Modernidades em confronto Carlos Alberto Pereira Silva (Cacá)* A implantação da ditadura civil-militar, derivada da deposição do presidente João Goulart ocorrida em 31 de março de 1964, completará cinco décadas no próximo ano. Na atualidade, devemos priorizar a reflexão acerca daquele processo, porque as suas consequências multidimensionais ainda são cotidianamente sentidas em nossa sociedade. Entretanto, para refletirmos sobre a ditadura civil militar, precisamos compreender o contexto anterior à sua implantação, cuja característica fundamental foi a propagação das ideias e práticas vinculadas à modernidade que seduzia e encantava distintos segmentos sociais existentes nessa nação mestiça. Entre 1946 a 1964 vivenciamos uma sinuosa experiência democrática que é reconhecida por muitos estudiosos como sendo a “fase populista” da nossa história republicana. Durante aquela época, aconteceram intensas mobilizações sociais e calorosos debates sobre os rumos civilizatórios que o nosso país tropical deveria seguir para transformar-se numa “grande nação”. Convergentemente, quase todos os letrados, desde os ativistas políticos até os homens e mulheres envolvidos com o mundo da arte, desejavam que o Brasil superasse o “subdesenvolvimento” e entrasse no clube das nações ditas civilizadas. Movidos por essa obsessão, muitas pessoas não perceberam que, ao acolherem um conceito fabricado externamente, estavam interiorizando um olhar exógeno e sedimentando a autocolonização do nosso imaginário. No que diz respeito ao universo político, naquele tempo, em um dos blocos, por mim denominado de lado A, estavam heterogeneamente nacionalistas, trabalhistas, reformistas, socialistas e comunistas. Num outro bloco, intitulado de lado B, estavam udenistas, controvertidos liberais e velhos integralistas. Fascinados com as perspectivas modernizadoras, numa época em que a modernidade já dava sinais de crise nos países materialmente desenvolvidos, ambos, o lado A e o lado B, apostavam na modernidade ocidental como verdadeira panaceia para a resolução dos antigos e novos problemas civilizatórios. Assim, sem distinção, os dois lados defendiam a industrialização como forma de produção portadora de incontáveis positividades. Sacralizavam a ciência, como instrumento cognitivo responsável pelo alcance de verdades incontestáveis. Endeusavam a vida urbana que era encarada como sinônimo de progresso social. Faziam apologia do trabalho como dimensão central da existência. Encantavam se com a técnica moderna ao depararem com a difusão das “maravilhas” estampadas nos novos artefatos tecnológicos. E, ilusoriamente, acreditavam na possibilidade de controle das forças da natureza e na inesgostabilidade das riquezas naturais. Entretanto, mesmo possuindo estas convergências fundamentais, o lado A e o lado B eram portadores de enormes diferenças que os colocavam em campos opostos durante aquele período. Assim, ainda que todos fossem apologistas da modernidade ocidental, o lado A singularizava-se por defender uma modernidade includente, enquanto o lado B insistia na defesa da concretização de uma modernidade essencialmente excludente. Em consonância com a busca de uma modernidade includente, o lado A, no qual estavam nacionalistas, trabalhistas, socialistas e comunistas, defendia reformas sociais e políticas que fossem capazes de garantir maior equidade social e ampliar a participação popular no processo político. Reforma agrária, aumento dos salários dos trabalhadores, limitação das remessas de lucros enviados ao exterior, nacionalização de empresas, adoção do voto para os analfabetos eram demandas difundidas na sociedade e, algumas delas, acolhidas pelos governos. O lado B, onde estavam os representantes dos grandes empresários e latifundiários, quase sempre, defendia tenazmente o alinhamento econômico e cultural do Brasil aos Estados Unidos da América. Tanto era assim que muitos exclamavam: “o que é bom para os americanos é bom para o Brasil”. Avessos às reformas sociais, incontáveis fazendeiros organizavam-se para o combate à possibilidade de realização de uma reforma agrária que pudesse contrapor o seu secular domínio. Politicamente, controvertidos liberais, ao defenderem a democracia apenas por conveniência, muitas vezes questionavam resultados eleitorais desfavoráveis para eles. Este lado, pela defesa da implementação de uma modernidade excludente, tornou-se conhecido como entreguista, conservador e de direita. Neste contexto, caracterizado pela configuração de convergências e antagonismos entre segmentos sociais díspares, é que ocorrem os embates políticos que tiveram como desdobramento a implantação da ditadura civil- militar no ano de 1964. Vitorioso, através da força das armas, o lado B buscou transformar-se num único lado para executar autoritariamente ações em sintonia com o seu projeto de modernidade excludente. Porém, essa é outra, e a mesma, história... * Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor Departamento de História e Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade.