DOUTRINA Suplemento Especial da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro • Edição No 27 • Novembro de 2011 Considerações sobre a Lei Seca Benedicto Abicair Desembargador da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Foi membro da Comissão Cidadã do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro (2002) A “Lei Seca” tem sido objeto de polêmica com relação à sua constitucionalidade, o que não será objeto de abordagem aqui. Pretendo, sim, fazer uma reflexão sobre sua aplicabilidade, pois a finalidade da lei é revestida de nobreza quando tenta evitar ou reduzir as sérias e desastrosas conseqüências da união álcool/direção para prevenir os acidentes que tiram vidas humanas, em especial jovens mais arrojados e menos providos de responsabilidade. Certo é que a maior contribuição para a redução satisfatória das tragédias, decorrentes daquele esposamento, consiste na fiscalização regular e contínua, porém, nos liames da legalidade. Na hipótese, é ilegal, arbitrária e discriminatória a forma de abordagem dos motoristas, por estar sendo violado o princípio da presunção da inocência. Ou seja, cidadão algum pode ter cerceado seu direito de exercer sua liberdade de locomoção, a menos que esteja cometendo flagrante delito, ou exista ordem judicial para sua privação do direito de ir e vir. Autoridades competentes e seus agentes não podem presumir que condutores de veículos, que não tenham praticado qualquer infração no trânsito, estejam alcoolizados. A abordagem deve ocorrer quando constatada prática de ilicitude. Portanto, infringido o Código Nacional de Trânsito, por qualquer veículo, tem-se, então, motivação, diante da violação de norma legiferante, justificando-se, aí sim, a abordagem, com exigência da apresentação de documentação, sendo viável, inclusive, a avaliação sobre eventual estado de alcoolismo do condutor, mas sem impor ao suspeito realização de prova, de qualquer natureza, contra si próprio, principalmente constrangendo-o na via pública. Após a lavratura do auto de infração, pela violação da norma de trânsito motivadora da abordagem, e entregue cópia ao infrator, constatado indício de alcoolismo no motorista, 2 Novembro de 2011 • Amaerj Doutrina Importa, ainda, destacar a obrigatoriedade do Poder Público em viabilizar transporte alternativo adequado para os que se privem dos automóveis particulares deverá ser ele conduzido à Delegacia policial para outros procedimentos que desaguarão no Judiciário, que julgará dentro dos princípios processuais. Inconcebível, sob o ponto de vista legal, são as medidas desmotivadas de abordagem, sem qualquer critério objetivo, mas, ao contrário, realizadas indiscriminadamente. Resta, ainda, destacar que a fiscalização deve ser aplicada a todos que cometam infrações no trânsito, para, então, ser possível levantar suspeitas sobre motoristas alcoolizados, pois são muitos os que, sóbrios, são mais perigosos que alguns com pequena dosagem de álcool no sangue. O objetivo de qualquer legislação não é punir, mas, sempre, disciplinar, educar e vedar a prática de atos danosos à sociedade. Agindo dentro da legalidade, sem suspeitas sobre fins políticos ou escusos de medidas fiscalizadoras, ter-se-á, com certeza, a preocupação dos motoristas em cumprirem as regras de trânsito, evitando a ingestão de bebidas alcoólicas ou ingerindo-as comedidamente, para não se sujeitarem aos transtornos policiais e judiciais. Importa, ainda, destacar a obrigatoriedade do Poder Público em viabilizar transporte alternativo adequado para os que se privem dos automóveis particulares. É inconcebível que à noite cessem os serviços do Metrô, sejam reduzidos os horários de circulação dos ônibus, cujos motoristas não são regularmente fiscalizados, sem contar o péssimo estado dos táxis, que cobram bandeira dois, e são conduzidos por motoristas cada vez menos preparados. Por fim, pertine destacar que o bafômetro não é meio de prova irrefutável, muito menos contundente, dentre outros motivos porque sempre será questionada sua aferição. São, também, desconhecidos estudos científicos que asseverem ser a dosagem de álcool fixada na lei suficiente para caracterizar o estado de embriaguez. O desrespeito a qualquer prerrogativa dos cidadãos fará com que o Judiciário absolva os acusados que não tiveram respeitados seus direitos fundamentais e puna o fiscal transgressor. Repita-se: a fiscalização regular, contínua e dentro da legalidade, para coibir transgressões no trânsito, no regime