Artigo ASPECTOS POLÊMICOS DA “LEI SECA” NAS RODOVIAS FEDERAIS ProfªDrªJanice Helena Ferreri Morbidelli* Considerando a entrada em vigor da lei nº 11.705, promulgada em 19 de junho de 2008, que dispõe sobre a comercialização e o consumo de bebidas alcoólicas, indispensável algumas considerações, à luz do que dispõe a Constituição Federal. A Lei 11.705/08 veda a comercialização de bebidas alcoólicas na faixa de domínio de rodovia federal ou em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia, bem como, a venda varejista ou o oferecimento de bebidas alcoólicas para consumo no local (art.2º). A proibição atinge as rodovias federais localizadas em área rural. O comerciante que desrespeitar a proibição está sujeito a multa de R$ 1,5 mil. Em caso de reincidência no período de um ano, a multa será aplicada em dobro, e o estabelecimento poderá ser fechado por até um ano. Como a lei se refere à área rural, a venda de bebidas alcoólicas em área urbana não contempla a proibição, sendo que a definição de “área urbana” será aquela dada pela legislação de cada município ou do Distrito Federal. O Código Brasileiro de Trânsito passa também a classificar como crime e infração gravíssima punida com multa, com suspensão do direito de dirigir por um ano, apreensão da carteira de motorista e retenção do veículo (art.165), a condução de veículos com qualquer teor de álcool. Independentemente da necessidade extrema na busca de soluções que minimizem os acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras, a proibição veiculada na Lei 11.705/08, salvo melhor juízo, fere alguns princípios constitucionais e direitos fundamentais dos cidadãos. Em relação aos comerciantes, podemos dizer que existe ofensa ao princípio da liberdade de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII, CF), na medida em que os proprietários de estabelecimentos comerciais ficam restringidos no seu direito de exercer a plenitude do seu negócio, o que afronta também o princípio constitucional inserto no artigo 1º, IV, CF, atinente aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. O mandamento constitucional prevê, ainda, que é objetivo fundamental da República garantir o desenvolvimento nacional. A nova lei tolhe a livre iniciativa de atuação no comércio, o que, sem dúvida, afronta o objetivo acima, como também fere os princípios gerais da atividade econômica, presentes nos dispositivos do artigo 170 da CF, em especial: a propriedade privada (artigo 170, II, CF), a livre concorrência (artigo 170, IV, CF) e a defesa do consumidor (artigo 170, V). Quanto aos cidadãos, a lei 11.705/06 adotou medida extrema, visto que transforma em crime a conduta de conduzir um veículo sob qualquer teor alcoólico. A lei 9.503/97 (Código Brasileiro de Trânsito) já previa sanções severas para dirigir sobre a influência de álcool em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, colocando a violação ao dispositivo como infração gravíssima, com penalidade de multa e suspensão do direito de dirigir, além da medida administrativa de retenção do veículo. O artigo 277 do Código de Trânsito, igualmente apresentava medidas capazes de coibirem a direção sob a influência do álcool, disciplinando que o condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito sob suspeita de dirigir alcoolizado, seria submetido a testes vários que permitissem certificar seu estado. Assim, uma vez que a lei já previa medidas coercitivas que poderiam impedir a direção de veículos sob o efeito do álcool, torna-se relevante a análise da aprovação de uma lei tão inusitada e polêmica. O novo dispositivo legal que prevê a tolerância zero ao álcool, fere o princípio da razoabilidade e pode gerar injustiças. Isto porque, existem alimentos com ingredientes alcoólicos e medicamentos com componentes de álcool, o que causará dificuldades na avaliação pelas autoridades, que poderão autuar usuários de medicamentos como se fossem infratores. Os consumidores de bombons recheados de licores correm o risco de serem autuados como infratores, pois foi realizado um teste com o etilômetro após a ingestão de apenas um bombom de 25 gramas recheado de conhaque e o equipamento detectou a presença de 0,53 decigramas de álcool por litro de sangue, bem mais do que o limite anterior à promulgação da lei, que era de 0,6 miligramas por litro de sangue. Vale lembrar que a Constituição Federal prevê que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, o que afasta a obrigatoriedade do suspeito de embriaguez se submeter ao teste do bafômetro e, nesse caso, somente restaria a análise dos policiais sobre os sinais de embriaguez. No entanto, a interpretação policial sobre os sinais de embriaguez também é problemática. Segundo os médicos, pessoas que utilizam antidepressivos podem ter manifestações semelhantes a quem está embriagado, tais como, alteração de movimentos e de comportamento. Outro aspecto a ser considerado é o tempo de permanência do álcool no organismo. Sabe-se que duas latas de cerveja, duas taças de vinho ou duas doses de uísque permanecem no sangue por duas ou três horas. A presença do álcool no sangue pode persistir ainda mais em caso de estomago cheio, ou ingestão de carne gordurosa ou café em grande quantidade. Dessa forma, mesmo sem estar embriagada, a pessoa poderá ser autuada pela autoridade porque será encontrada no seu sangue, uma mínima quantidade de álcool. Tudo isso poderá causar injustiças, caso não seja aplicado o princípio da razoabilidade que recomenda uma certa ponderação dos valores jurídicos tutelados pela norma aplicável à situação de fato. Vale dizer, a norma sob comento não pode proteger um direito fundamental, atingindo outros direitos, como a liberdade, o direito de ir e vir, o direito à locomoção. Na verdade, o que se verifica no Brasil é o problema da inefetividade das normas, ou seja, existem leis muito severas que não têm qualquer aplicabilidade prática em decorrência de fatores políticos, culturais e sociais. No caso sob análise, a nova lei, sem dúvida, irá contribuir para a diminuição da imprudência no trânsito, mas será preciso equilíbrio na sua aplicação e fiscalização séria, pois como visto, já existia previsão legal capaz de impedir que os motoristas dirigissem alcoolizados ceifando vidas inocentes e, de acordo com os índices de mortalidade nas estradas, esta não produzia efeitos. (*) Janice Helena Ferreri Morbidelli é Professora Universitária, Doutora em Direito Constitucional e sócia do Escritório de Advocacia Ferreri Morbidelli Advogados www.ferrerimorbidelli.com.br