Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo & Flávia Florentino Varella (org.). Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9) Bernard Cohen, Thomas Kuhn e a História das Ciências no Brasil na década de 1980: apontamentos para um balanço historiográfico Francismary Alves da Silva∗ Cynthia de Cássia Santos Barra∗* Bernard Cohen nasceu em 1914, na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos. Aos 19 anos, ingressou na Universidade de Harvard. Desenvolveu grande parte de sua carreira acadêmica nessa instituição, tanto a docência, que começa em 1942, quanto o desenvolvimento de seu Ph.D., em História da Ciência, em 1947. Lá também ajudou a fundar um dos primeiros departamentos de História da Ciência dos Estados Unidos, em 1966. 1 A trajetória de Cohen em Harvard foi grandiosa, o que lhe rendeu vários livros publicados sobre assuntos relacionados às mais diversas ciências, com destaque para os estudos sobre Newton, a Física e a Ciência Moderna. Entre algumas das obras de Cohen, podemos citar The Newtonian Revolution (1981), Studies on William Harvey (1981), The Birth of a New Physics (1985), Revolution in Science (1985), Interactions: Some Contacts between the Natural Sciences and the Social Sciences (1991), Newton: Texts Backgrounds Commentaries (1996). Apesar da importância de todos os seus trabalhos de autoria, segundo uma nota de falecimento publicada no Harvard Gazette, o próprio Bernard Cohen considerava a tradução/revisão do Principia: Mathematical Principles of Natural Philosophy, de Newton, como sendo seu maior feito. Trabalho que concluiu em 1999, em parceria com Anne Whitman, após 15 anos de esforços. Em entrevista,2 concedida a Harvard Gazette, Cohen afirmou: The Principia was one of the first books of modern science […] Newton (1642-1726) showed how gravity produces the forces and movements of all that we see in the world, from the motions of the planets to the falling of an apple from a tree. […] I’m the author of about 15 books, some of which have become standard in their fields. But I feel that this is my real contribution. I hope that, decades from Licenciada em História pela FAFICH/UFMG e mestranda em História pela mesma instituição, com financiamento do CNPq. ∗ ∗ * Doutora em Literatura Comparada pela FALE/UFMG. Prof(a). de Metodologia Científica no Uni-BH. 1 Informações extraídas da nota de falecimento publicada na Gazeta da Universidade de Harvard (The Harvard University Gazette) em 20 de junho de 2003. Disponível em: <http://www.news.harvard.edu/gazette/daily/0306/20-cohen.html> Acesso em: 17 jul. 2008. 2 CROMIE, William J. (Gazette Staff). Principia, Newton's Greatest Work, is Newly Translated. In: The Harvard University Gazette. 21, Oct. 1999. Disponível em: HARVARD GAZETTE ARCHIVES <http://www.hno.harvard.edu/gazette/1999/10.21/newton.html> Acesso em: 17 jul. 2008. 1 now, when I and my other books have been forgotten, this will still be useful to scholars and students (CROMIE, 1999). O Principia foi um dos primeiros livros de ciência moderna [...] Newton [1642-1726] mostrou como a gravidade produz as forças e os movimentos de tudo o que vemos no mundo, desde os movimentos dos planetas até a queda de uma maçã. [...] Sou autor de cerca de 15 livros, alguns dos quais se tornaram padrão em seus domínios. Mas, penso que esta é a minha verdadeira contribuição. Espero que, décadas a partir de agora, quando eu e os meus outros livros tivermos sido esquecidos, este ainda seja útil a acadêmicos e estudantes (CROMIE, 1999). (tradução nossa) A primeira tradução inglesa do Principia Mathematica (1687), de Newton, publicada em 1729, foi revisada, modernizada e publicada pela Universidade da Califórnia em 1934. Apesar disso, a maioria de eruditos concordavam que essas versões continham alguns “erros incômodos, bem como expressões estranhas e antiquadas”, afirma Cohen em entrevista. Além da tradução de Newton, que é considerada sua obra prima, Cohen ressalta a importância de outros trabalhos seus, sendo que alguns se tornaram indispensáveis para os estudos de