Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. O TEATRO ÉPICO E AS PEÇAS DIDÁTICAS DE BERTOLT BRECHT: uma abordagem das mazelas sociais e a busca de uma significação política pelo teatro. OLIVEIRA, Urânia Auxiliadora Santos Maia de1 RESUMO Este resumo pretende apresentar o processo de montagem do espetáculo teatral “Hip Brecth Hop” desenvolvido na pesquisa de doutoramento em Artes Cênicas, com jovens atores de um bairro popular de Salvador/Bahia. Os atores trouxeram o Hip Hop por identificarem a semelhança entre o coro das peças didáticas e a linguagem utilizada pelos hip hoppers em suas músicas. A base metodológica utilizada foi a aplicação das peças didáticas de Bertolt Brecht e do seu teatro épico. O intuito foi o de utilizar esses dois recursos no processo de criação dramatúrgica, sensibilização dos sentidos e construção de um espetáculo teatral cuja intervenção social teve em seu cerne a idéia de emancipação política e de produção estético-discursiva. Será relatado como as peças didáticas foram aplicadas e sua repercussão no processo de crescimento individual, artístico e de criação do texto dramatúrgico. A práxis e o sentido do trabalho com o teatro em comunidades visa a expansão do campo-consciência dos jovens atores. A peça didática serve como pré-texto que necessita ser articulado de maneira eficiente para que a partir dessa lógica provocativa os atores sintam-se estimulados a recortarem situações cotidianas e aplicarem as mesmas como embriões de um novo texto teatral. Para tanto se aplicou durante o processo a peça didática, como um “modelo de aprendizagem” onde cenas cotidianas das mazelas sociais foram narradas e vivenciadas. Modelo de aprendizagem que, além de despertar a consciência crítica, política e social, permite a aplicação de exercícios teatrais preparatórios do corpo, da voz e da interpretação dos atores. Palavras-chave: Teatro; peça didática; política. 1 Professora Adjunto EMAC – Escola de Música e Artes Cênicas - UFG Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. ABSTRACT This paper aims at presenting the process of staging the play “Hip Brecht Hop” developed in the theses of doctorate in performing arts, with young actors and a popular dancer from Salvador/Bahia. The actors brought Hip Hop for they identify the likelihood of chorus of the didactical plays and the language used by hip hoppers in their music. The methodological founding used was the applying of the didactical pays by Bertolt Brecht and of his Epic theatre. The aim was to use these two resources in the process of dramaturgic creation, sensitization of senses and the development of a theatrical play which social intervention had in its core the idea of political emancipation and aesthetics-discursive production. We will report on the application of the didactical pays and their repercussion in the process of individual growth, artistic and of creating the dramaturgic text. The praxis and the meaning of working with community theatre aim at the expansion of the science-field of the young actors.The didactical play has the role of a pretext that needs to be articulated in an efficient manner so that from that provocative logic actors feel stimulated to frame everyday situations and apply them as embryos of a new theatrical text. For that purpose we have applied the didactical play as a “learning model” where everyday scenes of social afflictions were narrated and experienced. Critical, political and social consciousness is brought about through this learning model and it also allows the applying of theatrical body training as well as voice and acting exercises. Key – words: theatre; didactical play; politics. Pessupostos para compreensão do teatro didático brechtiano Nas últimas décadas do século XIXa série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo, prenunciava a eclosão de uma grande guerra mundial. A Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios poderosos. Nesse Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e de uma forma bastante tímida no início, eclodiam esporadicamente movimentos de revolta contra o regime burguês. Não é, portanto de se estranhar, que toda a obra de Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. Todo o tempo há uma profunda reflexão sobre a situação