esta lógica foi criada por Priest5 como uma forma de lidar com o paradoxo do mentiroso, e como a lógica subjacente ao dialeteismo 6 . A formalização de LP é construı́da a partir dos seguintes conceitos. Definição 2.1.3 Seja {1, 0} o conjunto cujos elementos são ditos valores de verdade7 e F o conjunto das fórmulas. Uma valoração é uma relação 2 Esta relação determina, a partir de um conjunto de sentenças, quais as sentenças que formam o conjunto de consequências do conjunto original. 3 Esta definição abstrata de lógica pertence ao escopo da Lógica Universal, que será discutida adiante, e foi formulada por Beziau. Cf. [9]. 4 As letras gregas denotam variáveis metalinguı́sticas para fórmulas. Da mesma forma, ∆ denota um conjunto qualquer de fórmulas. Os sı́mbolos ⇔ e ⇒ representam, respectivamente, equivalência e implicação metalinguı́stica. 5 Cf. [52]. 6 Ambos serão discutidos adiante. 7 Intuitivamente, 1 pode ser interpretado como Verdadeiro, e 0, como Falso. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 27 v ⊂ V ar × {1, 0}, tal que dom(R) = F. Isso significa que, para uma dada fórmula α, podemos ter v(α, 1), v(α, 0), ou ambos8 . Definição 2.1.4 A definição de consequência lógica de LP é a mesma que a da lógica clássica, isto é, uma inferência é válida se e somente se não há valoração em que suas premissas são verdadeiras, e a conclusão falsa. Formalmente, dados um conjunto ∆ de fórmulas, e uma fórmula α, temos que ∆ |=LP α se e somente se, para todo v (se v(β, 1), para todo β ∈ ∆, então v(α, 1)). Cada fórmula pode ter seu valor de verdade definido recursivamente, a partir das seguintes condições: (i) v(¬α, 1) ⇔ v(α, 0); (ii) v(¬α, 0) ⇔ v(α, 1); (iii) v(α ∧ β, 1) ⇔ v(α, 1) e v(β, 1); (iv) v(α ∧ β, 0) ⇔ v(α, 0) ou v(β, 0), ou ambos; (v) v(α ∨ β, 1) ⇔ v(α, 1) ou v(β, 1); (vi) v(α ∨ β, 0) ⇔ v(α, 0) e v(β, 0).9 Com esse aparato, podemos provar que esta lógica não é explosiva e, no entanto, preserva a lei de não-contradição. Proposição 2.1.1 O Princı́pio de não-contradição não implica o princı́pio de explosão. Prova. Suponha que v(α, 1), v(¬α, 1) e v(β, 0). Sendo assim, temos que v(α ∧ ¬α, 1) 8 9 10 , mas v(β, 0). Isso é o suficiente para mostrar que o princı́pio Quando v(α, 1) e v(α, 0), dizemos que α é verdadeira e falsa. Notem que as condições para os conectivos são as mesmas da lógica clássica. As valorações são diferentes apenas porque não aceitamos o pressuposto - implı́cito na lógica clássica - de que verdade e falsidade são exclusivas. Em outras palavras, LP aceita a possibilidade de uma mesma fórmula ser verdadeira e falsa. 10 Note que também temos v(α ∧ ¬α, 0). CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 28 de explosão não vale, ou seja, (α, ¬α) 2LP β. No entanto, pelo comportamento da negação, se v(α ∧ ¬α, 0), então v(¬(α ∧ ¬α), 1)11 . Isso significa que a lei de não-contradição continua sendo uma verdade lógica (ainda que algumas de suas instâncias também sejam falsas). Portanto, o princı́pio de não-contradição não implica o princı́pio de explosão ou, dito de outra forma, refutar a explosão não implica refutar o princı́pio de não contradição. 2.1.3 Lógica de Lacunas (gaps) (LG) Este sistema lógico foi criado apenas como um instrumento para estabelecer o objetivo desta seção. Trata-se de uma restrição da lógica FDE (first degree entailment) 12 . A principal diferença conceitual entre essa lógica e a LP está na definição de valoração. No sistema LG, uma uma valoração é uma relação v ⊂ V ar × {1, 0}, tal que se v(α, u) e v(α, v), então u = v. Isso significa que podemos ter v(α, 1), v(α, 0), ou nenhuma13 , mas não ambas14 . A definição de consequência lógica, bem como as definições recursivas dos conectivos mantém-se as mesmas do sistema anterior. Proposição 2.1.2 O princı́pio de explosão não implica o princı́pio de nãocontradição. Prova. Para provarmos o enunciado acima, devemos mostrar que LG é um sistema explosivo e, no entanto, refuta o princı́pio de não-contradição. Suponha que v(α, ∅)15 . Sendo assim, v(¬α, ∅). Portanto, (α, ¬α) |=LG β, para qualquer β. Isso mostra que LG é explosiva, i.é., de premissas contraditórias, 11 Bem como v(¬(α ∧ ¬α), 0). Cf. [27]. 13 Neste caso, α pode ser interpretada como não sendo verdadeira, nem falsa. 14 Em FDE, não é excluı́da a possibilidade de uma mesma fórmula ser verdadeira e falsa. 12 Neste sentido, LG é uma restrição de FDE. 15 Isto é, não temos v(α, 0) nem v(α, 1). CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 29 é possı́vel deduzir qualquer conclusão pois, visto que não há valoração em que as premissas sejam verdadeiras, e a conclusão, falsa, o argumento é válido, independende de β. No entanto, a mesma valoração demonstra que ¬(α∧¬α) não é tautologia, já que v(¬(α ∧ ¬α), ∅). Logo, em LG vale o princı́pio de explosão, mas não vale a lei de não-contradição. Em resumo, no sistema LP , vale a lei de não-contradição, mas não vale o princı́pio de explosão. Em LG, por sua vez, vale a explosão, mas a lei de não-contradição é preservada. A construção desses dois sistemas prova que os princı́pios lógicos em questão são independentes. 2.2 Paraconsistência Apesar da crı́tica à lei de não-contradição apresentada no capı́tulo anterior, Lukasiewicz não formula um sistema lógico que a refute. As origens da ideia de paraconsistência são dúbias16 . Em 1910, Vasiliev, aluno de Lukasiewicz, criou a lógica imaginária17 , para lidar com mundos imaginários, ou seja, mundos nos quais a lei de nãocontradição seria inválida. Ainda que esta lógica seja paraconsistente, isto se dá indiretamente, da mesma forma que a silogı́stica aristotélica é paraconsistente. Isso significa que Vasiliev não criou deliberadamente uma lógica não-explosiva, mas que esta propriedade é uma mera consequência de sua lógica imaginária. As primeiras lógicas evidentemente paraconsistentes surgiram praticamente de formas simultânea e independente. Em 1948, o lógico Polonês Jaskowski desenvolveu o que ele chamou de lógica discursiva 18 , para lidar 16 Cf. [45], pp. xxiii-vi, para uma análise da polêmica acerca dos criadores da lógica paraconsistente 17 O nome é uma referência à geometria imaginária - ou não-euclidiana - desenvolvida por Lobatchevski. Cf. [4]. 18 A publicação em inglês é de 1969. Cf. [39]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 30 com situações que envolviam informações inconsistentes. No final da década de 50, o americano David Nelson também discute a importância de lógicas inconsistentes e não-triviais, e contrói um sistema que modele tais situações19 . Em 1963, o lógico brasileiro Newton da Costa publica Sistemas Formais Inconsistentes20 , também apresentando uma lógica paraconsistente, chamada de C1 . No entanto, com o passar dos anos, da Costa desenvolveu extensões de C1 para a lógica de primeira ordem e teoria de conjuntos. Isto porque este considera que um sistema lógico, para realmente constituir uma lógica, deve ser desenvolvido ao menos até incluir quantificação e igualdade, dado o papel da lógica na articulação de sistemas conceituais. E, nesse ponto, (...) [da Costa] parece ter sido o primeiro lógico a fazer isto com lógica paraconsistente21 . A dúvida a respeito do criador da lógica paraconsistente surge, em parte, pela própria carência de uma definição precisa de paraconsistência. Geralmente, ao definir tal lógica, determina-se uma propriedade negativa que esta deve possuir, como não-explosão22 ; não-consistência e não-trivialidade23 ; ou possuindo uma negação não-explosiva24 . Sendo assim, não há uma definição positiva de paraconsistência25 . Desta forma, chega-se a resultados estranhos, como a afirmação de que a silogı́stica aristotélica é paraconsistente ou, ainda, que a lógica minimal também o é. Isto permite, também, que alguns lógicos defendam que não existem lógicas paraconsistentes26 . Enquanto não se encontrar uma definição positiva e precisa para tais lógicas, estes problemas permaneceram abertos e, entre eles, a discussão 19 [50]. [19]. 21 [16], p. 112. 22 Cf. [53]. 23 Cf. [39], [19]. 24 Cf. [10]. 25 Para algumas possı́veis definições positivas da lógica paraconsistente, cf. [10], pp.7-12. 26 Cf. [66]. A refutação desta posição encontra-se em [8] e [10]. 20 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 31 acerca do primeiro inventor da lógica paraconsistente. A discussão se torna filosoficamente interessante quando se leva em conta as razões para se utilizar - ou defender - uma lógica paraconsistente. E essas motivações estão presentes na própria nomenclatura desta lógica. O prefixo ‘para’ em inglês tem dois significados: ‘quase’ (...) ou ‘além de’. Quando o termo ‘paraconsistente’ foi cunhado por Miró Quesada, (...) em 1976, ele parece ter tido o primeiro sentido em mente. Muitos lógicos paraconsistentes, no entanto, entenderam o termo na sua segunda acepção27 . Há vários exemplos de situação em que o uso da lógica paraconsistente é desejável. Basta que tenhamos uma teoria - ou conjunto de informações - inconsistente e precisemos - ou desejemos - fazer inferências não-triviais a partir deste conjunto. Isso ocorre comumente em bancos de dados de um sistema computacional. Temos, também, teorias cientı́ficas notadamente inconsistentes. A Teoria Atômica de Bohr prevê que haja elétrons orbitando o núcleo de um átomo sem radiar energia. No entanto, de acordo com as equações de Maxwell - que são explicitamente incorporadas na teoria de Bohr - um elétron orbitante deve radiar energia. Claramente, trata-se de uma teoria inconsistente que, ainda assim, não permite inferir que elétrons sejam bolas de gude coloridas (o que seria possı́vel, caso a lógica utilizada fosse clássica e, portanto, explosiva). Destarte, esta teoria exige o uso de uma lógica paraconsistente. De forma análoga, a mecânica newtoniana é inconsistente com os dados observacionais acerca do periélio de Mercúrio. Encontramos outros exemplos também na história da matemática. As primeiras formulações do cálculo de Newton e Leibniz eram inconsistentes - e isto era reconhecido na época, como mostram as crı́ticas de Berkeley a essas teorias. Ao calcular derivadas, os infinitesimais eram considerados ora como nulos, ora como não-nulos28 . 27 28 [59]. Para uma análise detalhada de teorias matemáticas inconsistentes, cf. [49]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 32 Apesar disto, é fundamental notar que, em nenhum desses casos, as contradições são interpretadas como essenciais. Dito de outra forma, a princı́pio, é possı́vel excluı́-las dos bancos de dados; assim como rever ou rejeitar as teorias cientı́ficas inconsistentes. Não obstante, nem sempre é claro como excluir ou remodelar as informações inconsistentes. Ademais, como consistência não é decidı́vel em teorias complexas, tampouco teremos a certeza de ter alcançado o objetivo proposto. Portanto, nesses casos, o uso de lógica paraconsistente é altamente desejável. Em suma, um lógico paraconsistente pode utilizar este tipo de lógica por questões práticas, por falta de uma melhor opção ou, até mesmo, pelo interesse intrı́nseco de algumas teorias cientı́ficas consideradas falsas, sem considerar as informações inconsistentes verdadeiras. Nesses casos, a motivação está relacionada ao primeiro sentido da palavra paraconsistência, ou seja, uma lógica paraconsistente é quase consistente. 