determinadas áreas da Ciência. Entre esses trabalhos, pode-se considerar Revolution in Science3 como uma importante contribuição para o entendimento daquilo que se convencionou chamar “revolução científica”. Além de ser o trabalho em que Cohen determina um referencial teórico-metodológico para o entendimento das transformações científicas, essa obra pode ser considerada síntese de outros trabalhos do autor, por exemplo, The Newtonian Revolution (1981), The Birth of a New Physics (1985) ou Newton: Texts Backgrounds Commentaries (1996). O livro Revolution in Science foi publicado em 1985, pela Harvard University Press. Nesse trabalho, o autor determina um critério para a classificação das transformações científicas em revolucionárias ou não. Por seu tamanho e abrangência, essa obra poderia ser descrita como um compêndio sobre as diversas transformações científicas. Em um esforço descomunal, Cohen descreve, analisa e classifica a atuação de alguns dos mais célebres pesquisadores modernos, a fim de detectar se suas contribuições podem ser consideradas revolucionárias ou, então, se seus esforços escapam aos critérios que levariam a uma “revolução científica”. Cohen analisa a contribuição científica e as idéias de Copérnico, Kepler, Gilbert, Galileu, Bacon, Descartes, Versálio, Paracelso, Harvey, Lavoisier, Kant, Darwin, Faraday, Maxwell, Hertz, Saint-Simon, Comte, Cournot, Marx e Engels, Freud e Einstein. Além de estudar vários cientistas, das mais diversas áreas das ciências (Ciências da Vida, Ciências Físicas, Ciências Humanas, 3 COHEN, I. Bernard. Revolution in Science. Barcelona: Editorial Gedisa, 1989 (1985). 2 Química e Biologia), Cohen também empreende nessa obra uma reflexão sobre as revoluções políticas (como a Revolução Alemã ou a Francesa) e a Revolução Industrial Inglesa. Vê-se, então, que se trata de uma obra de grande abrangência tendo por base o termo “revolução”. Para empreender um trabalho tão extenso e complexo, o autor estabelece, a princípio, um modelo de quatro etapas sucessivas que nos permitiria classificar uma transformação como um evento revolucionário. De acordo com a primeira etapa, uma revolução científica começa pelo que o autor chama de revolução intelectual ou revolução em si. En síntesis, esta primera etapa es lo que realiza uno o más científicos al comienzo de una revolución en la ciencia. Es un acto creativo individual o grupal, generalmente independiente de cualquier interacción con el resto de la comunidad científica (COHEN, 1989, p.42). Essa primeira etapa revolucionária seria o primeiro passo rumo a uma revolução: a transformação das idéias, dos conceitos, dos métodos, das teorias, ou ainda, a transformação científica stricto sensu. É caracterizada pelo momento de insight, em que as idéias sobre as alterações nas formas de fazer ou de pensar a ciências aparecem. Ou seja, é o momento em que o cientista elabora uma solução nova para um problema, descobre um novo método ou uma nova teoria. São vários os exemplos citados pelo autor, contudo, talvez o mais intrigante seja o caso de Copérnico. A chamada “Revolução Copernicana” começa a ser questionada desde sua primeira etapa. Assim, o autor afirma que Copérnico não teria descoberto uma nova teoria ou forma de pensar o universo. Primeiro, porque a idéia do sol no centro do universo já estava presente entre os Antigos e, segundo, porque Copérnico utiliza os cálculos e pensamentos aristotélicos, medievais, para afirmar a centralidade do sol. Isso não configuraria a invenção de uma nova teoria, e sim a utilização da mesma teoria (aristotélica) para corroborar argumentos diferentes (o Sol, e não a Terra, no centro do Universo). A primeira etapa descreveria um ato criativo individual ou grupal, geralmente independente da comunidade científica, por isso é caracterizada como uma etapa íntima. Nas etapas seguintes, Cohen descreve a aceitação desse novo método ou idéia científica, marcando a passagem da “fase íntima” de criação das novas idéias, teorias ou métodos, para as “fases públicas”, que se dividem em três momentos bem