do homem num mundo dividido em classes; e o estudo do relacionamento entre os homens que vivem condicionados a uma divisão econômicapolítica. A característica mais importante da obra brecht é a visão que ele tinha do teatro como um elemento que deve apresentar à sociedade os fatos cotidianos a fim de que o espectador os julgassem, portanto, tudo serviria de depoimento e documentação. Tanto o seu teatro épico quanto o didático são narrativos e descritivos, onde por meio de um processo dialético Brecht apresentava duas funções: fazer as pessoas se divertirem e pensarem. Nenhum outro escritor foi tão representativo da sua época quanto Brecht. Uma época tumultuosa de rebeldia e de protesto refletida extraordinariamente em suas obras, que apontam sempre para os problemas fundamentais do mundo atual: a luta pela emancipação social da humanidade. A alienação do homem, para Brecht, não se manifesta como produto da intuição artística. Brecht ocupa-se dela de maneira consciente e proposital. Mas não basta compreendê-la e focalizá-la. O essencial não é a alienação em si, mas o esforço histórico para a desalienação do homem. Essa opção de Brecht por um teatro que apresenta características que formam uma tríade — é narrativo, crítico e político. A construção de uma teoria de representação teatral fundamentada no distanciamento do ator tem por objetivo deixar claro o caráter social e mutável do que é mostrado, o que vai de encontro à imutabilidade da natureza humana pregada pelo teatro dramático. Sua obra tem compromissos firmados com a causa política sem deixar de apresentar seu autor como um artista talentoso, criador e renovador de sua arte. Isso marcou profundamente suas concepções na história da dramaturgia e do teatro mundial. Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. A obra de Brecht exprime em sua quase totalidade uma revolta contra a arrogância dos detentores do poder e, contra toda a disciplina cega. Com a finalidade de alcançar a massa oprimida através de seus escritos criaum teatro de ação social voltado para mostrar que o homem tem a capacidade, o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. E que não é possível lutar contra a retórica de um governo, mostrando que o destino do homem deve ser sempre preparado por ele mesmo. A partir daí, a preocupação de Brecht em relação ao teatro terá como cunho específico utilizá-lo não apenas como forma de interpretar o mundo, mas principalmente como um meio de mudá-lo e o autor confirma esse pressuposto ao escrever: “A arte segue a realidade” (BRECHT apud EWEN, 1991, p.196). Ao escrever suas peças, Brecht imagina um espectador atento e não passivo perante a arte apresentada nos palco, um espectador cujo papel não era apenas de sentir a emoção, mas entender-se como ator da própria realidade, com capacidade de criticar e mudar o mundo, era preciso usar meios imediatos de chegar às pessoas. Foi desta forma que Brecht junto a outros artistas da época passaram a levar suas canções e poemas para as tavernas e até mesmo para restaurantes de maior porte. É dessa forma que surge a Lehrstücke2, ou peças didáticas de Brecht. Na opinião de Ewen, elas “eram compostas mais com o olho nos seus participantes do que na plateia e marcaram uma fase altamente interessante, embora controvertida na evolução do autor” (1991,pp.219-220). Por essa ocasião Brecht escreve que “os filósofos burgueses, fazem uma distinção entre o homem ativo e o homem reflexivo. O homem pensante não faz essa distinção”. (BRECHtapud EWEN, 1991, p.220). A função das Lehrstücke – peças didáticas – era fazer com que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. O princípio que subjaz a essas tentativas era a prática coletiva da arte, que teria também uma função instrutiva no tocante a certas ideias morais e políticas. Na visão de Ewen, a origem das peças didáticas remonta ao modelo de instrução jesuíta e humanista. 2 O termo original em alemão é Lehrstück. Ingrid Koudela(1991) nos diz que a tradução mais correta desse termoseria ‘peça de aprendizagem’, “à medida que o termo ‘didático’ na acepção tradicional, implica ‘doar’ conteúdos através de uma relação autoritária entre aquele que ‘detém’ o conhecimento e aquele que é ‘ignorante’. Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. Se formos localizar temporalmente, a peça didática na obra de Brecht, ela nasce no conflito legal após a versão filmada da Ópera dos Três Vinténs. Koudela registra que “Brecht sente a necessidade de produzir arte distante da indústria cultural (...). Através desse tipo de peça, Brecht propõe a superação da separação entre atores e espectadores, através do Funktionswechsel (mudança de função), do teatro” (1996, p.13). Porém, a peça didática (Lehrstück) durante um longo período foi esquecida ou talvez considerada como parte menos importante da obra de Brecht. No entanto, alguns autores alemães começaram a pesquisá-la e a destacar a sua importância como proposta pedagógica inovadora. Dentre esses autores destaca-se ReinerSteinweg, que em 1972 publicou “A peça didática – a teoria de Brecht para uma educação políticoestética”. Ao distanciar-se da mídia, Brecht procura um público novo, para além dos muros da instituição teatral tradicional. Participantes em escolas e cantores em corais passam a fazer parte desse universo novo de espectadores, além de novos elementos que são acrescentados à sua obra teatral. Grosso modo, esses elementos são os seguintes: descontinuidade, intertextualidade, pluralidade, descontextualização, fragmentação e valorização do receptor. Brecht passou por uma fase experimental de produção, denominada Versuche (tentativas/experimentos), em busca de traduzir os conhecimentos da dialética materialista em formas dramáticas. O autor intencionava promover a troca da função do teatro, a fim de que ele deixasse de ser simplesmente uma mercadoria estética vendida aos espectadores e pudesse ser um espaço/momento de construção participativa da consciência político-estética. Brecht destaca que o objetivo da peça didática está no processo de construção com o grupo, não na apresentação, tanto que ela nem necessitaria de público. A peça didática trabalha com dois principais instrumentos didáticos: o modelo de ação e o estranhamento, com claros objetivos políticos. Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. Abordagem metodológica do processo com a peça didática Realizei com jovens do Nordeste de Amaralina, em Salvador, Bahia, aulas de teatro com as peças didáticas. As aulas foram estruturadas em torno dos jogos teatrais e da aplicação das seguintes peças didáticas de Bertolt Brecht: O vôo sobre o oceano, Baden-Baden sobre o acordo, Aquele que diz sim aquele que diz não, A exceção e a regra, Os horácios e os curiácios e A decisão. O grupo fez leituras das peças didáticas de Bertolt Brecht, aplicadas na íntegra e em forma de excerto, embasados nas suas experiências cotidianas. A memória e a expressão oral dos jovens possibilitaram, através das associações com modelo de ação e o cotidiano, a criação de texto teatral Hip Brecht Hop. A primeira peça lida foi O vôo sobre o oceano, escrita em 1928/1929, para ser apresentada em rádio e/ou salas de concerto e que era destinada a estudantes. A princípio recebeu o título de O Vôo de Lindbergh3. Transmitida pela primeira vez na cidade alemã de Baden-Baden. A peça teve seu título alterado para O vôo sobre ooceano. Alguns estudiosos dizem que o tema é uma exaltação ao progresso científico outros, que é uma glorificação à vitória do homem sobre si mesmo. Conforme Peixoto(1979) Brecht “define o texto como um instrumento de ensino, um objeto didático” (p.111). Os participantesleram o texto, fizeram uma análisee identificaram a “perseverança” como um tema. Também reconheceram o predomínio da tecnologia sobre o ser humano.Finda a reflexão, foi escolhido o fragmento da peça para a turma trabalhar: CENA 8 – Ideologia: o personagem discorre sobre o progresso, assinalando que ele vem para mudar o que é antigo e ultrapassado, o que é primitivo. A peça didática de Baden-Badensobre o acordo foi asegunda lida e refletida. Brecht a escreveu com a finalidade de que fosse apresentada às escolas e com efetiva participação do público. Ela retoma “o tema de O vôo sobre o oceano [...] mas aprofunda a desmontagem do mito do herói e coloca em primeiro plano a reflexão sobre 3 Charles Augustus Lindbergh (1902 - 1974), americano, foi o primeiro a sobrevoar o Atlântico num vôo solitário, entre Nova York e Paris, em 1927, gastando 33 horas e meia na travessia. Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. o significado social do progresso técnico e científico assim como as bases para o seu desenvolvimento.” (PEIXOTO, 1979, p.112). Os jovens escolheram o fragmento da cena 2 – Terceiro Inquérito, em que aparecem três clowns. A cena foi improvisada com trios e em seguida foi discutida a temática da peça: manipulação x autonomia. A terceira peça didática foi A decisão. A peça é um julgamento e provocou muita polêmica na época em que foi apresentada por Brecht. Pelo seu caráter ideológico partidário fazendo com que alguns autores como Hanna Arendt a relacionasse com “os processos e expurgos iniciados na União Soviética após o VI Congresso do Partido Comunista” (PEIXOTO, 1979, p.117). Após a leitura e análise da peça, se discutiu sobre interesses individuais e coletivos, mobilização social e participação política na comunidade. Depois dessa discussão fiz um aquecimento físico a partir da criação de uma coreografia cujo tema era “a comunidade e seus participantes numa ação social”. O próximo passo foi a leitura da peça. Como os participantes já tinham discutido sobre interesses e mobilização social, foi mais fácil a compreensão do texto e o reconhecimento do tema autonomia. O fragmento escolhido para a dramatização foi A pequena e a grande injustiça. Nesta cena quatro agitadores convencem um jovem a ficar na porta de uma fábrica, cujos funcionários estavam em greve, distribuindo panfletos. Os panfletos traziam mensagens de incentivo para alguns funcionários que se recusavam a fazer greve, a agir de forma contrária. Um policial chega ao local e começa o enfrentamento entre ele, os agitadores e o rapaz. O resultado disso é a morte do policial e de dois operários. Os participantes dramatizaram a cena, procurando manter o texto e a situação do fragmento o mais fiel possível. Em seguida formaram um único grupo esolicitei que associassem as situações — tantos as que surgiram na discussão quanto àquela relacionadaà A decisão — com outras situações do cotidiano, onde todos participassem coletivamente e algumas dessas cenas foram improvisadas a partir das referências e da memória dos participantes A quarta leitura foi Aquele que diz sim e aquele que diz não, peça queteve sua estréia em 1930. É uma ópera curta e foi representada por estudantes. A peça conta a história de um professor que organiza uma excursão para buscar medicamentos que Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. combatam a epidemia que assola uma pequena cidade. O grupo tem que realizar uma difícil travessia pelas montanhas. Um menino órfão de pai e cuja mãe esta doente, pede para ir com a excursão. A partir daí a peça apresenta dois momentos distintos. Um em que o menino adoece durante a viagem e aceita ser sacrificado, cumprindo a tradição; e o outro em que ele não aceita morrer e exige que os companheiros o levem de volta para casa. Conforme Peixoto (1979, p.116) “o tema é moral, mas Brecht estava interessado em provocar um debate mais amplo”. A exceção e a regra, também utilizada na oficina, foi apresentada pela primeira vez em 1947, dezessete anos após ter sido escrita. É a única peça didática de Brecht que se destina ao teatro. Peixoto (1979, p.125) informa que é uma “moralidade em oito quadros, com um prólogo e um epílogo em versos. [...] é uma peça sobre a luta de classes e possui um esquema político que pode ser interpretado de forma mais ampla”. Para a leitura deA exceção e a regra, procedemos como das outras vezes, porém iniciamos a aula com a música de Zé Ramalho – Vida de gado. Os participantes escutaram-na, refletindo sobre a letra. A músicafoi trabalhada individualmente para que os participantes identificassem o tema central. Foi feita a seleção individual de uma frase da música para um trabalho de interpretação. Depois desse aquecimento foi feita a leitura da peça e dessa vez os participantes leram dando intenção ao texto, com emoção. Houve um crescimento tanto na leitura como na interpretação. Não foi preciso estimular o grupo para fazer associações com a música trabalhada, uma vez que eles conseguiram espontaneamente identificar opressão e oprimido como teor temático da música e da peça. Os participantes receberam um fragmento do texto – A água partilhada — formaram duplas para fazer a preparar a cena