História e Economia Revista Interdisciplinar História e Economia Revista Interdisciplinar 1 2 História e Economia Revista Interdisciplinar História e Economia Revista Interdisciplinar História e Economia Revista Interdisciplinar 3 HISTÓRIA E ECONOMIA - revista interdisciplinar. Brazilian Business School. - v. 6, n. 1, (2010). - São Paulo: Meca Comunicação, 2010 Semestral ISSN 1808-5318 1. História - Periódicos 2. Economia - Periódicos 3. Finanças Periódicos 4. Brasil - Periódicos I. Brazilian Business School. CCD 330.981 4 História e Economia Revista Interdisciplinar Expediente História e Economia Revista Interdisciplinar BBS – Brazilian Business School Editor: John Schulz Vice-editor: Adalton Francioso Diniz Secretaria-geral: Roberta Barros Meira Conselho editorial: Adalton Franciozo Diniz (Faculdade Cásper Líbero;PUC- SP) • André Villela (EPGE/FGV) • Antônio Penalves Rocha (USP) • Carlos Eduardo Carvalho (PUC/SP) • Carlos Gabriel Guimarães (UFF) • Flavio Saes (USP) • Gail Triner (Rutgers University) • Jaime Reis (ICS - Universidade de Lisboa) • John Schulz (BBS) • Jonathan B. Wight (University of Richmond) • José Luis Cardoso (ICS - Universidade de Lisboa) • Marcos Cintra (Unicamp) • Pedro Carvalho de Mello (ESALQ) • Renato Leite Marcondes (USP/Ribeirão Preto) • Ricardo Feijó (USP/Ribeirão Preto) • Steven Topik (University of California Irvine) • Vitoria Saddi (INSPER) Agradecimento aos pareceristas externos: Roberto Guedes Ferreira (UFRRJ) Angelo Alves Carrara (UFJF) Luciana Suarez Lopes (USP) Maurício Medici Metri (UFRJ) Maria Lúcia Lamounier (USP) José Flavio Mota (USP) Paulo Baia (PUC - SP) Rogério Arthmar (UFES) Agnaldo Valentim (USP) Projeto gráfico e arte: Meca Comunicação Estratégica – Tel. 55 11 2447-0681 Apoio editorial: Denise Freitas Diagramação: Valter Luiz de Freitas Tiragem: 1.000 exemplares Impressão: Neoband BBS – Brazilian Business School Al. Santos, 745 – 1º andar – São Paulo – SP – Brasil Tel. 55 11 3266-2586 – Fax 55 11 3289-3345 [email protected] – www.bbs.edu.br História e Economia Revista Interdisciplinar 5 6 História e Economia Revista Interdisciplinar Sumário Apresentação O momento de História e Economia The moment of História e Economia Conselho editorial.....................................................................................................................................9 Nota do editor Editor’s note Roberta Barros Meira.............................................................................................................................11 Artigos A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco (1758-1778) Clara Farias de Araújo.............................................................................................................................15 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro, na finalização do tráfico de escravos, na década de 1840. Marcia Naomi Kuniochi.........................................................................................................................27 Um periódico em defesa da indústria nacional: análise da Tribuna Militar (1881-82) Guillaume Azevedo Marques de Saes....................................................................................................51 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century: Maria Heloisa Lenz................................................................................................................................67 Padronização técnica no Brasil: História e mecanismos de governança Sandra Milena Toso Castro Acosta / Victor Pelaez................................................................................87 Roteiro para submissão de artigos....................................................................................105 História e Economia Revista Interdisciplinar 7 8 História e Economia Revista Interdisciplinar O momento de História e Economia The moment of História e Economia O País e as Disciplinas D e proporções continentais, o Brasil se fechou em si mesmo ao longo da segunda metade do século 20. A industrialização tardia do País materializada sob a forma de substituição de importações foi o tema dominante nesse período. Durante a última década, entretanto, a visão do Brasil mudou de forma significativa. Tal episódio teve também repercussão na academia, observando um movimento no qual tanto a “esquerda” quanto a “direita” passaram a buscar novas idéias de fora do País. Os historiadores e economistas procuraram entender o mundo inclusive em áreas nas quais o Brasil possuía pouco contato prévio. Atualmente, a Coréa do Sul e a Índia podem ser modelos para o Brasil. Neste ínterim, o Brasil, que liderou o mundo em termos de crescimento econômico por diversas décadas e, recentemente, superou um processo de pré-hiperinflação, tem muito a contar para o mundo. Ao nosso ver, História e Economia é um fórum multilinguístico para estudiosos brasileiros e de outros países. Também entendemos que esta revista é uma forma na qual os pesquisadores do Brasil podem expressar suas experiências a acadêmicos e demais interessados no exterior. Os estudos interdisciplinares estiverem em voga, no mínimo a partir da publicação dos Annalles em 1929. Os historiadores, em sua grande maioria, apesar de serem influenciados por idéias de áreas distintas, raramente produzi- The Country and the Disciplines O f continental proportions Brazil looked predominantly inwards throughout most of the second half of the twentieth century. Import substitution and autarky dominated thinking accross the political spectrum. Over the past decade the outlook changed dramatically with both the “left” and the “right” searching outside for new ideas and for material fulfillment. Historians and economists seek to understand the world including areas with which Brazil had little previous contact. Today South Korea and India may be role models and are at least “benchmarks” for Brazil. Meanwhile Brazil, which led the world in economic growth for a number of decades, and which recently overcame near hyperinflation, has something to tell the rest of the world. We view História e Economia as a multilingual forum for both Brazilian and international scholars. We also see our journal as a means by which Brazilian researchers communicate the Brazilian experience to academics and other interested parties abroad. Interdisciplinary studies have been in vogue at least since the appearance of the Annales in 1929. In practice, historians, although influenced by ideas from many fields, rarely undertake research in conjunction with scholars trained in other disciplines. Collective studies tend to be by groups of historians. Brazil has a História e Economia Revista Interdisciplinar 9 ram trabalhos em co-autoria com acadêmicos de outras disciplinas. Esforços coletivos tendem a incluir apenas historiadores. Esta revista pretende ser um fórum de propagação de idéias inovadoras de historiadores e economistas. De fato, o Brasil tem um grande número de economistas cujos trabalhos de história econômica possuem reconhecimento internacional e contribuíram para o avanço da história. Tal tradição teve início nos anos 50 com Celso Furtado, senão antes. Assim, usando da credibilidade desses acadêmicos brasileiros, o intuito da revista é o de estimular a pesquisa e a comunicação por acadêmicos das duas disciplinas. A revista abarca três áreas: história econômica geral, história financeira e história das idéias econômicas. Em história financeira incluímos moeda, instituições e instrumentos financeiros e finanças públicas. A história das idéias econômicas abrange as adaptações que economias, como as do Brasil e de Portugal, terminaram por implementar no pensamento econômico tradicional. Será por meio do encontro entre história e economia e do Brasil com o mundo que esta revista deverá fazer sua contribuição. Conselho editorial 10 História e Economia Revista Interdisciplinar large number of outstanding economists whose work on economic history is recognized around the world. This tradition started with Celso Furtado in the fifties if not earlier. We intend to take advantage of this existing situation to encourage research and communication by scholars of both disciplines. História e Economia dedicates itself to three areas: General Economic History, Financial History and the History of Economic Ideas. Within Financial History we include money, financial institutions and instruments, and public finance. The History of Economic Ideas encompasses the adaptations that relatively backward economies, such as Brazil and Portugal, have made of economic thought from the “advanced” countries. It is on the intersections of history and economics and of Brazil and the world where we wish to make our contribution. Editorial board Nota do editor Editor’s note E ste número espera elucidar aspectos da história e da economia no Brasil e na Argentina durante os séculos XVIII ao T his number hopes to elucidate aspects of history and economics in Brazil and Argentina from the 18th to the 20th XX. centuries. O primeiro trabalho desta edição é sobre uma empresa de comércio privilegiada no nordeste do Brasil: A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco (1758-1778) de Clara Farias de Araújo. Contrariamente a recente historiografia, que vê as companhias como uma criação do marquês de Pombal, a autora mostra que esta instituição servia aos interesses da comunidade empresarial local, o que permitiu o enriquecimento de muitos moradores da colônia. The first work of this edition is on the privileged trading company of Northeastern Brazil: A Companhia Geral de Comercio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco (1758-1778) by Clara Farias de Araújo. Contrary to earlier historiography, which sees the company as a creature of the marquess of Pombal, this author shows that this institution served the interests of the local business community permitting the enrichment of many residents of the colony. Nossa colaboradora freqüente, Marcia Naomi Kuniochi, nos dá outra visão sobre a vida comercial em meados do século 19 no Rio de Janeiro: Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro, na finalização do tráfico de escravos, na década de 1840. Ela demonstra que as parcerias mudavam frequentemente e defende que a comunidade de comerciantes ingleses perdeu importância relativa em comparação com outras comunidades estrangeiras com o fim do comércio de escravos. Em um tema que o nosso editor, John Schulz, tratou em seu livro “O Exercito na Política” (Edusp, 1994), Guillaume Azevedo Mar- Our frequent contributor, Marcia Naomi Kuniochi, gives us another insight into commercial life in mid-19th century Rio de Janeiro: Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro, na finalização do tráfico de escravos, na década de 1840. She demonstrates that partnerships changed frequently, and she relates the feeling that the English merchant community lost relative importance compared to other foreign communities with the end of