2.2.1 Dialeteismo Outrossim, há lógicos que defendem a existência de contradições verdadeiras; estas são chamadas de dialeteias. Esta posição é conhecida como dialeteismo. Esses termos foram criados por Priest e Routley29 . A inspiração para o nome foi uma passagem de Remarks on the Foundations of Mathematics, do Wittgenstein, onde ele descreve a sentença do mentiroso (...) como uma figura de Janus cujas cabeças voltam-se tanto para a verdade quanto para a falsidade. Assim, uma di-aleteia é uma verdade de duas vias30 . Vejamos, precisamente, o que significa dialeteia. Afirmar que há contradições verdadeiras significa, essencialmente, defender que há proposições α, ¬α, tal que ambas são verdadeiras (e falsas). A partir da conjunção, temos que (α ∧ ¬α) é verdadeira. Se uma proposição α tivesse apenas um 29 30 [57], p. xx. [55]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 33 valor de verdade, sua negação também teria apenas um valor e, pela regra da conjunção, a proposição (α ∧ ¬α) não poderia ser verdadeira. Portanto, defender que há contradições verdadeiras é uma consequência da crença na existência de sentenças tais que elas e suas respectivas negações são ambas verdadeiras (e falsas). É fundamental perceber que dialeteismo é diferente de trivialismo. O primeiro afirma que algumas contradições são verdadeiras, ao passo que um trivialista defende que todas as contradições são verdadeiras ou, de forma análoga, que tudo é verdade. Boa parte das crı́ticas ao dialeteismo incorre nessa falta de distinção. Apesar de defender a existência de contradições, uma lógica dialeteica não refuta, necessariamente, a lei de não-contradição. Basta notar que, na lógica LP , apresentada acima, esta lei é uma verdade lógica. Não obstante, o dialeteismo refuta a interpretação da lei de não-contradição que afirma que é impossı́vel uma contradição ser verdadeira. É claro que, se um lógico defende o dialeteismo, ele utilizará algum tipo de lógica paraconsistente; o inverso, porém, não é necessário. Assim, o dialeteismo se apóia na segunda acepção de paraconsistência, isto é, se propõe a ir além da consistência. Novamente, as coisas ficam interessantes quando analisamos as motivações para o dialeteismo. Há algumas situações que indicariam a existência de dialeteias. Essas situações podem ser divididas, de forma geral, em duas categorias: reais e abstratas. O primeiro caso envolveria a existência de contradições verdadeiras no mundo real. Por exemplo, ao sentar, há um exato momento em que estou sentado e de pé, isto é, não-sentado. Ou ainda, ao entrar em uma sala, em determinado momento, estou dentro e fora dela. A segunda categoria, e na qual iremos focar, diz respeito a contradições verdadeiras, mas abstratas. Os casos mais conhecidos são os paradoxos de auto-referência. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 2.2.2 34 Paradoxos Tome M como o nome da seguinte sentença: “A sentença M é falsa”. M é verdadeira ou falsa? Se for verdadeira, então o que ela afirma é o caso. Mas, como ela afirma que ela própria é falsa, M é falsa. Por outro lado, se M for falsa, então o que ela afirma não é o caso. Sendo assim, M é verdadeira. Ou seja, se M é verdadeira, é falsa; se M é falsa, é verdadeira. Este paradoxo é conhecido como paradoxo do Mentiroso, atribuı́do a Eubulides, do século IV a.C. Vejamos outro paradoxo: alguns conjuntos são elementos de si mesmo, outros não. Assim, o conjunto das ideias abstratas é elemento de si mesmo, ao passo que o conjunto de bolas de gude não o é. Tomemos, agora, o conjunto R dos conjuntos que não são elementos de si mesmo. Formalmente, R = {x : x ∈ / x}. R pertence ou não a este conjunto? Se R é elemento de si mesmo, ele não pertence a este conjunto, pois seus elementos não são elementos de si mesmo. Por outro lado, se R não é elemento de si mesmo, ele preenche os requisitos para pertencer a R, isto é, não ser elemento de si mesmo. Destarte, se R pertence a R, R não pertence a R; e, se R não pertence a R, então ele pertence a R. Portanto, R ∈ R ⇔ R ∈ / R. Este paradoxo foi formulado por Russell e, dessa forma, recebe o nome de seu autor31 . Alguns autores dividem esses paradoxos em duas categorias: paradoxos da teoria de conjuntos e paradoxos semânticos. A despeito do que eles possam ter de diferentes, vejamos suas semelhanças. Todos esses casos partem de princı́pios aparentemente evidentes e, por meio de argumentos válidos, chegam a contradições. O que há de errado com eles? Essa pergunta foi feita durante toda a história, e várias soluções foram propostas. 31 Curiosamente, alguns que afirmam que este paradoxo foi descoberto por Zermelo anos antes de Russell. Cf. [62]. Agradecemos ao professor Lafayette de Moraes por nos apresentar esta possibilidade. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 35 Comecemos nossa análise pela própria definição de paradoxo. Segundo Sainsbury, trata-se de “uma conclusão aparentemente inaceitável, derivada através de argumentos aparentemente aceitáveis, de premissas aparentemente aceitáveis”32 . Há várias tentativas de resolver esses paradoxos. Fixemos-nos no paradoxo do mentiroso. De acordo com o dialeteismo, o paradoxo do mentiroso é válido, isto é, suas premissas, regras de inferências e conceitos envolvidos devem ser aceitos. Sendo assim, como o dialeteismo pode considerar o paradoxo do mentiroso como, de fato, um paradoxo, visto que não o resolve do modo tradicional? Ademais, o que significa resolver um paradoxo? Segundo Armour-Garb33 , toda solução proposta implica em diagnosticar o paradoxo, isto é, identificar e rejeitar as premissas ou regras de inferência inválidas envolvidas na argumentação, ou realizar uma análise conceitual que evidencie um mau uso dos conceitos envolvidos que nos levou a uma conclusão inaceitável, e reformule tais conceitos. O autor segue a classificação de Schiffer34 sobre os possı́veis diagnósticos de um paradoxo usualmente propostos: i) Happy-face solution Partindo do pressuposto que as proposições envolvidas no paradoxo são mutuamente incompatı́veis, deve-se identificar as premissas ou regras de inferência a serem rejeitadas; explicar por que elas devem ser rejeitadas, além de esclarecer por que fomos levados a aceitá-las. O paradoxo do barbeiro35 , por exemplo, recebe este tipo de solução. Neste caso, prova-se que a existência do barbeiro é logicamente impossı́vel, ou seja, identifica-se a premissa a ser rejeitada. 32 [63], p. 1. Cf. [2]. 34 Cf. [65]. 35 Imagine uma pequena vila. Todos os dias, o barbeiro local faz a barba somente 33 daqueles que não barbeiam a si próprios. Afinal, quem faz a barba do barbeiro? CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 36 ii) Unhappy-face solution Este tipo de solução estabelece que não há problemas nas premissas, ou nas regras de inferências utilizadas, mas que o paradoxo surge de uma falha conceitual presente na argumentação. Destarte, trata-se de uma unhappyface solution, pois a identificação desta falha não implica, necessariamente, uma solução para o paradoxo. Dito de outra forma, este diagnóstico identifica uma utilização errada de um conceito, mas não determina como devemos reformulá-lo. A solução proposta por Tarski para o paradoxo do mentiroso é desse tipo. Segundo o filósofo polonês: Um traço caracterı́stico da linguagem coloquial (em contraste às várias linguagens cientı́ficas) é a sua universalidade. Não estaria em acordo com o espı́rito desta linguagem se, em alguma outra linguagem, houvesse uma palavra que não pudesse ser traduzida na primeira; pode-se afirmar que ‘se podemos falar coerentemente sobre um assunto qualquer, nós também o fazemos na linguagem coloquial’. Se quisermos manter essa universalidade da linguagem cotidiana em conexão com as investigações semânticas, para sermos consistentes, devemos também aceitar na linguagem, além de suas sentenças e outras expressões, os nomes dessas sentenças e expressões, e sentenças que contenham esses nomes, além de expressões semânticas como ‘sentença verdadeira’, ‘nome’, ‘denota’, etc. Porém, essa universalidade da linguagem cotidiana é possivelmente a fonte primária de todas as antinomias semânticas. (...) Tais antinomias parecem fornecer evidências de que toda linguagem que for universal nesse sentido, e que seguir as leis normais de lógica, devem ser inconsistentes. (...) Caso essas observações estiverem corretas, então a própria possibilidade do uso consistente da expressão ‘sentença correta’ - que é harmônica com as leis da lógica e com o espı́rito da linguagem cotidiana - mostra-se bastante questionável36 . Assim, Tarski identifica que as linguagens naturais são semanticamente fechadas, isto é, conseguem expressar o valor semântico de suas próprias sentenças. É exatamente esta propriedade que leva ao paradoxo do mentiroso. Dito de outra forma, não são as premissas, ou as regras de inferências 36 [68], p. 164-5. Citado por [2] p. 119. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 37 envolvidas que geram o paradoxo, mas a capacidade das linguagens naturais expressarem sua própria semântica ou, especificamente neste caso, a formulação do predicado verdade nas linguagens naturais. Portanto, a solução de Tarski é construir linguagens formais nas quais esse fenômeno não se repete. Para tanto, distingue linguagem objeto de metalinguagem, e proı́be o uso do predicado verdadeiro na linguagem objeto. Esta solução implica uma complexa - e artificial - hierarquia infinita de linguagens, na qual cada linguagem contém o predicado de verdade para os membros inferiores desta hierarquia. Deste modo, a sentença do mentiroso não pode ser formada em nenhuma dessas linguagens. Não obstante, esta solução pode ser questionada. Qual a justificativa para diferenciar linguagem objeto e metalinguagem, e impor uma restrição hierárquica ao predicado de verdade? Em boa medida, para evitar paradoxos de auto-referência. E qual a justificativa para tal? Ora, paradoxos de auto-referência levam a contradições. Ou seja, ao argumentar a impossibilidade de contradições verdadeiras, parte-se exatamente dessa impossibilidade. Portanto, trata-se de uma petição de princı́pio, isto é, pressupõe-se o que se quer provar. A maioria das soluções propostas para os paradoxos apresenta falhas desse tipo: não oferecem justificativas independentes para a aceitação ou objeção aos princı́pios semânticos envolvidos e, principalmente, parecem continuar sujeitos a paradoxos de algum tipo. Segundo o dialeteismo, essa situação mostra que é muito mais simples apenas aceitar que a sentença do mentiroso é verdadeira e falsa, ou seja, é uma dialeteia. A partir desta aceitação, Priest formulou uma teoria da verdade dialeteica simples: o predicado verdadeiro não tem restrição semântica37 . Sendo assim, o paradoxo do mentiroso seria um caso paradigmático de uma contradição verdadeira. Mas esta interpretação do paradoxo não se encaixa nas categorias apre37 