definidos. Segundo o autor: Todas las revoluciones científicas se inician con un ejercicio puramente intelectual realizado por un científico o un grupo de científicos, pero 3 para que triunfen – es decir, ejerzan su influencia sobre los demás científicos y afecten el futuro avance de la ciencia – es necesario comunicarlas a los colegas, por vía oral o escrita. Para que se suceda la revolución, es necesario pasar de las primeras etapas íntimas, de pensamiento y convicción, a una etapa pública en la cual se transmiten las ideas a los amigos, colegas y luego al mundo científico en su conjunto. En la actualidad esta etapa puede iniciarse con llamadas telefónicas, correspondencia, conversaciones con amigos y colegas o discusiones dentro del propio departamento o laboratorio, seguidas de una presentación formal en los tradicionales coloquios o en una reunión científica (COHEN, 1989, p. 43). Na segunda etapa de uma revolução científica, Cohen fala da comunicação do novo método para uma comunidade especializada. Assim, para que uma idéia triunfe, é necessário que, primeiramente, ela ganhe espaço junto à comunidade científica, entre os cientistas. Nesse momento, começa a fase pública, de transmissão de idéias por meio de telefonemas, cartas, colóquios, discussões entre os pares, e de tantas outras formas de comunicação pública de uma inovação científica. Sobre o exemplo de Copérnico supracitado, Cohen afirma que, entre as estratégias desse cientista, não havia espaço para essa segunda etapa de divulgação/comunicação pública. Entre outros motivos, porque a obra de Copérnico foi publicada pouco tempo antes de sua morte. Além disso, para muitos, os estudos copernicanos são considerados trabalhos isolados. A terceira etapa é a chamada revolução dos papéis. Segundo o autor, “suele suceder que la revolución intelectual no culmina hasta que el propio autor desarrolla sus ideas sobre el papel.” (COHEN, 1989, p.43) Cohen refere-se à publicação das obras ou das novas idéias, o que é um passo fundamental para a aceitação e a perpetuação da nova teoria. Será através da publicação de um texto escrito, uma obra ou um paper, que determinada idéia poderá, de fato, circular entre a comunidade de cientistas e, posteriormente, entre a sociedade. Para Cohen, a obra de Copérnico também não contemplaria a terceira etapa revolucionária, porque esses trabalhos não ocuparam papel de destaque para os astrônomos da época, não proporcionaram um modelo astronômico mais simples, nem cálculos mais fáceis que os de Ptolomeu. Contudo, para se concretizar uma revolução científica, não basta publicar uma obra. O autor afirma que: La publicación de un trabajo no es suficiente para producir una revolución en la ciencia: es necesario que otros científicos adopten las teorías o los descubrimientos y apliquen los nuevos métodos revolucionarios a su propio trabajo. Es entonces que lo que había sido la comunicación pública de un logro intelectual de un científico o grupo de científicos se convierte en una revolución. Esta es la cuarta y última de etapas de todas las revoluciones en la ciencia (COHEN, 1989, p. 44). Assim, cabe à quarta e última etapa a adoção do novo modelo, método ou teoria pelos cientistas. Com a progressiva divulgação entre a comunidade especializada 4 (segunda etapa) e a publicação das novas idéias (terceira etapa), uma obra inovadora (primeira etapa) pode ser reconhecida pelos cientistas e também pelo público amplo e, enfim, pode ser adotada e aceita por toda a sociedade. Depois das três primeiras etapas, o último estágio caracteriza-se pela adoção do método ou teoria e pelo reconhecimento social do novo feito, o reconhecimento de uma transformação. Com esse último estágio, estabelece-se aquilo que o autor descreve como uma “revolução científica”. Se um evento corresponde às transformações prescritas nas quatro etapas, ele poderia, afirma Cohen, ser considerado como uma “revolução” na ciência. Seguindo o raciocínio coheniano a respeito dos trabalhos de Copérnico, sabese que o sistema heliocêntrico não se torna hegemônico, apesar