Turismo de Base Comunitária diversidade de olhares e experiências brasileiras PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DO TURISMO Luis Eduardo Pereira Barreto Filho SECRETÁRIO EXECUTIVO Mário Augusto Lopes Moyses SECRETÁRIO NACIONAL DE PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO DO TURISMO Frederico Silva da Costa DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE QUALIFICAÇÃO E CERTIFICAÇÃO E DE PRODUÇÃO ASSOCIADA AO TURISMO Regina Cavalcante COORDENADORA GERAL DE PROJETOS DE ESTRUTURAÇÃO DO TURISMO EM ÁREAS PRIORIZADAS Kátia T. P. da Silva COORDENAÇÃO GERAL DE QUALIFICAÇÃO E CERTIFICAÇÃO Luciano Paixão Costa COORDENAÇÃO GERAL DE PRODUÇÃO ASSOCIADA Ana Cristina Façanha de Albuquerque UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO REITOR Aloísio Teixeira DIRETOR DE COORDENAÇÃO DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA (COPPE) Luiz Pinguelli Rosa COORDENADOR DO PROGRAMA DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO COORDENADOR DO LABORATÓRIO DE TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL (LTDS) Roberto Bartholo Turismo de Base Comunitária diversidade de olhares e experiências brasileiras Roberto Bartholo, Davis Gruber Sansolo e Ivan Bursztyn ORGANIZADORES Realização Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social COPPE/UFRJ Coordenação Geral de Projetos de Estruturação do Turismo em áreas priorizadas do Ministério do Turismo Apoio Fundação Banco do Brasil Fundação COPPETEC Auxiliares de pesquisa Afonso Getúlio Zucarato Ana Bauberger Pimentel Gilberto Back Nilton Henrique Peccioli Filho Cartografia dos projetos Gilberto Back Agradecimentos Os organizadores gostariam de agradecer o empenho e a colaboração de: Andréia Ribeiro Ayres do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social Kátia Silva, Rodrigo Ramiro e Breno Teixeira do Ministério do Turismo e ainda aos coordenadores e responsáveis dos 50 projetos pelas informações repassadas. Aviso de licença copyleft Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil É autorizada a cópia, distribuição e exibição desta obra. Sob as seguintes condições: • Atribuição. Deve-se dar crédito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante. • Uso Não-Comercial. Não se pode utilizar esta obra com finalidades comerciais. • Vedada a Criação de Obras Derivadas. Não se pode alterar, transformar ou criar outra obra com base nesta. • Para cada novo uso ou distribuição, você deve deixar claro para outros os termos da licença desta obra. • Qualquer uma destas condições podem ser renunciadas, desde que se obtenha permissão dos orgaizadores. Sumário Apresentação roberto bartholo, davis gruber sansolo e ivan bursztyn 13 Parte I . Diversidade de olhares O turismo rural comunitário na América Latina: gênesis, características e políticas carlos maldonado 25 Sobre o sentido da proximidade: implicações para um turismo situado de base comunitária roberto bartholo 45 Do turismo de massa ao turismo situado: quais as transições? 55 hassan zaoual Turismo para quem? Sobre caminhos de desenvolvimento e alternativas para o turismo no Brasil ivan bursztyn, roberto bartholo e mauricio delamaro 76 Turismo, produção do espaço e desenvolvimento desigual: para pensar a realidade brasileira rita de cássia ariza da cruz 92 Diversidade de olhares Turismo e população dos destinos turísticos um estudo de caso do desenvolvimento e planejamento turístico na Vila de Trindade - Paraty/RJ ALEXANDRA CAMPOS OLIVEIRA Introdução O município de Paraty, localizado ao sul do litoral fluminense, é considerado um dos mais importantes pólos turísticos nacionais. Área turística de alcance internacional, tem como atrativo principal seu centro histórico, constituído por casario de arquitetura genuinamente colonial. No entanto, o município de Paraty possui uma grande variedade de atrativos que exercem apelo a outros segmentos turísticos. Rodeado pela Mata Atlântica, possui 80% de seu território composto por unidades de conservação. Além das belezas naturais, possui vários bens imateriais de grande relevância à história paratiense, como as culturas caiçara, negra, indígena, dos quilombos e portuguesa. Tais atrativos se localizam ou manifestam-se majoritariamente nas áreas periféricas do município. Nesse cenário, destaca-se a Vila de Trindade, localizada na região mais ao sul de Paraty, cujas praias são consideradas as mais belas do município. Parte de seu território está inserido na Área de Preservação Ambiental do Cairuçu. Possui, ainda, traços remanescentes da cultura caiçara. Tais características contribuíram para que a Vila de Trindade passasse a experimentar significativo desenvolvimento turístico, tornando-se a segunda região de maior crescimento da atividade, perdendo apenas para o centro histórico. 319 Antecedentes históricos Durante o ciclo do ouro, o município de Paraty tornou-se um entreposto comercial de significativo desenvolvimento, chegando a possuir o segundo mais importante porto do Brasil. Por este escoava para a Europa o ouro vindo de Minas Gerais (rota conhecida como Caminho Velho). Posteriormente, era escoado o café do Vale do Paraíba que, juntamente com a produção de pinga e derivados de cana, auxiliou no desenvolvimento da economia local. A partir de 1725, com a abertura do Caminho Novo, “que a excluía do roteiro para as Minas Gerais, reduziu-se o seu comércio” (Enciclopédia dos Municípios, 1950, p. 359). Já em 1870, aberto um caminho ferroviário entre Rio de Janeiro e São Paulo através do Vale do Paraíba, sua economia se viu ainda mais abalada (Plano de Desenvolvimento Turístico do Município de Paraty, vol. I, 2003, p. 30). O colapso da economia de Paraty deu-se com a Abolição da Escravatura, em 1888, causando um êxodo populacional de grande dimensão: “dos 16.000 habitantes existentes em 1851, restaram, no final do século XIX, apenas 600 velhos, mulheres e crianças, isolando Paraty definitivamente por décadas” (Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico do Município de Paraty, vol. I, 2003, p. 30). A falta de comunicações terrestres contribuiu para o isolamento do município. Durante esta época, o acesso à Vila de Trindade se dava somente por mar ou, como relata moradores, feito a pé. Devido ao isolamento, as populações caiçaras passaram “a viver quase que exclusivamente de suas culturas e estratégias de sobrevivência”, tecendo as redes do modo de vida tradicional (Luchiari, 2000, p. 137). A implementação da Rodovia Rio-Santos (BR-101), ocorrida no período de 1978-1985, inaugurou uma nova fase no município: depois do ouro e do café, o turismo, devido à preservação de seu patrimônio histórico e elementos naturais, passou a constituir, ao lado da agricultura e da pesca, o principal suporte financeiro. Paraty passou, então, a receber um grande número de visitantes que buscava “a sensação de estar numa pacata vila colonial perdida e cercada por um paraíso natural” (Wilk, 1997, p. 44). Ao lado deste fluxo, passou também a atrair empreendedores que investiam em diversos ramos da atividade turística, integrando-se o município à economia de mercado com a transformação de seu espaço em produto turístico, atendendo à demanda de lazer das populações urbanas. À primeira vista, a atividade turística pode ser considerada estritamente benéfica, imprimindo uma nova dinâmica à economia local que, então, se encontrava em estado de estagnação. Wilk, entrevistando D. João Maria de Orleans e Bragança, neto da princesa Isabel, que se instalou definitivamente em 1972 em Paraty, relata entusiasticamente o “desenvolvimento” proporcionado pelo turismo no município: 320 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares O casarão real da Rua Fresca, de portas e janelas verdes, única construção residencial não-germinada da cidade, foi arrematado por uma ninharia de um nativo. Como, de resto, aconteceu com muita gente depois da abertura da RioSantos. Muitos cariocas e paulistas arrumaram a trouxa, compraram seu casarão colonial da mão de pescadores por uma pechincha, abriram pousadas, lojas e restaurantes e vão muito bem, obrigado (1997, p. 44). Se, por um lado, a atração de empreendedores possibilitou a transformação e adequação de Paraty ao mercado turístico, trazendo consigo novo conhecimento e nova dinâmica, por outro, se deu mediante a marginalização da população local. Em outra passagem da reportagem de Wilk, tem-se um retrato da exclusão da população paratiense no processo de ocupação turística da região central do município: Já os paratienses nativos não moram mais no Centro Histórico e nem ao redor dele. Os que conseguiram garantir uma casinha perto do pedaço preservado pelo Patrimônio Histórico tiveram sorte. A maioria foi mesmo para a zona rural e para a vizinha cidade de Cunha (Wilk, 1997, p. 47). De uma maneira geral, observa-se que o desenvolvimento turístico em Paraty está vinculado ao poder econômico, frequentemente favorecendo grupos ou indivíduos de outras localidades e não englobando grande parte da população local. Meneses, nesse sentido, afirma que o município, “como bem cultural não é, para seu habitante, cidade boa para viver enquanto cidade, mas boa, enquanto cenário, para fruição dos proprietários, paulistas ou cariocas, de seus imóveis mais carregados de valor” (2002, p. 98). Os residentes das áreas periféricas ou mesmo aqueles que se dirigiram a essas áreas com o desenvolvimento turístico na região central, mais tarde (re)viveriam essa realidade. Alheio à ausência de instrumentos de incentivo ou reguladores do poder público, o turismo passou a se constituir, por um lado, em uma oportunidade de renda para essas populações e, por outro, em uma ameaça às suas estratégias de sobrevivência. Brandão trata desta questão aliada às mudanças culturais na Praia Grande do Cajaíba, zona rural do município: Dos velhos bailes de bate-pé, com dança de tamanca em piso de tábua, restaram apenas versos de canoa. (...) Não faltam sinais da morte iminente da cultura caiçara na Praia Grande da Cajaíba. Num recanto litorâneo ameaçado por violentas disputas de território, pelo turismo predatório e pela ausência do poder público, a grande vítima é o nativo: dos 87 caiçaras residentes na região até junho do ano passado, restam apenas 23 (2004, p. 28). OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 321 Brandão (2004) se refere, em seu artigo, à assinatura de comodatos pelos caiçaras, em sua maioria analfabetos, efetivada por uma família que se diz proprietária da praia e que tem vetado o comércio na praia. A população ali residente, no entanto, tornou-se dependente deste comércio, possibilitado através do turismo. À medida que o turismo avança pelo território paratiense, através do modelo excludente de desenvolvimento da atividade que vem se perpetuando, mais indivíduos se veem ameaçados. São diversos os exemplos de conflitos existentes entre poder econômico e interesse das populações locais, não raro, com a prevalência do primeiro. Dentro desse cenário de marginalização dos paratienses, situa-se a Vila de Trindade. Na década de 1970, seu conjunto de sete praias, caracterizado pela cor esverdeada da água e rodeado pela Mata Atlântica, conquistou a atenção de uma multinacional. Esta pretendia construir na Vila um condomínio de luxo e passou a comprar terras dos nativos, muitas vezes mediante ameaça: “quando ela [multinacional] chegou, ela disse que isso aqui não era da gente, que a gente não tinha escritura. Eles diziam “se você não vender, a gente vai trazer o perito da companhia, vai botar valor nisso aqui e vai te dar o quanto a gente achar que tem que te dar”, relata Saulo Alves, presidente da Associação de Moradores Nativos Originários da Trindade. Muitos se recusaram a deixar suas casas. A multinacional enviou para área, então, jagunços armados, reclamando o direito de posse de terra, passando a destruir o pouco da área construída existente, desabrigando moradores (Pereira, 2001, p. 11). Em Laranjeiras, próximo à Trindade, a mesma multinacional construiria o luxuosíssimo Condomínio de Laranjeiras, um dos mais exclusivos condomínios do país. Nessa região, contrariamente à Vila, não houve uma luta pela terra: “Laranjeiras resolveram de maneira pacífica, porque não existia praticamente ninguém. Na Trindade eles passaram por uma questão mais agressiva, usando pessoas armadas, usando poder econômico”, relata Antônio Porto Filho, paratiense envolvido com a política municipal. A população de Trindade conseguiu garantir o direito à terra na justiça, através da ajuda dos poucos turistas que, apesar do isolamento, frequentavam a Vila. Estes instruíram e apoiaram os moradores, conseguindo a divulgação da invasão na mídia nacional e internacional e a ajuda de um grande jurista, Dr. Sobral Pinto (que hoje dá nome à rua principal de Trindade). Foi devido a essa articulação entre visitantes e população local que a Vila não deu lugar ao empreendimento. Em 1981, estabelecia-se um acordo entre a multinacional e nativos, segundo o qual grande parte das terras ainda permaneceria sob o poder da primeira. Porém, além do direito a terras, os nativos conquistaram a garantia da liberdade de acesso às 322 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares praias. Qualquer empreendimento da multinacional não poderia, assim, privatizar espaços públicos, tampouco se diferenciar significativamente das construções locais, o que impede a existência de mega-projetos na Vila. Após este acordo, deu-se início o processo de recuperação do lugar, da moradia, modo de