Cf. [56]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 38 sentadas anteriormente. Não é uma happy-face solution, pois não rejeita as premissas, ou as regras de inferência envolvidas na argumentação; tampouco é uma unhappy-face solution, pois aceita os conceitos envolvidos no paradoxo e, em particular, entende o predicado de verdade nas linguagens naturais como não sendo problemático. No entanto, se este tipo de diagnóstico for condição necessária para caracterizar um paradoxo enquanto tal, e o dialeteismo insiste em chamar a sentença do mentiroso de paradoxal, então o dialeteismo deve revisar sua noção de paradoxo, ou rejeitar a sentença do mentiroso como paradoxal. A resposta para este problema está no próprio conceito de paradoxo. Armour-Garb afirma que o essencial de um paradoxo não é - ou, talvez melhor, não é só - que a conclusão é contraditória; antes, o que tomo como crucial para nosso entendimento de um paradoxo é que a conclusão não deve ser aparentemente endossada, dadas as plausı́veis premissas, conceitos e raciocı́nios empregados38 . Deste modo, a definição de paradoxo pressupõe que, se as premissas ou regras de inferências aceitas levam à contradição, então uma delas deve ser rejeitada.Um dialeteista, por sua vez, aceita os elementos do paradoxo, mas rejeita a remoção de alguns desses elementos simplesmente porque eles levam à inconsistência. Isso se dá porque, em qualquer lógica paraconsistente, inconsistências não são, a princı́pio, problemáticas. A partir disto, podemos reformular a noção de happy-face solution - enquadrando esse diagnóstico dialeteista, como: refutar as premissas - ou regras de inferência - envolvidas, ou evidenciar e revisar os princı́pios lógicos implı́citos na argumentação. No caso do paradoxo do mentiroso, o dialeteismo evidencia e rejeita o pressuposto implı́cito de que, se as premissas aceitas, por meio de inferências igualmente aceitas, levam à inconsistência, então devem ser rejeitadas ou reformuladas. Dito de uma forma mais precisa, o que o dialeteismo rejeita é a interpretação da lei de não-contradição como ‘toda contradição é falsa’. O 38 [2], p.121-2. Itálico no original. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 39 dialeteismo aceita que algumas contradições são verdadeiras - denominadas aleteias -, e o paradoxo do mentiroso seria o caso mais tı́pico de aleteia. Sendo assim, temos um diagnóstico do paradoxo. Em suma, a grande contribuição filosófica do tratamento dialeteista do paradoxo do mentiroso é, na posição de Armour-Garb, “oferecer um modo de repensar a natureza do paradoxo e, com isso, uma revisão das regras que governam paradoxo”39 . 2.2.3 Crı́ticas ao Dialeteismo Obviamente, aceitar que o dialeteismo oferece um diagnóstico para o paradoxo do mentiroso não implica aceitar que esse diagnóstico está correto e, muito menos, aceitar que a posição dialeteista é verdadeira. Há uma série de crı́ticas possı́veis ao dialeteismo. Notem a seguinte reformulação do paradoxo do mentiroso. Seja M a sentença: “A sentença M é não-verdadeira”. Pelo mesmo raciocı́nio discutido anteriormente, terı́amos que M é verdadeira e não-verdadeira. Afirmar que verdade e não-verdade não são exclusivas é algo completamente distinto de afirmar que verdade e falsidade não o são. Mas ambas são consequências do dialeteismo. Seria essa uma consequência desejável? Ademais, o dialeteismo parece estar sujeito a outras formas de paradoxo. Considere a sentença P : “A sentença P não é afirmável”. Teremos, novamente, que P é afirmável e não é afirmável. Como resolver este problema ou, então, como defender que este não é um problema? Um caminho possı́vel seria aceitar, como Priest, que o dialeteismo em si é uma dialeteia, isto é, uma contradição verdadeira. Isto levanta uma pergunta capital: Mesmo que o dialeteismo seja falso - e somente falso - como provar isto? Não se pode, obviamente, mostrar que esta posição leva a contradições, 39 [2], p. 113. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 40 visto que um dialeteista não só concorda com isto, mas aceita que isto é essencial. Como proceder, então? Outros filósofos que também defendem a lógica paraconsistente, como Bueno e da Costa, preferem adotar uma postura agnóstica em relação à existência de contradições, diferenciando dois campos: Uma coisa é utilizar a lógica paraconsistente, examinar suas formulações distintas, expandir seus resultados a novos domı́nios (como a elaboração da teoria de modelos paraconsistente); outra coisa, de uma natureza completamente distinta, consiste em investigar a natureza das suposições envolvidas em tal tarefa40 . Dito de outra forma, a discussão sobre a formalização - bem como sobre as possı́veis aplicações - das lógicas paraconsistentes não pressupõe uma posição ontológica sobre contradições. Ainda assim, esses autores reconhecem as possı́veis consequências filosóficas da aceitação de contradições verdadeiras: discussões referentes, por exemplo, à noção de existência na matemática e a sua relação com o conceito de consistência perderiam indubitavelmente muito da sua força e provavelmente deveriam ser revistas. As questões epistemológicas tradicionais referentes à natureza do conhecimento, em particular as oferecidas pela matemática, terão que ser revistas41 . 2.2.4 Crı́ticas à Paraconsistência Vejamos, agora, algumas objeções à paraconsistência e suas respectivas réplicas. Do que já foi dito, segue-se que uma rejeição à paraconsistência implica em uma rejeição do dialeteismo. Não obstante, pode-se rejeitar o dialeteismo e, ainda assim, defender a ideia de paraconsistência. Priest42 evidencia algumas crı́ticas infundadas à paraconsistência. As principais são: 40 [14], p. 56. [14], p. 56. 42 Esta análise segue, em linhas gerais, a argumentação de [60]. 41 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 41 i) Contradições não podem ser verdadeiras, pois implicariam tudo. No contexto da lógica paraconsistente, esse argumento não faz sentido. A partir da refutação do principio de explosão, contradições não implicam, necessariamente, tudo. Logo, não se pode simplesmente rejeitá-las com base nesta justificativa. Ademais, como vimos, há filósofos que defendem a existência de contradições verdadeiras. A impossibilidade destas, portanto, não pode ser meramente assumida. ii) Contradições não tem significado. Portanto, não faz sentido propor interpretações em que contradições sejam verdadeiras e, muito menos, aceitar que, de fato, elas sejam verdadeiras. Esta objeção tem um interesse particular, pois, caso seja levada à suas últimas consequências, não seria apenas uma crı́tica à lógica paraconsistente - e por consequência, ao dialeteismo -, mas à própria lógica clássica. Nesta, as contradições têm significado, elas implicam tudo. Ademais, se contradições não tivessem significado, não conseguirı́amos entender quando alguém as proferisse, tampouco julgar a falsidade - ou verdade - do que a pessoa proferiu. iii) A possibilidade de interpretações nas quais contradições são verdadeiras é excluı́da pelo tratamento clássico da negação, que é correto. Este é uma objeção que levanta um aspecto essencial da paraconsistência, a saber: o conceito de negação. Em primeiro lugar, é fácil mostrar que negação clássica não é uma interpretação da negação nas linguagens naturais, isto é, não explica o comportamento da partı́cula ‘não’ do português. Acrescentar ‘não’ a uma sentença não significa, necessariamente, negá-la. Tome, por exemplo, a sentença “Todo elefante é branco”. Sua negação não é “Todo elefante não é branco”, mas “algum elefante não é branco”. Sendo assim, o que seria negação? Pelo exemplo anterior, pode-se perceber que negação é uma relação entre contraditórios. O ponto central é que há várias explicações possı́veis para essa relação. Como vimos, o tratamento clássico da negação foi estabelecido por Boole no século XIX. Há outras formulações possı́veis para a negação como, por CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 42 exemplo, a negação intuicionista. Da mesma forma, há diferentes concepções de negação paraconsistentes. Ademais, qual o critério - se é que ele existe - para definir a noção correta de negação? Portanto, o essencial é perceber que o tratamento clássico da negação é um, entre outros possı́veis43 . iv) Contradições são inaceitáveis, pois a racionalidade é fechada por implicação lógica. Imaginemos a seguinte situação: alguém escreve um livro não fictı́cio sobre algum tópico. Cada informação αn é estabelecida da maneira empiricamente mais rigorosa possı́vel. Desta forma, o autor acredita em todas as informações presentes no seu livro, isto é, acredita racionalmente em (α1 ∧ α2 ∧ ... ∧ αn ). Independente disto, o autor também tem consciência de que todos os livros escritos apresentam algum tipo de informação incorreta, isto é, falsa. Portanto, ele também acredita que ¬(α1 ∧ α2 ∧ ... ∧ αn ). Logicamente, isto implicaria uma contradição, mas o autor não acredita em (α1 ∧ α2 ∧ ... ∧ αn ) ∧ ¬(α1 ∧ α2 ∧ ... ∧ αn ). Esta história é conhecida como paradoxo do prefácio. Apesar de este paradoxo mostrar que a crença racional não é fechada sob implicação lógica, poderia parecer que ele indicaria que não se pode acreditar racionalmente em contradições, independente de elas serem verdadeiras ou não. Mas esta também é uma objeção falsa. Consistência é, de fato, um critério para avaliar uma crença racional, mas não é o único. Tomemos, como exemplo, o campo da ciência. A aceitação de uma teoria não se limita ao critério da consistência. Outros aspectos, tais como aplicação, proximidade aos dados empı́ricos, ausência de hipóteses ad hoc e, até mesmo, elegância, são levados em conta ao aceitar - ou recusar - uma teoria cientı́fica. Portanto, uma teoria pode ser inconsistente e, no entanto, adotada pela comunidade cientı́fica. 43 De modo geral, este é o problema da argumentação contra a existência de lógicas paraconsistentes, apresentada em [66]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 2.3 43 Consequências Filosóficas das Lógicas Paraconsistentes Estabelecida a possibilidade formal, bem como as possı́veis utilizações das lógicas paraconsistentes, analisemos as consequências filosóficas do surgimento dessas lógicas. Enquanto a lógica subjacente a qualquer teoria ou - de modo mais amplo e menos preciso - sistema de crenças era a lógica clássica, a consistência era um critério necessário para sua aceitação44 . Dito de outra forma, de uma perspectiva clássica, um sistema de crença pode ser ampliado por informações novas, desde que estas não gerem inconsistências pois, nesse contexto, inconsistência e trivialidade são equivalentes, e um sistema trivial não tem valor epistêmico. Neste caso, é necessário eliminar as informações que geram a inconsistência. Segundo Bueno45 , ao utilizar a lógica paraconsistente como pano de fundo, temos uma mudança na própria natureza dos sistemas de crenças. Se, do ponto de vista clássico, a consistência é critério necessário para tais sistemas, ao separar inconsistência de trivialidade, a lógica paraconsistente permite a formulação e utilização de sistemas inconsistentes e não triviais. Sendo assim, a condição necessária para sistemas de crenças passa a ser a não-trivialidade. Neste sentido, da Costa formulou o que chamou de Princı́pio de Tolerância em Matemática: “Dos pontos de vista sintático e semântico, qualquer teoria é permissı́vel, desde que não seja trivial”46 . Essa mudança de critério permite uma análise positiva de teorias inconsistentes. Enquanto consistência for equivalente à trivialidade, face a informações inconsistentes, é necessário removê-las sem, no entanto, poder 44 Por exemplo, na teoria standard de revisão de crenças, AGM , para que um conjunto de sentenças se constitua como crença, ele deve ser consistente. Cf. [1]. 