democrático, não pode, em hipótese alguma, violar direitos indisponíveis. Expediente Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro Rua D. Manuel, 29/1º andar - Centro - Rio de Janeiro Cep: 20020-000 Tel.: (21) 3133-2636 / 3133-2647 Telefax: (21) 2533-6456 [email protected] / www.amaerj.org.br Diretora do Departamento de Comunicação: Juíza Kátia Torres Editor: Marcelo Pinto (MTB 19936) Redação: Marcelo Pinto, Sarita Yara, Ada Caperuto, Milena Prado Neves, Tainá Ianone, Diego Carvalho (estagiário) e Clarissa Domingues (estagiária) Conteúdo e responsabilidade editorial: Ricardo Viveiros & Associados – Oficina de Comunicação, empresa filiada à Aberj (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial) Editora JC Ltda. Diretora de Redação: Erika Branco Coordenadora de Arte e Produção: Mariana Fróes Diagramadores: Diogo Tomaz e Vinicius Nogueira Av. 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Em razão disto, os seus operadores contam com acentuado apoio popular, oriundo principalmente da exposição a que são colocados os que se opõem às suas práticas ilegais e arbitrárias. A questão começa a ser regulada pela Constituição da República, que em seu artigo 5°, inciso II, dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Por outro lado, o dispositivo legal atinente à matéria, ou seja, o artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro prevê que todo condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito), permitam certificar seu estado. A se considerar que este artigo seja totalmente constitu cional, seremos remetidos a examinar a Resolução n° 206, de 20/10/2006, que dispõe sobre os requisitos necessários para constatar o consumo de álcool, substância entorpecente, tóxica ou efeito análogo no organismo humano, estabelecendo os procedimentos a serem adotados pelas autoridades de trânsito e seus agentes. O artigo 1º da referida Resolução preconiza que a confirmação de que o condutor se encontra dirigindo sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, se dê pelos seguintes procedimentos: I – teste de alcoolemia com a concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; II – teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro) que resulte na concentração de álcool igual ou superior a 0,3 mg por litro de ar expelido dos pulmões; III – exame clínico com laudo conclusivo e firmado pelo medido examinador da Polícia Judiciária; IV – exames realizados por laboratórios especializados, indicados pelo órgão ou entidade de trânsito competente ou pela Polícia Judiciária, em caso de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos. O artigo 2° da mesma Resolução prevê que no caso de recusa do condutor à realização dos testes, dos exames e da perícia previstos no artigo 1°, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção, pelo agente da autoridade de trânsito, de outras provas em direito admitidas acerca dos notórios sinais resultantes do consumo de álcool ou de qualquer substância entorpecente apresentados pelo condutor, conforme “Anexo desta Resolução”. Logo, se o condutor se recusar ao exame de etilômetro, vulgarmente chamado de “bafômetro”, a infração pode 4 Novembro de 2011 • Amaerj Doutrina ser caracterizada por outras provas acerta dos notórios sinais resultantes de consumo de álcool ou de substância entorpecente apresentados pelo condutor. Obviamente, se o condutor não apresentar estes sinais ostensivos resultantes do consumo de álcool ou de outras substâncias tóxicas, ele sequer pode ser obrigado a se submeter a quaisquer dos exames previstos no artigo 1°. O anexo descreve que sinais seriam estes, nas alíneas “b” a “f” exigindo demonstrações evidentes do consumo de álcool ou de outras drogas. Nada disso é seguido pelos operadores da chamada “Operação Lei Seca”. A título de ilustração descreveremos os requisitos quanto à aparência do condutor: a) sonolência; b) olhos vermelhos; c) vômito; d) soluços; e) desordem nas vestes; f) odor de álcool no hálito. Na prática, a pessoa é parada e mesmo que não apresente qualquer sinal de consumo de álcool ou de outras drogas, ainda assim, é compelida a realizar o exame de “bafômetro”. Mas as coisas não param por aí. Temos que definir de forma clara e inequívoca, sem eufemismos ou exercícios de lingüística, se existe ou não o direito à não autoincriminação. Esse direito sempre existiu no nosso ordenamento jurídico e sempre foi respeitado, mesmo nos períodos de exceção, como na Ditadura Vargas e na Ditadura