the slave trade. In a theme that our editor, John Schulz, addressed in his O Exercito na Politica (Edusp, 1994), Guillaume Azevedo Marques de Saes discusses the pro-industrial views of the Brazil- História e Economia Revista Interdisciplinar 11 Nota do editor ques de Saes, discute a pré-indústria na visão do exército brasileiro no tempo da Tribuna Militar, 1881-1882: Um periódico em defesa da indústria nacional: análise da Tribuna Militar. Nesse momento, o corpo de oficiais evoluiu progressivamente e passou a ser um elemento importante nos assuntos brasileiros. The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century: The Major Role of the English Companies de Maria Heloiza Lenz discute a relação entre campanha militar, ferrovias e interesses ingleses na consolidação da Argentina. Os objetivos políticos estratégicos para a formação da nação eram afinal tão importantes como os aspectos estritamente econômicos para o desenvolvimento do sistema ferroviário, ao contrário do que a historiografia tradicional mantém. Finalmente, para o período contemporâneo temos Padronizacão técnica no Brasil: História e mecanismos de governança, de Sandra Milena Toso Castro Acosta e Victor Pelaez. Os autores examinam a criação e transformação das principais instituições públicas e privadas de normas técnicas. Em agosto de 2010, patrocinamos um seminário sobre o câmbio no qual dois exdiretores do Banco Central, Arnim Lore e Celina Arraes, deram palestras. Em 1989, durante a incumbência do Dr Lore, o Banco Central criou o “Cambio Flutuante”, que fez a moeda brasileira conversível pela primeira vez em sessenta anos. Dr. Arraes, que deixou o Banco Central recentemente, desempenhou um papel importante no sentido de facilitar a liquidação comercial no MERCOSUL. Desejamos que as transações comerciais, em breve tornem-se livres como as operações financeiras tornaram-se desde os tempos do Dr. Lore. O seminário também contou com várias apresentações sobre os aspectos his- 12 História e Economia Revista Interdisciplinar ian Army at the time of Tribuna Militar, 18811882: Um periodico em defesa da indústria nacional: análise da Tribuna Militar. By this time, the officer corps had evolved into an important and progressive element in Brazilian affairs. The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century: The Major Role of the English Companies by Maria Heloiza Lenz discusses the relationship among military campaigns, railroads, and British interests in the consolidation of Argentina. Strategic political goals of nation formation were at least as important as narrow economic considerations in the development of the rail system, traditional historiography to the contrary notwithstanding. Finally, for the contemporary period, we have Padronizacão técnica no Brasil: História e mecanismos de governanca , by Sandra Milena Toso Castro Acosta and Victor Pelaez. The authors examine the creation and transformation of the principal public and private institutions for technical standards. In August of 2010, we sponsored a seminar on foreign exchange in which two former directors of the Central Bank, Arnim Lore and Celina Arraes, gave talks. In 1989, during Dr Lore’s incumbency, the Central Bank created the “Cambio Flutuante” which made the Brazilian currency convertible for the first time in sixty years. Dr Arraes, who left the Central Bank recently, played an important part in facilitating the settlement of Mercosul trade in the currency of the regional group’s members. We hope that trade transactions will soon become as free as financial transactions have become since Dr Lore’s days. The seminar also featured several presentations on historical aspects of foreign exchange that we shall publish in the near future. We also look forward to playing a continuing role in providing a forum for the discussion of tóricos do Câmbio que iremos publicar em um futuro próximo. Pretendemos continuar com o papel participativo provendo um fórum de discussão para a Revista sobre políticas cambial e de comércio. exchange and trade policies. História e Economia Revista Interdisciplinar 13 14 História e Economia Revista Interdisciplinar A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco (1758-1778) Clara Farias de Araújo Professora e Doutoranda no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ; [email protected] Resumo Este trabalho pretende analisar alguns aspectos do funcionamento da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba (1758-1778) em relação à dinâmica comercial de Pernambuco, uma vez que a Companhia tentou regulamentar o comércio das respectivas capitanias. Sabendo que a Direção da Companhia em Pernambuco era composta por homens de negócio da capitania, intenta-se verificar como a concessão do comércio exclusivo das capitanias com todos os seus distritos possibilitou aos homens de negócio acionistas e membros da Direção a formulação de mecanismos de acumulação, aspecto da atuação da Companhia ignorado por uma historiografia que interpretou o seu papel apenas como parte das medidas de reforço do pacto colonial empreendidas pelo Marquês de Pombal durante o governo de D. José I. Palavras-chaves: homens de negócio, Companhia, Pernambuco Abstract This work intends to analyze some aspects of the operation of the General trading Company of Pernambuco and Paraíba (17581778) in relation to the dynamics commercial of Pernambuco. A traditional historiography views the companies role as part of the measures to reinforce the colonial pact undertaken by the Marquês of Pombal during the government of D. José I. Knowing that the Board of Directors of the Company in Pernambuco was composed by business men from the captaincy, we attempt to show that the exclusive privilege to trade in these colonies was utilizes by these directors to made their fortunes. Key words: business men, Company, Pernambuco História e Economia Revista Interdisciplinar 15 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco Em carta ao secretário de Estado, enviada em 12 de março de 1759, o governador da capitania de Pernambuco Luís Diogo Lobo da Silva se pronuncia a favor da instalação da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba, vista como único instrumento capaz de solucionar os problemas do comércio e da agricultura, que na sua opinião se acham em decadência em razão da concorrência entre os homens de negócio preocupados com “injustos e usurários interesses”.1 N a exposição do governador, justificase a instalação da Companhia nos proventos que estabelecimentos semelhantes já tinham se mostrado capazes de exibir em outras nações e na limitação dos ganhos de particulares, que sanaria os efeitos negativos da liberdade do comércio. Narrando os obstáculos encontrados a tal empreendimento, o governador os imputa a resistência dos homens de negócio da praça de Pernambuco desejosos em manter a liberdade do comércio, que nem os privilégios e as graças oferecidas aos acionistas originários foram suficientes para convencê-los a abandonar os dez, vinte e vinte e cinco por cento de juros com que eram beneficiados. Aos quais tentou persuadir publicando um Bando que não excedesse os juros de cinco por cento, tendo como resposta de alguns a ameaça de cobrar as dívidas de quem se tornasse sócio. (AHU, PE, 12 de março de 1759) Ao mesmo tempo, evidencia a necessidade do capital dos negociantes para a sua realização: “o quanto me seria custoso conseguir a vergonhosa quantia que importa o cômputo de todas as suas entradas”. (AHU, PE, 21 de fevereiro de 1759). A vergonhosa quantia de que fala o governador é de cento e vinte contos e quatrocentos mil réis (120:400$000), valor das 1 A afirmativa se baseia em estudo das hierarquias mercantis em Pernambuco no século XVIII realizado atualmente para a produção da Tese de Doutorado. 16 História e Economia Revista Interdisciplinar primeiras trinta e duas ações. A Companhia constituiria um corpo político com uma Junta e duas Direções. A Junta estabelecida em Lisboa, contaria com um provedor, dez deputados, um secretário e três conselheiros; as duas Direções, uma no Porto e a outra em Pernambuco, seriam formadas por um intendente e seis deputados. (AHU, PE; Viana, 1946) Embora seu argumento se paute na resistência dos homens de negócio da praça, em outro momento menciona a entrada voluntária de João Bernardo Gonzaga ex-ouvidor da capitania, João Rodrigues Colaço juiz de Fora da mesma, João de Oliveira Gouvim, Manoel Correia de Araújo, Luís Pereira Viana, Henrique Martins, Luís da Costa Monteiro, Manoel Gomes dos Santos, José Vaz Salgado, Luiz Ferreira Moura e Antônio Álvares, alguns dos principais homens de negócio da capitania. Assim, formava-se a primeira Direção: intendente, João de Oliveira Gouvim e deputados, Antônio José Souto, Antônio Francisco Monteiro, Antônio Pinheiro Salgado, Francisco Xavier Fetal, José Bento Leitão, Luís da Costa Monteiro, Manoel Gomes dos Santos, Manoel Correia de Araújo. Se a composição da Direção não obedecia estritamente o critério de entrada voluntária, reproduzia o topo da hierarquia mercantil de Pernambuco.(Carreira, 1982, 281-302; Ribeiro,2004, 83)2 As palavras do governador expressam a ambigüidade criada em torno do estabelecimento da Companhia. A regulamentação das atividades mercantis voltadas para o comércio ultramarino, que compreendia também a troca de gêneros para o abastecimento interno, moderaria os ganhos excessivos de particulares provenientes da 2 Artigo 1 do alvará de instituição da Companhia de Pernambuco e Paraíba. Posteriormente acrescidos de seis para oito o número de deputados em Pernambuco. liberdade do comércio. Por outro lado, a Companhia era formada pelo capital e pela ação dos negociantes, ou seja, particulares. O dissenso não esteve restrito às atividades da instituição. A análise do alvará de instituição confirmado em 13 de agosto de 1759 e da representação dos homens de negócio da praça do Recife anexada a um ofício de 12 de março de 1759 revelou disparidades, principalmente no que concerne aos privilégios. O alvará favorecia a Junta em Lisboa e a Direção no Porto e a representação, mais afeita à praça do Recife, requisitava vantagens e distinções para aqueles que entrassem com avultadas somas. No alvará de instituição, à Junta competia o governo e disposição geral, enquanto as Direções tinham autonomia para decidir sobre os negócios relativos as suas instâncias, consultando a Junta nas matérias e negócios de maior importância, que não fossem do seu expediente. Os homens de negócio da praça do Recife detalhavam outra organização administrativa: cujo número para o comércio de Lisboa deve ser de sete, dois para terem a seu cargo os despachos, e vendas de todas a fazendas, dois para as compras, e carga de todos os efeitos, dois para assistirem as despesas dos navios, se a Companhia os compreender, um administrador geral que há de receber as contas de todos para as fazer lançar nos livros, que se hão de destinar para com toda a clareza se dar conta; e se a Companhia