45 Cf. [15]. 46 [18]. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 44 analisá-las. Assim, a rejeição é praticamente arbitrária. No entanto, em várias situações, a análise de teorias inconsistentes pode ser a única forma de obter novas informações47 . Portanto, distinguir consistência de trivialidade, e estabelecer a rejeição da última como condição necessária para uma teoria, permite-nos fazer inferências não triviais a partir de sistemas inconsistentes e, assim, estamos em uma posição melhor para avaliar tais informações, possibilitando, por um lado, a obtenção de novas informações e, por outro, uma rejeição fundamentada48 das informações inconsistentes. Outrossim, a paraconsistência oferece novas perspectivas para o debate acerca do caráter a priori da lógica. Historicamente, a lógica tem sido vista como uma disciplina a priori. Isto significa, entre outras coisas, que seu conteúdo não é fundamentado empiricamente; tampouco considerações empı́ricas são utilizadas para reforçar ou refutar algum conteúdo lógico. Assim, entre os objetivos da lógica, está a tarefa de estabelecer verdades lógicas, isto é, verdades universais e necessárias. Uma das principais formulações modernas desta concepção foi estabelecida por Tarski. Segundo este autor, para garantir que nenhum conhecimento empı́rico influencie a lógica, é necessário - mas não suficiente - que qualquer relação de consequência obedeça ao critério de substituição, definido da seguinte forma: Se, nas sentenças da classe K e na sentença X, as constantes - com exceção de constantes puramente lógicas - são substituı́das por quaisquer outras constantes (como sinais substituı́dos em todas as ocorrências por sinais iguais), e se nós denotamos a classe de sentenças assim obtidas de K por K 0 , e a sentença obtida de X por X 0 , então, a sentença X 0 tem que ser verdadeira sob a condição apenas de que todas as sentenças da classe K 0 sejam verdadeiras49 . 47 Para possı́veis tratamentos paraconsistentes de sistema de crenças, cf. [22] e [58]. Com base em verificações empı́ricas, por exemplo. 49 [67], p. 241. Citado por [13], p. 159. 48 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 45 Sendo assim, o estabelecimento de uma consequência formal é completamente independente de qualquer conteúdo extralógico, dependendo apenas da forma do argumento. Uma das primeiras objeções a esse caráter a priori da lógica é levada a cabo por Birkhoff e Von Neuman, no artigo The Logic of Quantum Mechanics 50 , de 1936. Neste trabalho, os autores argumentam que a lógica clássica está em inconformidade com alguns dos princı́pios básicos da mecânica quântica, em particular, com o princı́pio de incerteza de Heisenberg e o princı́pio de não comutatividade de observações. Para esclarecer esta afirmação, vejamos e exemplo a seguir51 . Segundo a mecânica quântica, dada uma direção, elétrons têm dois possı́veis valores de spin (ou momento angular): +1/2 ou −1/2. Formalmente, podemos representar essa afirmação como: En = +1/2 ∨ En = −1/2, em que n representa a direção estabelecida. Ainda de acordo com a mecânica quântica - em particular, de acordo com o princı́pio de incerteza de Heisenberg - não é possı́vel determinar o spin de um mesmo elétron em duas direções distintas. Suponhamos que o spin de um elétron E tenha sido medido na direção x. Assim, temos, por exemplo, que Ex = +1/2. Independente desta experiência, sabemos que, para qualquer direção n, En = +1/2 ∨ En = −1/2 é sempre verdadeira. Aplicando o critério de substituição, temos que, na direção y, distinta de X, Ey = +1/2 ∨ Ey = −1/2. A partir dessas duas proposições verdadeiras, podemos formar a conjunção - também verdadeira: (1) Ex = +1/2 ∧ (Ey = +1/2 ∨ Ey = −1/2) Utilizemos, em seguida, o princı́pio de distribuição, obtendo a seguinte proposição: (2) (Ex = +1/2 ∧ Ey = +1/2) ∨ (Ex = +1/2 ∧ Ey = −1/2) 50 51 [11]. Reformulado a partir de [13], p. 159 e [20], pp. 126-8. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 46 De acordo com o critério de substituição, como a proposição (1) é verdadeira, a proposição (2) também o deveria ser. No entanto, ela está em evidente desacordo com o postulado - estabelecido empiricamente - que afirma ser impossı́vel determinar o spin de um elétron em duas direções distintas ao mesmo tempo. Dessa forma, é necessário fornecer outro aparato lógico para lidar com as experiências no nı́vel quântico, e essa é a motivação que levou Birkhoff e Von Neumann a formalizar uma lógica quântica. É interessante notar que os próprios autores atentam para o fato de que essa discordância entre a lógica clássica e a mecânica quântica é relevante para a discussão sobre o caráter a priori da lógica. Afinal, a lógica quântica “é determinada por razões quasi-fı́sicas e técnicas, diferentes das considerações introspectivas e filosóficas que, até então, guiaram os lógicos”52 . Uma das possı́veis refutações a esta argumentação seria a de que, na lógica quântica, os conectivos utilizados tem sentido diferente daqueles da lógica clássica. No entanto, Putnam53 afirma que esta refutação é infundada pois, na lógica quântica, os seguintes resultados são válidos: i) p implica p ∨ q; ii) q implica p ∨ q; iii) se p implica r e q implica r, então p ∨ q implica r; iv) p, q juntos implicam p ∧ q; v) p ∧ q implica p; vi) q ∧ p implica q; vii) p ∧ ¬p é contradição; viii) p ∨ ¬p; ix) ¬¬p é equivalente a p54 . 52 [11], p. 837. Cf. [61]. 54 [61], pp. 189-90. 53 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 47 Estas são as condições mı́nimas que, de acordo com um lógico clássico, caracterizariam os conectivos da lógica clássica. Portanto, os conectivos da lógica quântica são equivalentes aos da clássica. No entanto, a lógica quântica prova, empiricamente, que uma pretensa verdade universal e necessária - a lei da distribuição - é falsa. Na realidade, trata-se de uma lei válida apenas a um domı́nio restrito. Putnam afirma que esse conflito entre a lógica quântica e clássica é similar ao confronto entre geometria euclidiana e não-euclidiana. Assim como o advento das geometrias não-euclidianas mostrou que o que era considerado verdade necessária da geometria euclidiana pode ser - e em alguns casos é - falso, o mesmo se dá com as lógicas quânticas e, de forma geral, com as lógicas não-clássicas. Sendo assim, o que o ponto de vista clássico falha em reconhecer é a a prioricidade da lógica e geometria desaparece assim que as lógicas alternativas e geometrias alternativas começam a apresentar importantes aplicações fı́sicas55 . Outro exemplo conhecido de teoria cientı́fica inconsistente é a teoria atômica de Bohr. A lógica clássica não pode ser utilizada neste caso. No entanto, a lógica paraclássica, que será apresentada no capı́tulo seguinte, se mostrou apropriada para esta situação56 . A conclusão final de Putnam é de que “vivemos em um mundo com uma lógica não-clássica”57 . Esta afirmação nos leva a outra consequência filosófica das lógicas paraconsistentes. A partir do surgimento das lógicas não-clássicas, tentou-se dividi-las em duas categorias: heterodoxas (ou rivais) e complementares. Uma lógica complementar não pretende refutar a lógica clássica, mas apenas incorporar novos elementos a esta, ampliando sua aplicação; ao passo que as lógicas heterodoxas, além de refutar alguns dos princı́pios clássicos, pretendem substituir a 55 [61], p. 189. Itálicos no original. Cf. [25], capı́tulos 2 e 3. 57 [61], p. 184. 56 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 48 lógica clássica em algumas, senão em todas, as aplicações58 . Isso gerou outro problema, a saber: Existe uma lógica universalmente adequada? As lógicas paraconsistentes contribuı́ram para ambas as discussões. Em primeiro lugar, esses sistemas mostraram que esta divisão em lógicas heterodoxas e complementares carece de precisão terminológica. Afinal, há lógicas paraconsistentes - como a LP - que refutam parte da lógica clássica, pretendendo substituı́-la. Não obstante, a lógica paraclássica, que será discutida no capı́tulo seguinte, apesar de refutar o princı́pio de explosão, é, por definição, fundada na lógica clássica. Sendo assim, ela é heterodoxa ou complementar? E, de forma geral, as lógicas paraconsistentes são heterodoxas ou complementares? Os mesmos problemas desta distinção podem ser estendidos à determinação da adequação de uma lógica. Além disso, quais os critérios utilizados para estabelecer a adequação, ou razoabilidade, de um sistema formal? Será que essa pergunta, afinal, faz sentido? Esses questionamentos levaram ao surgimento, ou ainda, ao estabelecimento de outra abordagem para a lógica, a saber, a Lógica Universal. Se as discussões acerca de lógicas heterogêneas ou complementares, ou sobre a adequação global ou local de uma lógica, partiam do pressuposto que algumas leis lógicas seriam mais importantes, ou mais fundamentais que outras, o estudo da lógica universal parte do pressuposto de que “não há Uma Lógica ou Leis Absolutas da Lógica”59 . A partir do desenvolvimento das lógicas não-clássicas, ficou claro que nenhuma das chamadas leis lógicas podem ser consideradas condições necessárias para uma lógica, visto que há sistemas bem estabelecidos que rejeitem tais leis. Lógicas não-reflexivas rejeitam a lei de identidade, lógicas paracompletas revogam o princı́pio do terceiro excluı́do, e algumas lógicas paraconsistentes refutam - em certo sentido - a lei de não contradição, como 58 59 Para uma discussão acerca deste assunto, Cf. [35], capitulo 1. [9], p. 73. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 49 o sistema C1 60 . Foi justamente o estudo dessa lógica paraconsistente, que levou o filósofo e lógico Beziau a cunhar a expressão Lógica Universal61 , como a pretensão de estudar, principalmente, o que é comum a todas as lógicas. Naturalmente, isto leva à questão: o que é lógica? Ou, de outra forma, o que constitui uma lógica, isto é, quais os requisitos necessários para que um sistema seja chamado de lógica. Segundo Bourbaki62 , existem três estruturas matemáticas básicas: algébricas, topológicas e estruturas de ordem. A proposta de Beziau é que lógicas também sejam tratadas como estruturas matemáticas, mas independentes das estruturas anteriores, constituindo-se, portanto, como uma estrutura fundamental da matemática, não reduzı́veis às demais63 . A definição de lógica proposta por Beziau é exatamente aquela apresentada no primeiro capı́tulo deste texto. Trata-se de uma estrutura com um conjunto e uma operação neste conjunto, sendo que tal operação é livre de qualquer restrição ou imposição64 . Portanto, estas seriam as caracterı́sticas mais básicas divididas por todas as lógicas. Existiriam outras? Costa-Leite65 apresenta dois possı́veis princı́pios necessários (mas não suficientes) para que um sistema caracterize-se como lógica. Primeiro, o princı́pio de existência de uma linguagem, visto que uma estrutura lógica deve ser apresentada via uma linguagem formal. Segundo, a existência de uma relação de consequência. Isso pois, “gerar uma lógica é especificar um modo de obter algumas conclusões de um dado conjunto de premissas, isto 60 Neste, ¬(α ∧ ¬α) não é válida. Cf. [19]. Sobre a motivação e história da Lógica Universal, cf. [6] e [7]. 