vida e cultura local que, segundo Guadalupe Lopes, presidente da ONG local Caxadaço Bocaina Mar, não logrou êxito: “foi um processo doloroso, no qual os caiçaras conseguiram permanecer, mas teve uma ruptura cultural muito grande que mexeu muito com a autoestima deles e seus valores”. Isso porque, paralelamente ao processo de recuperação da Vila, ocorria também o processo de desenvolvimento turístico, caracterizado por uma atuação deficiente do poder público. Os reflexos do turismo na Vila de Trindade O desenvolvimento do turismo em Trindade se deu de forma diferenciada da região central. Enquanto esta percebia a atração de investimentos e o aumento da especulação imobiliária imediatamente após a abertura da Rodovia Rio-Santos, Trindade se encontrava, ainda, relativamente isolada. A razão está na distância da Vila da região central, totalizando 30 km, dos quais 22 km correspondem a um trecho da Rodovia Rio-Santos e 8 km se faziam por uma trilha. Somente após a construção do Condomínio de Laranjeiras, implantou-se uma estrada aproveitando-se o corte da trilha (PRT-101). Porém, tal via não foi asfaltada, ficando conhecida como Morro do Deus-me-livre, devido às suas curvas sinuosas, declives e aclives, bem como ao fato de que se apresentava uma estrada intransponível em dias de chuva. Em 1999, esse trecho foi asfaltado por uma companhia telefônica que implantou uma espécie de subestação em Trindade. De acordo com Leila Anunciação Oliveira, nativa de Trindade e então diretora de marketing da Secretaria de Turismo e Cultura de Paraty, este asfaltamento foi conquistado pela Associação de Moradores Nativos e Originários da Trindade, através do bloqueio à obra de implantação de fibras óticas que vinha sendo efetivada pela companhia telefônica. A pavimentação do Morro do Deus-me-livre, ao lado da chegada da energia elétrica à vila, além de beneficiar aos moradores, contribuiu para o aumento considerável do fluxo de visitantes: Uma ladeira denominada “Deus me livre”, com uma inclinação fortíssima e totalmente enlameada selecionava naturalmente os frequentadores. Hoje o asfalto e a iluminação elétrica chegaram até a vila, aumentando bastante o número de turistas, grande parte vinda de Paraty para passar o dia. (...) Os mais radicais já elegeram a Praia do Sono, a alguns quilômetros por trilhas ou barco, como OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 323 novo refúgio contra a civilização moderna. Entre as duas, como que desafiando a ideologia vigente, está o luxuoso condomínio da Praia de Laranjeiras com suas belas mansões (Revista Scuba, 2003, p. 22). A notoriedade adquirida pelo conflito com a multinacional na década de 1970 ensejou o processo de desenvolvimento turístico e melhorias como o acesso e iluminação proporcionaram o contínuo crescimento da atividade. O aumento do fluxo turístico teve como consequência a atração de empreendedores de diversas localidades, que se dedicam a atividades ligadas direta ou indiretamente ao turismo. Assim, o estilo das construções, organização dos serviços e composição demográfica vem sofrendo profundas alterações. Como afirma Pereira, as casas de veraneio, pousadas, restaurantes e bares, feitas de modo desorganizado, “concorrem com as práticas comerciais dos nativos, aumentando o impacto de desordem social já bastante grave entre os nativos e novos residentes lá estabelecidos” (2001, p. 7). Nesse processo, a cultura caiçara passou a sofrer modificações significativas, enfatizadas por Guadalupe Lopes. Segundo ela, poucos antigos moradores da Vila “permaneceram dentro das atividades originárias: a pesca, o artesanato. A economia passou a ser o turismo, que é uma coisa que eles construíram, mas não sabem administrar”. Ela também cita, dentre essas mudanças, a alteração na alimentação, o contato com a poluição, violência, drogas, e novos costumes aos quais os caiçaras tentam se adaptar. Os benefícios, segundo Guadalupe Lopes, estão no contato com o dinheiro: “os valores eram outros, eles tinham um sistema de troca, todo mundo plantava, todo mundo pescava. Muitos deles acham que a vida de hoje é muito melhor. São os empresários, os que conseguiram se dar bem”. Porém, ressalta que a maioria não obteve o mesmo êxito. Grande parte da população da Vila de Trindade, assim como em diversas áreas do município, vem sofrendo um processo de marginalização resultante do “desenvolvimento”, proporcionado pelo turismo. Além do desconhecimento das novas formas de trabalho, a população possui ainda desvantagens econômicas com relação aos empreendedores vindos de outras localidades. Não se trata aqui de criticar a atração de empreendimentos ou a mobilidade de indivíduos que vieram à Vila se dedicar ao turismo. Pelo contrário; em Trindade, tais empreendedores trazem consigo novo conhecimento e nova dinâmica à atividade. Muitos se envolvem na luta pela preservação das características locais e estabelecem relações mais que econômicas com a região. A distinção dos indivíduos que residem nos núcleos turísticos (população original e correntes migratórias) tem apenas a intenção de mostrar que os benefícios advindos do turismo à “população local” não são percebidos igualmente por todos que a compõem. Fre- 324 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares quentemente estes benefícios atendem aos interesses de determinadas empresas e grupos dominantes e de indivíduos que estão mais preparados para participar desse processo de exploração turística, ficando à margem, geralmente por ignorância e inexperiência, aqueles que viviam anteriormente nestes núcleos. Outro ponto levantado por moradores é o superfaturamento dos preços de mercadorias básicas que promove o aumento do custo de vida em Trindade. Segundo o morador A*, apenas o peixe é negociado mais barato: “Somos turistas permanentes. Pagamos o mesmo preço que os turistas durante todo o ano”. Ele critica também a tarifa de ônibus em Trindade (linha Trindade-Paraty), que corresponde ao valor de R$ 5,00. Os moradores da Vila possuem uma carteirinha, lhes sendo cobrados R$ 2,60 pela mesma passagem. Ainda assim afirma: “é o ônibus mais caro do Brasil”. Os diversos problemas e alterações advindos do desenvolvimento turístico, bem como o direcionamento da população da Vila de Trindade à atividade, dão ênfase à necessidade do planejamento do turismo. A histórica exclusão da população no processo de ocupação turística no município de Paraty, por sua vez, destaca a necessidade de participação da população da Vila neste planejamento. Planejamento turístico e a Vila de Trindade A deficiência da atuação do poder público municipal em Trindade não só é apontada pela população da Vila como também é reconhecida pelo próprio poder público. Deve-se em grande medida ao foco do órgão oficial de turismo do município, a Secretaria de Turismo e Cultura, no desenvolvimento da atividade em torno do centro histórico paratiense. Tal realidade é confirmada pela então responsável pela Secretaria, a turismóloga Valéria Mozzer. A Secretaria de Turismo e Cultura de Paraty é responsável pelo planejamento estratégico e operacional da atividade turística. A atual gestão é apontada pelos moradores de Trindade como a que mais se empenhou no desenvolvimento turístico municipal. No entanto, os mesmos criticam sua atuação na Vila. Segundo eles, a população de Trindade participa muito pouco das ações de Paraty. De acordo com Valéria Mozzer, não existem registros de ações de planejamento turístico anteriores à atual gestão da Secretaria de Turismo e Cultura. Tal realidade denuncia a inexistência de vínculos entre uma gestão e outra, caracterizando uma descontinuidade do planejamento turístico e desperdício de informações que se perderam com a mudança de governo. * Os nomes de alguns moradores da Vila de Trindade foram omitidos a fim de preservar a integridade dos mesmos. OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 325 Antônio Porto Filho, envolvido na política municipal há muitos anos e exsecretário de Turismo de Paraty, diz não terem sido realizadas muitas ações de planejamento por parte do poder público em Trindade. Das ações catalogadas através do discurso do poder público e dos próprios moradores da Vila, identifica-se uma atuação voltada para a divulgação da mesma e iniciativas incipientes no sentido de organizar a atividade que ali se desenvolve. Dentre elas, cita-se a proibição de estacionar veículos na rua principal em feriados e no verão; a criação da Rua das Artes para exposição de artesanato (não necessariamente artesanato local), evitando o comércio desorganizado também na rua principal; a implantação do Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO) no acesso à Trindade; a sinalização do trevo de acesso à Vila e mais duas placas no interior da mesma; e a distribuição de folheteria. Grande parte dessas iniciativas se deu através do envolvimento e pressão populares. A criação da Rua das Artes se restringiu apenas à indicação de um local para venda de artesanato, não havendo um projeto ou investimentos adequados em infraestrutura. Pôde-se presenciar, em dias de chuva intensa, a destruição das estruturas improvisadas pelos moradores. A sinalização é deficiente, complementada por iniciativas da população, encontrando-se, assim, despadronizada e, ainda, provocando poluição visual em alguns locais. Segundo Leila Anunciação, existe a intenção de se aproveitar o trabalho realizado pela Escolinha de Entalhes existente em Trindade: “além de a comunidade ficar mais bonita, as crianças ganham com isso e a comunidade também”, afirma. Com relação à divulgação da Vila, observa-se que esta não é acompanhada por investimentos em infraestrutura e capacitação da população envolvida com o turismo. Ainda, tendo em vista que a região central possui infraestrutura e visibilidade maiores, muitos dos turistas que vão à Trindade apenas permanecem na Vila durante o dia. Com isso, reduzem-se os gastos dos mesmos no local. Outra realidade que contribui para a redução da permanência e dos gastos do turista é a estagnação da diversificação da oferta turística em Trindade. Segundo Leila Anunciação, os serviços oferecidos na Vila se restringem à tríade “pousada, restaurante e lojinha”. No entanto, a população aponta como necessária uma efetiva capacitação da mão-de-obra local e dos pequenos empreendedores. Uma vez que os moradores não estão devidamente preparados nem mesmo para lidar com essa tríade, não é difícil imaginar que terão dificuldades em desenvolver outros serviços e atender a outros segmentos do mercado turístico. Ressalta-se a importância da intervenção do poder público neste sentido. Por outro lado, são louváveis as iniciativas de muitos membros da população no sentido de desenvolver a atividade. A capacitação profissional possibilitar-lhes-ia, segundo relatos de moradores, maior inserção no processo de desenvolvimento turístico. 326 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares Tendo em vista o contexto em que se desenvolve o turismo em Trindade, de que maneira, então, a Vila alcançou a segunda colocação no ranking de atração de turistas do município? Seus atrativos naturais, ao lado da criatividade local e de uma infraestrutura razoável, apesar de rústica (que imprime um diferencial à Trindade, inclusive), atraem cada vez mais turistas. No entanto, esse fluxo é concentrado em determinadas épocas do ano (especialmente durante os períodos do Reveillon, Carnaval e Semana Santa e feriado de Sete de Setembro). Durante a alta temporada, a Vila de Trindade recebe número maior de turistas que efetivamente tem condições de comportar. O resultado é uma superutilização dos serviços urbanos, já deficientes para o atendimento à própria população. Segundo Leila Anunciação, a pavimentação do Morro do Deus-me-livre contribuiu para uma melhor distribuição do fluxo turístico ao longo do ano. Ainda assim, a população se encontra dependente dos rendimentos da alta temporada, não permanecendo, entretanto, inerte mediante essa maléfica dependência. Através da iniciativa dos moradores, a Secretaria de Turismo e Cultura incluiu dois eventos de Trindade no calendário de Paraty, visando atrair turistas em épocas de fluxo turístico reduzido. Dentre esses, chama a atenção o “Trindade em Festa”, evento que ocorre na mesma data em que se fez o acordo entre população de Trindade e a multinacional que na década de 1970 invadiu a vila. A organização do mesmo, segundo Leila Anunciação, é de responsabilidade da Associação de Moradores Nativos e Originários da Trindade em conjunto com a população da Vila: “a Secretaria de Turismo estará dando o apoio necessário”, afirma. Considerando-se as iniciativas do poder público acima citadas, pode-se prematuramente inferir que a população de Trindade possui grande participação nas mesmas. No entanto, se por um lado o interesse da população na organização da atividade se faz visível, por outro o interesse do poder público em alavancar esse potencial de envolvimento é obscuro. Participação da população da Vila de Trindade no planejamento turístico Toma-se como exemplo a aplicação do Programa Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT), elaborado pela Embratur em 1994 e aplicado em Paraty no final da mesma década. Tal programa, cujo pilar é exatamente a participação da população no planejamento turístico, não teve repercussões na Vila de Trindade. Nem mesmo as lideranças locais participaram de suas oficinas e grande parte da população não tem conhecimento do programa. Em 2003, uma empresa de consultoria paulista elaborou o Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico do Município de Paraty (PDDT), que passou a balizar OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 327 as ações do poder público. Entrevistando lideranças da Vila de Trindade, verificase que estas também não participaram da elaboração do PDDT. Se as lideranças locais envolvidas diretamente com o turismo não participam do planejamento turístico, não é de se admirar que grande parte da população não tenha nem mesmo conhecimento da existência do PDDT. A elaboração desse plano por uma consultoria indica o fracasso do PNMT em seu objetivo final, que seria a criação de um plano estratégico de turismo pela própria população em conjunto com lideranças definidas pelo poder público. Observa-se que a participação da população de Trindade no planejamento turístico municipal ocorre pontualmente, em ocasiões específicas e parte da iniciativa da própria população, ainda que a Vila se constitua em área de grande potencial turístico, de frequência nacional e internacional, e que o turismo tenha se tornado o esteio da economia local. O abandono do poder público é evidente no que se refere à infraestrutura urbana. Se a população da Vila e o fluxo turístico sofreram aumentos significativos, os serviços urbanos, por outro lado, experimentaram poucos avanços. Mediante a ausência de ações do poder público, os moradores de Trindade passaram a envolver-se de maneira positiva para intervir na realidade local. Porém, não obtêm apoio adequado dos governantes municipais: “a gente vai lá, conversa, reivindica tudo, mas eles não fazem muito. Você anda na Trindade e não vê obra da Prefeitura. Tudo o que a gente tem a gente ganhou”, afirma Saulo Alves. As melhorias na Vila são mais que “ganhos”: são conquistas que vêm se perpetuando desde o conflito com a multinacional através de mobilizações e reivindicações da população. Outras são investimentos dos próprios moradores. Dentre suas ações está a disponibilização de um médico e enfermeira durante o Carnaval de 2004, mediante rateio em conjunto com a Associação de Moradores. Esta Associação é também responsável pela implantação de um sistema de água na Vila, ainda que de maneira improvisada. Houve também a tentativa de se implantar uma rede de coleta de esgoto, iniciativa apontada como a ação do poder público mais urgente pelos moradores entrevistados. Guadalupe Lopes diz que sua filha, devido a essa deficiência no saneamento urbano local, adquiriu uma doença e veio a falecer em 1997. Desta forma, iniciou-se em Trindade um levantamento de fundos para que fossem realizadas obras nesse sentido. Guadalupe relata o apoio externo adquirido pelos moradores: “o pessoal do Partido dos Trabalhadores de Santos mandou os técnicos, começamos a fazer a obra. Quando chegou em uma certa hora da obra a Prefeitura entrou. O Secretário do Meio Ambiente apresentou uma verba mirabolante e com essa verba desmobilizou a comunidade inteira. Todo mundo ficou por conta desse dinheiro. O dinheiro veio só a metade, ninguém conseguiu pegar o resto até hoje. E está aí abandonado, ninguém conseguiu concluir a obra”. 328 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares Outra iniciativa dos moradores se refere à coleta do lixo, realizada apenas duas vezes por semana, resultando em um acúmulo na alta temporada. Segundo Guadalupe Lopes, houve uma tentativa de se implementar a coleta seletiva na Vila: “colocamos coleta seletiva na comunidade, estávamos de parceria com a SOS Mata Atlântica, estava dando tudo certo. Fizemos um galpão, a comunidade estava separando, estávamos com um trabalho de educação ambiental. Tinha até uma cartilha. Mudou de governo, passou-se toda a coleta seletiva para as mãos da Prefeitura. A única coisa que a Prefeitura precisava fazer era organizar a coisa da coleta, buscar o nosso material. Ela não conseguiu fazer isso, o galpão começou a ficar uma monstruosidade. Acabou a coleta seletiva”. Guadalupe conclui que a Prefeitura, ao invés de oferecer apoio à população, só a prejudica: “[a Prefeitura] quando quer ajudar, só atrapalha. E sempre pega na coisa pior que é o lixo e o esgoto. Não deixa a gente resolver, não dá uma força pra gente conseguir fazer isso”. Ainda, Guadalupe conclui: “até onde eles vão querer chegar? Acho que eles vão querer dar mais um tempo para destruir as comunidades, porque quem fica aqui somos nós. A população começa a ficar enfraquecida, doente, começa a vender suas terras e pronto. Há um interesse por parte de Paraty em Trindade, mas não é com a comunidade que está presente. Ela quer para esse lugar uma outra história, para daqui a alguns anos. Mas um interesse com a comunidade em si, não sinto. Nenhuma prefeitura. Não é uma coisa deste governo. E é um lugar que tem uma importância histórica, é um lugar que deveria ser apoiado, porque tem uma resistência aqui dentro para poder permanecer onde nós estamos”. O morador B concorda: “a Trindade como pólo turístico para a cidade de Paraty não é muito negócio para o governo do município, porque eles querem imposto, arrecadação. E caiçara não tem dinheiro para pagar imposto. Agora o pessoal de Laranjeiras, os magnatas, gente que tem grana para implantar um condomínio desses é que paga impostos, altos. Então para eles é negócio que os caiçaras saiam daqui e venha para cá gente que tem grana. Se dependesse deles já não tinha mais essa comunidade aqui”. Saulo Alves diz que, em 2003, a Prefeitura apresentou um projeto de criação de uma estrada-parque em Trindade. Assim, seriam cobrados R$ 10,00 dos turistas para entrada na Vila. A receita seria destinada à Prefeitura Municipal de Paraty. A Associação de Moradores rejeitou esse projeto. Para Saulo Alves, a cobrança desta taxa poderia engendrar, por um lado, a diminuição do fluxo turístico na Vila, do qual os moradores são extremamente dependentes. Por outro, Saulo Alves afirma que seria uma forma de atrair um turista de maior poder aquisitivo e, sem capacitação profissional e melhoria da infraestrutura, muitos moradores se veriam prejudicados: “o morador da comunidade não teria para quem vender o seu prato de comida, alugar seu camping, sua pousada”. OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 329 O projeto não foi aprovado, porém Saulo Alves relata que, em dezembro do mesmo ano, houve uma outra tentativa de implantá-lo: “ele [Prefeito] votou a mesma lei. Ele mandou uma pessoa cobrar aqui no alto no Carnaval. Na Semana Santa ele não cobrou mais, agora está parado”. Saulo reconhece a necessidade de enfrentamento de problemas advindos do crescimento do turismo, porém completa: “o que adiantaria seria a gente ficar na Trindade e ser participante do que ele [prefeito] tem a fazer”. A partir dessa realidade percebida pela ótica de muitos moradores, torna-se difícil o envolvimento da população com o poder público: “a comunidade está abandonada há tanto tempo que não acredita mais em nada. Então é difícil você articular uma reunião, organizar um curso”, afirma Guadalupe Lopes. Nesse sentido, ela ressalta a importância de se estudar o fator histórico da Vila. Além de passar por toda a questão da luta pela terra, o nativo teve uma difícil reconstrução de seu modo de vida que, sofrendo influência do turismo, passou por alterações profundas. Ainda, grande parte da população, embora envolvida com a atividade, não tem um conhecimento maior a respeito do turismo, o que vem ameaçando sua inserção no processo de ocupação turística. É necessária a existência de uma política de inclusão que contemple a preparação e capacitação da população para o turismo. Como afirma o morador B, os habitantes de Trindade dedicam-se majoritariamente à atividade, tornandose dever da Prefeitura apoiá-los no desenvolvimento da mesma. Ressalta que as atuais gestões da Prefeitura e Secretaria de Turismo e Cultura, ainda com todos os problemas, foram as que mais investiram no turismo: “mas ao mesmo tempo em que investe quer cobrar um preço muito alto. A condição é a comunidade se submeter ao controle deles. Queriam cobrar para controlar o fluxo turístico, mas primeiramente tem que investir na infraestrutura do lugar. Novamente rede de saneamento, a educação, a preparação dos profissionais que trabalham com o turismo aqui para o turista vir e pagar por uma coisa que ele está recebendo: o conforto e a consciência de que o lugar está sendo preservado”. Uma política de inclusão da população deve ser acompanhada por investimentos em infraestrutura. É certo que muitas das deficiências existentes em Trindade aqui apontadas não competem diretamente ao órgão oficial de turismo. No entanto, considerando-se que o turista depende desses serviços e provoca a superutilização dos mesmos, acredita-se que a Secretaria de Turismo e Cultura deveria somar esforços àqueles que cobram por melhorias nesse sentido. Ressalta-se que, como afirma Antônio Porto Filho, a Secretaria de Turismo e Cultura tornou-se a Secretaria mais importante do município, podendo contribuir para a mudança da realidade na Vila. 330 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares Considerações finais O turismo em Paraty (incluindo-se o turismo de segunda residência) tem promovido significativa atração de investimentos ao município. Praias e ilhas, patrimônio da sociedade, têm se tornado áreas exclusivas da elite nacional e internacional. Em áreas menos exclusivas, porém bastante valorizadas, verifica-se a presença cada vez maior de indivíduos dos grandes centros. A atração desses investimentos é associada à promoção do desenvolvimento do município: a decadente Paraty, ao ser “descoberta” pelo turismo, passa a reviver tempos prósperos. A adequação do espaço de Paraty (e tudo que esse espaço contém: suas populações e relações sociais) ao consumo das elites dá ao município uma simbologia vinculada ao status social de seus consumidores. Pouco se fala a respeito da marginalização da população local. O “desenvolvimento” paratiense ocorre de maneira controversa: aqueles que sobreviveram aos períodos de decadência econômica não conseguem sobreviver ao “progresso”. Não parece existir o interesse em se elevar os níveis técnicos e de conhecimento da população para acompanhar esse processo de “desenvolvimento”. A sua função seria outra dentro da engrenagem da ocupação turística: a sua exclusão é mais lucrativa do ponto de vista dos interesses dominantes. A população é, assim, incorporada ao novo sistema de produção e consumo com papel distinto dos novos proprietários e produtores do espaço, bem como dos novos usuários (turistas). Constitui-se, quando muito, na mão-de-obra barata empregada na nova economia. A população de Trindade representa um movimento de resistência a essa realidade. Para os moradores da Vila, o “desenvolvimento” não é apenas obra dos detentores de capital ou do poder público. A despeito da ausência deste, a população de Trindade busca sobreviver intervindo na realidade local. O abandono do poder público enseja o afastamento da população com relação ao mesmo. É preocupante a constatação de que, para muitos moradores, esse abandono é intencional. Seria uma crítica dos habitantes da Vila não exatamente à Secretaria de Turismo e Cultura, mas a toda Prefeitura, e não especificamente à atual gestão, mas também às gestões anteriores. Para eles, a Prefeitura teria sim interesse em Trindade, porém direcionado a grupos de hegemonia econômica que têm interesse na região e, portanto, não direcionaria esforços para que a população que hoje vive na Vila fosse beneficiada através do desenvolvimento da atividade. De maneira geral, o modelo de desenvolvimento turístico exógeno, dependente de investimentos externos e excludente com relação à população local, é comum no Brasil. Diversas localidades que apresentam vocação natural para a atividade optam por esse modelo, passando a adequar seus territórios aos padrões OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 331 de consumo da elite nacional e internacional. Ao mimetizar características de outras localidades, perdem, assim, exatamente os traços que originaram o fluxo turístico inicial. Seguem a padronização vigente da produção dos espaços turísticos. Desta forma, compreende-se a afirmação de Yázigi: “por toda parte, o que vejo são fragmentos de cidade grande espalhados pelo interior que, mais cedo ou mais tarde, tendem a deixar tudo igual” (2002, p. 135). A inércia da espera por investimentos que possam promover o desenvolvimento turístico parte de uma visão míope dos responsáveis pelo planejamento da atividade. Não se credita à população dessas localidades, desprovida de maiores recursos financeiros e de conhecimentos das formas de trabalho do turismo, a responsabilidade pelo desenvolvimento da atividade. De fato, o desenvolvimento endógeno apresenta diversos desafios. Porém, ao se descartar essa hipótese opta-se por endossar os mesmos modelos excludentes baseados na exploração turística por grupos de poder econômico, obtendo, por um lado, resultados mais facilmente e, relativamente, em curto prazo. Por outro, a marginalização da população e deterioração dos indicadores sociais; a construção de um produto turístico desprovido de relação com o cotidiano da população local, receptáculo para o turista; a padronização dos serviços e aspectos urbanos; a descaracterização cultural, dentre outros impactos negativos. A experiência turística deixa de ser o contato com a realidade local para constituir-se em contato comercial com um espaço “mercadorizado”. A