compreender também o comércio da Costa da Mina, Angola e Sertão serão mais seis homens de negócio, dois para administrarem cada um dos ditos comércios. (AHU, PE) Os treze homens receberiam “ao menos a comissão de dois por cento de tudo o que venderem, e outros dois por cento de todas as remessas que fizerem”. (AHU, PE). Quanto aos cargos, não há disposição similar no alvará, mas quanto às comissões, o artigo vinte e nove determinava que o intendente e deputados em Pernambuco levassem dois por cento apenas nas vendas a bruto realizadas nas capitanias de Pernambuco e Paraíba, sem que tirassem comissão das remessas para o reino. Aos acionistas originários eram concedidas graças e privilégios. habilitando-os sem dispensa para receberem os hábitos das ordens militares, aposentadoria ativa, e passiva exonerando-os dos ofícios de Justiça, cargos, e encargos da República e alardes, e dando-lhes a natureza do vínculo, capela, ou prazo, além do interesse de quinze por cento de seus capitais, e dos mais que podem provir no bom êxito desta negociação (AHU, PE)3 Além dos privilégios referendados no estatuto, concedidos aos acionistas originários e àqueles que entrassem com ações no valor de dez mil cruzados para cima, os homens de negócio da praça do Recife peticionaram a Sua Majestade outras prerrogativas relacionadas à composição da Direção. Que os homens de negócio moradores na praça do Recife de Pernambuco que entram com ações de 10.000 cruzados4, e daí para cima são os que devem administrar os cabedais da dita Companhia, e para as primeiras três frotas serão nomeados pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor governador e capitão general, preferindo os mais antigos e inteligentes no negócio. (grifo nosso) (AHU, PE) Eles pleiteavam restringir o acesso à administração dos cabedais e os incentivos aos mesmos que podiam dispor desta condição. Que os que entrem com ações de 10.000 cruzados, e daí para cima lhes será permitido mandarem vir o que lhes forem necessário para o ministério de suas casas dando-se-lhes livres, como as religiões, e aos Senhores bispo, governador, e ministros. (AHU, PE) Nas vozes dos coevos, aos quais 3 No estatuto, artigos 43, 44 e 57. 4 quatro contos de réis. História e Economia Revista Interdisciplinar 17 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco de modos distintos e em proporções desiguais tocaria a atuação da instituição, há um dilema aparentemente inconciliável entre as atividades da Companhia e a liberdade do comércio, mas se a Companhia asseguraria o exclusivo comercial a quem este beneficiaria? A que ramos do comércio desenvolvidos na capitania? A interpretação que descreve o período de funcionamento da Companhia como de instituição do monopólio, oposto ao período antecedente de liberdade do comércio se insere num conjunto de interpretações sobre as relações Brasil-Portugal, que opõe indivíduo e sociedade. Numa linha inaugurada por Caio Prado Júnior e seguida por Celso Furtado e Fernando Novais a busca por um ‘sentido da colonização’ originou um modelo que explicava as relações metrópolecolônia no contexto da acumulação primitiva de capital, fase do capitalismo comercial e o Brasil apenas pela perspectiva das relações econômicas com Portugal. Nesta interpretação, a performance e o devir da sociedade colonial obedeciam a um sistema, no qual sua razão de ser era a produção de excedente para o mercado europeu, concebendo-se pouca ou nenhuma margem de ação para os coloniais e reduzindo-se os atores sociais a meros agentes econômicos. Essas leituras se inserem num quadro de interpretações do Brasil formatadas na década de 80 e algumas delas estendidas aos dias atuais. Pautavam-se no paradigma dual metrópolecolônia, modelo único para pensar as relações entre um e outro espaço, não levando em consideração a eficácia dos instrumentos de controle e dominação e a reprodução dos mesmos nas práticas sociais, assim como não atentavam para a complexidade das performances dos atores em questão. Neste panorama são incluídos alguns dos estudos sobre a Companhia. Ao caracterizarem 18 História e Economia Revista Interdisciplinar suas funções e as relações entre seus associados e outros agentes ora, apóiam-se em um modelo pré-concebido de subordinação das áreas coloniais, em que toda decisão da Coroa estreitava os laços de dominação, ora, em sentido complementar, são superdimensionadas para designar as relações metrópole-colônia, identificando os comerciantes metropolitanos como os únicos habilitados a realizar o monopólio, cuja ação inibia ações particulares de outros agentes mercantis, reforçando leituras antagônicas da relação Portugal-Brasil. Esses estudos se limitavam a vê-la como expressão das políticas pombalinas, enquadrando-a num modelo hegemônico de análise. António Carreira citando Luís Viana Filho (1946,55), declara que com a descoberta das minas, houve um maior incentivo ao tráfico realizado na Costa da Mina, resultando numa intensa corrida ao mercado de gente. A concorrência ocasionou a decadência do comércio na região, obrigando o “Governo” a intervir. Desde então, criaram-se inúmeras medidas restritivas ao comércio entre a Bahia e a Costa da Mina e por ser importante moeda de troca no comércio com a região, o tabaco viria a ser matéria de ordens régias que visavam regular o comércio do produto. De outro modo, os negociantes criaram formas de burlar tais medidas.5 Como aponta o parágrafo acima, a relação entre “Governo” e negociantes era dinâmica. Em 1743, uma ordem régia limitou a vinte e quatro o número de navios da Bahia e Pernambuco que poderiam ir anualmente à região. Para compensar o menor número de viagens, os negociantes optaram pela construção de embarcações maiores. Em 1756, em decisão contrária, libera 5 Carreira toma o comércio de Pernambuco com a Costa da Mina como uma extensão do comércio entre a Bahia e a região. A consulta a outros registros revela que a preocupação da Coroa não se dirigia à concorrência entre os comerciantes da Bahia, mas à saída de ouro e tabaco fino num momento em que a região estava sob domínio holandês. o comércio com a Costa da Mina, provocando a reação de comerciantes abastados detentores dos privilégios deste ramo do comércio, os quais requerem a criação da Companhia Geral da Guiné em troca de benefícios ao Erário Régio. Segundo Carreira, a companhia não chegou a ser fundada, porque Pombal já pensava no estabelecimento da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba como providência para intervir nos interesses dos negociantes da Bahia. Ora dito explicitamente, ora nas entrelinhas, para Carreira, com essa providência, os homens de negócio de Lisboa e do Porto se impuseram aos da Bahia, lê-se como uma imposição-punição por se excederem nas liberdades do comércio. Ribeiro Jr. expondo os mesmos eventos, afirma que apesar dos projetos coloniais que pretendiam instituir companhias, a Companhia de Pernambuco e Paraíba foi criada nas bases determinadas pela metrópole sob a influência de mercadores reinóis, como forma de incentivar o comércio com Angola e evitar o comércio entre negociantes coloniais e holandeses e ingleses na Costa da Mina. O reforço do tráfico com Angola, argumenta Carreira, em retração do realizado com a Costa da Mina, que favorecia holandeses, ingleses e iniciativas privadas, nomeadamente dos negociantes da Bahia, restituiria recursos desviados para nações estrangeiras. Ribeiro Jr. retrata uma postura que se opunha à burguesia mercantil estabelecida em Pernambuco, mas que num segundo momento é absorvida. Explorando aspectos distintos, os autores compartilham a perspectiva de melhorias e incrementos ao comércio trazidos pela Companhia6 e reafirmam a tese de dependência da colônia, na qual o tráfico aparece como recurso 6 Ribeiro Jr oferece dados do tráfico nos períodos de 1742-1760 e 1761-1779. Para os outros produtos da capitania, açúcar, couros, atanados e meios de sola só tem informações para o período de funcionamento da Companhia. que reforça a dependência dos agentes coloniais frente aos comerciantes metropolitanos.7 Ribeiro Jr. buscando a gênese do subdesenvolvimento brasileiro em suas raízes coloniais encontra na Companhia, criada aos moldes da metrópole, a melhor expressão da subordinação da colônia e um instrumento para revitalizar o pacto colonial no contexto da acumulação primitiva. Na linha explicativa que insere as companhias de comércio8 na política de reforço do pacto colonial, Francisco Falcon caracteriza-as como expressão do mercantilismo, pois asseguravam o monopólio do comércio colonial em suas zonas de ação e canalizavam os lucros daí advindos para uma minoria de comerciantes metropolitanos, seus principais acionistas. Na leitura de Falcon assim como na de Braudel, as companhias eram manifestações do mercantilismo na sua forma mais característica, já que nelas se fundiam interesses públicos e proveitos privados, Estado e particulares. Todavia, para Ribeiro Jr. a burguesia mercantil estabelecida em Pernambuco não era capaz de impor-se aos ditames metropolitanos. Aproximando-se das concepções de Falcon e Ribeiro Jr, Érika Dias afirma a importância da capitania de Pernambuco para justificar ser esta, alvo da política mercantilista de reforço do pacto colonial empreendida pelo Marquês de Pombal. Conquanto não limitem o poder de ação a uma instituição supra-individual, o “Governo”, ou a um indivíduo sui generis, no caso Pombal, o conferem somente aos agentes metropolitanos, cujo poder de ação era determinado por sua po7 Uma vez que no Pará e Maranhão, a função da Companhia era incentivar o tráfico e a substituição da mão-de-obra doméstica, ou seja, indígena inviabilizada por questões relacionadas à indefinição quanto aos mecanismos de escravização e legitimação da condição escrava do índio. 