62 Cf. [12]. 63 De acordo com Beziau, o próprio Bourbaki admitia a possibilidade de existência de 61 outras estruturas matemáticas. Cf. [5], p. 137. 64 Como, por exemplo, exigir que ela seja uma estrutura de Tarski, isto é, seja idempotente, inclusiva e monotônica. 65 Cf. [17], pp. 19-20. CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 50 é, dizer como inferir em uma linguagem”66 . Da mesma forma, o autor defende que a existência de uma teoria da prova e a existência de uma teoria de modelos não podem ser tomadas como condições necessárias para a lógica, visto que, do ponto de vista abstrato, pode-se definir uma lógica sem utilizar tais recursos. No entanto, esta afirmação não é ponto pacı́fico entre os lógicos. Exatamente por esta falta de consenso entre os aspectos mais básicos da investigação lógica, investigar as propriedades inerentes ao conceito de lógica, bem como determinar as propriedades particulares de cada sistema, é uma das principais motivações e preocupações da Lógica Universal. Notem que, dentro do escopo da Lógica Universal, o debate acerca da heterogeneidade ou complementaridade de uma lógica não-clássica perde seu sentido. A lógica clássica é uma, entre as possı́veis lógicas, e tomá-la como ponto de referência é uma escolha puramente arbitrária e, em certo sentido, inócua. A Lógica Universal, enquanto estudo geral sobre lógica, apresenta novas perspectivas em diversos campos da lógica e filosofia, como a análise de conceitos - e, entre eles, o próprio conceito de lógica -, métodos para construção e combinação de lógica, validade e domı́nio de propriedades lógicas, entre outros67 . Estas são questões ainda em aberto. Não obstante, é fundamental notar que o desenvolvimento das lógicas paraconsistentes geraram problemas não só formais - como, por exemplo, o estudo de teorias matemáticas paraconsistentes, tais como a teoria paraconsistente de conjunto68 - mas, sim, contribuı́ram para o debate de importantes questões filosóficas. Isto mostra que relegar a lógica a uma disciplina puramente formal, não comprometida com problemas essenciais referentes ao conhecimento é uma postura simplista e ingênua. 66 [17], p. 19. Para um resumo dos problemas investigados pela Lógica Universal, cf. [5]. 68 Cf. [20]. 67 CAPÍTULO 2. ASPECTOS FILOSÓFICOS 51 Em suma, todas essas ramificações da lógica paraconsistente são consequência da refutação de uma das crenças mais básicas da filosofia, que defende que a verdade pressupõe consistência, isto é, que consistência é pressuposto para qualquer forma de conhecimento. Sendo assim, “o resultado filosófico [da lógica paraconsistente] pode ser a queda de outra doutrina aristotélica: que verdade se restringe ao domı́nio da consistência”69 . Neste sentido, surgiram outras teorias da verdade que pretendem superar esta restrição, como a teoria pragmática da verdade 70 . 69 70 [54], p. 387-8. Cf. [21]. Capı́tulo 3 Lógica Proposicional Paraclássica No one shall drive us from the paradise which Cantor has created for us. - Hilbert Este capı́tulo tem como finalidade apresentar formalmente duas lógicas proposicionais paraconsistentes, e analisar suas respectivas propriedades. Com o intuito de evidenciar as particularidades destes sistemas, apresentaremos, antes, a lógica proposicional clássica, bem como algumas de suas propriedades. 3.1 Modelo e Valorações Começaremos apresentando o arcabouço conceitual que subsidiará este e o capı́tulo subsequente. A definição de lógica e o vocabulário utilizados serão os mesmos apresentados anteriormente. A principal diferença do tratamento formal está na técnica utilizada para analisar as caracterı́sticas de 52 CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 53 cada sistema. Para tal, faremos uso de uma abordagem semântica, a partir dos coneitos de valoração e modelo 1 . Note que, pelo seu caráter abstrato, este tratamento dos conceitos lógicos encontra-se no escopo da Lógica Universal. Definição 3.1.1 Seja X um conjunto. Uma valoração V para X é um subconjunto de X. Definição 3.1.2 Sejam K uma famı́lia de valorações para X, e A ⊆ X. Definimos um K-modelo de A como M odK (A) = {V ∈ K : A ⊆ V }. Definição 3.1.3 Considere x ∈ X. Assim, um K-Modelo de x é definido como M odK (x) = {V ∈ K : x ∈ V }. O próximo passo é definir o conjunto consequência de A. Definição 3.1.4 O conjunto das K-consequências de A, denominado por CnK (A) é definido como CnK (A) = {x ∈ X : M odK (A) ⊆ M odK (x)}. Definição 3.1.5 Considere x ∈ X e A ⊆ X. (i) x é K-Teorema ⇔ M odK (x) = K. O conjunto dos teoremas de K é denotado por TK . (ii) x é K-Contradição ⇔ M odK (x) = ∅. O conjunto das K-Contradições é denotado por NK . (iii) A é K-Consistente ⇔ M odK (A) 6= ∅. Caso contrário, A é KInconsistente. (iv) A é K-Fortemente Inconsistente ⇔ existe uma contradição x tal que x ∈ CnK (A). (v) A é K-Trivial ⇔ CnK (A) = X. (vi) A é K-Paraconsistente ⇔ A é K-Inconsistente e K-não-trivial. 1 Cf. [23] e [24]. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 54 Evidenciemos algumas propriedades de CnK (A). Proposição 3.1.1 A ⊆ CnK (A). Prova. Suponha a ∈ A e V ⊆ M odK (A). Como A ⊆ V e a ∈ A, segue-se que a ∈ V . Isso significa que M odK (A) ⊆ M odK (a). Portanto, A ⊆ CnK (A). Proposição 3.1.2 Se A ⊆ B, então CnK (A) ⊆ CnK (B). Prova. Suponha que A ⊆ B, b ∈ B, e V é modelo de B, ou seja, V ∈ K e B ⊆ V . Assim, temos que A ⊆ V . Dito de outra forma, V é modelo de A. Portanto, se A ⊆ B, então M odK (B) ⊆ M odK (A). Tome, agora a ∈ A. Assim, temos que M odK (B) ⊆ M odK (A) e M odK (A) ⊆ M odK (a), isto é, A ⊆ CnK (A). Mas, se A ⊆ B, então a ∈ B. Isso significa que M odK (B) ⊆ M odK (a), ou seja, a ∈ CnK (B). Portanto, CnK (A) ⊆ CnK (B). Proposição 3.1.3 CnK (A) = CnK (CnK (A)). (Idempotência) Prova. Dividiremos esta prova em dois passos. Primeiro, provaremos que (i) CnK (A) ⊆ CnK (CnK (A)) e, em seguida, mostraremos que (ii) CnK (CnK (A)) ⊆ CnK (A). (i) Considere A. O resultado segue de uma simples aplicação das duas propriedades anteriores. (ii) Suponha que a ∈ CnK (CnK (A)). Precisamos mostrar que M odK (A) ⊆ M odK (a), isto é, a ∈ CnK (A). Seja D = CnK (A). Assim, temos que a ∈ CnK (D), isto é, M odK (D) ⊆ M odK (a). Mas, pela construção de D, segue-se que M odK (A) ⊆ M odK (D). Portanto, M odK (A) ⊆ M odK (a), ou seja, CnK (CnK (A)) ⊆ CnK (A). De (i) e (ii), conclui-se que CnK (A) = CnK (CnK (A)). Definiremos, a seguir, o conceito de relação de consequência lógica. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 55 Definição 3.1.6 Sejam A ⊆ X e x ∈ X. Definimos a relação binária (denominada consequência lógica) |=K ⊆ ℘(X) × X de acordo com: A |=K x se e somente se M odK (A) ⊆ M odK (x)2 . A partir da definição de lógica estabelecida acima, é claro que o par (X, |=K ) é uma lógica. O próximo passo é analisar algumas propriedades de (X, |=K ). 3.1.1 Propriedades de (X, |=K ) Proposição 3.1.4 (X, |=K ) é inclusiva, isto é, se a ∈ A, então A |=K a Prova. Temos que provar que M odK (A) ⊆ M odK (a). Suponha que a ∈ A. Pela definição de K-Modelo, temos que A é modelo de a, ou seja, M odK (A) ⊆ M odK (a), ou seja, A |=K a. Proposição 3.1.5 (X, |=K ) é monotônica, isto é, se A |=K a e A ⊆ B, então B |=K a Prova. Suponha que A ⊆ B e A |=K a. Segue-se, então, que M odK (B) ⊆ M odK (A) e M odK (A) ⊆ M odK (a). Logo, M odK (B) ⊆ M odK (a), isto é, B |=K a. Proposição 3.1.6 Se A |=K b, para todo b ∈ B e B |=K γ, então A |=K γ.(Transitividade) Prova. Suponha que A |=K b, para todo b ∈ B e B |=K γ. Dessa hipótese inicial, segue-se que M odK (A) ⊆ M odK (B) e M odK (B) ⊆ M odK (γ). Portanto, M odK (A) ⊆ M odK (γ), isto é, A |=K γ. 2 Temos, portanto, uma interação entre os conceitos de conjunto consequência e relação de consequência lógica, a saber: α ∈ CnK (A) ⇔ A |=K α. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 3.2 56 Lógica Proposicional Clássica Com essa estrutura teórica, é simples construir a lógica proposicional clássica. Para tanto, precisamos de um último conceito. Definição 3.2.1 Seja F or o conjunto de fórmulas da linguagem proposicional. E seja B uma valoração para F or, isto é, B ⊆ F or. Dizemos que B é booleana se as seguintes condições são satisfeitas. (i) α ∈ B ⇔ ¬α ∈ / B; (ii) α ∨ β ∈ B ⇔ α ∈ B ou β ∈ B (ou ambos); (iii) α ∧ β ∈ B ⇔ α ∈ B e β ∈ B; (iv) α → β ∈ B ⇔ ¬α ∈ B ou β ∈ B (ou ambos). Definição 3.2.2 Seja B a famı́lia de todas as valorações booleanas para F or. Definimos a lógica proposicional clássica C como a estrutura C = hF or, |=B i. Como é fácil verificar, as propriedades enunciadas acima são válidas na lógica proposicional clássica. Vejamos algumas propriedades adicionais deste sistema 3.2.1 Propriedades de C Proposição 3.2.1 O teorema da dedução é válido em C, isto é, T, α |=B β ⇔ T |=B (α → β). Prova. Suponha, por absurdo, que T, α |=B β, e que T 2B (α → β). De T, α |=B β, temos que, para toda valoração booleana B, se T ∪{α} ⊆ B, então β ∈ B. Mas, se T 2B (α → β), segue-se que existe uma valoração booleana B 0 , tal que T ∪ {α} ⊆ B 0 , temos que β ∈ / B 0 , o que contraria nossa hipótese. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 57 Portanto, se T, α |=B β, então T |=B (α → β). Para a volta, suponha, por absurdo, que T |=B (α → β) e que T, α 2B β. Isso significa que para toda valoração booleana B, tal que T ∪{α} ⊆ B, temos β ⊆ B. Mas, se T, α 2B β, então existe uma valoração booleana B 0 , tal que T ∪ {α} ⊆ B 0 , mas β ∈ / B0, o que contraria nossa hipótese. Portanto, T |=B (α → β) ⇒ T, α |=B β. Proposição 3.2.2 O teorema da compacidade é válido em C, isto é, A |=B α ⇔ Existe A0 ⊆ A finito, tal que A0 |=B α. Para a prova, precisaremos de alguns resultados preliminares. Começaremos com o seguinte lema: Lema 3.2.1 Seja B ∈ B. P(B) é o conjunto das variáveis propocisionais que ocorrem em B. Da mesma forma, se α ∈ F or, P(α) é o conjunto das variáveis propocisionais que ocorrem em α. Assim, (i) Se B1 , B2 ∈ B, tal que P(B1 ) = P(B2 ), então B1 = B2 ; (ii) Sejam α ∈ F or e B1 , B2 tais que, para todo p ∈ P(α), tem-se que p ∈ B1 ⇔ p ∈ B2 . Então, α ∈ B1 ⇔ α ∈ B2 ; (iii) A |=B α ⇔ A ∪ {¬α} é C-inconsistente, isto é, não existe B ∈ B, tal que A ∪ {¬α} ∈ B. Prova. (i) e (ii). Trata-se de uma simples demonstração por indução na construção de fórmulas. (iii). A prova é uma aplicação direta das definições. Antes de provarmos a compacidade da lógica propocisional clássica, iremos enunciar uma formulação equivalente desta propriedade; provar que, de fato, essa formulação é equivalente à proposição anterior e, por fim, demonstrar essa segunda formulação da compacidade. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 58 Proposição 3.2.3 A é C-Consistente se e somente se todo subconjunto finito de A é C-Consistente. Prova. Mostraremos que a segunda formulação da compacidade implica a primeira. Suponha que A |=B α. Pelo item (iii) do lema, segue-se que A ∪ {¬α} é inconsistente. Pela contrapositiva da proposição anterior, existe A∗ ⊆ A ∪ {¬α} finito e inconsistente. Temos, assim, dois casos: (i) ¬α ∈ / A∗ . Assim, A∗ ⊆ A e A∗ |=B α, pois A∗ é inconsistente. (ii) ¬α ∈ A∗ . Seja A0 := A∗ − {α}. Neste caso, temos que A0 ∪ {¬α} = A∗ é inconsistente. Novamente, pelo item (iii) do lema, segue-se que A0 |=B α e, pela construção de A0 , conclui-se que A0 ⊆ A finito. Precisamos de uma última construção antes de provar a compacidade. Seja P o conjunto das variáveis proposicionais, isto é, P = {p0 , p1 , ..., pn , ...}. Definimos a sequência B0 ⊆ B1 ⊆ B2 ... como {p0 }, se existe A0 ⊆ A finito tal que, para todo B ∈ B, 0 com A ⊆ B, tem-se que p0 ∈ B; B0 := ∅, se, para todo A0 ⊆ A finito, existe B ∈ B, tal que A0 ⊆ B ep ∈ 0 / B. .. . .. . Bn ∪ {pn+1 }, se existe A0 ⊆ A finito tal que, para todo 0 B ∈ B, com Bn ∪ A ⊆ B, tem-se que pn+1 ∈ B; Bn+1 := Bn , se, para todo A0 ⊆ A finito, existe B ∈ B, tal que B ∪ A0 ⊆ B e p / B. n n+1 ∈ Seja B ∗ := S n∈w e B ⊆ B, tal que B ∗ ⊆ B. Provar a compacidade, em sua segunda formulação, significa mostrar que A ⊆ B. Primeiro, demonstraremos que, quando pn ∈ Bn , vale que, para todo A∗ ⊆ A finito, existe B ⊆ B, tal CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 59 que A∗ ⊆ B e Bn ∈ B. Chamemos essa propriedade de Rn , e a provaremos por indução. Proposição 3.2.4 R0 : Quando p0 ∈ B0 , vale que, para todo A∗ ⊆ A finito, existe B ⊆ B, tal que A∗ ⊆ B e p0 ∈ B. Prova. (i) Prova de R0 . Seja A∗ ⊆ A finito e A0 ⊆ A (como na cláusula de B0 ). Então, existe A∗ ∪ A0 ⊆ A finito. Por hipótese (volta do teorema da compacidade), existe B ∈ B tal que A∗ ∪ A0 ⊆ B. Como A0 ⊆ B, temos, pela cláusula de B0 , que p0 ∈ B. (ii) Suponha, como hipótese de indução, que Rn vale quando pn ∈ Bn . Mostraremos que Rn+1 vale, isto é, quando pn+1 ∈ Bn+1 , temos que, para todo A∗ ⊆ A finito, existe B ∈ B, tal que A∗ ⊆ B e Bn+1 ∈ B. (iii) Prova de Rn+1 . Seja A∗ ⊆ A finito, e A0 ⊆ A (como na cláusula de Bn+1 ). Então, existe A∗ ∪ A0 ⊆ B finito. Pela hipótese de indução, existe B ∈ B, tal que A∗ ∪A0 ∪Bn ⊆ B. Pela cláusula de Bn+1 , temos que pn+1 ∈ B, isto é, Bn+1 ⊆ B. Partindo dessas considerações preliminares podemos, enfim, provar a segunda formulação do teorema da compacidade. Prova. Provaremos a volta do teorema da compacidade, isto é, Se todo subconjunto finito de A é C-Consistente, então A é C-Consistente. Sejam B ∗ := ∪n Bn e B ⊆ B, tal que B ∗ ⊆ B. Seja α ∈ A, tal que P(α) ⊆ P. Como {α} ⊆ A finito e Rk vale, existe B̄ ⊆ B, tal que α ∈ B̄ e Bk ⊆ B̄. Como B̄ e B concordam em P, logo α ∈ B. Portanto, A ⊆ B. 3.2.2 Inconsistência e Trivialidade em C Além das propriedades destacadas na seção anterior, é fácil mostrar que esse sistema lógico é explosivo. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 60 Proposição 3.2.5 C é explosiva, isto é, α, ¬α |=B β, para todo β. Prova. Considere A ⊆ F or e (α, ¬α) ∈ A. Pela condição (i) de valoração booleana, é claro que não existe uma valoração booleana B tal que A ⊆ B. Isso significa que M odB (A) = ∅. Tome β ∈ F or. Como M odB (A) = ∅, M odB (A) ⊆ M odB (β), isto é, A |=B β, independente de β. Portanto, |=B é explosiva. Essa demonstração garante que, na lógica clássica, trivialidade e inconsistência são equivalentes. Dessa forma, não conseguimos extrair nenhuma informação relevante de um sistema que contenha contradições. A próxima seção apresentará uma lógica que estabelece uma distinção entre trivialidade e inconsistência, permitindo, sob certas circunstâncias, fazer inferências nãotriviais, partindo de informações inconsistentes. 3.3 Lógica Proposicional Paraclássica O objetivo desta seção é apresentar uma possibilidade lógico-formal para lidar com informações inconsistentes. Para tal, apresentaremos um tipo particular de lógica paraconsistente, a saber: lógica proposicional paraclássica 3 . Formalmente: Definição 3.3.1 Uma lógica proposicional paraclássica P é uma estrutura P = hFP , |=P i tal que: (i) hFP , |=P i segue a definição 2.1.1 de lógica; (ii) FP = F or; (iii) T |=P α ⇔ existe U ⊆ T , C-Consistente, tal que U |=B α. Ou, de forma equivalente: (iii’) T |=P α ⇔ existe U ⊆ T , tal que M odB (U ) ⊆ M odB (α) e M odB (U ) 6= ∅. 3 Este sistema foi sugerido por da Costa, e desenvolvido por de Souza em [26]. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 61 Analisemos o comportamento, em P , das propriedades estudadas na seção anterior. 3.3.1 Propriedades da Lógica Paraclássica Lema 3.3.1 T é C-Consistente, e T |=B α ⇔ T |=P α e T |=P ∗ α4 . Prova. Suponha T |=B α. Pelo teorema da compacidade, seque-se que existe T 0 ⊆ T finito, tal que T 0 |=B α. Como, por hipótese, T é C-Consistente, então T 0 também o é. Logo, pela definição de P e P ∗ , temos que T |=P α e T |=P ∗ α. Proposição 3.3.1 (i) TC = TP ; (ii) NC = NP . Prova. (i) Lembrando que |=B α significa que M odB (α) = B. Dessa forma, α é C-Consistente e, portanto, T |=p α, para qualquer T . Logo, TC = TP . (ii) Suponha que α é uma C-Contradição. Então, não existe T 0 ⊆ T , CConsistente, tal que T |=B α. Ou seja, T 0p α. Logo, NC = NP . Proposição 3.3.2 Em P , a inclusão não é válida5 . Prova. Tome T = {x ∧ ¬x}. O único subconjunto C-Consistente de T é o vazio. Mas, como M odB (x ∧ ¬x) = ∅, ∅ 2B (x ∧ ¬x). Isso significa que T 2P (x ∧ ¬x). Portanto, T * CnP (T ). Proposição 3.3.3 Em P , a transitividade não é válida. 4 5 O sistema P ∗ será definido na próxima seção. A idéia de uma lógica paraclássica que refute a inclusão foi introduzida por Krause e Béziau em [42]. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 62 Prova. Considere T = {x ∨ y, ¬x}. Seja B uma valoração booleana tal que T ⊆ B. Se ¬x ∈ B, então x ∈ / B. Mas, se x ∈ / B e x ∨ y ∈ B, então y ∈ B. Portanto, T |=P y. Tomemos, agora, U = {x, ¬x}. É simples conferir que U |=P ¬x e U |=P x ∨ y. No entanto, U 2P y. Segue-se, então, que U |=P T e T |=B y, mas U 2P y. Corolario 3.3.1 Se U for C-Consistente, a transitividade vale. Prova. Suponha que U |=P T e T |=P y. Como U é C-Consistente e U |=P T , então T é C-Consistente. Assim, a transitividade segue classicamente. Conquanto a transitividade não seja válida, podemos utilizá-la com fórmulas individuais. A esta limitação da transitividade, damos o nome de transitividade fraca. Para demonstrá-la, usaremos o lema a seguir. Lema 3.3.2 (i) α |=P β ⇒ ∅ |=P β ou M odB (α) 6= ∅ e α |=B β; (ii) α |=P β e ∅ |=P α ⇒ ∅ |=P β; (iii) α |=P β e M odB (α) = ∅ (α é C-Contradição) ⇒ ∅ |=P β. Prova. (i) A demonstração segue da definição de P . (ii) Se α é teorema, então M odB (α) = B. Como α |=P β, temos que M odB (α) ⊆ M odB (β). Portanto, β é teorema, isto é, ∅ |=P β. (iii) Suponha que α |=P β e M odB (α) = ∅. Isso significa que M odB (α) ⊆ M odB (β) e Cnp (α) = Tp . Portanto, β é teorema. Proposição 3.3.4 α |=P β e β |=P γ ⇒ α |=P γ.(Transitividade Fraca) Prova. Suponha que α |=P β e β |=P γ. Como α |=P β, temos dois casos possı́veis: (a) β é teorema. Neste caso, por (ii), γ é teorema. (b) β não é teorema. Por (i), temos que M odB (α) 6= ∅ e α |=B β. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 63 Proposição 3.3.5 Idempotência não é válida em P . Prova. Tome T = {x, ¬x}. Da definição de valoração booleana, segue-se que, para toda valoração B, tal que x ∈ B, temos que x ∨ y ∈ B. Assim, x |=B x ∨ y e, por consequência, T |=P x ∨ y. Portanto, {x ∨ y, ¬x} ⊆ CnP (T ). Desse novo conjunto, como foi mostrado na prova anterior, temos que {x ∨ y, ¬x} |=P y. Assim, y ∈ CnP (CnP (T )), e y∈ / CnP (T ). Logo, CnP (T ) 6= CnP (CnP (T )). Proposição 3.3.6 O teorema da dedução é válido em P . Prova. Suponha que T ∪ {α} |=P β. Isso significa que existe U ⊆ T ∪ {α} tal que M odB (U ) 6= ∅ e M odB (U ) ⊆ M odB (β), isto é, U |=B β. Assim, temos três possı́veis casos. (a) α ∈ T . Neste caso, U ⊆ T e M odB (U ) ⊆ M odB (β). Mas, do comportamento da implicação, segue que, para todo B tal que β ∈ B, temos que (α → β) ∈ B. Logo, M odB (β) ⊆ M odB (α → β). Logo, M odB (U ) ⊆ M odB (α → β), isto é, U |=B α → β. Como U ⊆ T e M odB (U ) 6= ∅, conclui-se que T |=P α → β. (b) α ∈ / T e α ∈ / U . Assim, U ⊆ T e o resultado segue da demonstração acima. (c) α ∈ / T e α ∈ U . Segue-se que U − {α} ⊆ T , C-Consistente, tal que U − {α} |=B β. Isso significa que U − {α} |=B α → β. E, como tal conjunto é consistente e subconjunto de T , conclui-se que T |=P α → β. Proposição 3.3.7 O teorema da compacidade é válido em P . Prova. Suponha que T |=p α. Segue-se que existe T 0 ⊆ T, C-Consistente, tal que T 0 |=B α. O resultado é uma simples aplicação da compacidade clássica. Proposição 3.3.8 P é monotônica. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 64 Prova. Considere T ⊆ U e T |=p α. Isso significa que existe T 0 , -Consistente, tal que T 0 |=B α. Além disso, como T ⊆ U, T 0 ⊆ U . Aplicando o teorema da compacidade, segue-se que U |=p α. Portanto, Cnp (T ) ⊆ Cnp (U ). 3.3.2 Inconsistência e Trivialidade em P A grande motivação para formular esse sistema, foi construir uma abordagem formal simples, mas que permitisse distinguir inconsistência e trivialidade. Dito de outra forma, a lógica paraclássica não é explosiva, ou seja, permite lidar com conjuntos inconsistentes, mas de uma forma não-trivial. Proposição 3.3.9 P não é explosiva. Prova. Tome T = {x ∧ ¬x}. É suficiente notar que T 2P y 6 . Proposição 3.3.10 Em P , há conjuntos inconsistentes, mas não fortemente inconsistentes. Prova. Seja T = {x, ¬x}. Assim, temos que T |=P x e T |=P ¬x. Portanto, há conjuntos inconsistentes em P . No entanto, T 2P x ∧ ¬x. Logo, não existem conjuntos fortemente inconsistentes em P . Proposição 3.3.11 CnP (TP ) = CnP (NP ); Prova. Considere T = {x ∧ ¬x}. Como não há conjuntos fortemente inconsistentes em P , só podemos deduzir teoremas de T e, como TC = TP , segue-se que CnP (TP ) = CnP (NP ). Proposição 3.3.12 U ⊆ NP e T |=P α ⇒ T ∪ U |=P α. 6 A mesma demonstração garante que não existem conjuntos triviais em P . CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 65 Prova. Suponha T |=P α. Então, existe T 0 ⊆ T, C-Consistente, tal que T 0 |=C α. Sendo assim, é óbvio que T ∪ U |=P α, pois T 0 ⊆ T ∪ U . Proposição 3.3.13 Se U ⊆ NP , então CnP (T ) = CnP (T ∪ U ). Prova. Se CnP (NP ) = TC , é trivial que CnP (T ) = CnP (T ∪ U ). 