dos trabalhos desse cientista. Mesmo depois da publicação de suas idéias, o mundo continuou geocêntrico. Sendo assim, os trabalhos de Copérnico também não responderiam à quarta etapa revolucionária proposta por Cohen. A adoção das novas idéias astronômicas, em conjunto com a adoção do modelo de uma nova Física, só ocorrerá, de fato, com os trabalhos de Newton4. Segundo Cohen, Copérnico teria sido mais antigo que moderno, mais conservador, ptolomáico e aristotélico que revolucionário. Por isso, esse autor considera que a denominação “Revolução Copernicana” é fruto de um mito criado por alguns historiadores. Seria Newton, e não Copérnico, quem teria conseguido realizar as quatro etapas definidas por Cohen. Newton seria, pois, o verdadeiro revolucionário da chamada “Revolução Copernicana”. Talvez nenhuma outra revolução pudesse ser tão bem caracterizada pelo modelo de Cohen como a revolução newtoniana. Com suas idéias inovadoras, Newton adquire autoridade entre seus pares, publica sua obra e tem sua teoria aceita tanto pelos cientistas quanto pela sociedade como um todo. Percebe-se, então, que Newton realiza todos os procedimentos que Cohen caracteriza como necessários para que se estabeleça uma “revolução nas ciências”. Retomando as palavras de Cohen, a obra de Newton foi um dos primeiros livros da ciência moderna. Isso posto, não é de se estranhar que o próprio Cohen considera como sua maior contribuição a tradução do Principia Mathematica. Para ele, Newton seria o grande responsável por sintetizar a “revolução” científica que deu luz à Ciência Moderna. Em síntese, Bernard Cohen pode ser considerado um grande historiador da ciência. Seus inúmeros trabalhos de autoria nos ajudam a entender as revoluções científicas, a emergência da Ciência Moderna, e há ainda os estudos sobre o pensamento 4 A percepção de Newton como o verdadeiro revolucionário já era uma visão defendida por Bernard Cohen em outros estudos, como The Newtonian Revolution (1981) e The Birth of a New Physics (1985). 5 newtoniano. Apesar de o autor afirmar a importância maior da tradução/revisão da obra de Newton, alguns de seus trabalhos são considerados exemplares em seus domínios. Os estudos sobre Newton, bem como o estudo sobre as revoluções científicas empreendido em Revolution in Science, são, sem dúvida um exemplo da relevância de seus trabalhos. Cohen também pode ser considerado um dos responsáveis por revisar e demarcar as acepções do termo “revolução”, o que já se configurava como um questionamento importante para a História das Ciências desde a publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas5 (1962). Vale observar que Cohen foi um dos grandes responsáveis pela revisão e pelo estabelecimento de critérios para aquilo que Kuhn chama de revolução científica. Pode-se dizer que os trabalhos de Cohen permitiram um estreitamento dos eventos enquadrados pelo modelo de desenvolvimento científico proposto por Kuhn. Se este descreve uma estrutura revolucionária, aquele propõe entender o que se classifica como uma “revolução”. Nesse sentido, Cohen pode ser considerado mais um reformador das idéias de Kuhn do que propriamente um seguidor das mesmas. Tendo em vista o contexto de produção das narrativas de Bernard Cohen, mais especificamente o de sua obra Revolution in Science (1985), nós gostaríamos de estabelecer um paralelo com os estudos desenvolvidos em História das Ciências, no Brasil, no mesmo período. A partir da década de 1980, alguns historiadores brasileiros incorporaram novas tendências para pensar a ciência no Brasil. Trabalhos como os de Maria Margaret Lopes, por exemplo, sobre os Museus e as ciências naturais do século XIX6 e os de Carlos Ziller Camenietzki sobre Valentin Stansel7 (1621-1705), matemático, jesuíta e missionário, podem ser considerados desdobramentos dessa nova vertente historiográfica que começa nos anos 80. Esses novos trabalhos compreendiam a produção científica como uma prática social contextualizada que se universaliza em seu processo de transformação e adaptação, fortalecendo os estudos sobre diferentes contextos sociais8 (PESTRE, 1995). Segundo explica Moema de Rezende Vergara9, 5 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1982 (1962). 