Militar de 1964. Esse direito significa que ninguém está obrigado a fazer prova contra si. Caso este direito continue a existir, não é razoável que alguém seja punido por exercê-lo. Na hipótese da “Lei Seca”, se o cidadão exerce esse direito e se recusa a se submeter ao exame de etilômetro (prova capaz de firmar a sua condenação), ele fica sujeito à apreensão de sua Carta de Habilitação e do próprio veículo, que só poderá ser liberado por alguém que se submeta ao exame de “bafômetro”. Logo, a “Lei Seca” acabou com o direito de não fazer prova contra si. Desde o início, aprende-se que o exercício de um direito não gera qualquer tipo de punição para quem o exerce. Também é de fácil conclusão que os agentes públicos que procuram compelir o agente a fazer tal prova (que não conta com a aprovação legal ou constitucional) estão a exorbitar de suas funções e a agir com abuso de autoridade. Apesar disto, a despeito desta flagrante ilegalidade, a malfadada operação continua a ocorrer em diversos locais da nossa cidade, constrangendo pessoas de bem a fazer esse exame ilegal, submetendo quem é parado a todo o tipo de desrespeito ao seu direito na qualidade de cidadãos honestos. Os abusos são vários. A título de exemplo, podemos citar um conhecido ator da Rede Globo cujo nome não nos foi autorizado revelar que já foi parado 22 (vinte e duas) vezes, sempre com o resultado negativo; também podemos falar de um Magistrado parado 12 (doze) vezes, também com o resultado negativo e de inúmeras outras pessoas, como mulheres acompanhadas de crianças, famílias voltando de viagem, cadeirantes obrigados a se deslocar para fazer o malfadado exame etc. Apoio Instituto Patrocínio O interessante é que estes abusos jamais são cobertos pela imprensa. Mais grave que tudo isto é o resultado destas intervenções indevidas na privacidade das pessoas. A maioria das abordagens obtém resultados negativos. Das duas uma: ou ninguém consume álcool nesta cidade, ou estão sendo abordadas pessoas que não se encaixam no perfil de consumidores dessa substância. E, se essa abordagem estiver sendo feita de modo equivocado, não teremos um combate efetivo às lesões decorrentes do tráfego e estaremos a gastar dinheiro público com diligências inócuas, inúteis e que só servem para submeter a constrangimentos pessoas conscientes que procuram não beber antes de dirigir. A verdade é que as pessoas de bem, que prezam a segurança viária, evitam sair de casa à noite. Não adianta nada não beber antes de dirigir, pois de qualquer maneira serão parados, abordados e obrigados a se submeter, de forma ilegal, ao exame de etilômetro. Com isto temos uma cidade dividida. As pessoas, como eu, por exemplo, evitam deslocar-se entre a Zona Sul e a Barra, porque no retorno o aborrecimento será certo. Haverá um engarrafamento, com uma fila indiana, na qual o cidadão irá rezar para não ser parado e ser abordado, e mesmo sem qualquer sinal de ingestão de álcool, será compelido a realizar o exame ilegal, sob pena de apreensão da carta de habilitação e documento do veículo. Não consigo entender porque a sociedade assiste passiva a tudo isto. Estamos vendo uma constante invasão da privacidade dos cidadãos, um permanente desrespeito aos direitos fundamentais consagrados na nossa constituição, e todos ficam calados. Quem se atreve a não aceitar esse tipo de arbitrariedade é submetido à execração pública, pois a mídia está sempre por perto. Sempre pronta a apoiar os abusos e as ilegalidades da referida operação. Jamais sai em defesa do cidadão. Como diz Caetano Veloso em uma de suas músicas, “alguma coisa está fora da ordem”. Penso que a democracia tem que ser exercida diariamente. Ela é um processo contínuo de aperfeiçoamento e não podemos transigir com violações aos seus princípios fundamentais, dentre eles o direito à não autoincriminação e nem com o princípio de não-culpabilidade consagrado na Constituição da República. Nessa luta não nos devemos impressionar com o aparente apoio do povo, nem sempre informado acerca dos abusos que são cometidos e dois reais objetivos dessa questionável operação. Acreditamos piamente que é possível assegurar a segurança viária sem invadir a esfera de direitos do cidadão. Basta querer. O nazismo e o fascismo sempre contaram com o apoio da mídia e com a aprovação popular. Faltava-lhes, porém, legitimidade e respeito à dignidade humana. Pena que foi necessário que morressem cerca de trinta milhões de pessoas para que o mundo se convencesse disto.