participação da população no planejamento turístico se apresenta enquanto diferencial estratégico no desenvolvimento da atividade. Através dessa participação, promove-se a construção de um modelo de ocupação turística, e não apenas a cópia e aplicação de modelos, comumente adotada por todo o país. Cria-se um produto que estabelece maior relação com a realidade local e com os interesses, desejos e valores da população. Uma relação positiva entre turismo e desenvolvimento passa, primeiramente, por uma nova formulação no planejamento turístico, que implique uma visão mais humana que mercadológica da atividade, bem como a atribuição de novos papéis à população local. Além de servir à adequação e competitividade das localidades turísticas, o planejamento deve conceber uma política de inclusão da população no desenvolvimento turístico, especialmente em áreas mais sensíveis aos impactos negativos da atividade. A Vila de Trindade representa a possibilidade de desenvolvimento turístico que contemple essa inclusão. Enquanto o modelo dominante excludente de ocupação turística não extingue qualquer capacidade de resistência local, perdura-se a oportunidade do turista conviver com a cultura caiçara: ouvir histórias da “aldeia antiga”, como chamam os moradores a Vila antes do conflito com a multinacio- 332 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares nal; histórias do próprio conflito ou de piratas que teriam sido atraídos pelo ouro que de Paraty era transportado para Portugal; com sorte pode-se experimentar a comida caiçara ou acompanhar o cerco dos pescadores. Dentre os empreendedores, pode-se encontrar nativos da Vila. Dentre as construções existentes, pode-se observar técnicas utilizadas pela cultura caiçara, como nos ranchos de pesca transformados em bares e restaurantes à beira-mar. No entanto, tais traços se veem, especialmente na alta temporada, em segundo plano, tendo em vista o crescimento desorganizado da atividade. Toma-se como atrativo apenas os elementos naturais da Vila que, diga-se de passagem, são de rara beleza. Isso porque o “turismo cultural” elegeu o centro histórico e seu rico patrimônio, embalagens de status dos novos empreendimentos, como cenário para se desenvolver. A cultura das áreas periféricas não tem merecido atenção equivalente, apesar de sua riqueza. Talvez essas áreas venham a alcançar destaque a partir da atração de novos empreendedores, retirando a população “incapaz” desse progresso, por seu despreparo e desvantagens econômicas, tornando-se apenas cenário desprovido de um conteúdo autêntico. Referências bibliográficas BRANDÃO, T. A Meteórica Agonia dos Caiçaras de Paraty. O Globo. Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2004. ENCICLOPÉDIA DOS MUNICÍPIOS. Paraty, 1950. LUCHIARI, M. T. D. P. “Turismo e Cultura Caiçara no Litoral Norte Paulista”. In: Turis- mo. Modernidade. Globalização. RODRIGUES, A. B. (Org.). 2ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2000. MENESES, U. T. B. Os “usos culturais” da cultura. In: YÁZIGI, E. , CARLOS, A. F. A.; CRUZ, R. C. A. (Org.). Turismo: Espaço, Paisagem e Cultura. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 88-99. PEREIRA, F. M. Vila da Trindade, Paraty, RJ: Turismo Sustentável?. Monografia de Bacha- relado. Santo André: UNI ABC, 2001. PLANO DE DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO DO MUNICÍPIO DE PARATY, vol. I. Paraty, 2003. REVISTA SCUBA. Paraty: Turismo Aventura. São Paulo: Vox Editora, número 59, 2003. WILK, C. Parati: uma Cidade de Outro Tempo. Viagem e Turismo. São Paulo: Editora Azul, ed. 25, novembro de 1997. YÁZIGI, E. Turismo: Espaço, Paisagem e Cultura. 3ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2002. OLIVEIRA . Turismo e população dos destinos turísticos 333 Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio aspectos relacionais entre cultura, turismo e desenvolvimento local ANELIZE MARTINS DE OLIVEIRA MARCELO MARINHO Considerações iniciais A Fundação Cultural Palmares — órgão ligado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça — catalogou até o ano de 2004, 743 núcleos remanescentes de quilombos espalhados pelo território nacional, trabalhando com uma estimativa representada por uma população em torno de 2.000.000 de habitantes numa área de 30.581.787,58 hectares. No entanto, pode-se observar que os números aumentaram consideravelmente no decorrer dos anos, sendo que ainda no primeiro semestre de 2008 foram emitidas certidões a 1.038 núcleos quilombolas distribuídos de norte a sul do país. Acredita-se que tais comunidades são consideradas depositórios culturais em função de sua existência em núcleos relativamente isolados na malha geográfica regional. Essas comunidades buscam o auto-reconhecimento identitário e a afirmação sócio-cultural, questões que vêm se agregar aos problemas econômicos resultantes do isolamento geográfico e do processo de formação histórica do país. No mundo globalizado, a diversidade cultural local cede lugar à massificação, enquanto as disparidades do Desenvolvimento Humano (medido pelo IDH) acentuam-se nos planos local, regional e global. Essa questão é amplamente discutida no Relatório “Liberdade Cultural num Mundo Diversificado”, 334 elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com base no Índice do Desenvolvimento Humano relativo ao ano de 2004. O relatório demonstra que a erradicação da pobreza e a solução de problemas em setores prioritários como educação, saúde, meio ambiente e crescimento econômico, passam pela diversidade cultural e pela inclusão social. Com o tema Cultura, turismo e desenvolvimento local: potencialidades e perspectivas na comunidade de Furnas do Dionísio, este artigo é resultante da dissertação de mestrado defendida em 2004 e traz à discussão o significado da cultura como uma ferramenta para o desenvolvimento, razão pela qual se busca analisar, na comunidade quilombola Furnas do Dionísio, como os aspectos culturais próprios podem estimular o desenvolvimento econômico e humano. Contudo, é fundamental levar em consideração as expectativas da população local: pouca chance de sucesso terá todo e qualquer processo de desenvolvimento que desconsidere os fatores endógenos. Cultura: questão e conceitos Marvyn Claxton (1994) relembra que, em 1982, a UNESCO definia o termo “cultura” como o conjunto de manifestações humanas que engloba não somente as artes, mas também o modo de vida e os sistemas de valores de uma dada sociedade ou grupo social. No entanto, por sua natureza sistêmica, a cultura deve ser analisada como um processo de compreensão e transformação do mundo, no qual se estabelecem relações intrínsecas entre diferentes aspectos da vida humana e ao qual incorporam-se preceitos econômicos, sociais, artísticos, intelectuais, espirituais, entre outros. Verhelst (1992, p. 37) defende a ideia de que cultura é um “conjunto de soluções originais que um grupo de seres humanos inventa a fim de se adaptar ao seu ambiente natural e social”. O autor considera vários aspectos vivenciados pelo ser humano, como por exemplo, savoir-faire, conhecimentos técnicos, costumes relativos à vestimenta, alimentação, religião, mentalidade, valores, língua, símbolos, comportamento econômico e sócio-político, formas autóctones de tomar decisões e exercer o poder. Quanto ao dinamismo da cultura, Cunha (1986, p. 101) salienta que “a cultura não é algo dado, posto, algo dilapidável também, mas algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados”. Assim, Cuche (1999, p. 143) relembra que “[...] se cultura não é um dado, uma herança que se transmite imutável de geração em geração, é porque ela é uma produção histórica, isto é, uma construção que se inscreve na história e mais precisamente na história OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 335 das relações dos grupos sociais entre si”. Na mesma linha de raciocínio, Ullmann (1991, p. 83) sublinha a ideia de que: [...] o comportamento humano é um comportamento aprendido. O homem não vive predeterminado pelo instinto, o qual adotou, de maneira completa, a vida dos irracionais [...]. Aprendendo a viver, pode, também, aprender a viver melhor. Essa característica de aprender a viver e a humanizar-se recebe o nome de cultura. Retomando as ideias de Cuche (1999, p. 140), observa-se que “não existem, consequentemente, de um lado as culturas puras e, de outro, as culturas mestiças. Todas, devido ao fato universal dos contatos culturais, são, em diferentes graus, culturas mistas, feitas de continuidades e descontinuidade”. Assim, a cultura passa por um processo constante de desestruturação e reestruturação que afeta diretamente a identidade, pois, como aponta Castells (2000), os indivíduos agrupamse, de forma maleável, em organizações sociais que, ao longo do tempo, podem gerar sentimentos de pertença ao território e, em muitas ocasiões, uma identidade cultural amplamente compartilhada. Hermet (2002) afirma que as atividades culturais — aqui interpretadas como manifestações de afirmação coletiva — simbolizam uma identidade comum e tornam-se fator de autoestima à medida que as comunidades tendam a caracterizá-las como expressões culturais de seu próprio grupo. Igualmente, quando uma sociedade se comprometer com a valorização de sua cultura e identidade, passando a reconhecer sua história coletiva como instrumento para o enfrentamento dos problemas compartilhados socialmente, a cultura será peça chave para se buscar alternativas que promovam o desenvolvimento local. Cultura e desenvolvimento Como relembra Arocena em seu livro El desarrollo local: un desafío contemporáneo, as diferenças de idade, etnia, nacionalidade ou religião devem ser consideradas quando se trata do desenvolvimento humano. O conjunto da sociedade — representada por agentes governamentais e não-governamentais, agências de fomento e órgãos internacionais, entre outros — está se tornando mais consciente das diversidades sócio-culturais e da existência de uma sociedade mais complexa e multicultural. Sob o mesmo enfoque, Kliksberg (1999) afirma que um novo modelo de desenvolvimento deve valorizar o ser humano, de forma que até mesmo o pensa- 336 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares mento econômico de modelo capitalista — baseado na ideia de que o progresso material reduziria a pobreza e a disparidade social — está se tornando mais flexível e considerando um processo de desenvolvimento voltado aos valores humanos e à diversidade cultural. Segundo o autor, o processo de desenvolvimento só será autêntico se estiver direcionado ao bem-estar do ser humano que, por sua vez, deverá ser o agente do próprio desenvolvimento. A cultura, nessa perspectiva, consolida a identidade coletiva e viabiliza novas estratégias de desenvolvimento socioeconômico e cultural, mormente no caso de comunidades tradicionais, tais como as comunidades quilombolas. Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio: formação sócio-histórica Localizada a 48 km de Campo Grande, no município de Jaraguari, a comunidade quilombola de Furnas do Dionísio foi fundada em 1901 por Dionísio Antônio Vieira, ex-escravo oriundo de Minas Gerais, que se deslocou com sua família na expectativa de encontrar solo produtivo no qual pudesse garantir a subsistência de seus familiares. Seis anos após sua chegada, Dionísio decidiu requerer definitivamente a posse das terras, recebendo o título provisório junto à Secretaria da Agricultura, Indústria, Comércio, Viação e Obras Públicas, do então Estado de Mato Grosso. Dez anos mais tarde, foi-lhe outorgado o título definitivo de apropriação, relativo a 914 hectares. Após sua morte, por volta de 1920, seus onze filhos inventariaram a gleba, demarcando-a em linhas familiares com área entre dois e cinquenta hectares, conforme o tamanho da família beneficiada. Na expectativa de alcançarem melhores condições de vida, muitos dos herdeiros venderam suas terras e migraram para a cidade, restando atualmente apenas 580 hectares pertencentes aos mais de 400 moradores, agrupados em aproximadamente 86 famílias que descendem diretamente de Dionísio. Aspectos econômicos de Furnas do Dionísio Segundo os estudos de Leite (1995), a economia dos Dionísios, voltada para a subsistência e para o pequeno comércio, baseia-se na criação de animais de pequeno ou médio porte, na produção de leite e seus derivados, na agroindústria caseira, assim como na agricultura familiar, que ocupa mão-de-obra local, provê o sustento em épocas difíceis e reduz a migração para outras áreas. OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 337 Deste modo, a maior parte dos membros da comunidade tem produção própria, cujos excedentes são comercializados em cidades próximas: rapadura, farinha de mandioca, açúcar mascavo, melado, frutas locais em compota (doces de caju, mamão, goiaba, guavira, entre outros), ainda produzidos segundo processos artesanais e métodos passados de geração para geração. Há também aqueles que trabalham em fazendas da região, como empregados rurais, ou nas três escolas locais (duas municipais e uma estadual), como professores, auxiliares administrativos, merendeiras ou serventes, contribuindo para aumentar a renda de suas próprias famílias. Em média, as famílias compõem-se de cinco membros e têm uma renda mensal que varia de R$ 400,00 a R$ 800,00. Nos últimos anos, observa-se a chegada espontânea de um pequeno contingente de visitantes em busca dos produtos locais e de contato com o modo de vida daquela população quilombola, surgindo, daí, formas