6 LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais do século XIX. São Paulo, Hucitec, 1997. 7 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Esboço biográfico de Valentin Stansel (1621-1705), matemático jesuíta e missionário na Bahia. Ideação. Feira de Santana, n.3, p. 159-182, jan./jun. 1999. 8 PESTE, Domenique. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG/UNICAMP, v.6, n.1, p. 3-57, 1996. 9 VERGARA, Moema de Rezende. Ciência e Modernidade no Brasil: A constituição de duas vertentes historiográficas da ciência no século XX. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.22-31, jan./jun. 2004. 6 Em linhas gerais, o que caracteriza esta recente historiografia da ciência no Brasil seria, primeiramente, a valorização da atividade científica da Colônia, em contraposição à corrente interpretativa que vê nas universidades o início do processo de profissionalização da atividade científica. [...] Um segundo ponto que marca esse campo de estudos seria o esforço analítico voltado a verificação das trajetórias do que Sílvia Figueirôa chamou de “mundialização da ciência” (VERGARA, 2004, p. 27-28). Assim, uma grande parte desses trabalhos estudou a produção científica em períodos mais recuados na história brasileira, anteriores a institucionalização, questionando o modelo proposto por Fernando Azevedo em As Ciências no Brasil10 (1955). Esse esforço foi empreendido por uma geração de historiadores empenhados em desvendar novos documentos, fontes e arquivos que possibilitariam a revisão de alguns dos mais célebres trabalhos sobre a História das Ciências no Brasil produzidos até então, são bons exemplos disso o esforço de Simon Schwartzmann, em Um espaço para a ciência11, ou a coleção de Ferri e Motoyama, intitulada História das Ciências no Brasil.12 Entre os autores que podem ser considerados importantes referências teóricas para essa nova vertente que emerge no Brasil a partir dos anos 80, pode-se citar os trabalhos de Thomas Kuhn. Em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), Kuhn descreve uma estrutura para o processo revolucionário, tendo por base as mudanças de paradigmas. Além disso, Kuhn descreve também a influência de fatores externos na produção científica. Como a historiografia das ciências no Brasil nos anos 80 concebia a produção científica como uma prática social contextualizada, os trabalhos de Kuhn possibilitaram aos historiadores das ciências a percepção desses fatores extra-científicos no processo de desenvolvimento da ciência. Segundo José Jerônimo13: Se os elementos sociais passavam a ser aceitos como partes constituintes dos conhecimentos científicos, os conhecimentos produzidos na América Latina não podiam mais ser deixados a margem da historiografia sob a alegação de que sofreriam influências sociais. (ALENCAR ALVES, 2005, p. 412). 10 AZEVEDO, F. As Ciências no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994 (1955). 11 SCHWARTZMAN, Simon. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. MCT, 2001 (1979). 12 FERRI, M. G. & MOTOYAMA, S. (coords.) História das Ciências no Brasil. São Paulo, EPU: EDUSP, 1979-1980. 13 ALENCAR ALVES, José Jerônimo de. Kuhn, Foucault e Latour na historiografia sobre as ciências na América Latina. In: PIETROCOLA, M e FREIRE JR, O (orgs.) Filosofia, Ciência e história: uma homenagem aos 40 anos de colaboração de Michel Paty com o Brasil. São Paulo: Discurso Editorial, 2005. 