3.4 Lógica Paraclássica com Inclusão Trataremos, agora, de outro sistema formal paraclássico. A principal diferença entre este e o sistema apresentado na seção anterior é que introduziremos a inclusão de uma forma ad hoc. A partir dessa modificação, as propriedades resultantes desta lógica diferem da anterior. Em particular, como veremos adiante, essa reformulação da lógica paraclássica permite a existência de conjuntos triviais. Definição 3.4.1 Uma lógica proposicional paraclássica com inclusão é uma estrutura P ∗ = hFP ∗ , |=P ∗ i tal que: (i) hFP ∗ , |=P ∗ i é uma lógica no sentido da definição 2.1.1; (ii) FP ∗ = F or; (iii) T |=P ∗ α ⇔ α ∈ T , ou existe U ⊆ T , tal que M odB (U ) 6= ∅ e M odB (U ) ⊆ M odB (α) 3.4.1 Propriedades de P ∗ Proposição 3.4.1 (i) TC = TP ∗ (ii) NC = NP ∗ . Prova. As duas demonstrações são análogas a P . CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 66 Proposição 3.4.2 P ∗ não é transitiva. Prova. O mesmo contra-exemplo de P se aplica a P ∗ . Corolario 3.4.1 Se U for C-Consistente, a transitividade vale. A prova é análoga à de P . Em P ∗ , vale a transitividade fraca. Para a prova, usaremos o lema: Lema 3.4.1 (i) α |=P ∗ β ⇒ ∅ |=P ∗ β ou (M odB (α) ⊆ M odB (β), e M odB (α) 6= ∅), ou α = β. (ii) α |=P ∗ β e ∅ |=P ∗ α ⇒ ∅ |=P ∗ β. (iii) α |=P ∗ β e M odB (α) = ∅ (α é C-Contradição) ⇒ ∅ |=P ∗ β ou α = β. Prova. (i) e (iii) seguem da definição de P ∗ . (ii) Se ∅ |=P ∗ α, então M odB (α) = B. Como α |=P ∗ β, então M odB (α) ⊆ M odB (β). Portanto, ∅ |=P ∗ β. Proposição 3.4.3 α |=P ∗ β e β |=P ∗ γ, então α |=P ∗ γ. (Transitividade Fraca) Prova. Suponha que α |=P ∗ β e β |=P ∗ γ. Se β for teorema, então γ é teorema, pelo lema acima. Logo, α |=P ∗ γ. Se β não for teorema, temos os seguintes casos. (i) α = β. Como, por suposição, β |=P ∗ γ, então α |=P ∗ γ. (ii) M odB (α) 6= ∅ e M odB (α) ⊆ M odB (β), ou seja, β é C-Consistente. Neste caso, como, por hipótese, β |=P ∗ γ, temos que M odB (β) ⊆ M odB (γ). Logo, M odB (α) ⊆ M odB (γ), isto é, α |=B γ e, portanto, α |=P ∗ γ. (iii) β é C-Contradição. Mas, como α |=P ∗ β, então β = α. Sendo assim, como β |=P ∗ γ, então α |=P ∗ γ. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 67 Proposição 3.4.4 P ∗ não é idempotente. Prova. O contra-exemplo de P se aplica a P ∗ . Proposição 3.4.5 Em P ∗ , o teorema da dedução não é válido. Prova. Considere T = {x ∧ ¬x}, α = y e β = {x ∧ ¬x}. A partir dessas condições iniciais, temos que T ∪{α} |=P ∗ β (por inclusão). No entanto, como T é fortemente inconsistente, só podemos deduzir, em P ∗ , a partir de T , os teoremas e o próprio T . Mas, como y → (x ∧ ¬x) não é teorema, tampouco pertence a T , segue-se que T 2P ∗ y → (x ∧ ¬x). Portanto, o teorema da dedução não é válido. Proposição 3.4.6 Podemos estabelecer uma limitação do teorema da dedução, aplicado somente à fórmulas, isto é, {α}∪{β} |=P ∗ γ ⇒ α |=P ∗ (β → γ). Chamemos esta limitação de teorema da dedução fraca. Prova. Suponha que {α} ∪ {β} |=P ∗ γ. Temos, assim, dois casos: (i) Existe U ⊆ {α} ∪ {β}, tal que M odB (U ) 6= ∅ e M odB (U ) ⊆ M odB (γ). Neste caso, a demonstração é análoga à prova do teorema da dedução de P . (ii) γ ∈ {α} ∪ {β}. O resultado segue da definição de P ∗ . 3.4.2 Inconsistência e Trivialidade em P ∗ Proposição 3.4.7 Se α é uma C-Contradição, então T |=P ∗ α ⇔ α ∈ T . Prova. Suponha que T |=P ∗ α e α é uma C-Contradição. Como T |=P ∗ α, então ou α ∈ T ou T 0 ⊆ T, C-Consistente, tal que T 0 |=B α. Mas, se α é C-Contradição, não existe T 0 , C-Consistente, tal que T 0 |=B α. Portanto, se α é uma C-Contradição e T |=P ∗ α, então α ∈ T . Corolario 3.4.2 T é P ∗ -trivial ⇒ NP ∗ ⊆ T . CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA 68 Prova. Se a condição para que T deduza uma contradição α é α ∈ T , é óbvio que T |=P ∗ NP ∗ , isto é, T é P ∗ -trivial, se NP ∗ ⊆ T . Proposição 3.4.8 T é P ∗ -trivial ⇔ NP ∗ ⊆ T e T |=P ∗ BC 7 . Prova. Note que temos TP ∗ ∪ NP ∗ ⊆ T . Assim, se α não é C-Teorema, nem C-Contradição, o resultado segue do fato de que T |=P ∗ BC e α é CEquivalente a uma fórmula que está na forma conjuntiva normal8 . Este último resultado mostra que, em P ∗ , pode haver conjuntos triviais. No entanto, como os conjuntos P ∗ -triviais não coincidem, necessariamente, com os conjuntos P ∗ -Inconsistentes, há conjuntos P ∗ -Paraconsistentes. Isso significa que, ainda que as lógicas paraconsistentes estabeleçam uma distinção entre inconsistência e trivialidade, alguns desses sistemas podem ser trivializados, sob determinadas condições. Na tabela abaixo9 , estão disponı́veis os principais resultados encontrados neste trabalho: 7 BC representa o conjunto de fórmulas básicas - variáveis proposicionais ou a negação de uma - da lógica clássica. 8 A prova desta última afirmação pode ser encontrada em [47], p. 25. 9 Retirada de [26], p. 5. CAPÍTULO 3. LÓGICA PROPOSICIONAL PARACLÁSSICA P P∗ compacidade X X X monotonicidade X X X inclusão X × X idempotência X × × transitividade X × × transitividade fraca X X X dedução X X × dedução fraca X X X conjuntos triviais X × X conjuntos inconsistentes X X X conjuntos fortemente inconsistentes X × X C conjuntos paraconsistentes × X 69 X (X) Significa que a respectiva lógica tem a propriedade ou conjuntos indicados. (×) Significa o contrário. Capı́tulo 4 Paraconsistência e Categoria The mathematics of the future, like that of the past, will include developments which are relevant to the philosophy of mathematics ... They may occur in the theory of categories where we see, once again, a largely successful attempt to reduce all of pure mathematics to a single discipline. - Abraham Robinson No capı́tulo anterior, utilizamos a teoria de conjuntos como fundamento para a lógica, bem como ferramenta para as demonstrações. Neste capı́tulo, faremos um trajeto diferente. Começaremos apresentando duas noções básicas de Teoria de Categorias, a saber: categoria e funtor. Trata-se de uma teoria matemática que se pretende mais abstrata e fundacional que a teoria de conjuntos. Portanto, no escopo da Lógica Universal, é interessante analisar as possı́veis relações entre lógica e categoria, e as vantagens e desvantagens desta abordagem face a abordagem conjuntista. Após esta apresentação conceitual, utilizaremo-na para definir os conceitos de lógica e, em particular, de lógica paraconsistente. O objetivo central deste capı́tulo é apresentar uma forma de, a partir de uma lógica qualquer 70 CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 71 dada, definir sua contraparte paraconsistente1 . Costa-Leite denomina esta tarefa de paraconsistentização de lógicas. Segundo o autor, O verbo paraconsistentizar (...) significa o processo de transformar uma dada lógica em uma lógica paraconsistente (...); o substantivo paraconsistentização (...) significa não apenas uma, mas uma pluralidade de métodos e estratégias para paraconsistentizar uma dada lógica2 . Este assunto é fundamental pois, a partir do desenvolvimento e estabelecimento de diversas lógicas paraconsistentes, não há mais dúvidas acerca de seu estatuto lógico-formal, bem como de suas aplicações práticas. No entanto, o que temos é uma gama de diferentes lógicas, mas sem um estudo a respeito das propriedades inerentes a todas estas. Assim, “paraconsistentização é a teoria geral das lógicas paraconsistentes. Por isto, é para as lógicas paraconsistentes o que a lógica universal é para as lógicas em geral3 ”. Portanto, o que pretendemos explorar neste capı́tulo é a possibilidade de uma paraconsistentização de lógicas via teoria de categorias. 4.1 Categoria Comecemos apresentando os conceitos categoriais utilizados neste capı́tulo. Definição 4.1.1 Uma categoria C contém4 : (i) Uma coleção cujos elementos são denominados C-objetos; (ii) Uma coleção cujos elementos são denominados C-morfismos; 1 Este tema foi-nos apresentado e sugerido por Costa-Leite. [17], p. 136. 3 [17], p. 134. 4 Seguimos a apresentação axiomática de [33]. 2 CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 72 (iii) Uma operação que designa, para cada C-morfismo f , um C-objeto, dom(f ), chamado domı́nio de f ; e um C-objeto, codom(f ), denominado contradomı́nio de f . Quando a = dom(f ) e b = codom(f ), o morfismo f f é denotado por f : a → b ou a −→ b. (iv) Uma operação que designa, para cada par hg, f i de C-objetos, tal que dom(g) = codom(f ), um C-morfismo g ◦ f , denominado composição de f e g, de forma que dom(g ◦ f ) = dom(f ) e codom(g ◦ f ) = codom(g). Toda composição de morfismos segue a Lei de Associatividade, isto é, se f g h a −→ b −→ c −→ d, então h ◦ (g ◦ f ) = (h ◦ g) ◦ f , isto é, o diagrama abaixo comuta. f a ........................................................... b ... ... ... ... ..... ..... ... ..... ... ..... ... ..... ..... ... ..... ... ..... ... ..... ... ..... ..... ... ..... .. ..... . ...... ........ ....... . g◦f g ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ...... ....... ........................................................ h◦g h c d (v) Uma operação que designa, para cada C-objeto a, um C-morfismo Ida : a → a, denominado identidade em a. Toda identidade obedece a Lei f g da Identidade. Isto significa que, dados a −→ b −→ c, então Idb ◦ f = f e g ◦ Idb = g. Isto é equivalente a afirmar que o diagrama abaixo comuta. f a ........................................................... b ... ... ... ... ..... ..... ... ..... ... ..... ... ..... ..... ... ..... ... ..... ... ..... ... ..... ..... ... ..... .. ..... ...... .......... . . . ...... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ...... ........ ........................................................ Idb f b g g c Definição 4.1.2 Um funtor F da categoria C na categoria D é um morfismo que determina: (i) um D-objeto F(a), para cada C-objeto a; (ii) para cada C-morfismo f : a → b, um D-morfismo F(f ) : F(a) → F(b). CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 73 Além disso, para caracterizar-se como funtor, F deve respeitar as seguintes propriedades: (a) F(Ida ) = IdF(a) ; (b) Se (g ◦ f ) estiver definida, então F(g ◦ f ) = F(g) ◦ F(f ). Passemos à construção de outros conceitos necessários à formalização categorial de lógica. Definição 4.1.3 Chamamos de estrutura de consequência o par hX, Cni, tal que: (i) X é um conjunto, denominado dominio da estrutura; (ii) Cn : ℘(X) → ℘(X), denominada operador de consequência da estrutura. Definição 4.1.4 Sejam hX, Cni uma estrutura de consequência e A ⊆ X. (i) Cn(A) é o conjunto das consequências de A; (ii) A é Cn-Consistente ⇔ Cn(A) 6= ∅. Quando este não for o caso, A é Cn-Inconsistente. Definição 4.1.5 Sejam duas estruturas de consequência hX, Cni , hX 0 , Cn0 i. Definimos o morfismo t : X → X 0 , injetor, tal que para todo A ⊆ X, t(Cn(A)) = Cn0 (t(A)), ou seja, o diagrama abaixo comuta. A tal morfismo, daremos o nome de tradução5 . ............................................ ℘(X) ......................Cn ℘(X) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... . t t 0 ............................................ ℘(X 0 ) .................Cn ℘(X 0 ) 5 Note que, eventualmente, utilizaremos a mesma notação para a função t estendida ao conjunto das partes, como no diagrama abaixo. CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 74 As traduções possuem as seguintes propriedades: Proposição 4.1.1 Composição de tradução é tradução. t t 1 2 Prova. Sejam hX, Cni −→ hX 0 , Cn0 i −→ hX 00 , Cn00 i. Assim, (t2 ◦ t1 )(Cn(A)) = t2 (t1 (Cn(A))) = t2 (Cn0 (t1 (A))) = Cn00 (t2 (t1 (A))) = Cn00 ((t2 ◦ t1 )(A)). Isto é, o diagrama seguinte comuta. ............................................ ℘(X) ......................Cn ℘(X) t1 ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... . t1 0 ............................................ ℘(X 0 ) .................Cn ℘(X 0 ) t2 t2 00 ............................................ ℘(X 00 ) ...............Cn ℘(X 00 ) Proposição 4.1.2 Identidades são traduções que satisfazem a Lei de Identidade. t Id 0 1 X hX 0 , Cn0 i , hX 0 , Cn0 i −→ hX 0 , Cn0 i e Prova. Sejam hX, Cni −→ t 2 hX 0 , Cn0 i −→ hX 00 , Cn00 i. Por um lado, temos que, (IdX 0 ◦ t1 )(Cn(A)) = Cn0 ((IdX 0 ◦ t1 )(A)) = Cn0 (t1 (A)) = t1 (Cn(A)), isto é, IdX 0 ◦ t1 = t1 . Por outro, segue-se que (t2 ◦IdX 0 )(Cn0 (A)) = Cn00 ((t2 ◦IdX 0 )(A)) = Cn00 (t2 (A)) = t2 (Cn0 (A)), isto é, t2 ◦ IdX 0 = t2 . Assim, o diagrama abaixo comuta. CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 75 t hX, Cni ..........................1............................... hX 0 , Cn0 i ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ......... t1 ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ......... . ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... 0 ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ......... t2 IdX t hX 0 , Cn0 i ........................2........................... hX 00 , Cn00 i Proposição 4.1.3 Composição de traduções é associativa. t t t 1 2 3 Prova. Sejam hX, Cni −→ hX 0 , Cn0 i −→ hX 00 , Cn00 i −→ hX 000 , Cn000 i. Assim, temos que t3 ◦ (t2 ◦ t1 )(Cn(A)) = t3 (t2 (t1 (Cn(A)))) = t3 (t2 (Cn0 (t1 (A)))) = t3 (Cn00 (t2 (t1 (A)))) = Cn000 (t3 (t2 (t1 (A)))) = Cn000 ((t3 ◦ t2 ◦ t1 )(A)). Desta forma, o diagrama seguinte comuta. ............................................ ℘(X) ......................Cn ℘(X) t1 ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. . .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. . .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. . .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. . .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .......... . t1 0 ............................................ ℘(X 0 ) .................Cn ℘(X 0 ) t2 t2 00 ............................................ ℘(X 00 ) ...............Cn ℘(X 00 ) t3 t3 000 ............................................ ℘(X 000 ) ............Cn ℘(X 000 ) CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 76 Proposição 4.1.4 As traduções preservam os conjuntos consistentes. Isto t significa que, dados hX, Cni −→ hX 0 , Cn0 i, e A ⊆ X, se A é Cn-Consistente, então t(A) é Cn0 -Consistente. Prova. Temos que provar que, se Cn(A) 6= ∅, então, Cn0 (t(A)) 6= X 0 . Suponha que A é Cn-Consistente, e t(A) é Cn0 -Inconsistente. Assim, temos que Cn(A) = X e Cn0 (t(A)) = X 0 . Mas, como t é tradução, segue-se que t(Cn(A)) = Cn0 (t(A)) e, portanto, t(Cn(A)) = X 0 . Além disso, como t é injetora, temos que Cn(A) = X, o que contraria nossa hipótese inicial. Logo, se Cn(A) 6= ∅, então Cn0 (t(A)) 6= ∅. 4.2 Lógica via Categorias Com esse pano de fundo conceitual, podemos, finalmente, definir lógica enquanto uma categoria. Formalmente, Definição 4.2.1 A categoria CON das estruturas de consequência consiste em: (i) Objetos de CON : hX, Cni; (ii) Morfismos de CON : traduções Como estamos interessados em definir a contraparte paraconsistente de um sistema não-paraconsistente, reformularemos a lógica paraclássica P com este novo campo conceitual. Definição 4.2.2 Sejam hX, Cni uma estrutura de consequência e A ⊆ X, [ CnP (A) = {Cn(A0 ) : A0 ⊆ A, Cn(A0 ) 6= X}. Em particular, a ∈ CnP (A) ⇔existe A0 ⊆ A, Cn−Consistente, tal que a ∈ Cn(A0 ). CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 77 O último passo é definir um método de paraconsistentização de lógica. Para isto, utilizaremos o conceito de funtor, visto que “um funtor é uma transformação de uma categoria em outra que ‘preserva’ a estrutura categorial de sua origem”6 . Portanto, o Funtor de Paraconsistentização será responsável por definir, para uma lógica explosiva, sua contraparte paraconsistente. Formalmente: Definição 4.2.3 Definimos o Funtor de Paraconsistentização P P em CON , denotado por CON −→ CON , tal que: (i) P hX, Cni = X, CnP . (ii) P(t) = t. Evidenciaremos a construção da alı́nea (ii). Visto que P(t) = t, mostra t remos que hX, Cni −→ X 0 , Cn0P é uma tradução, isto é, preserva os operadores de consequência. Assim, precisamos mostrar que para todo A ⊆ X, temos que (t(CnP (A))) = Cn0P (t(A)). Prova. S t(CnP (A)) = t( {Cn(A0 ) : A0 ⊆ A, Cn − Consistente}) S = {t(Cn(A0 )) : A0 ⊆ A, Cn − Consistente} S = {Cn0 (t(A0 )) : t(A0 ) ⊆ t(A), Cn0 − Consistente} = Cn0P (t(A)) Para garantir que P é um funtor, note que ele possui as seguintes propriedades: (a)P(Ida ) = IdP(a) (b)P(a ◦ b) = P(a) ◦ P(b) 6 [33], p. 194. CAPÍTULO 4. PARACONSISTÊNCIA E CATEGORIA 78 Prova. (a)P(IdX ) = IdX = IdP(X) . t t 1 2 (b) Sejam hX, Cni −→ hX 0 , Cn0 i −→ hX 00 , Cn00 i. Segue-se que P(t2 ◦ t1 ) = P(t2 (Cn0 (t1 (A)))) = t2 (Cn0 (t1 (A))) = Cn00 (t2 (t1 (A))) = Cn00 ((t2 ◦ t1 )(A)) = Cn00 ((P(t2 ) ◦ P(t1 ))(A)). Com isto, temos uma nova abordagem para estudar a lógica paraclássica. Vimos, no capı́tulo anterior, que ela preserva algumas propriedades clássicas, como compacidade e monotonicidade. Podemos nos perguntar quais outras propriedades podem ser determinadas do ponto de vista categorial. Notem que, ao definir o conjunto das consequências de P , não fizemos referência a uma lógica subjacente especı́fica. Portanto, o funtor de paraconsistentização P pode ser aplicado, a princı́pio, em qualquer sistema lógico. Seria interessante analisar a preservação de propriedades desse funtor em diversos lógicas. Ademais, poderı́amos aplicar P seguidas vezes numa mesma lógica, e estudar as caracterı́sticas das lógicas resultantes, ou ainda, descobrir se faz sentido repetir esta operação, isto é, se cada aplicação de P gera uma lógica diferente. Em suma, este capı́tulo estabelece as bases para a formulação e investigação de diversas questões interessantes referentes à paraconsistentização e preservação de propriedades de operadores de consequência. Considerações Finais As I told earlier, I never repeat anything. - Autor desconhecido A lógica paraconsistente, apesar de ter pouco mais de meio século de existência, constitui-se como um campo bem estabelecido de pesquisa, com vários congressos e publicações espalhados pelo mundo . No entanto, também pela sua pouca idade, ainda há muito trabalho a ser feito. Do ponto de vista filosófico, a separação entre inconsistência e trivialidade ainda não está completamente estabelecida e, com frequência, encontramos filósofos rechaçando determinada posição simplesmente porque esta contém informações contraditórias. O mesmo se dá no campo das teorias cientı́ficas. Isto mostra que o motto “de contradição, tudo se segue”ainda tem lugar especial nos fundamentos de teorias filosóficas e cientı́ficas. Obviamente, não queremos dizer que contradições não constituem problemas. Em determinadas situações, é necessário removê-las, caso estas apareçam na teoria. Imaginem, por exemplo, uma triagem médica computadorizada que apresenta, para um paciente, o diagnóstico de que ele corre risco de vida, e que ele não corre risco de vida. Neste caso, um dos diagnósticos precisa ser removido. Não obstante, a presença de contradições não pode ser vista como condição suficiente para rejeitar uma teoria. Afinal, contradições não implicam, necessariamente, tudo. 79 Considerações Finais 80 Mesmo no exemplo anterior, o médico não deduz, a partir do diagnóstico contraditório que, se o paciente tomar um copo d’água, enquanto salta de paraquedas com os olhos vendados, estará curado. Tal dedução seria válida na lógica clássica mas, obviamente, não ajudaria em nada. Portanto, mesmo neste caso em que as contradições devam ser removidas, a melhor forma de analisar as informações é mediante o uso de lógicas paraconsistentes. Essas lógicas também forneceram um novo aparato para estudar os conceitos centrais da lógica. Se, durante certo tempo, a negação paraconsistente não era considerada uma negação propriamente dita, isto se deu pela falta de entendimento do conceito de negação, e não da formulação da lógica paraconsistente. Ainda que, no inı́cio de seu desenvolvimento, a paraconsistência esteve, algumas vezes, erroneamente relacionada com a refutação da lei de nãocontradição, este equı́voco também deu frutos. Por ser considerada a lei mais segura de todas, a possibilidade lógica de sua refutação levou os lógicos a questionarem a própria existência de uma lei universal lógica, ou ainda, de uma lei universal do pensamento7 . Esse questionamento levou ao desenvolvimento de uma nova e promissora linha de pesquisa, a Lógica Universal, que aborda a lógica de um ponto de vista abstrato inimaginável há poucas décadas. Do ponto de vista formal, também há muitas questões em aberto. Ainda não há uma definição unı́voca de paraconsistência. Tampouco há um critério positivo para caracterizar tais lógicas. Ademais, falta um estudo pormenorizado das caracterı́sticas comuns às múltiplas lógicas paraconsistentes particulares. Este é o objetivo da Paraconsistentização. Os dois últimos capı́tulos deste trabalho apresentam possı́veis pesquisas futuras. O tratamento conjuntista utilizado no terceiro capı́tulo pode ser ampliado, estabelecendo uma dimensão sintática para as lógicas paraclássica e 7 Visto que, durante muito tempo, se acreditou que a lógica tinha como tarefa estabe- lecer as leis gerais do pensamento. Considerações Finais 81 paraclássica com inclusão. Assim, seria possı́vel estudar outras propriedades lógicas, como correção e completude. Outra pesquisa interessante seria definir a relação de consequência paraclássica a partir de outro sistema. Vimos que T |=P α ⇔ existe U ⊆ T , C-Consistente, tal que U |=B α. Poderı́amos substituir o critério ‘C-Consistente’ por outra lógica, e analisar as propriedades preservadas, bem como as particulares de cada sistema. O quarto capı́tulo constitui-se como uma contribuição promissora para a paraconsistentização de lógicas. Trata-se de um arcabouço teórico que permite definir a contraparte paraconsistente de uma lógica explosiva, e estudar a preservação de propriedades lógicas. Esta abordagem poderia ser utilizada, ainda, para explorar outros problemas filosóficos e cientı́ficos, como, por exemplo, a teoria atômica de Bohr. Isto, pois, “não há ramo das matemáticas, não importa quão abstrato, que não possa, algum dia, ser aplicado a fenômenos do mundo real”8 . 8 Lobachevsky, citado por [46], p.225. Referências Bibliográficas [1] ALCHOURRÓN, C.E.; GÄRDENFORS, P.; MAKINSON, D. On the Logic of Theory Change: Partial Meet Contraction and Revision Functions. The Journal of Symbolic Logic, Vol. 50, No. 2, 1985, pp. 510-530. [2] ARMOUR-GARB, B. Diagnosing Dialetheism. In: The Law of NonContradiction, PRIEST, G., BEALL, J.C., ARMOUR-GARB, B. (org.), pp.113-25. Oxford: Oxford University Press, 2004. 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