8 Fazendo referência a Oriental, a do Grão-Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba. História e Economia Revista Interdisciplinar 19 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco sição no sistema. O exame das políticas empreendidas por Pombal é parte de uma historiografia, que contempla o período pombalino como um marco de mudança, cujos desdobramentos puseram fim ao Antigo Sistema Colonial. O objeto de análise de Falcon não são as companhias monopolistas e sim o estabelecimento de uma correspondência entre as teorias e práticas que nortearam a política-econômica e a política-ideológica durante a época pombalina, e desta forma, as companhias de comércio criadas durante este período são entendidas apenas como parte da política comercial e colonial. Admitindo um paradoxo entre idéias, imagens e ações na política pombalina, Keneth Maxwell afirma que a atividade da Companhia garantiu a reafirmação do pacto colonial, na qual se reforçava um comércio triangular, descrito da seguinte forma, a matéria-prima era embarcada nos navios da Companhia para a metrópole, onde era manufaturada e o produto final retornaria para o consumidor colonial, que o comprava com o crédito da Companhia. O visconde de Carnaxide ao escrever sobre o Brasil na administração pombalina inclui as companhias entre as medidas protecionistas adotadas pelo Marquês, motivadas, na interpretação do visconde, pela obsessão do mesmo pelos ingleses e pelo desejo de livrar Portugal de sua influência. Dada a estreita relação das funções que a empresa assumiria na capitania relativas ao comércio exclusivo e o debate que se instaurou em torno da liberdade do comércio, torna-se indispensável situá-lo nas práticas dos atores envolvidos para entender de que forma atuaram os homens de negócio de Pernambuco em seu in- 20 História e Economia Revista Interdisciplinar terior. Os autores até então apresentados exploram a tese de que o estabelecimento reforçou o exclusivo comercial entre metrópole e colônia, possibilitando “em tese” o acúmulo primitivo de capital pela transferência de excedente para os comerciantes metropolitanos. Um olhar sobre o estatuto permite contrastar tal imagem, dada a concessão de privilégios aos acionistas originários e de maiores benesses ao intendente e deputados, membros da Direção, que era composta por grandes comerciantes de Pernambuco. O que se pretende investigar são as possibilidades auferidas pelos cargos de Direção e de que forma o acesso a tais cargos viabilizou o comércio exclusivo das capitanias concedido à Companhia. Transpondo uma história institucional imóvel, preocupa-se com os que a compunham e se/como a inserção/pertencimento modificava sua ação e a relação com outros agentes coloniais. Entre os obstáculos encontrados, Luís Diogo Lobo da Silva descreve a resistência de alguns negociantes à instalação da Companhia. Na correspondência produzida durante o funcionamento da Companhia buscarei nomear as razões que fundamentavam os ataques de seus opositores e a defesa de seus aliados, a fim de delinear alguns aspectos funcionais e as jurisdições que assume. Em 27 de janeiro de 1751, Sua Majestade determinou que o preço do açúcar fosse arbitrado pelos fabricantes. Contudo, contrariando a decisão régia o intendente e deputados obrigaram os mesmos na safra de 1763 a pagar o subsídio de setenta réis no branco e trinta no mascavado em cada arroba, ao que se opôs a Mesa de Inspeção,9 9 Em primeiro de abril de 1751, são instaladas Casas de Inspeção ou Mesas de Inspeção nos principais portos das capitanias do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão. As Mesas de Inspeção assumiam a função de incrementar a produção de gêneros com grande receptividade nos mercados europeus, sobretudo o tabaco e o açúcar, incluindo a expedição e taxação. já que todas as despesas até a balança10 eram custeadas por eles.11 (AHU, PE, 12 de novembro de 1763) Desta safra em diante, a Mesa de Inspeção acrescenta duzentos réis a cada arroba de acordo com a qualidade do açúcar. A Direção não aceita pagar o acréscimo e elabora um Edital, no qual declara que os senhores de engenho e lavradores poderiam carregar as caixas de açúcar por sua conta. Por sua vez, os produtores recusam as condições da Direção e em resposta retém as caixas. A falta de caixas obriga a Direção a completar a carga dos navios da frota com paubrasil e couros em cabelo e inviabiliza a carregação do navio Rainha com destino ao Porto, dado não haver consumo no local para os ditos gêneros. Assim resume a Direção as divergências com a Mesa da Inspeção, senhores de engenho e lavradores. Todavia nas queixas levadas por Inácio Medeiros à Corte, surgem outras motivações para explicar a postura irredutível dos produtores de açúcar.(AHU, PE)12 No tempo do comércio livre, grande parte das caixas era comprada a dinheiro de contado,13 o preço era arbitrado pela Inspeção e os compradores arcavam com o subsídio e todas as despesas referentes às caixas. Depois de 1760, época em que a Companhia já funcionava, 10 Além das despesas com a fabricação, encaixotar e o transporte. As caixas de açúcar saíam dos engenhos em carros com destino aos trapiches dos portos da marinha, de lá, eram conduzidas em canoas, “em poder de pretos somente” e em barcos que as levavam para os navios. Registro de uma carta, que o Senado da Câmara desta vila do Recife, escreveu a Sua Majestade Fidelíssima sobre o que nela se declara. Recife, 17 de junho de 1769. Registro de Cartas, fl. 336v. Na balança, o açúcar era pesado e a sua qualidade analisada. 11 Recife, 12 de novembro de 1763. Ofício da [Mesa de Inspeção da capitania de Pernambuco] sobre a alteração feita pelos deputados da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba nos preços do subsídio do açúcar, obrigando os fabricantes a pagarem muito mais altos tais subsídios. 12 Pernambuco, 28 de maio de 1770. Ofício da Mesa da Inspeção ao provedor e deputados da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, sobre as várias queixas feitas pelos senhores de engenho contra a mesma, e que Inácio de Medeiros parte para a Corte levando consigo vários requerimentos e queixas na tentativa de denegrir a imagem da Companhia. 13 À vista. o preço estabelecido pela Mesa não é respeitado, compram-se as caixas com rebate de cem a cento e sessenta réis, transfere-se o pagamento dos subsídios dos compradores para os produtores e se institui um fiscal com poderes para contestar o preço e a qualidade atestados pela Mesa. Dentro do panorama de modificações empreendidas pela Companhia e onerosas aos produtores, a baixa na produção em 1763, seguindo-se o acréscimo de dois tostões no valor de cada arroba, valor que a Direção não se submeteu a pagar, assinala a dificuldade de diálogo entre Mesa, produtores de açúcar e Direção. A Mesa tenta conciliar os interesses da Direção e dos produtores, mas nem o risco de perda do açúcar, nem os juros corridos nas dívidas com a Companhia os persuadiam a entregar as caixas. A postura inflexível dos produtores questiona a subordinação dos fabricantes à Direção e por outro lado, que o disposto no parágrafo trinta não era suficiente para garantir a liberdade dos fabricantes: quando as ditas vendas, e permutações se não puderem concordar à avessa das partes, ficará sempre livre aos senhores dos gêneros fazêlos transportar por sua conta a estes reinos. (Carreira,1982,292)14 Quando os fabricantes embarcavam as caixas, o faziam na situação inaugurada pela Companhia, pagando além dos subsídios, a terça parte dos rendimentos do engenho para pagamento do empréstimo obtido para o seu apronto. O impasse continua e a Direção escreve ao juiz conservador da Companhia, que comunica ao governador Manuel da Cunha Menezes o atraso no carregamento dos navios, que ordena a entrega das caixas. (AHU, PE, 30 de abril de 14 Parágrafo 30 do Alvará de instituição. História e Economia Revista Interdisciplinar 21 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco 1769) A decisão do governador reafirma o peso da Companhia no jogo de forças. O açúcar, na informação da Câmara de Olinda, é o gênero por excelência para se obter avultadas somas. As caixas alcançavam um alto preço no comércio exterior, aceito pelos compradores porque pago em fazendas também supervalorizadas. Mesmo assim, o prejuízo não recaía sobre os deputados e nem sobre a Companhia, era repassado aos compradores na capitania, lucrando os primeiro até quarenta e cinco por cento. “Eis aqui um dos motivos porque os gêneros que vão para Pernambuco vão mais carregados no preço, do que os que vão para os portos livres”. (AHU, PE, 13 de fevereiro de 1878) Neste ponto, cogita-se sobre a liberdade dos produtores em vender suas mercadorias, em razão de serem consignadas à Companhia e da possibilidade dos deputados fazerem lances nos açucares em Lisboa através de seus correspondentes. Quanto aos gêneros e fazendas da Europa, além dos preços excessivos cobrados, estes não se compatibilizam com os preços ínfimos com que compram os efeitos da terra, diminuídos em seu valor, porque boa parte deles era dada em pagamento de dívidas anteriores. Entre os aspectos mencionados, um assume maior vulto. As remessas feitas pelos produtores podiam ser pagas com letras do Erário. Apesar das poucas referências, cogita-se numa estratégia da Direção, já que recebiam as dívidas integrais do Erário, enquanto eram defasadas com os produtores. A Companhia se tornou um instrumento para que o intendente e deputados controlassem o preço dos gêneros, o que só podiam fazer porque controlavam o circuito de entrada e saída de mercadorias. A liberdade dos produtores era prejudicada por não receberem líquido por seus 22 História e Economia Revista Interdisciplinar efeitos. A posição de membros da Companhia possibilitava a formulação de estratégias para a obtenção de lucro, incluindo a participação em contrabando. O conde de Povolide, governador da capitania, descreve rotas de contrabando amparadas por associados, que eram responsáveis pela introdução de fazendas secas por negociantes da Bahia e pela extração de gêneros da capitania, cujo comércio envolvia a carregação de caixas de açúcar. (AHU, PE) Apesar de toda a legislação para evitar o contrabando e findar a ação dos comissários volantes e da fundação da Companhia, como uma das iniciativas para organizar o comércio da capitania, a Junta denuncia a ação de comissários dentro da Companhia, oficiais dos navios que levavam fazendas desembarcadas no porto do Recife, que não pagavam frete, nem direitos e eram seladas no Recife. O contrabando é que tem destruído, e destrói o comércio geral, porque de Lisboa se introduz aqui inumeráveis fazendas sem despacho pelos mesmos navios da Companhia. Este contrabando leva quantas meias dobras há na terra, e ouro velho, que podem adquirir para a Bahia e Rio de Janeiro vai o dinheiro provincial, para se empregarem em fazendas, que se introduzem nesta praça por contrabando; e chegam a ter selos falsos, com que as selam, por se não fazer tão manifesto o contrabando, a quem os compra, e torna a vender. (AHU, PE, 13 de fevereiro de 1778) Leonor Freire Costa aventa a possibilidade da ação dos comissários estar relacionada a situações de maior risco no mercado e que além de uma posição inferior na hierarquia interna do grupo mercantil, a que Sebastião de José de Carvalho erroneamente caracterizou por “mercadores falidos e endividados” e Roquinaldo Ferreira de pequenos comerciantes, esses agentes comporiam uma rede que interligava emissores e receptores, envolvendo grandes comerciantes. Ao ter em mente a separação entre agência fixa e móvel, Jorge Borges de Macedo inclui a proibição aos comissários volantes nas medidas que pretendiam reduzir o comércio a uma minoria predominante e privilegiada. No caso de Pernambuco, o intendente, deputados e outros homens de negócio vendiam mercadorias contrabandeadas que ao serem seladas, eram incorporadas ao circuito legal. Tal constatação enfraquece a distinção entre interesses metropolitanos e coloniais elaborada por Érika Almeida, já que os homens de negócio dentro da instituição aparentemente representariam os interesses dos primeiros, mas pertenciam à sociedade local. Ao definir primorosamente o