7 Desse modo, o conhecimento anterior à criação das universidades brasileiras não deveria mais ser considerado não científico, porque a ciência não estaria vinculada apenas aos fenômenos naturais. Várias narrativas apontam a produção de conhecimento em períodos mais recuados da história do Brasil. É nesse sentido que se pode pensar a importante influência dos trabalhos de Kuhn para a historiografia das ciências no Brasil: permitir a revisão das teses de Fernando Azevedo14 e iluminar os conhecimentos científicos anteriores a institucionalização. Como já foi dito, Bernard Cohen pode ser considerado seguidor/reformador das idéias de Thomas Kuhn. Cohen utiliza em suas obras várias idéias forjadas por Kuhn, entre elas: a quebra de paradigmas, a ruptura, a revolução científica e a participação de fatores extra-científicos no desenvolvimento das ciências. Em grande escala, as etapas públicas (segunda, terceira e quarta etapa) explicadas por Cohen, em Revolution in Science, relacionam-se a fatores externos aos fatores científicos stricto sensu. Curiosamente, Thomas Kuhn pode ser entendido como um importante ícone para a revisão historiográfica que ocorreu no Brasil nos anos 80, mas os estudos de Bernard Cohen, contemporâneos a essa revisão historiográfica, ficaram em grande parte esquecidos pela nova geração de historiadores revisionistas15. Se Cohen trabalha na mesma vertente revolucionária que Kuhn, se também incorpora os fatores extra-científicos no desenvolvimento das ciências, se produziu uma obra volumosa e reconhecida mundialmente, por que seus trabalhos não foram citados de maneira contundente pela nova historiografia brasileira que emergia nos anos 80? Tendo 14 Fernando Azevedo caracterizava o ambiente intelectual brasileiro como um lugar de retórica e cópia dos grandes centros produtores de conhecimento. Segundo esse autor, esse panorama só mudaria após o surgimento das universidades. 15 Foi realizada uma busca preliminar por referências as obras de Cohen nos trabalhos em História da Ciência no Brasil, até o momento, nenhuma menção foi encontrada. Foram pesquisados alguns números da Revista da SBHC (1985n.1, 1993n.9, 1998n.19, 2003n.1, 2004n.1 v.4 jan/jun, 2005n.1 v.3 jan/jun, 2006n.1 v.4 jan/jun, 2007n1 v.5 jan/jun) e livros diversos (entre eles, aqueles citados ao longo das referências desse ensaio): CAMENIETZKI, C. Z. et all. A disputa do cometa: Matemática e Filosofia na controvérsia entre Manuel Bocarro Francês e Mendo Pacheco de Brito acerca do cometa de 1618. Revista Brasileira de História da Matemática, Rio Claro, v.4, n.7, p. 3-18, 2004. CHALHOUB, S. et all. Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Unicamp, 2003. DANTES, M.A. (org) Espaços da ciência no Brasil: 1800-1930. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001. BENCHIMOL, J. (coord) Manguinhos do Sonho à Vida. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1990. BENCHIMOL, J e TEIXEIRA, L. A. Cobras e lagartos & outros bichos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993. HOCHMAN, G e ARMUS, D. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2004. 8 em vista a obra-síntese Revolution in Science, de Bernard Cohen, podemos supor que o legado desse autor tenha sido posto à margem da produção dos chamados revisionistas da década de 1980 (e também pelos trabalhos posteriores) porque Cohen se preocupa em discutir questões que não eram contempladas pelos programas de pesquisa em História das Ciências no Brasil. Em outras palavras, Cohen estuda a delimitação do termo “revolução científica”, as descobertas newtonianas e a emergência da Ciência Moderna, assuntos diferentes daqueles que eram problematizados no Brasil nesse período. A nova vertente historiográfica brasileira estava preocupada em entender a ciência como uma prática social contextualizada, anterior à criação das universidades e, além disso, preocupava-se em entender os processos de mundialização16 do conhecimento científico produzido nos grandes centros (ou países do centro). Apesar de Cohen trabalhar os processos de divulgação e aceitação de uma teoria, nenhuma das propostas enfocadas pelos países das periferias estavam na pauta de seus trabalhos. A apropriação que Cohen faz dos trabalhos de Kuhn, por exemplo, se concentra nos estudos das acepções do termo “revolução”. Diferente disso, os historiadores das ciências no Brasil estavam interessados em reconhecer a produção científica brasileira em períodos anteriores à criação das universidades, re-problematizando o passado científico colonial. Para tanto, utilizaram