a ser apresentada posteriormente. A cena foi o excerto escolhido o qual relata que a água acabara e o carregador percebendo que o comerciante estava com sede, aproxima-se com o cantil na mão. “Vendo-o aproximar-se o comerciante imagina estar sendo atacado com uma pedra e, incapaz de supor um ato de bondade da parte de quem sempre tratou com extrema violência, mata o cule com um tiro” (PEIXOTO, 1979, p.127). As duplas apresentaram a cena e se estabeleceu uma discusão sobrea interpretação dos jovens e sobre Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. situações do cotidiano semelhantes às abordadasna peça, foi feito assim associações que culminaram em cenas curtas. Os horácios e os curiácios foi a última peça didática trabalhada na oficina. Foi escrita também para estudantes e, segundo Brecht, trata da dialética, foi apresentada ao público em 1958. A história é baseada em um fato bastante conhecido da história romana, ao qual o autor conferiu técnicas de encenação e representação do teatro chinês. Acerca desse texto Ewen (apud PEIXOTO, 1979, p.158) afirma: “é o mais compacto e o mais hábil do teatro didático brechtiniano”. O tema é a guerra entre os horácios e os curiácios, onde esses últimos querem se apropriar do solo e subsolo dos primeiros. Os horácios lutam em defesa de suas riquezas, é preciso garantir que a produção das fábricas e dos campos sejam suas. Para que isso ocorra é travada uma guerra de guerrilhas. Apesar de os curiácios serem mais fortes quem vence a luta são os horácios. Peixoto (1979) nos informa que esta peça foi escrita “com o objetivo de explicar aos estudantes o que era uma guerra de guerrilhas, a possibilidade de vitória dos povos invadidos pelo imperialismo” (p.159) Depois da leitura, o grupo foi dividido e escolheu os fragmentos: As sete maneiras de usar a lança e A batalha dos espadachins que abordam a marcha difícil de um horácio que vai ao encontro do inimigo. Chegando a um determinado ponto ele tem que subir os penhascos e usar como apoio uma lança. Durante a subida o espadachim usa sua lança de seis formas distintas: como bastão, como um galho de árvore, como sonda, como vara para salto, como maromba e como escora. O grupo foi dividido em dois grupos e tiveram um tempo para apresentarem a cenas tentando mantê-las na íntegra, obedecendo alguns critérios de interpretação como relação com público, projeção vocal, intenção nas falas, foco, ritmo e verdade cênica. Terminada a preparação e apresentação das cenas, os jovens fizeram associações com o cotidiano deles, selecionando situações semelhantes. Os participantes experimentaram uma cena coletiva numa luta onde o corpo foi usado como arma. Durante o trabalho mencionei seguidas vezes que as peças didáticas possibilitam aos participantes a associação de situações cotidianas e a situações da peça, para a criação de novos textos teatrais. Para ficar claro o que seria essa Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. associação, considerei importante me reportar a Fayga Ostrower (1989), em seu livro Criatividade eprocessos de criação, para uma melhor abordagem sobre o tema. Durante a leitura das peças didáticas ao término das discussões os participantes imaginavam outro final para cada uma delas, sempre na perspectiva de seu universo existencial. O desejo de romper com injustiças fazia com que eles sugerissem outras possibilidades de textos e eu estimulava isso. Essa participação sinalizava que o ideal seria criar o texto final juntos e assim eles pudessem impregnar um pouco de sua essência, de sua ideologia e do seu protesto social. A elaboração do texto final seguiu os passos do que foi exposto acima. Primeiro se pensou no objetivo que se queria alcançar e que foi a proposição do meu trabalho: concorrer para o desenvolvimento de um sujeito mais crítico e perceptivo, trabalhar um pouco a técnica de teatro para então criar um discurso teatral. Decidi então aproveitar as cenas criadas a partir das associações com as peças didáticas e conectá-las num só texto intercalado por um elemento brechtiano “o distanciamento”, pensei no coro para unir as situações tornando-as coesas e com sentido. Assim existia as situações, os atores, os personagens e o coro, faltava apenas o texto estruturado dramaturgicamente pronto para ser