comércio de longa distância como uma “organização propensa a comportamentos oportunistas”, Leonor Freire Costa explica a permanência de performances durante o funcionamento da empresa, que ganham conotação negativa e delas não escapa a Direção. Depois da chegada dos primeiros navios e tirarem algumas fazendas da Alfândega por satisfazerem as queixas costumam por modo de pregão anunciar a todos os que ali chegam que quem quiser ver a carregação a veja sobre uma mesa a quem a tem exposta: e indo algumas pessoas examiná-la e escolhendo algum gênero que lhe convinham se lhe respondia que já não havia o dito gênero. (AHU, PE, 17 de fevereiro de 1771) O estatuto que deveria regular as atividades da empresa ou estabelecer uma nova organização das operações comerciais não era capaz de coibir as irregularidades, que não se atinham ao uso dos navios da Companhia ou às atividades dos mestres e oficiais. Os componentes da Direção eram os primeiros a desrespeitar o estatuto, como Luis Ferreira Viana, que possuía uma loja pública com um caixeiro na sua própria casa. (Carreiras,1982,292)15 Em Pernambuco, a maior visibilidade do contrabando se insere no momento de concessão do comércio exclusivo das capitanias à Companhia. Se a Companhia foi criada com o fito de limitar lucros e juros, afastar a influência de estrangeiros, evitar contrabandos e aumentar as rendas reais, na prática os contrabandos são engrossados com a participação da Direção e acionistas e a relaxação relativa a procedimentos que deveriam coibir. Foi de se apropriarem os referidos deputados de todos os gêneros, e efeitos que daqui se lhes remeteram, de os repartirem a crédito pelos seus parentes, amigos e associados; de os tomarem eles mesmos debaixo de nomes alheios para com eles negociarem, e de acumularem por estas forma a importantíssima dívida, que esses habitantes estão devendo à Companhia. (AHU, PE, 10 de agosto de 1778) Inácio de Medeiros acusa os deputados de usarem a instituição para beneficiar a si e a seus partidários. (AHU, PE, 20 de janeiro de 1771) Carreira não descarta a existência de um negócio realizado pelos próprios agentes, feito paralelamente ao desta. O mesmo governador tão empenhado em arregimentar homens de negócio para a Companhia, denunciaria a grande remessa de caixas de açúcar por parte dos administradores, que o faziam por sua conta, e a quantidade diminuta que ia pela mesma. (AHU, PE, 11 de fevereiro de 1761). (AHU, PE, 11 de fevereiro de 1761) Todavia em trecho do mesmo documento, compreende-se o incômodo do governador. O problema não era que a Direção se apropriasse dos benefícios provenientes dos gêneros comer15 Parágrafo 33- (...) fazendo-se sempre as ditas vendas nos armazéns da Companhia, e nunca em tendas, ou casas particulares. História e Economia Revista Interdisciplinar 23 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco cializados pela Companhia, mas sim qual o gênero escolhido para isso, o açúcar. 24 dizendo que eu da parte da Companhia me animava a segurar-lhes não seria do desagrado da Direção dessa Corte, que eles fizessem seus os interesses, que proviessem dos referidos dois gêneros, contanto, que lhes cedesse os das caixas correspondentes ao custo de seu valor nesta praça. (AHU, PE, 11 de fevereiro de 1761) te intendente e deputados, Antônio José Souto, Antônio Francisco Monteiro, Antônio Pinheiro Salgado, João de Oliveira Gouvim, Francisco Xavier Fetal, José Bento Leitão, Luís da Costa Monteiro, Manoel Gomes dos Santos, Manoel Correia de Araújo, entre eles, apenas Luís da Costa Monteiro não aparece como carregador de caixas. (AHU, PE, 17 de junho de 1761) Em outro ofício produzido no mesmo ano, identifica-se qual o motivo da importância atribuída pela Direção às carregações de açúcar em 1761. Neste momento, eram respectivamen- O governador e o estatuto previam limites aos ganhos dos acionistas, entretanto os cargos de Direção disponibilizavam outros instrumentos, acrescendo-lhes além do estabelecido. História e Economia Revista Interdisciplinar Bibliografia ALMEIDA, Érika Simone de. O fim do monopólio: a extinção da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1770-1780). CFCH, Dissertação de Mestrado, 2001. BRAUDEL, Fernand. 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Ofício do [governador da capitania de Pernambuco], conde de Povolide, [Luís José da Cunha Grã Ataíde e Melo], ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre as transgressões ocorridas no que se refere a comercialização de mercadorias naquela capitania, sem ser pela Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba. 21 de fevereiro de 1759. _____.Ofício do [governador da capitania de Pernambuco], Luís Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre os motivos do História e Economia Revista Interdisciplinar 25 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba e os homens de negócio de Pernambuco atraso para a instalação da Companhia de Comércio na dita capitania. Recife, 12 de março de 1759, AHU, PE, cx. 90, d. 7214. _______.AHU, PE, cx. 109, d. 8444. Ofício ao [secretário de estado do Reino e Mercês], conde de Oeiras, [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre os motivos de algumas pessoas, na capitania de Pernambuco, estarem injuriando a Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba. _______.AHU, PE, cx. 110, d. 8515. Recife, 20 de janeiro de 1771. Ofício de Inácio de Medeiros sobre os fatos ocorridos entre a Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba e os comerciantes da capitania de Pernambuco. ______.AHU, PE, cx. 95, d. 7494. Recife, 11 de fevereiro de 1761. Ofício do [governador da capitania de Pernambuco], Luís Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre as desconfianças dos senhores de engenho e lavradores de cana para com a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba e a falta de assistência da dita Companhia para com os mesmos. ______.AHU, PE, cx. 110, d. 8526. Recife, 17 de fevereiro de 1771. Ofício de Inácio de Medeiros sobre as irregularidades cometidas pelos deputados da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba referente ao trato com a comercialização do açúcar. ______.AHU, PE, cx. 96, d. 7536 Recife, 17 de junho de 1761. Recife. Ofício do [governador da capitania de Pernambuco], Luís Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de estado do Reino e Mercês], conde de Oeiras, [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre as queixas feitas pelo intendente e deputados da direção [da Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba] a respeito das irregularidades da eleição feita pelos negociantes para o cargo de Inspetor da Mesa da Inspeção. ______.AHU, cx. 128, d. 9737. [Lisboa], 13 de fevereiro de 1778. Ofício (cópia) da Junta da Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba ao [governador da capitania de Pernambuco], José César de Meneses, sobre não ter culpa a dita Junta das irregularidades cometidas pelos administradores da referida Companhia, que não zelaram como era devido pelos interesses comuns do povo e da Junta. ______.AHU, PE, cx. 130, d. 9832 1778, agosto, 10, Queluz. Ofício (minuta) do [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], ao [governador da capitania de Pernambuco], José César de Meneses, sobre os abusos da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, a falta de responsabilidade e capacidade de seus deputados de gerirem a mesma, e da culpa que tem pela decadente situação em que se acham as diferentes classes de habitantes desta terra. RIBEIRO JR. Colonização e monopólio no NE brasileiro. A Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). Col. Estudos brasileiros, 3. SP: Hucitec, 1976. Viana Filho, Luís. O Negro na Bahia. Rio de Janeiro: Livraria José Olimpio Editora, 1946. 26 História e Economia Revista Interdisciplinar Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro, na finalização do tráfico de escravos, na década de 1840. Marcia Naomi Kuniochi Professora adjunta da FURG [email protected] Resumo A partir da década de 1830, o fornecimento de crédito por comerciantes estrangeiros, principalmente ingleses, no tráfico de escravo, se dava por meio da venda em consignação e parcelamento dos pagamentos. Em razão disso, foi fundamental a pressão inglesa para limitar o prazo de pagamentos, em 1848, para que a finalização definitiva do comércio de africanos para o Brasil. Palavras-chaves: crédito, tráfico, comerciantes ingleses Abstract From the 1830s, the supply of credit by foreign traders, mainly British, in the slave traffic, was through sales on consignment and installment payments. As a result, was essential the British pressure to limit credit in 1848 was necessary to eliminate thetrade of Africans to Brazil. Key words: credit, trade, English merchants História e Economia Revista Interdisciplinar 27 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... C om a maioridade de D. Pedro II, no início da década de 1840, o Brasil tinha pela frente o desafio de solucionar questões ainda pendentes, que haviam propiciado a instabilidade política e social, que prevaleceram nas Regências. Dentre essas questões, a continuidades do tráfico de escravos ainda criava problemas nas relações internacionais e dificultava a constituição e fortalecimento do Estado imperial. Em contrapartida, a economia ganhava corpo com a expansão da lavoura cafeeira e ainda mantinha a produção de uma gama variada de produtos, - o que era novidade para o país -, e a que também se atribuía a força política das províncias frente ao governo central, na primeira metade do século XIX, sendo que parte dessa produção era sustentada pelo comércio do tráfico de escravos, que trouxe dividendos significativos para a elite brasileira. Por sua vez, o crescimento da produção acarretava mais demanda por mão-de-obra, o que fortaleceu cada vez mais a convicção de que esse vil comércio não tinha data definida para o seu término, mesmo que ilegal. Essa situação se confrontava com a resolução da Inglaterra de exterminar o tráfico e a escravidão do mundo ocidental. Por isso, era crucial para os britânicos renovar o tratado comercial de 1827, que havia marcado a ilegalidade desse comércio a partir de 1831. Se houve quem acreditou na obediência a essa resolução, logo ficou claro que não seria tarefa fácil por fim a tão rendosa atividade. Ao longo da década de 1830, o comércio de escravos se reestruturou e essa reformulação permitiu fazer frente às investidas dos cruzadores ingleses, que passaram a atuar cada vez mais na perseguição dos navios negreiros. 