as narrativas kuhnianas sob o aspecto da relação da ciência com os fatores externos, econômicos, políticos e sócio-culturais. Com um outro olhar sob a obra de Kuhn, a História das Ciências no Brasil pôde refutar as teses de Azevedo que viam na tradição ibérica o grande empecilho para o desenvolvimento científico brasileiro. Para concluir, tanto Cohen quanto os historiadores brasileiros posteriores a 1980, revisaram, de alguma forma, a tradição histórica das ciências, baseados nas idéias kuhnianas. Os trabalhos de Thomas Kuhn foram apropriados/reformados tanto por Cohen, discutindo a acepção e a determinação de uma “revolução científica”, quanto pela nova geração de historiadores da década de 1980, evidenciando a produção científica nacional em períodos mais recuados, negando a inexistência de produção científica anterior a 1930. Então, essa distinta leitura de Kuhn pode ser um dos motivos da ausência de referências dos trabalhos cohenianos na História das Ciências no Brasil. Além disso, pode-se considerar que, por volta da década de 1980, os trabalhos de Thomas Kuhn passavam por 16 Esse processo de mundialização que, segundo Moema Vergara, (VERGARA, 2004) é uma chave para o entendimento de um projeto de modernidade brasileira, também é explicado por Antonio Lafuente e Maria L. Ortega em: LAFUENTE, A. e ORTEGA, M. L. Modelos de mundialización de la ciencia. Revista Arbor: ciencia, pensamiento y cultura, CXLII, Junio-Agosto 1992, p. 93-117. 9 um duplo processo: de apropriação (no Brasil) e de revisão (nos países do centro). Vale lembrar que nesse mesmo momento (década de 1980), o próprio Thomas Kuhn buscava responder as críticas feitas aos famosos problemas contidos no Estrutura17, como, por exemplo, o problema da polissemia do termo paradigma ou o problema da incomensurabilidade18. Essas revisões e discussões feitas por Kuhn sobre seu próprio trabalho também ficaram, em grande medida, à margem dos programas de pesquisa brasileiros. A diferença aqui explicitada, entre os historiadores brasileiros revisionistas da década de 80 e os estudos como os de Bernard Cohen e Thomas Kuhn refletem a diferença entre a postura adotada pelos autores dos “centros” em relação a postura adotada pelos autores da “periferia”. Os historiadores das ciências dos países centrais têm se mostrado, em geral, mais preocupados em estudar questões epistemológicas sobre as ciências. Em contraste, nos países periféricos, os estudos históricos têm se mostrado mais preocupados em estabelecer análises sociológicas. No Brasil, tanto os seguidores de Azevedo quanto os historiadores das instituições científicas (como o trabalho de José Murilo de Carvalho, sobre a Escola de Minas de Ouro Preto19 ou o de Nancy Stepan, sobre o Instituto Manguinhos20) caracterizavam-se pela “tendência atual da historiografia da ciência em deslocar os estudos da área da epistemologia para a história social da ciência.” (VERGARA, 2004, p. 22) Pelo exposto, de fato, podemos constatar que a vertente historiográfica brasileira da década de 1980 se empenhou em determinar, afirmativamente, a existência de uma produção científica em períodos mais recuados, e fez isso alicerçada em discursos sociológicos. Por outro lado, alguns trabalhos produzidos nos países dos centros que se tornaram referências em seus domínios, como os de Cohen, preocuparam-se em problematizar questões mais, especificamente, epistemológicas. 17 De acordo com a nomenclatura utilizada pelo próprio Thomas Kuhn, convencionou-se chamar o livro A Estrutura das Revoluções Cientificas apenas pelo seu diminutivo: Estrutura. 18 Para maiores informações a respeito das revisões que Thomas Kuhn fez ao Estrutura, ver: KUHN, Thomas S. O caminho desde A Estrutura: ensaios filosóficos, 1970-1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2006. 19 CARVALHO, José Murilo de. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1978. 20 STEPAN, Nancy. Gênese e evolução da ciência brasileira: Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica. Rio de Janeiro: Artenova/Fundação Oswaldo Cruz, 1976. 10