lido, discutido, analisado, ensaiado e encenado. Ante essa perspectiva, alteramos as cenas do cotidiano deixando-as sem respostas, passando para o espectador a responsabilidade de resolver os conflitos, os impasses. A minha experiência com o teatro respalda a minha interferência e o meu olhar crítico quanto à elaboração do texto final, o que ocorreu.Restava dar uma linguagem teatralizada aos episódios escolhidos e os jovens optaram por fundir a linguagem do hip-hoppor identificarem semelhanças entre ambos uma vez que aparece uma forma de protesto e denúncia da realidade, da falta de liberdade e das desigualdades sociais. Com fragmentos das peças didáticas e situações enfrentadas por eles na comunidade onde moram surgiu então o Hip Brecht Hop. Depois que a peça Hip Brecht Hop ficou pronta, a consideramos como ponto de partida para a nossa encenação e partimos desse texto para prepararmos um Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. espetáculo teatral condizente com a realidade social, estética e artística dos participantes. Foram feitos vários ensaios cena a cena e a construção de uma coreografia para os coros, utilizando elementos do Hip Hop e, assim, foi estabelecida a ligação entre o coro e as cenas. Realizamos os ensaios gerais com todas as cenas e coros. Os últimos, inclusive, foram realizados já com figurino, música e iluminação (únicos recursos cênicos utilizados em nossa montagem). Sobre a nossa concepção cênica não imaginamos a criação de um cenário específico com uma linguagem visual, pictórica e arquitetural, optamos pela inexistência de elementos ilusórios e nos propomos apresentar uma encenação possível de ser feita em qualquer situação e local. O figurino também foi concebido em grupo e optamos pela utilização de calças jeans, com camiseta preta grafitada de branco consoante um dos elementos do Hip Hop e tênis. A concepção coreográfica do coro foi discutida em grupo, porém elaborada por uma coreografa. Sobre a maquiagem decidimos pela sua exclusão. Não objetivamos criar uma máscara através de uma pintura colocada no rosto do ator, escolhemos a neutralidade e a naturalidade, onde cada participante aparecesse com seu próprio rosto e sua identidade para que sejam reconhecidos como atores cujo propósito é representar tipos característicos de sua comunidade. A Iluminação utilizada foi básica para a visibilidade da cena, não para criar efeito subjetivo e nem atmosferas, nem para suscitar emoções na plateia. Conclusão Para concluir esse artigo resgato minha intenção de partir da teoria brechtiana para quem o teatro tinha o objetivo de estimular o senso crítico, em busca de um teatroeducativo numa perspectiva emancipatória e complexa. Buscar este elo entre a arte e a sociedade, na tentativa de promover o crescimento do ser humano, não é fruto da modernidade e nem da globalização. Platão com seus escritos, por exemplo, nos remete a problemas sociais e trata-os com a oralidade e a comunicação mesmo que trabalhando em bases imaginárias. Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. Nas atividades realizadas com o teatro, há características que podem viabilizar a construção de um sujeito participante, com um olhar crítico e complexo diante da realidade, produzindo novos discursos e promovendo mudanças na sociedade em que está inserido. Creio que esta seja uma forma de contribuir com a construção das possibilidades de incorporação de novos discursos e práticas voltadas para a formação da autonomia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. A poética. São Paulo: Ed. Nova Cultura, 1999. (Coleção Os pensadores) BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico: um estudo sobre Brecht. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1). BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1975. BONFITTO. Matteo. O ator compositor. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002. BORNHEIM, Gerd A.A estética do teatro. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda., 1992. BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro - Bertolt Brecht. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. ________.Teatro completo em 12 volumes/ V.3; tradução Fernando Peixoto, Renato Borghi e WolfgngBader. 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