28 História e Economia Revista Interdisciplinar Luís Henrique Dias Tavares aponta que determinadas alterações no padrão de comercialização foram cruciais para a retomada do comércio de africanos. (Tavares, 1988, 124-125) Dentre essas alterações, ele destaca a concessão de longos prazos de pagamento, que condicionava o acerto de contas somente após o retorno dos navios, a salvo dos cruzados ingleses. Esse alongamento foi estendido também para os proprietário de terras, que tinham, a curto prazo, disponibilidade de expandir a produção, mas que, a longo prazo, a chance de perder seus bens por dívidas tornou-se uma realidade amarga. Isso mostra que a participação mais efetiva de negociantes ingleses, por meio do fornecimento de mercadorias mediante o prolongamento dos prazos de pagamento, foi fundamental para a manutenção desse comércio, mesmo tendo como principal oponente dessa atividade a própria Inglaterra. Em sua monumental história sobre o tráfico no Atlântico, Hugh Thomas confirma a existência de “british goads” nos navios do Rio de da Bahia, que foram apreendidos por cruzadores britânicos, justamente para explicar a fúria de fazendeiros e negociantes contra o Tratado de 1827, que tornara ilegal o tráfico de escravos. (Thomas, 2006, 607) Eram justamente essas mercadorias que propiciavam a emissão e manipulação dos papéis comerciais, que eram usados para satisfazer as necessidades de crédito dos intermediários mercantis, cuja gama de negócios, que empresariavam, era articulado pelo uso de instrumentos ágeis, que serviam ao mesmo tempo para conectar diferentes negócios, entre localidades diversas e mundos diferentes, sem o uso de dinheiro. Braudel define crédito, em Civilização Material, como uma “troca de duas prestações diferentes no tempo: eu lhe presto serviço, você me reembolsa depois”. Entre os mercadores, isso acontece quando se compra o trigo na planta aos camponeses, ou a lã dos carneiros antes da tosquia; mas é principalmente para as letras de câmbio que vale o princípio: o sacador de uma letra sobre uma praça qualquer, por exemplo, no século XVI numa feira de Medina del Campo, recebe imediatamente dinheiro, o pagador será reembolsado em outra praça, três meses mais tarde, conforme o câmbio do momento. Cabe-lhe garantir o seu juro, calcular os riscos. (Braudel, 1995, 431) O Islã, muito antes que o Ocidente, dispunha de prestamistas judeus e utilizou os instrumentos de crédito, entre os quais a letra de câmbio, desde o século X. Foi somente no século XIII, que o Ocidente descobriu a letras de câmbio, como meio de pagamento de longo alcance, que atravessou o Mediterrâneo em toda a sua extensão. Mais tarde, com o endosso, esses papéis ganharam maior agilidade e passaram a circular, de mão em mão, de feira em feira, com maior facilidade, a que os franceses chamariam de change e rechange, e os italianos de ricorsa. Na prática, esses processos significavam um alongamento do crédito. Como afirma Braudel: “Tudo é crédito, isto é, promessa, realidade a prazo”. (Braudel, 1995, 132-136) A isto o autor nomeia como “jogos de dinheiro que só se jogam na escrita”. Citando um relato datado do início do século XIX, Braudel descreve transações realizadas por comerciantes franceses nas Índias que davam aos ingleses suas letras sobre Paris, a seis meses de vista. Essas letras representavam os lucros do comércio francês nas Índias, regularmente repatriados por banqueiros parisienses, que honravam as letras cedidas aos ingleses. É claro que tudo isso era feito desde que a transformação de rupias em libras inglesas fosse favorável aos participantes, tanto no plano comercial como no cambial. (Braudel, 1995, 124) Além disso, essas operações foram exploradas no comércio de longo curso, que cria sobrelucros: “joga com os preços de dois mercados afastados entre si e cuja oferta e procura, ignorando-se mutuamente, só se encontram por intervenção do intermediário”. O comércio de longa distância significa riscos, porém mais ainda lucros excepcionais. Dentre outros exemplos, Braudel comenta sobre os “ganhos fantásticos” de mercadores portugueses no Peru, Buenos Aires, e Brasil, nos séculos iniciais da exploração colonial: “Basta a distância para criar as condições banais e cotidianas de um sobrelucro”. Ainda sobre esses setores especiais da vida econômica condicionados pelo alto lucro, sempre que, sob o impacto da própria vida econômica, há uma dessas modificações, um capital ágil vai ao seu encontro, instala-se, prospera. Note-se que, regra geral, ele não os criou. Essa geografia diferencial do lucro é uma chave para compreender as variações conjunturais do capitalismo, que balança entre o Levante, a América, a Insulíndia, a China, o tráfico negreiro, etc. (Braudel, 1995, 124) Dessa maneira, quando se depara com as pressões inglesas, principalmente, na década de 1840, para dar fim ao tráfico de escravos, é importante lembrar que se trata de uma atividade de alta lucratividade que envolvia agentes mercantis das mais diversas origens, como poucas vezes se viu na história mundial. Isso explica a presença de uma importante comunidade de negociantes ingleses e de outras nacionalidades no Rio de Janeiro, considerado o principal centro das atividades negreiras do período. Para dimensionar a presença de comerciantes ingleses e de outras nacionalidades História e Economia Revista Interdisciplinar 29 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... no mercado do Rio de Janeiro é interessante verificar o alcance dos privilégios desfrutados por eles, garantidos pelo mesmo tratado. Esses privilégios passaram a ser questionados, no Brasil, à medida que crescia o sentimento anti-britânico, insuflado pela ação cada vez mais violenta contra navios negreiros e pela violação do território brasileiro para apreensão de africanos. Dessa forma, este artigo tem como objeto investigar as firmas estrangeiras que atuavam no Rio de Janeiro, de 1842 a 1857, por meio dos anúncios publicados no Jornal do Comércio. Esses anúncios trazem informações principalmente sobre a constituição, organização e extinção das firmas, assim como de qualquer alteração ou problemas que envolviam a empresa ou seus interessados. Primeiro devem ser analisadas as tentativas infrutíferas de renovação do tratado comercial entre o Brasil e a Inglaterra, abordando com maior ênfase as questões ligadas às cláusulas que envolviam os privilégios especiais, desfrutados pelos estrangeiros no Brasil, e a relação e influência dessa situação com o andamento dos negócios estrangeiro no mercado do Rio de Janeiro. A segunda parte contém informações obtidas nos anúncios de jornal sobre as firmas estrangeiras e a discussão sobre a importância do crédito e dos negociantes estrangeiros para a manutenção dos negócios relativos ao comércio de escravos. Privilégios e direitos de negociantes estrangeiros no Brasil, na década de 1840. Quando discute o declínio da preeminência política inglesa no Brasil, Alan K. Manchester dedica uma atenção especial à questão da abolição dos privilégios especiais que desfruta- 30 História e Economia Revista Interdisciplinar vam os negociantes ingleses. O autor afirma que, na época da renovação dos Tratados de 1810 e 1827, na primeira metade da década de 1840, a crítica mais veemente dos brasileiros para com a Inglaterra era dirigida aos “privilégios extraterritoriais e a restrição à soberania de nação”. Em 1827, “a Inglaterra garantiu a continuação do direito centenário de manter juízes conservadores ou magistrados especiais, a quem estavam afeitos os casos envolvendo os súditos britânicos”. (Manchester, 1973, 245) Mesmo após a promulgação do código criminal, em 1833, os ingleses se recusaram a renunciar ao privilégio extraterritorial. Um outro privilégio era o: direito garantido aos cônsules ingleses de não apenas administrarem os bens dos súditos britânicos que morressem no Brasil sem ter feito testamento, mas também de assinar licenças para descarregar e deixar os portos, e de dirigir queixas às alfândegas, no mesmo pé de igualdade que os administradores nativos. (Manchester, 1973, 245-246) Para o autor, somente em terceiro lugar viria a objeção à taxa máxima de importação de 15%. Na época, a crítica aos britânicos, segundo Manchester, era menor no que se referia ao desejo de enfraquecer o comércio da Inglaterra com Brasil, ou diminuir seus investimentos de capitais e iniciativas dentro do país. Esse grau de importância às tarifas alfandegárias não costuma ser referendado pela historiografia brasileira. Há um certo exagero por parte daqueles que afirmam que a tarifa Alves Branco, de 1842, teria como finalidade proteger a indústria no Brasil. Mesmo assim, ao discutir a pré-indústria fluminense, de 1808 a 1860, Geraldo de Beauclair afirma que “seria impossível ocultar” um “sentido protecionista que nela quis (sic) imprimir”, sendo que a tarifa de 30% teve o intuito “de proteger o setor secundário”, mesmo que acessório. (Beauclair, 1987, 104105) Nícia Vilela Luz concorda que havia um pensamento protecionista envolvido, “tendo em vista, porém, que a finalidade precípua dos direitos aduaneiros era prover rendas ao Estado”. (Luz, 1975, 24) Para justificar a ênfase na abolição dos privilégios especiais que desfrutavam os negociantes ingleses, Manchester relata a epopéia que foram as tentativas britânica de renovar o tratado comercial com a Inglaterra, na década de 1840, e descreve o clima anti-britânico, que se avolumava com as discussões sobre a pressão inglesa contra o tráfico de escravos, que dificultou de sobremaneira o diálogo entre os dois governos. A ameaça de intervenção armada era agravada pelo tom assumido pelo Ministério do Exterior de Londres, dada a conotação de desdém, conforme realça o autor, semelhante a assumida a “outras nações não-civilizadas”. da renovação do tratado, interessados somente na garantia dos “direitos individuais das pessoas e dos bens dos súditos britânicos, em igualdade com outras nações no Brasil”. Eles alegavam que as mercadorias inglesas vinham pagando 21%, sendo que algumas até 40%, e acreditavam que o Brasil não subiria mais ainda essas taxas. Além disso, não “estavam preocupados em manter as cortes conservadoras, pois, como disseram, os comerciantes de outras nações não estavam sofrendo injustiça na aplicação da lei, embora só os britânicos tivessem o privilégio da jurisdição extraterritorial”. (Manchester, 1973, 249) Os negociantes ficariam satisfeitos com um “simples tratado de reciprocidade, com uma cláusula de nação mais favorecida”, o que já achavam que seria difícil de obter diante a animosidade dos brasileiros, por causa das ações violentas dos cruzadores britânicos contra o tráfico de escravos. O primeiro-ministro Aberdeen enviou, em 1842, a primeira proposta de renovação do tratado, não passando de uma mera reprodução do antigo, de 1827, acrescido da imposição da abolição da escravatura. Esta última questão vetava qualquer acordo, por parte dos brasileiros. Em vista disso, logo foi oferecido alternativas sobre as questões comerciais, sem alusão à escravidão. Mesmo assim, o governo brasileiro recusou negociar, fazendo com que a Inglaterra recuasse e oferecesse a simples prorrogação do tratado existente. Em janeiro de 1843, a Assembléia do Brasil propôs igualdade de condições entre as mercadorias brasileiras e as das colônias britânicas, que garantiriam a livre entrada do açúcar e do café brasileiro na Inglaterra. Isso significava o fim de qualquer negociação. No