incipientes de turismo tanto cultural quanto em espaço natural, incluindo o ecoturismo e o turismo rural. Contudo, a renda gerada por esses visitantes ainda está distante de satisfazer as necessidades da comunidade. Aspectos sócio-identitários da comunidade de Furnas do Dionísio Em consequência dos estudos técnicos e antropológicos promovidos pela Fundação Cultural Palmares, em 2000 Furnas do Dionísio recebeu a denominação de “remanescente de quilombos” ainda com base na definição adotada em 1994 pela Associação Brasileira de Antropologia, o que significa “toda comunidade negra rural, que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e tenha vínculo com o passado”. No entanto, o conceito foi alterado e ficou estabelecido pelo art. 2 do decreto federal nº 4887, de 20 de novembro de 2003: “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. A identificação de uma comunidade como quilombola é essencial para garantir o direito à propriedade. Para definir Furnas do Dionísio como território quilombola, a FCP elaborou um relatório técnico, informando sobre os aspectos étnicos, históricos, culturais e socioeconômicos do grupo, para que as terras suscetíveis de reconhecimento e demarcação fossem delimitadas, evitando posteriores questionamentos e disputas territoriais. Muito embora a questão da terra ainda evidencie uma problemática na comunidade e, embora tenham recebido o título de remanescentes de quilombos estejam respaldados pela Constituição Federal, a ocupação da região por famílias que não pertencem ao legado de Dionísio afronta 338 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares o registro constitucional, cabendo à justiça a determinação do território ocupado por seus herdeiros e dando-lhes a conquista efetiva pelo título da terra. Abre-se uma ressalva quanto aos usos e sentidos dos termos remanescentes e comunidades quilombolas, à medida que o reconhecimento como remanescente de quilombos muitas vezes tenha sido apontado como alternativa para a garantia de suas terras e sua voz política, concebida como ato natural de identificação, obrigando-as consequentemente a entender as mudanças na ideologia dominante e promover uma adaptação a esse novo papel. Por este prisma antropológico, a análise da singularidade de distintos quilombos tem permitido ampliar tal conceito ao reconhecer processos históricos e caminhos diferenciados da formulação de pleitos coletivos; o que promove uma percepção a respeito do modo como esses novos atores sociais manipulam e reafirmam seu ethos em prol de uma legitimação de direitos e dinâmicas tanto culturais como territoriais, entendidos como elementos significativos para a existência do próprio grupo; assim, o uso terminológico de “comunidades quilombolas” deve vislumbrar a pluralidade conceitual e dinâmica da qual se reveste a aplicabilidade teórica e o entendimento prático em consonância com o verdadeiro significado social e histórico desta categoria: diz respeito à formação de um espaço de resistência, liberdade e relações comunitárias, seja sua formação estratificada na condição de pré ou pós abolição, operando em um sentido de litígio histórico que necessita de um respaldo legal com a finalidade de resguardar e instituir igualdade de direitos; atentando-se também para a categorização enquanto significado político, social, econômico e cultural. Não apenas por compartilhar características físicas comuns, mas também, e sobretudo, por suas práticas culturais tradicionais, Furnas do Dionísio é uma comunidade que se auto-identifica com o território de que é parte integrante. Em outras palavras, acredita-se que a questão do território acaba por exercer uma influência significativa na reprodução e reconstrução de suas particularidades sociais e culturais, tomado como elemento basilar para a constituição da territorialidade, ou seja, o território na realidade apresenta-se mais que uma base geofísica, sobretudo porque permite uma representação de suas práticas culturais tradicionais que refletem diretamente na comunidade à medida que os membros se auto-identificam com o território e passam a interpretá-lo como a personificação de sua historicidade e cultura. Vale observar, por esse prisma, que Poutignat e Fenart (1998, p. 189) ressaltam que “os grupos étnicos são categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a característica de organizar a interação entre as pessoas”. Dessa forma, os modelos culturais podem ser constantemente reelaborados, com base nas origens, tradições e culturas comuns ao grupo. Ou seja, OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 339 as manifestações culturais tanto se originam do grupo quanto dão forma a esse mesmo grupo. Amorim (1998) ressalta que as comunidades remanescentes de quilombos desenvolveram, ao longo de sua formação, uma identidade que se define pelas experiências vividas e compartilhadas em relação às suas trajetórias históricas. Assim, a identidade tem o território como referencial determinante como ponto de articulação da existência e da memória coletiva. Em Furnas do Dionísio, as pesquisas revelam que os membros da comunidade valorizam em alto grau a base familiar e os laços de amizade. A organização das atividades desempenhadas muitas vezes depende da cooperação mútua. Tal fato pode ser explicado pela relação de coexistência harmoniosa entre os membros mais antigos e mais jovens, com permanente legado de histórias, tradições e experiências. Boa parte dessa tradição quilombola resultou na publicação do livro “Flor do Quilombo”, compêndio de experiências coletivas realizado por Sirlene Jacquie de Paula Silva, moradora que transformou a história dos Dionísios em literatura infanto-juvenil. Manifestações culturais em Furnas do Dionísio Entre as práticas culturais levadas a efeito entre os Dionísios, os momentos de festejo pessoal e devoção religiosa organizam-se em torno da comunidade. As comemorações locais apresentam principalmente caráter religioso e as tradições são transmitidas de geração em geração, preservando-se a memória local. Dessa forma, a integração em torno de manifestações culturais oferece aos membros da comunidade uma estratégia de prevenção quanto aos tempos futuros, como reflexo do desejo de reprodução perene da própria história local. O leque de tradições transmitidas é amplo e inclui vários aspectos, da dança à culinária, da história à farmacopéia. Saúde coletiva e plantas medicinais Em Furnas do Dionísio, a diversidade das plantas existentes e o importante conhecimento de ervas medicinais propiciam aos moradores o emprego de uma eficaz farmacopéia local. Nesse sentido, Cuéllar (1997) ressalta que a relação entre natureza e cultura deve fundamentar-se no conhecimento tradicional das comunidades autóctones, de forma a incentivar a gestão sustentável dos bens coletivos. Assim, além das tradicionais rezas e benzimentos que, no mínimo, trazem algum reconforto e reforçam a identidade comunitária, algumas enfermidades 340 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares são tratadas com a farmacopéia regional. Dentre essas plantas, destacam-se, por exemplo, a cancorosa, empregada para combater dores estomacais; o babatimão, como cicatrizante; o marmelinho, empregado para combater a anemia e o reumatismo; a erva cidreira, para gastrite; a flor de laranjeira, um calmante natural, entre várias outras espécies. Todavia, ressalta-se que o uso de ervas e raízes não é uma forma de recusa voluntária ao tratamento clínico. Pelo contrário, o emprego da farmacopéia natural é uma forma local para paliar o deficiente atendimento semanal do único posto de saúde existente num raio de aproximadamente 15 km. Festas religiosas Em junho é festejado Santo Antônio — padroeiro da comunidade —, com rezas, terços e novenas. Paralelamente, realizam-se jogos, preparam-se coletivamente pratos da culinária local, organiza-se um leilão para arrecadar fundos para custeio de despesas definidas pela comunidade. Essas manifestações culturais encerramse com a queima de uma fogueira. Durante o evento, os Dionísios participam de danças tradicionais, como a catira e o engenho novo, transmitidas de geração em geração. Nossa Senhora Aparecida também é homenageada no dia 12 de outubro, data em que igualmente comemora-se o Dia da Criança. Para a comemoração de Nossa Senhora, realiza-se uma procissão e a reza do terço. A festividade termina com o almoço em que se servem comidas típicas — arroz com palmito gariroba ou com galinha caipira, frango caipira com gariroba ou com mandioca, arroz carreteiro, bolo de goma de mandioca, quibebe de mandioca (carne refogada com purê de mandioca). Ao término da refeição, são oferecidos doces e bolos às crianças. Outras comemorações importantes A Festa da Primavera, comemorada em setembro, convoca a prosperidade, reunindo a comunidade para a realização de atividades culturais, como gincanas, jogos esportivos e outras brincadeiras. Ao anoitecer, membros mais idosos realizam danças típicas e contam histórias de seus ancestrais, enquanto os mais jovens demonstram a harmonia de gerações que marca a festividade. Em 20 de novembro, comemora-se o Dia da Consciência Negra, com a reunião dos moradores de Furnas do Dionísio, as lideranças políticas e as entidades ligadas à questão do Negro. No plano dos festejos individuais, os aniversários dos mais idosos são uma ocasião em que se reúne grande parte da comunidade. Nessa perspectiva, como sustenta Moura (In: Funari e Pinsky, 2001, p. 38), “as OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 341 festas apresentam um caráter ideológico uma vez que comemorar é, antes de tudo, conservar algo que ficou na memória coletiva”. Observa-se, portanto, que os Dionísios se agrupam para celebrar acontecimentos importantes segundo os valores locais, reforçando assim a aliança comunitária e a identidade cultural. Como demonstram as manifestações culturais dos Dionísios, o reconhecimento do saber e da história local é uma das chaves para ações que viabilizem processos de desenvolvimento sócio-cultural e de sustentabilidade ambiental. Desse modo, os recursos existentes e compartilhados podem ser utilizados para implementar outras atividades de desenvolvimento coletivo, como é o caso do turismo. O turismo com base local em Furnas Como orienta Benevides (In: Rodrigues, 1999), o turismo com base local pode ser sistematizado como uma estratégia eficaz de inclusão social, de desenvolvimento sócio-cultural e de preservação ambiental. Para tanto, todo e qualquer projeto deve levar em consideração as reais necessidades da comunidade, da saúde à educação, da geração de empregos ao fortalecimento da identidade cultural, cuja gestão participativa é um item criterioso no momento de aporte à atividade turística. Avalia-se que, se a comunidade não está preparada para receber o turista, seja pela deficiência de equipamentos e objetos que servem de apoio à sua prática social, seja por carência de preparação da coletividade, o turismo será uma atividade meramente econômica que não reproduz benefícios sócio-culturais em comunidades que se esforçam em abrir suas portas para visitação. Barreto (2000) sustenta que a atividade do turismo deve servir como estímulo às manifestações da alteridade e da identidade cultural local. Entretanto, as manifestações culturais locais devem evitar a armadilha de se tornarem apenas o reflexo daquilo que o turista busca encontrar naquela comunidade. Enquanto que em Swarbrooke (2000) o turismo de base cultural varia conforme os diferentes espaços geográficos. Em áreas urbanas, o turismo volta-se para atrações turísticas físicas e artes performáticas; em áreas rurais, o turismo centra-se na observação e na vivência de estilos de vida tradicionais. Portanto, os hábitos culturais dos Dionísios podem servir de estímulo à implantação tanto do turismo em espaço natural — que envolve o exercício de atividades realizadas junto ao meio ambiente e ligadas ao cotidiano rural — quanto do turismo cultural; aquele direcionado às pessoas que desejam vivenciar tradições e costumes específicos dessa comunidade quilombola. Para a Organização Mundial do Turismo (2003, p. 76): 342 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares [...] elementos culturais podem encontrar no turismo um importante veículo de revitalização e conservação, geralmente de forma seletiva. Ao observarem que os turistas apreciam suas tradições, é mais provável que os residentes renovem seu orgulho em relação à sua cultura e apoiem a sua conservação. De acordo com o Guia de desenvolvimento do turismo sustentável (2003), por não exigirem grandes investimentos de capital, as atividades ligadas ao ambiente natural e cultural fazem com que os moradores sejam os primeiros beneficiários; por outro lado, os visitantes podem tirar benefícios do aprendizado sobre o local, sobre seu estilo de vida, suas tradições, sua culinária típica e suas atividades econômicas. Diante desta premissa, nota-se que os Dionísios vêm apostando em novas alternativas para o desenvolvimento territorial e social, tornando-se assim os protagonistas do processo e não meros coadjuvantes, pois a capacidade endógena dos agentes em realizar ações coletivas é peça chave para o desenvolvimento de competências e vantagens para criar novos modelos que elevem o dinamismo e a inovação. Portanto, não adianta apenas ter o conhecimento, é necessário ter capacidade para inovar e redimensionar os saberes em função de novas perspectivas que possam criar ambientes favoráveis ao desenvolvimento, inserindo-se dentro deste contexto, a atividade turística. Em relação às atividades desenvolvidas pelos Dionísios, observa-se que efetivamente a vocação primária é a fabricação de produtos artesanais derivados da cana, da mandioca e do leite. Por intermédio dessa produção artesanal, preservase parte da história e da identidade local. Nesse contexto, o turismo pode gerar benefícios sociais e econômicos, não apenas em relação à geração de emprego e renda, mas também no tocante ao fortalecimento da cultura local e da autoestima da comunidade. Consequentemente, a produção poderia sofrer um incentivo a mais para a comercialização e intercâmbio financeiro entre comunidade e visitante, à medida que estes obtivessem nesta transação econômica uma atividade não somente promulgada para o turismo, e sim como oportunidade de atingir mercados externos. Aqui, cabem duas análises interpretativas: a primeira, relacionada aos postulados teóricos expostos até o presente em conformidade com a realidade investigada quanto às potencialidades que podem ser trabalhadas; e segundo, a visão que a própria comunidade tem em relação ao turismo. Logo, não menos importante de ressalva no tocante à realidade vivenciada no decorrer do processo investigatório é que se pode discorrer que o processo participativo ocorre em uma via de mão dupla dentro da comunidade. Por um lado, organismos de fomento ao turismo têm interesse em tornar a atividade uma realidade para o local – uma vez que a OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 343 comunidade agrupa significativos recursos naturais e culturais — e por outro, a comunidade apresenta um receio em desenvolver a atividade por não conseguir se enxergar inclusa no processo de planejamento. Por conta deste fato é que a visão que a comunidade apresenta frente às questões pertinentes ao turismo, de certa forma encontra-se um tanto fragmentada quanto aos benefícios que podem ser reproduzidos por sua prática socialmente planejada. De fato, os moradores avaliam o turismo como uma atividade que apenas incorpora modelos de desenvolvimento em que persista como consequência o aumento de emprego e geração de renda para a comunidade. E neste caso específico, qual seria a melhor solução? Partindo-se de pressupostos que ponderem a questão ecológica, processo de inclusão ao território e adaptabilidade sócio-cultural em relação a Furnas do Dionísio, é necessário delimitar o papel do turismo com base local e fazer com que repercutam questões de sustentabilidade ambiental e singularidades culturais. Portanto, o desenvolvimento local alavancável por meio desse tipo de turismo deve constituir-se de cinco elementos básicos em se tratando do contexto sócio-cultural da comunidade: preservação/conservação do ambiente, identidade cultural, geração de oportunidades de emprego e renda, desenvolvimento participativo e qualidade de vida. Conforme as necessidades citadas pelos próprios moradores, é importante verificar com a comunidade a real situação para efetivação do turismo no local e, por conseguinte, dispor de mecanismos para analisar os benefícios e malefícios que o impacto do turismo poderia desencadear na região. Cabe nessa etapa a realização de oficinas para discussão do que é o turismo, suas causas e consequências, para que posteriormente a comunidade seja sensibilizada para a importância da atividade planejada no local, embora este tipo de iniciativa já tenha sido desenvolvida. De posse dos dados compilados junto aos Dionísios, traçar estratégias e um planejamento de ações que devem ser propostas como modelos de desenvolvimento local, ou seja, a viabilização deve partir da prática participativa em conjunto com parcerias responsáveis por sua consecução, além de elencar alternativas autosustentáveis ligadas ao turismo. Além de oficinas e sensibilização comunitária, a inserção de programas de qualificação de mão-de-obra seria outra atividade a ser estimulada, visando a habilitação dos agentes locais em desenvolver o turismo na região, atentando-se, todavia, para a mobilização das forças produtivas como fator emergente em que sejam reportadas a capacitação dos recursos humanos locais em trabalhar com a atividade, bem como tornando-os aptos para outras atividades reproduzidas em seu território. Sem o devido planejamento e participação dinâmica na gestão do turismo, é quase que impossível que a atividade seja conduzida de maneira que possibilite 344 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares a inserção da comunidade aos efeitos benéficos que podem ser sancionados. Até mesmo quando apontados os serviços de apoio ao turismo, como bares, restaurantes e dormitórios, melhorias em áreas destinadas ao lazer e infraestrutura básica a ser implantada devem ser disponibilizadas às reais necessidades da comunidade, e não por consequência da atividade no local. Sob este enfoque, é categórico afirmar que o turismo pode vir a estimular e renovar alguns aspectos das manifestações culturais, que, de uma forma ou de outra, estão sendo transfiguradas devido às forças de desenvolvimento do mundo globalizado. A questão que emerge das potencialidades locais em parâmetros de deficiência dos recursos que conduzem a atividade do turismo podem ser considerados meros paliativos que possam a vir a fortalecer a atividade. Diante desse fato, novas estratégias de introdução da comunidade em roteiros turísticos se fazem necessárias, a partir do fomento de uma dinâmica em que se possa subsidiar e agregar a maximização de benefícios locais em harmonia com a divulgação e valorização de suas manifestações culturais. No caso de Furnas, as festas de caráter religioso poderiam estar presentes em guias turísticos (regional ou nacional), despertando, no imaginário coletivo, interesse pela cultura da comunidade. Da mesma forma, o desenvolvimento do turismo na comunidade deve se tornar um fator de valorização sócio-cultural e integrar, necessariamente, o planejamento participativo. O fato é que hoje a comunidade está mais ciente de suas potencialidades e acredita fortemente que o turismo pode ser uma indução de práticas sociais e economicamente viáveis, desde que possa ser organizado de maneira participativa e cujo modelo de gestão venha legitimar os moradores como beneficiários primários de toda e qualquer ação do turismo de base local. Considerações finais A cultura não é um conjunto cristalizado de valores, uma vez que se recria à medida que as pessoas redefinem suas práticas em função das mudanças globais. Assim, as formas de afirmação cultural atribuem sentido de identidade e de pertença, cuja gestão territorial, nesse caso, implica sentimento de pertença da comunidade em relação ao espaço em que está fixada, tomando-se por alicerce as questões culturais que podem levar ao protagonismo local diante das potencialidades e perspectivas que possam conduzir às práticas de gestão e organização do território, fortalecendo e renovando os laços comunitários como vetores para o próprio desenvolvimento. Por ser uma comunidade quilombola que procura investir no capital humano local para que não fique estagnada no tempo e espaço, as manifestações sócio- OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 345 culturais e econômicas podem induzir ao desenvolvimento de “dentro para fora”, possibilitando que anseios e expectativas sejam imputados e conduzidos, gradativamente, a melhores condições de vida. Na comunidade de Furnas do Dionísio, o legado histórico-cultural apresenta-se de grande valia para que se explore o potencial endógeno de desenvolvimento. Esse território quilombola, depositário de tradições, de histórias e de um vasto patrimônio identitário, reflete um forte sentimento de pertença que, por consequência, pode estimular atividades que venham a promover o desenvolvimento sócio-cultural. O turismo, se adequadamente planejado, é uma importante alternativa de desenvolvimento, desde que a gestão seja participativa e articulada com vistas a benefícios tanto econômicos quanto sócio-culturais. Sob este enfoque, devese preservar hábitos e manifestações culturais dessa tradicional comunidade de remanescentes de quilombos de Furnas do Dionísio, garantindo-se a coesão da malha de relações entretecida ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, promove-se a inserção da comunidade na economia regional a fim de imputar consequentemente o bem-estar sócio-comunitário. Enfim, planejar significa ser e agir de forma responsável, orientando ações que contemplem o bem-estar coletivo. Seguindo este raciocínio, entende-se que toda e qualquer atividade deva ser realizada com ética e sem falsas promessas e meras palavras que assegurem expectativas ilusórias apenas para beneficiar instituições. No viés do novo paradigma de desenvolvimento inclusivo, significa ter como meta a melhoria da qualidade de vida e do índice de desenvolvimento humano, descentralizando ações e incorporando preceitos que envolvam a gestão participativa e integrada de todos os envolvidos no processo de planejamento e desenvolvimento do turismo com base local. Referências bibliográficas AMORIM, C. R. (Org.). Negros do Ribeira: reconhecimento étnico e conquista do território. São Paulo: ITESP, 1998. AROCENA, J. El desarrollo local: un desafío contemporáneo. Buenos Aires: Universidad Católica, 2001. BARRETO, M. Turismo e legado cultural: as possibilidades do planejamento. 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O direito à diferença: identidades culturais e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1992. OLIVEIRA e MARINHO . Comunidade quilombola de Furnas do Dionísio 347 O turismo rural em áreas de agricultura familiar as “novas ruralidades” e a sustentabilidade do desenvolvimento local ENRIQUE SERGIO BLANCO O novo rural Alguns municípios do Brasil, principalmente no Estado do Rio Grande do Sul, estão desenvolvendo diversos empreendimentos socioculturais, a partir da prática do turismo rural em áreas onde estão estabelecidas propriedades de agricultura familiar. A associação entre o turismo e o modo de vida das famílias rurais está demonstrando que essa é uma estratégia altamente promissora para o desenvolvimento local. Potencialidades que o meio rural sempre pôde oferecer, mas foram constantemente subaproveitadas por falta, tanto de políticas públicas locais como pela carência de uma mentalidade empreendedora baseada no associativismo e cooperativismo, agora estão sendo exploradas de maneira sustentável. Por isso, se pode dizer que uma nova construção social rural está surgindo em alguns municípios brasileiros. As “novas ruralidades”* aproveitam e expandem novas funções e atividades no campo, integrando e envolvendo as famílias rurais com o poder público e * Os conceitos de “novas ruralidades” e de “novo rural” são equivalentes no sentido de apresentar uma constante e crescente diversificação de atividades não-agrícolas, além das tradicionais atividades agrícolas, no espaço rural. 348 a iniciativa privada. É a conhecida pluriatividade* ou multifuncionalidade** do campo, como é classificado esse novo momento no meio rural brasileiro. Quando um membro, pelo menos, de uma família rural exerce alguma atividade nãoagrícola, seja atividade principal ou secundária, fica caracterizada a pluriatividade. Desse modo, as atividades que estão sob o conceito de pluriatividade servem como complemento à renda total da família rural criando uma nova dinâmica no campo. Dependendo do que a região tem a oferecer, várias ocupações remuneradas podem ser consideradas pluriatividades, como as atividades da construção civil ou do comércio em geral. Em relação à atividade turística, estão sendo criados múltiplos eventos com circuitos e rotas turísticas adequadas às tradições culturais e às condições naturais das regiões. Várias modalidades do turismo, como o turismo alternativo, turismo ecológico, agroturismo, entre outros, estão atraindo os moradores da cidade rumo ao campo. O turismo no espaço rural engloba todas essas formas de turismo e se associa aos agricultores familiares de maneira inovadora, valorizando e preservando o patrimônio rural. O produtor rural passa a ser um empreendedor e prestador de serviços turísticos, trabalhando diretamente na conservação do patrimônio ambiental e cultural de sua região. A relevância da atividade do turismo rural em áreas onde há a predominância da agricultura familiar pode ser constatada, à medida em que essa associação reverte em novas oportunidades de trabalho e renda, pois, nesses casos, a economia local é ativada por meio da diversificação de novas formas de trabalho no campo. Ao apresentar os modos tradicionais e artesanais da agricultura familiar como produto turístico, o turismo rural amplia suas possibilidades, consolidando o modo de vida rural como um atrativo aos moradores das metrópoles. O estilo de vida, os costumes e o modo de produção das famílias rurais, ou seja, a cultura do campo, passa a despertar o interesse não só dos grandes centros urbanos, mas também dos municípios vizinhos. O compartilhamento de tradições gastronômicas e culturais que poderiam cair no esquecimento é resgatado e valorizado. Nessas regiões, o turismo tradicional de massa está dando lugar a essa nova forma de turismo mais pessoal e acolhedor. O turista convive e se relaciona diretamente com as rotinas diárias das famílias rurais, aprendendo, na prática, suas tradições, * Para o presente artigo, focalizaremos a pluriatividade nos múltiplos empreendimentos socioculturais que estão surgindo no campo, a partir da associação entre a agricultura familiar e o turismo rural, com a comercialização da produção das famílias rurais e o resgate do patrimônio rural local. ** A multifuncionalidade, segundo (Cazella, 2003, p. 83) é “o conjunto das contribuições da agricultura a um desenvolvimento econômico e social considerado na sua unidade”. Logo, tanto a pluriatividade como a multifuncionalidade no campo são conceitos complementares. BLANCO . O turismo rural em áreas de agricultura familiar 349 hábitos e costumes. Consequentemente, há o resgate da autoestima do homem do campo, pois a valorização da identidade cultural rural é incentivada pela presença dos turistas urbanos, estimulando a produção e o desenvolvimento local. Nesse sentido, as atividades não-agrícolas assumem um papel relevante na composição da renda total das famílias rurais, podendo ser consideradas atividades altamente estratégicas para o crescimento socioeconômico local. Com efeito, as novas atividades rurais estão desenvolvendo a mentalidade do empreendedorismo rural, provocando uma clara mudança no modo de encarar a pluriatividade no campo, pois se as atividades não-agrícolas não eram consideradas como fatores relevantes para o aumento da geração de renda e do nível de emprego no campo, o mesmo não se pode afirmar agora (Graziano da Silva, 1997; Del Grossi; Graziano da Silva, 1998; Schneider, 2003b). Esse novo momento no meio rural brasileiro faz com que a pluriatividade seja uma estratégia altamente positiva para a manutenção das famílias rurais no campo, de maneira digna e sustentável. Um dos reflexos possíveis é a diminuição do fluxo migratório da população do campo rumo à cidade, por meio do aproveitamento da força de trabalho rural em atividades com maior nível de remuneração. Além disso, o incremento do turismo rural nas unidades de agricultura familiar promove a manutenção e a reprodução socioeconômica das formas tradicionais de produção familiar nessas regiões. As propriedades familiares passam a ser encaradas como sistemas produtivos e orgânicos onde são agregadas as novas atividades, necessariamente interligadas e integradas numa proposta concreta de sustentabilidade local, trazendo benefícios reais à geração de emprego e renda no campo. A associação entre o turismo rural e a agricultura familiar tem despertado tanto interesse que o Ministério do Desenvolvimento Agrário criou uma linha especial de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Pronaf Turismo Rural, para implementação de projetos em propriedades familiares, como cafés coloniais, pousadas, estabelecimentos do tipo pesque-pague e colha-pague, restaurantes típicos, entre outros. Outra medida foi a criação da Rede Traf (Turismo Rural na Agricultura Familiar), um grupo de articulação nacional envolvendo mais de 100 instituições, com apoio do Instituto Interamericano de Cooperação para Agricultura e o Ministério da Agricultura. O Governo Federal demonstra a intenção de dar prioridade ao desenvolvimento regional e descentralizar as políticas públicas, no sentido de atingir as populações locais de forma mais direta, evitando a burocracia e diminuindo a presença de instituições e organismos mediadores. Assim, várias iniciativas do poder público têm apoiado atividades voltadas para o desenvolvimento local. Prefeituras e diversas instituições estão se associando aos sindicatos de trabalhadores rurais criando cooperativas que procuram atender as necessidades das famílias rurais. 350 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares O resgate do patrimônio rural em Dois Irmãos Um exemplo onde o turismo rural está associado à agricultura familiar por meio da parceria entre poder público, iniciativa privada e instituições da sociedade civil é o Município de Dois Irmãos, no Estado do Rio Grande do Sul, com a criação das Rotas Temáticas. A partir dessas rotas, os turistas têm acesso ao patrimônio ambiental e sociocultural de cada região, a partir da vocação de cada local, como a Rota das Missões, a Rota das Terras, a Rota da Uva e do Vinho, a Rota do Calçado, a Rota Farroupilha, a Rota de Yucumá, a Rota do Caminho das Águas e a Rota Romântica. No caso de Dois Irmãos, o “Portal da Serra Gaúcha”, há o aproveitamento do fluxo turístico trazido pela Rota Romântica para o desenvolvimento do turismo regional no município. Dois Irmãos, um dos treze municípios que compõem a Rota Romântica, foi colonizado por famílias alemãs em meados do século XIX. A arquitetura da região ainda mantém a construção tradicional das casas em estilo bávaro e enxaimel do período renascentista. Aproveitando essas características regionais e acompanhando a estratégia turística do Estado, a Prefeitura de Dois Irmãos criou a Rota Colonial Baumschneis (Rota dos Baum: os colonizadores da cidade), em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Dois Irmãos, a Emater/RS, o Sebrae e a Associação Rota Romântica. Desse modo, o Município de Dois Irmãos assume a mesma estratégia turística do Estado, mas de maneira regionalizada, com a criação de um circuito local integrado a uma rota temática principal. Essa estratégia permite que o município aproveite o fluxo turístico trazido pela rota principal para atender a um nicho turístico ainda mais específico. A Rota Colonial Baumschneis é um circuito turístico local que aproveita, de forma sustentável, a tradição camponesa alemã que se desenvolveu a partir de um sistema agroalimentar familiar e regionalizado. Diversas unidades produtivas de estrutura familiar que compõem a paisagem da cidade estão se transformando em verdadeiros empreendimentos rurais familiares, incentivando o desenvolvimento socioeconômico da região. As atividades geradas pelo patrimônio rural formado por recursos naturais, gastronomia típica e diversas manifestações da cultura regional, está sendo valorizado, exatamente, por suas atribuições não-produtivas, revertendo positivamente para o resgate do patrimônio ambiental e cultural de Dois Irmãos. O encontro entre cooperativismo e o associativismo está presente nos 16 pontos de visitação que compõem a Rota Colonial Baumschneis, formada por pequenas e médias propriedades de agricultura familiar, fornecedores locais e marcos históricos da cidade. Em cada ponto de visitação, o turista vivencia e compartilha o modo de vida e de produção familiar da região, tendo contato com os hábitos e costumes regionais, reforçando e mantendo vivos os laços socioculturais BLANCO . O turismo rural em áreas de agricultura familiar 351 locais. Essa relação de proximidade entre os turistas e as famílias rurais resgata a autoestima dos colonos com a valorização de suas raízes históricas regionais. O interesse dos visitantes de outras regiões pelo patrimônio sociocultural local desenvolve nos moradores um sentimento de pertencimento e de orgulho em relação às suas próprias tradições e costumes que, de outra maneira, poderiam ser esquecidas e desvalorizadas. Esse processo é resultado da parceria entre o poder público, a iniciativa privada, os sindicatos regionais de trabalhadores rurais e outras instituições, que trabalham em conjunto para identificar e estimular potencialidades, capacidades e vocações locais. Desde 1998, a prefeitura de Dois Irmãos está capacitando os proprietários rurais com cursos de qualidade de atendimento ao turista e realização de visitas técnicas, dentro e fora do Estado. Além dessas ações, a prefeitura criou, em 1991, o PRIT — Programa Rotativo de Incentivo ao Turismo, disponibilizando recursos às famílias rurais com juros de apenas 1%. Além do grande incentivo proporcionado pelas políticas públicas, o empreendedorismo no meio rural depende necessariamente da participação das entidades regionais. Outras instituições como as universidades federais e particulares, as cooperativas, a Emater e o Sebrae também trabalham em parceria, promovendo atividades de assistência técnica e extensão rural, identificando as potencialidades regionais de acordo com as capacidades empreendedoras dos agentes rurais. Há o investimento na capacitação e qualificação da mão-de-obra e na infraestrutura das propriedades, além da divulgação de circuitos e rotas turísticas identificadas com o perfil regional. Valorizando a produção artesanal Um dos maiores obstáculos à produção familiar é o seu caráter artesanal. Como não há uma produção regular e padronizada, não é possível atender à demanda gerada pelo mercado tradicional, dificultando bastante a comercialização e o escoamento da produção familiar. Porém, o que a primeira vista poderia ser uma barreira à agricultura familiar e à produção artesanal, passa a ser uma solução para atender a um nicho de mercado que consome tais produtos, pois esses bens possuem alto valor agregado em relação à qualidade nutricional (isentos de agrotóxicos) e ao cuidado na preparação de doces, biscoitos, compotas e outros. Logo, essas qualidades inerentes à produção artesanal, quando comparadas à produção industrial, criam um diferencial marcante e estabelecem um nicho de mercado altamente promissor. Por isso, a criação das cooperativas é de fundamental importância para a comercialização da produção familiar, devido ao seu caráter não-industrial. Os 352 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Diversidade de olhares produtores rurais também se beneficiam com a venda direta de seus produtos em suas propriedades, evitando a ação dos atravessadores e intermediadores. Os sindicatos locais de trabalhadores rurais incentivam a criação dessas cooperativas. A Fetag/RS (Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul), que reúne 357 sindicatos e conta com 394 mil propriedades de agricultoras e agricultores rurais, totalizando cerca de 1 milhão e 300 mil pessoas, desenvolve diversas ações para a organização da produção, estimulando a mentalidade do cooperativismo e do associativismo entre as famílias rurais. A Federação propõe modos inovadores de comercialização, a partir da criação das microcooperativas, e apoia a criação de feiras municipais e miniceasas para abastecer os mercados regionais. Os sindicatos rurais também apoiam a formação de parcerias entre os produtores rurais e as escolas públicas da região, a fim de prover a merenda escolar com a produção familiar. Disseminar essa medida, em parceria com as prefeituras, seria uma estratégia muito interessante, pois além de ser uma forma de escoar a produção, leva produtos com alto valor nutricional aos alunos das escolas. Outra maneira de comercialização é a criação de eventos socioculturais que divulgam e valorizam a produção local. O Município de Dois Irmãos, por exemplo, assumiu a produção do café colonial como um dos símbolos tradicionais da região. Acompanhando e ampliando essa proposta, as famílias rurais mantêm uma produção regular de geleias, biscoitos caseiros, queijos, schmier (geleia tradicional alemã), tortas, bolos, compotas, refrigerantes naturais e doces artesanais. Os produtos são comercializados na própria Rota Colonial Baumschneis e nos eventos culturais da cidade, como as feiras de comidas típicas alemãs, as mostras regionais de orquídeas e de artesanato local e a Kerb de São Miguel, festa que comemora a colonização alemã de Dois Irmãos. Dois Irmãos é um exemplo, dentre outros municípios, onde as estratégias do turismo rural estão sendo desenvolvidas em parceria com a agricultura familiar, levando o empreendedorismo ao campo. Dos 430 mil estabelecimentos rurais gaúchos, 394 mil (91%) são voltados para a agricultura familiar. Por isso, o desenvolvimento local é o parâmetro para as ações das prefeituras e das diversas instituições públicas e privadas da região, que procuram atuar sistematicamente e de maneira coordenada. Conclui-se que a integração do turismo rural com a agricultura familiar está conquistando definitivamente os agricultores, os sindicatos, as instituições parceiras, as prefeituras e os moradores dos municípios gaúchos, trazendo novas formas de desenvolvimento sustentável à população rural. Como há o reconhecimento que, cada vez mais, a metrópole dependerá do campo, não se trata mais de submeter o meio rural às necessidades dos centros urbanos, mas desenvolver ações que atendam a todos os envolvidos. Nesse sentido, o cooperativismo entre o turismo rural e BLANCO . O turismo rural em áreas de agricultura familiar 353 a agricultura familiar é uma proposta de desenvolvimento local sustentável que promove benefícios concretos, tanto ao mundo rural como às metrópoles brasileiras. A única ressalva que se poderia fazer é quanto ao risco de padronização das estratégias turísticas rurais voltadas à agricultura familiar. Um bom exemplo disso é a produção do café colonial. Ao contrário de Dois Irmãos, a maciça produção e comercialização do café colonial em algumas cidades vizinhas, onde o fluxo turístico é intenso, está transformando o que era uma produção artesanal de qualidade caseira, numa espécie de produto-rodízio — a produção quase industrializada do que, por essência, é artesanal. Assim, o maior atrativo do meio rural se perde, pois a produção artesanal dá lugar à fabricação comercial. O mesmo poderia se dizer em relação a outras atividades turísticas rurais associadas à agricultura familiar. O empreendedorismo rural tem trazido nítidos benefícios ao campo e deve ser intensificado, sempre mantendo os princípios do cooperativismo e do associativismo e a articulação entre os produtores, poder público e demais instituições locais, mas há limites para a extrema profissionalização dos atores rurais, evitando que as relações espontâneas entre os turistas e os moradores locais tornem-se artificiais. O campo não pode ser o simulacro da cidade, no sentido de que o turismo rural em áreas de agricultura familiar passe a reproduzir e oferecer ao turista os requintes industriais dos produtos e as facilidades de conforto e serviços que ele pode encontrar na cidade. Quando o turista vai ao campo ele procura encontrar uma realidade distinta da que vive diariamente. Por isso, o estilo e a cultura do campo, com seus costumes e tradições específicas regionais, devem manter suas peculiaridades, pois é exatamente o modo de ser das famílias rurais, integradas ao meio ambiente e ao patrimônio rural, um dos maiores atrativos dessas regiões. Referências bibliográficas CAVACO, C. “Turismo Rural e Desenvolvimento Local”. In. RODRIGUES, Adir B. (Org.). Turismo e Geografia: reflexões teóricas e enfoques regionais. São Paulo: Hucitec, 1996. CAZELLA. A. A. “Multifuncionalidade agrícola: retórica ou triunfo para o desenvolvimento rural?” In: CASTILHO, M. L.; RAMOS, J. M. (Orgs.). Agronegócio e desenvolvimento sustentável. Francisco Beltrão, 2003, p. 81-104. DALE, P. J.; SILVA, J. Graziano da; VILARINHO, C. “Turismo em áreas rurais: suas possibilidades e limitações no Brasil”. In: ALMEIDA, J. A.; RIEDL, M.; FROEHLICH, J. M. Turismo Rural e Desenvolvimento Sustentável. Santa Maria: Centro Gráfico, 1998, p. 11-47. DEL GROSSI, M. E.; SILVA, J. 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Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003b. BLANCO . O turismo rural em áreas de agricultura familiar 355 Experiências brasileiras Fortalecendo o turismo de base comunitária na Resex do Rio Unini instituição promotora Fundação Vitória Amazônica responsável Carlos César Durigan município/estado Barcelos, AM O projeto visa, entre outras atividades, preparar os moradores da Reserva Extrativista do Rio Unini para a prestação de serviços turísticos dentro do Parque Nacional do Jaú e na reserva. A 396 km em linha reta a montante de Manaus e a 496 km por via fluvial, Barcelos localiza-se na margem direita do Rio Negro, sendo o maior município do estado do Amazonas. De Manaus, o acesso pode ser feito por via fluvial, meio mais utilizado, com duração de até 36 horas e saídas três vezes por semana, ou por via aérea, com vôos regulares duas vezes na semana, que duram de cerca de uma hora. Conhecida como a capital do peixe ornamental, Barcelos encontra-se às margens do Rio Negro e faz parte da bacia sedimentar amazônica. Possui relevo que varia de plano a suave ondulado. A hidrografia é formada por furos, paranás e igarapés tributários do rio Negro. Destacam-se também os rios Aracá, Padaueri, Demini, Quiunim, Caurês Jufaris e Jaú; os lagos Pedras e São Roque; e os paranás Floresta e Piloto. Como na maior parte das áreas ribeirinhas da Amazônia, existem solos de terra firme e solos de várzea, que, no período de cheias, podem alagar. A cobertura vegetal é a da floresta ombrófila densa, com 378 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Experiências brasileiras as matas de várzea e os igapós permanentemente alagados. Há na região uma grande biodiversidade, podendo-se destacar a icteofauna, base da comercialização de peixes ornamentais. Brasileiros e estrangeiros visitam Barcelos em busca da prática da pesca esportiva. É possível também fazer outros tipos de passeios, como navegar pelos rios e igarapés, onde se pode avistar a variada fauna da região, sobretudo de pássaros. O horário dos passeios é determinante para que se avistem certas espécies, cada qual com um comportamento específico. Em Barcelos, está boa parte do Parque Nacional do Jaú, do Parque Estadual da Serra do Aracá e da Área de Proteção Ambiental de Mariuá, com mais de 1.400 ilhas, o que lhe confere o título de maior arquipélago fluvial do mundo. Durante o mês de junho, acontecem festas folclóricas, nas quais se destacam as danças de bois-bumbás e as quadrilhas. No verão – período em que ocorre a vazante dos rios –, a cidade oferece praias à comunidade local e aos visitantes, além da tradicional Festa do Peixe Ornamental. A gastronomia local é rica em peixes, mas também tapioca com tucumã, castanha do pará, pimentas, entre outras iguarias. O artesanato em fibras naturais representa objetos utilitários, como cestas, bolsas e o tipiti (artefato utilizado para espremer a massa da mandioca antes de torrá-la). Não faltam lendas típicas da região amazônica, sendo que os caboclos locais estão sempre dispostos a contar sua versão. Além disso, o visitante irá encontrar na região a cultura ribeirinha e das comunidades indígenas típicas da região amazônica, onde a tradição oral é passada de geração a geração, com sua lendas, mitos, curandeirismo, xamanismo benzedores, pajés, entre outros. Em Barcelos, há alguns hotéis e um albergue, além de restaurantes típicos. Outras forma de hospedagem são os barcos/hotéis flutuantes que promovem a pesca esportiva. Parte dos visitantes que chegam a Barcelos vem com apoio de agências de viagens ou de operadoras de Manaus. O projeto prevê que, ao envolver as comunidades residentes da Resex na prestação de serviços ao turista do Parque Nacional do Jaú, o visitante poderá conhecer de forma mais próxima a vida dos ribeirinhos, interagindo com eles em festas folclóricas ou religiosas, na prática da pesca tradicional, na coleta da castanha e em outras atividades de trabalho. Fundada em janeiro de 1990, a Fundação Vitória Amazônica, proponente do projeto, é uma Organização da Sociedade Civil – OSC, sem fins lucrativos, sediada em Manaus. Sua missão alia a melhoria da qualidade de vida dos habitantes à conservação ambiental da região amazônica, mediante o uso sustentável da biodiversidade, o respeito às culturas e à diversidade étnica regional. O objetivo é influenciar políticas e programas para a região amazônica com base nos conhecimentos acumulados a partir de sua experiência local. Sua área geográfica de NORTE . Amazonas 379 atuação é a bacia do rio Negro, com os trabalhos de campo atualmente restritos à sua porção meridional, nos municípios de Barcelos, Novo Airão e Manaus. Na Resex Unini, atua a Associação dos Moradores do Rio Unini – Amoru, que agrega 200 famílias. Contatos COORDENADOR: Carlos César Durigan ENDEREÇO: Estrela D’alva, casa 146, loteamento Parque Morado do Sol, Bairro Aleixo – Manaus/AM – CEP: 69.060-093 TELEFONE: (92) 3642-4559 E-MAIL: [email protected] SITE: www.fva.org.br 380 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Experiências brasileiras Turismo de base comunitária no baixo Rio Negro: bases para o desenvolvimento sócio-ambiental instituição promotora Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) responsável Eduardo Badialli município/estado Manaus e Novo Airão, AM A região do projeto abrange um mosaico de unidades de conservação situado nesta região, que totalizam cerca de 1.800.000 hectares: o Parque Estadual de Anavilhanas, os Parques Estaduais do Rio Negro – Setor Norte e Setor Sul, a APA Estadual da Margem Esquerda do Rio Negro – Setor Aturiá-Apuazinho, a APA Estadual da Margem Direita do Rio Negro – Setor Puduari-Solimões e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Municipal do Tupé. O mosaico insere-se no Corredor Ecológico Central da Amazônia, maior área de proteção ambiental contínua do mundo. O acesso à região do baixo Rio Negro é feito somente por via fluvial, partindo-se de Manaus, num trajeto de cerca de 50 km, que dura duas horas, de canoa motorizada. É possível alugar embarcações nas marinas localizadas no bairro da Ponta Negra. A Manaus, chega-se por via aérea, pelo Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, que recebe vôos domésticos, de algumas cidades da América Latina e de Miami (EUA). Por via rodoviária, o acesso a partir das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste é feito por Belém. A BR-174 também liga Manaus a Boa Vista/RR e à Venezuela. Da maioria das localidades situadas na Região Norte, a NORTE . Amazonas 381 viagem é feita por barcos e aviões de empresas aéreas regionais. Há também ligações rodoviárias entre Manaus e cidades vizinhas. Novo Airão está à margem direita do rio Negro, a 115 km de Manaus em linha reta. Faz limite com os municípios de Presidente Figueiredo, Manaus, Iranduba, Manacapuru, Caapiranga, Codajás, Barcelos e com o estado de Roraima. O acesso desde Manaus é feito por via fluvial, numa viagem de cerca de oito horas, ou por via rodoviária, pegando-se a AM-070 (Manaus/Manacapuru) e, no km 80, a AM-352. Da rodoviária saem dois ônibus diariamente para Novo Airão. A região do Baixo Rio Negro é formada por florestas de terra firme e também por florestas alagadas: as matas de Igapó, com destaque para as ilhas que formam o Arquipélago de Anavilhanas, localizado inteiramente no Parque Nacional. Esse arquipélago é constituído por aproximadamente 400 ilhas, centenas de lagos, rios e igarapés, todos ricos em espécies de vegetais e animais. Também é possível fazer caminhadas por diversas trilhas, tendo como guias os moradores locais e, no período da vazante (de agosto a dezembro), visitar cachoeiras no Rio Cuieiras e em Igarapé Araras. Em Novo Airão, pode-se conhecer o serpentário com espécies vivas da região e nadar com botos vermelhos que recebem alimentação num restaurante flutuante. O município é conhecido ainda pelo Parque Nacional do Jaú, pelas ruínas de Velho Airão, pela produção artesanal sustentável da Fundação Almerinda Malaquias e pelo Parque Nacional de Anavilhanas. Nos roteiros ecológicos voltados para o turismo sustentável, os visitantes experimentam o contato direto com a natureza. Os passeios em canoa motorizada oferecem ao visitante a oportunidade de adentrar na floresta alagada, com possibilidades de observação de diversas espécies animais e vegetais típicos desse ecossistema. As comunidades localizadas no Baixo Rio Negro mantêm uma relação direta no uso dos recursos naturais baseadas em um profundo conhecimento do ambiente, da agricultura, do extrativismo, da caça e da pesca. Assim, é possível visitar comunidades caboclas e indígenas para observar o cotidiano dessas populações. Recentemente, pesquisadores do IPÊ vêm desenvolvendo projetos que priorizam alternativas sustentáveis de renda para os moradores locais. Um dos eventos importantes de Novo Airão é o Festival do Peixe-Boi, organizado pela prefeitura, com intuito de promover no entorno uma consciência preservacionista. O município também desenvolve projetos de geração de renda por meio de artesanato de fibra e madeira descartada da construção naval. O artesanato com fibras vegetais retiradas por meio de extrativismo é uma prática antiga, originada nas tribos indígenas que dominavam a região. Há uma oficina para tecer tapetes com motivos indígenas de palha de buriti, tucumã, timbó etc. Esse artesanato oferece uma mostra da fauna e flora locais e incorpora elementos 382 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA . Experiências brasileiras folclóricos da cultura cabocla, podendo ser encontrado no centro da cidade, na AANA – Associação dos Artesanatos de Novo Airão e na Nov’arte – Fundação Almerinda Malaquias. O município também é conhecido pela produção de embarcações artesanais. O projeto é um modelo de ação integrado, que inclui pesquisa de espécies ameaçadas, educação ambiental, restauração de habitats, envolvimento comunitário, desenvolvimento sustentável, conservação da paisagem e discussão de políticas públicas. Um dos objetivos do IPÊ é conservar a biodiversidade respeitando as tradições das comunidades do entorno dos locais que precisam ser protegidos e onde são realizadas as pesquisas. O projeto conta com os seguintes apoios e parcerias: ICMBio – Cooperação Técnica para o Parque Nacional de Anavilhanas; Ipaan – Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas – Cooperação Técnica para as Unidades de Conservação Estaduais do Baixo Rio Negro; Semma – Secretária de Meio Ambiente do Município de Manaus – Cooperação Técnica para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé; Usaid – Projeto Alfa, Aliança para a Conservação da Amazônia e Mata Atlântica; SDS/Ipaam e Fundação Moore – Projeto Rede de Conservação do Amazonas. Integram a equipe José Eduardo Badialli, Nailza Pereira de Souza e Sherre Prince Nelson. Contatos RESPONSÁVEL: Nailza Pereira de Sousa Base Manaus – Rua Constantino Nery, 2.525, bl. 2A/apt. 102A Chapada – Manaus/AM – CEP: 69.050-001 TELEFAX: (92) 3656-5442 E-MAIL: [email protected] SITE: http://www.ipe.org.br ENDEREÇO: NORTE . Amazonas 383 Produção editorial Copidesque Ana Gabriela Dickstein Roiffe Revisão Pedro Sangirardi Tradução Bianca Fontoura Ilustrações Alexandre Guedes CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T846 Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras / Roberto Bartholo, Davis Gruber Sansolo e Ivan Bursztyn, organizadores. – Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009. il. Inclui bibliografia ISBN 978–85–61012–01–4 1. Turismo – Aspectos sociais – Brasil. 2. Turismo cultural – Brasil. 3. Ecoturismo – Brasil. 4. Cultura e turismo. 5. Comunidades – Desenvolvimento. 6. Desenvolvimento sustentável – Brasil. I. Bartholo Junior, Roberto S. (Roberto dos Santos), 1951–. II. Sansolo, Davis Gruber. III. Bursztyn, Ivan. 09–2681. CDD: 338.479181 CDU: 338.48(81) Este livro foi composto em Simocini Garamond e Bauer Bodoni e impresso por Nova Letra Gráfica e Editora em papel reciclato 90g em junho de 2009.