final de 1843, o ministro brasileiro em Londres apresentou dois projetos: um de comércio e o outro de limites. O primeiro já era considerado inaceitável pela Inglaterra, e o segundo apresentava ainda maiores dificuldades em razão das polêmicas na fronteira das Guianas e com as Ilhas da Trindade. Um segundo emissário foi enviado ao Brasil, recepcionado com pompa pelo Imperador, porém teve de enfrentar o ódio do público e da imprensa, assim como foi recebido com animosidade pelos ministros brasileiros. A negativa de Aberdeen aos dois projetos ainda estava justificada pelo fim da escravatura no Brasil, ainda mais que o açúcar das colônias britânicas estava sendo produzido por mão de obra livre. Em uma terceira e última tentativa, antes da expiração do tratado, em novembro de 1844, Aberdeen concedeu aceitar a primeira proposta do ministro brasileiro em Londres; porém, Manchester relata que até mesmo os comerciantes ingleses do Rio não faziam questão História e Economia Revista Interdisciplinar 31 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... uma escalada de apreensões de navios brasileiros impossibilitou qualquer tipo de negociação. Nas províncias, a oposição ao governo brasileiro estava pregando uma cruzada contra o “gabinete e seus aliados ingleses”. Para acalmar os ânimos,em 9 de novembro de 1844, o ministro das Relações Exteriores notificou as autoridades provinciais de que o tratado anglo-brasileiro de 1827 expirara e as cortes conservadores tinham sido abolidas. Dessa forma, o “Ato Aberdeem de 1845” foi o clímax de toda essa situação. Segundo Jaime Rodrigues: tratava-se “de uma lei que autorizava o governo inglês, a julgar os navios brasileiros como piratas, em tribunais ingleses, quaisquer que fossem os locais onde ocorressem as capturas. A lei foi promulgada ignorando os protestos da legação brasileira em Londres”. (Rodrigues, 2000, 115) Toda a imprensa brasileira revidou de forma violenta ao “Ato de Pirataria do Parlamento” inglês, em mais uma intervenção na América do Sul. A partir dessa data, nenhum outro tratado de comércio e amizade foi assinado entre o Brasil e a Inglaterra. Com o término do tratado anglo-brasileiro, afirma Manchester “o governo do Rio estava livre para estabelecer uma nova base para suas relações comerciais com todos os países estrangeiros”. (Manchester, 1973, 253) Muito se discutiu sobre o papel da Inglaterra e a posição do Governo Imperial nesse período. Na História Geral da Civilização Brasileira, a questão é tratada levando-se em conta a importância da conquista da autonomia do Estado, frente às oposições regionais: Os líderes no Rio de Janeiro, e especialmente Pedro II, estavam agora em condições de impor a vontade do governo central de um modo que 32 História e Economia Revista Interdisciplinar até então não lhes fora possível, em virtude das revoltas e perturbações características da vida política brasileira até aquela data. Sem a boa vontade das autoridades brasileiras, é claro que todos os esforços britânicos seriam insuficientes para a consecução do objetivo em vista, a menos que se fizesse a ocupação de fato do território brasileiro. Por outro lado, é certo que a pressão britânica impelira o Brasil a caminhar na direção desejada. Seus líderes sabiam que nenhum governo terá longa duração se não for capaz de impedir a violação dos direitos nacionais. (Holanda, 1865, 143) Se as polêmicas sobre a escravidão foram amainadas com o fim do tráfico, em 1850, das questões pendentes em torno dos tratados internacionais havia ficado uma forma de jurisdição extraterritorial que iria levar anos para ser abolida. Alguns itens dos antigos tratados permaneceram ou tiveram de ser negociados, conjuntamente com diferentes países, porque muitos privilégios haviam sido estendidos para outras nações. Um artigo em especial regulava os interesses comerciais de estrangeiros no Brasil, conforme analisa Alan K. Manchester: Pelo Artigo II do tratado anglo-brasileiro de 1827, os cônsules tinham o direito de administrar as propriedades dos cidadãos dos seus respectivos países, que morressem sem testamento, até o ponto em que as leis de cada país permitissem essa ação. Contudo, as cláusulas que definiam esse direito eram tão vagas, que levantaram inúmeras controvérsias em relação à arrecadação, à guarda e à disposição final das possessões dos súditos britânicos mortos no Brasil; finalmente, a jurisdição consular sobre a propriedade do falecido foi ampliada, a fim de incluir todos os casos de bens deixados por estrangeiros, com ou sem testamentos, ou com ou sem a presença de herdeiros para funcionarem como administradores. O artigo foi interpretado por um enviado inglês no sentido de que os cidadãos britânicos, embora vivendo no Brasil, podiam dispor de suas propriedades estritamente de acordo com as leis da Inglaterra, sem quaisquer referências às leis nacionais do Brasil. (Manchester, 1973, 254) Após o término do tratado, todos os bens dos súditos britânicos passaram a ser administrados pelo juiz dos órfãos, se o falecido não deixasse testamento, ou se não existissem herdeiros ou parentes para administrar o espólio. Por outro lado, os franceses “estavam isentos para sempre de qualquer interferência das autoridades locais, quanto à disposição dos bens deixados pelos seus conterrâneos”. (Manchester, 1973, 255) 1 O governo francês recusou a aceitar o fim dos privilégios e conseguiu manter a jurisdição dos cônsules. O Tratado comercial entre a França e o Brasil fora assinado em 1826, sendo que não havia sido concedido juízes conservadores aos franceses. Mas pelo Artigo IV: Os cônsules obtiveram os mesmo privilégios de proteger os interesses de seus compatriotas, que tinham sido concedidos aos cônsules da nação favorecida. Tiveram assim o direito de recolher, administrar e liquidar as heranças dos cidadãos franceses que morressem sem deixar testamento, sem qualquer interferência das autoridades brasileiras locais. (Manchester, 1973, 255) O governo brasileiro bem que tentou regulamentar a questão, entre 1842 e 1845, publicando regulamentos sobre a “arrecadação e disposição dos bens de pessoas falecidas e de pessoas cujo paradeiro era desconhecido”. Porém, a França protestou e conseguiu isentar seus súditos desta regulação. Tudo se agravou ainda mais quando surgiram os problemas da nacionalidade dos filhos de pais estrangeiros. Todos os países se uniram para negar a perda de cidadania ao filho de um cidadão estrangeiro, caso nascesse no Brasil, re- 1 Em 1860, foi assinada uma convenção consular com a França, que abriu brecha para a Inglaterra retomar o mesmo privilégio, que só seria extinto em 1907. forçando o direito de jurisdição consular sobre a propriedade dessas crianças. Por exemplo, tudo poderia se complicar para uma família estrangeira quando apenas um filho nascia no Brasil; isso fazia com que a jurisdição brasileira pudesse ser estendida a toda a família. Essas pendências legais ainda levariam anos para serem resolvidas. (Manchester, 1973, 259) 2 É interessante acompanhar alguns casos de falecimentos de negociantes estrangeiros, ocorridos ao longo das décadas de 1840 e 1850, para verificar de que maneira essas questões em torno da renovação do tratado entre o Brasil e a Inglaterra repercutiram no cotidiano mercantil. Os primeiros anúncios coletados no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro confirmam a interposição dos cônsules: em 7 de abril de 1843, sai nota de falecimento de José Panza - os credores devem dirigir-se à chancelaria da Sardenha (JC, 07/04/1843)3; em outro caso, sai nota de falecimento do aldenburguez Eduardo Traddiken, no dia 22 de junho de 1844 - os credores devem dirigir-se ao consulado de Bremen(JC 22/06/1844); e um terceiro caso, envolvendo uma mulher, publicado em 4 de setembro de 1845, quando saiu nota de falecimento da Sra Brodart – foi comerciante na rua da Ajuda. O consulado francês chama os credores (JC, 04/09/1844). O mesmo acontecia com cidadãos portugueses, em um curioso caso de fornecimento de crédito, cujo anúncio inicial foi publicado em 31 de julho de 1844: Pede-se e aconselha-se ao Sr. vice-cônsul português Francisco João Moniz e ao Sr. Felippe Joaquim de Freitas, os quais ficaram na posse e administração absoluta do espólio comercial 2 Em 10 de setembro de 1860, finalmente foi regulamenta a nacionalidade de filho estrangeiro, que mantinham a cidadania do pai até completarem 21 anos. 3 Nos anúncios, citados neste trabalho, a ortografia da época foi corrigida. História e Economia Revista Interdisciplinar 33 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... e particular do súdito português Manoel Felisberto de Souza, falecido em 20 de abril de 1841, queiram pagar, no prazo de 8 dias, o que o mesmo falecido ficou a dever a José Bento Leitão por uma letra vencida (...) Alguns dias depois (2 de agosto) (JC, 02/08/1844, 31/07/1844), Felippe Joaquim de Freitas reponde: João José Ferreira de Freitas – genro do Sr. José Bento Leitão – mudou-se de Angra para a Corte sem recursos para se estabelecer. Tentou montar uma fábrica de lustrar seges, contando com a promessa do Sr. Leitão de uma ajuda de 1:500$ rs., com a condição de que aceitasse uma letra daquela importância, endossada por Manoel Felisberto de Souza – amigo de genro e sogro. Mas a morte de Manoel levou a que a quantia deveria ser levantada em espólio. De um total de 2:581$ rs. – deduzido as despesas do funeral, comissão do consulado, prejuízo em uma casa comercial, etc. – sobrou 412$942 rs. O Sr. Leitão quer que o consulado português “entregue aquela importância” até chegar ao valor requerido – 1:500$ rs. O Sr. Leitão parece requerer um quinhão do estabelecimento comercial de que Felippe Joaquim de Freitas era sócio, e este responde que já arcou com um certo prejuízo e aconselha o Sr. Leitão a exigir do aceitante da letra – seu genro (João José Ferreira de Freitas) – a importância que falta. Felippe Joaquim de Freitas acha que o Sr. Leitão foi pago em excesso, pois recebeu do consulado 500$ rs., sendo o líquido do espólio: 412$942 rs., e deve então: 87$058 rs.; além disso, há outros credores, inclusive Felippe Joaquim. É possível verificar que, pelo teor do texto, que o consulado cobrava uma comissão e também adiantava valores a serem pagos, tanto que o segundo anunciante afirma que o valor pago (500$ rs.) foi maior do que sobrou do espólio (412$942 rs.). Deve-se registrar ainda que o falecido, Manoel Felisberto de Souza, tinha sido somente o endossante da letra, por ser amigo de 34 História e Economia Revista Interdisciplinar genro e sogro do devedor, sendo que o sogro é quem cobra do consulado e do administrador do espólio o pagamento da letra, conforme texto do primeiro anúncio. O administrador do espólio, Felippe Joaquim de Freitas, faz acusação ao sogro de seu sócio de pretender se apossar do negócio, ao cobrar uma dívida pelo qual já recebeu o valor de 500$ rs., por parte do espólio do endossante falecido, mesmo que ainda tivesse dívida a receber do sócio e genro do primeiro anunciante, José Bento Leitão. No caso acima, a sociedade complicou a divisão do espólio e pôs em risco o negócio em questão - fábrica de lustrar seges. Em outro caso, a existência de um sócio liquidante podia dispensar a interferência do consulado, mesmo quando tratava-se de estrangeiros. Em dia 6 de outubro de 1845, saiu a nota de falecimento de A.W. Bladh - Henrique Arens – sócio do falecido – dissolveu a sociedade Arens Bladh, e continua por conta própria (JC, 06/10/1845). É possível observar que, com o falecimento de um dos sócios, ocorreu o fim da sociedade e a extinção da firma, ainda mais que era composta por apenas dois negociantes, o sócio restante passou a atuar por conta própria. Quando envolvia grandes empresas, a continuidade da firma podia se dar inclusive sem a mudança da razão social: em 1 de maio de 1845, Miller Le Cocq e C. comunicam que, devido ao falecimento de Pedro Bonamy (fevereiro de 1844), expirou a dita sociedade; uma outra foi formada, sob o mesmo nome, com os sócios: João Le Cocq, Hugh Bain, Manger Smith Collings e Daniel Miller (residente em Londres) (JC 01/05/1845) No anúncio acima, a continuidade dos negócios não parece ter sido dificultada pelo falecimento, uma vez que passou mais de ano da data da morte de Pedro Bonamy para a data da reorganização da firma Miller Le Cocq e C. Outro caso mostra o contrário: mudanças sucessivas de nomes, pelos mais variados motivos: em 1 de janeiro de 1844, Cayrns Astley e Comp. participam que, a partir deste dia, admitiram novos sócios: Francisco Algorri e Guilherme Shepherd. Um ano depois, em 1 de janeiro de 1845, sai nota de falecimento de Nathan Cayrns; Cayrns Astley e C. comunicam que a sociedade foi dissolvida, passando a girar agora sob a firma Astley, Algorri e C., com os seguintes sócios: Eduardo Astley e Diogo Williams, em Liverpool; e Francisco Algorri e Guilherme Shepherd, no Rio de Janeiro. (JC, 01/01/1844; 01/01/1845) Alguns anos depois, em documento assinado por vários negociantes ingleses, aparece a firma Astley Shepherd and Co. (Tavares, 1988, 131-132) Reparem que no comunicado acima, Guilherme Shepherd aparece como sócio no Rio de Janeiro. Outras empresas resolviam alterar o nome, principalmente quando o sobrenome do falecido constava na razão social e a alteração dos sócios obrigava a mudança na identificação da empresa: inicialmente, o anúncio que trata da formação da sociedade - Augusto Klauser, Guilherme Teles Ribeiro e Hermann Tesdorpf - comunicam que, em 1 de janeiro de 1849, formaram sociedade em estabelecimento comercial, sob a firma Klauser, Ribeiro e Comp., que se dedicará ao ramo de comissões. Vários anos depois, no dia 2 de janeiro de 1855, Klauser, Ribeiro e C. participam que a firma deixou de existir devido ao falecimento do sócio Augusto Klauser; os negócios continuam com os sócios: Guilherme Telles Ribeiro, Hermano Tesdorpf e Gustavo Ballauf, sob a firma Ribeiro, Tesdorf e Ballauf. (JC, 01/01/1849; 02/01/1855) Algumas vezes, a manutenção do nome social se dava mesmo quando o sócio remanescente não carregava o mesmo nome, como no caso publicado em 1 de janeiro de 1850, quando saiu a nota de falecimento de Augusto Fernando Ziese, Guilherme Augusto Heyn comunica que continua negócio, sob a firma – Ziese e Comp. (JC, 01/01/1850) Nota-se que a firma carregava apenas o nome do falecido, com o qual devia ser conhecido na praça do Rio de Janeiro, uma vez que a empresa consta, nas tabelas de comércio desta pesquisa, desde o ano de 1843. Um caso de falecimento de um negociante inglês demonstra a familiaridade e o respeito com que alguns nomes são tratados: em um primeiro anúncio, publicado em 3 de janeiro de 1844, em que Naylor Irmãos e Comp. participam os novos sócios: João Pince James e João Orton Omen, desde o primeiro dia do ano. Tudo indica estar ocorrendo uma reestruturação geral da firma porque no dia 15 de janeiro de 1844, Naylor Irmãos e Filho informam que John Normald não tem mais interesse em sua sociedade. Alguns meses depois, foi publicado no dia 8 de junho de 1844, em setor que pode ser correspondido a um tipo de “editorial” do jornal, em que aparece alguns comentários sobre notícias do dia, ficou registrada a nota de falecimento de Jorge Naylor – “um dos mais antigos e mais respeitáveis comerciantes desta praça” – ocorrido a bordo do paquete Limet, em viagem para a Inglaterra, em 08/03/1844. (JC, 03/01/1844; 15/01/1844; 08/06/1844) História e Economia Revista Interdisciplinar 35 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... Todas essas alterações indicam que faziam parte dos preparativos de Jorge Naylor para deixar o Brasil e retornar para a Inglaterra, ainda mais que o falecimento, ocorrido ainda no navio de regresso, ocorreu apenas vinte e quatro dias depois da publicação da última nota de mudança da firma, provavelmente próxima da data da partida do navio. Nos preparativos, ocorreu inclusive a sucessão nos negócios, porque a nova firma passou a trazer o complemento Filho, além de Irmãos. Quando relata os casos sobre remessas de lucros das colônias para os centros financeiros europeus, Braudel (1995, 125) comenta que muitas vezes eram realizadas por meio da remessa de letras. Em função disso, as firmas estrangeiras costumam ter ligações próprias que as relacionem diretamente com as grandes praças cambiais. As sociedades familiares resultam, muitas vezes, na solução mais frequente para estabelecer uma ligação, seja entre irmãos, pai e filho, assim como de casamentos fortuitos, que sacramentavam interesses mercantis. Vale lembrar que Naylor Irmãos e Comp. eram bem conhecidos na praça carioca porque aparece o registro da firma com o nome Naylor, Brothers and Co., no livro sobre o tráfico de Luis Henrique Dias Tavares (1988, 131-132), quando comenta a lista das 21 firmas inglesas do Rio de Janeiro, que passavam um atestado de idoneidade para a defesa de Manoel Pinto da Fonseca, datado de 15 de setembro de 1845. Tavares afirma que, na realidade o atestado estava sendo passado para a firma Carruthers and Co., que estava sendo acusada de participação no tráfico de escravos, da qual era sócio Irineu Evangelista de Souza, futuro barão e visconde de Mauá. Por outro lado, as discussões em torno do tráfico de escravos também justificam os cuidados do experiente negociante Jorge Naylor para 36 História e Economia Revista Interdisciplinar retirar-se da sociedade e, principalmente, voltar para a Inglaterra, em razão do clima nada favorável aos negociantes ingleses, que predominava na praça mercantil do Rio de Janeiro. Inclusive, ele já poderia estar mal de saúde e sua morte, na viagem de regresso, mesmo que no navio, pode ter favorecido todo o processo de inventário, que deve ter ocorrido na Inglaterra. Recentemente, havia ocorrido um rumoroso processo de falência, envolvendo duas grandes firmas inglesas. A primeira notícia foi sobre Warre Raynsford e C., cujo comunicado de falência apareceu publicado da seguinte forma: “achando-se impossibilitados de cumprirem com as suas obrigações, rogam aos seus credores de reunirem-se hoje, 16 de fevereiro de 1843, na sua casa, rua dos Pescadores, às 11 horas da manhã”. Como se tratava de uma grande firma, os efeitos dessa quebra podem ser avaliados pelo anúncio publicado dois dias após o chamado de credores, em 18 de fevereiro: Atento ao falimento da casa inglesa de Warre Raynsford e Comp., com quem grandes transações tinha Ribeiro Silva, suspendeu este os seus pagamentos, e convida os seus credores a reunirem-se em sua casa – rua Direita nº. 125 – ao meio dia de 18 do corrente, para deliberarem o que julgarem conveniente. Novamente, em 8 de março de 1843, são chamados os credores das casas falidas Warre Raynsford e Comp. e de Forbes Valentin e Comp. para apresentarem seus títulos, dentro de 8 dias. A notícia surpreende porque agora duas empresas inglesas aparecem juntas no processo de falência. Forbes Valentin e C. havia comunicado a quebra no dia 17 de fevereiro de 1843, um dia depois do comunicado de Rayns Ford, e anunciam que: não podendo cumprir as suas obrigações com a pontualidade devida, rogam aos seus credores de reunirem-se no dia 21 do corrente, às 11 horas do dia, na sua casa da rua do Hospício nº. 21. (JC, 16/02/1843; 18/02/1843; 08/03/1843; 17/02/1843) fazer anúncios que de certo nem honram seus conhecimentos, nem sua boa fé. E rogam-lhe também que olhe para o estado em que se apresentaram os falidos, que a eles se acha ligado por laços de parentesco muito estreito. Será pois bom que não os procure comprometer. Se alguma demora houver nesta venda, será por algum motivo, mas nunca pelos anúncios de Sua Tanto no anúncio da quebra Warre Raynsford e Comp. quanto na anterior, Forbes Valentin e Comp., não há nenhuma alusão ao consulado inglês, lembrando que todas as discussões acerca da renovação do tratado de 1827 com a Inglaterra ainda estavam em curso, sendo que expiraria somente em novembro de 1844. Isso mostra que as regalias desfrutadas pelos comerciantes ingleses foram cortadas antes mesmo da notificação do fim do tratado anglo-brasileiro de 1827. Senhoria. (JC, 16/05/1843; 18/05/1843) No dia 16 de maio de 1843, foi publicado o protesto do cônsul inglês contra o anúncio de venda em leilão das casas no Caminho Velho de Botafogo, decidida pelos administradores da firma do falido Warre Raynsford e C. O Cônsul: (...) julga dever protestar contra semelhante venda, que será ilegal, tanto por não se achar ainda liquidada a massa da firma falida, como porque, sucedendo estar ausente o referido Sr. Carlos Raynsford, se faz necessário em juízo pelo que diz respeito aos bens de sua propriedade particular para as disposições dos quais não têm nem podem ter poderes legais os denominados administradores: sendo portanto ineficaz e de nenhum vigor qualquer ato de transferência, venda ou arrematação que eles possam passar relativamente aos prédios de que se tratam. Os administradores da falência respondem, dois dias depois [18 de maio], ao anúncio do cônsul britânico, argumentando: que se acham munidos de suficientes poderes para proceder vendas, que seus protestos nada lhes importam; e que bom será que Sua Senhoria procure melhor conhecer o estado das cousas, para o que tem muitos meios, afim de não Sem dúvida, os administradores da falência não se abalaram com o protesto do cônsul da Inglaterra, reafirmando estarem “munidos de suficientes poderes”, rechaçando assim qualquer interferência externa, além do tom de ironia e desdém com que fazem alusão a interesses pessoais, “por laços de parentesco muito estreito”, que estariam subjacentes ao protesto da autoridade inglesa. Muitos anos depois, a venda dos bens de Raynsford ainda estava bloqueada: em 19 de janeiro de 1848, os herdeiros de Jorge Negel Eduardo – Thomaz Alexandre Raynsford e Hamburg Raynsford – pretendem vender casas e chácara no caminho velho de Botafogo, por uma execução contra Carlos Raynsford, cujas propriedades estão embargadas e penhoradas. No dia seguinte, 20 de janeiro, foi publicada a resposta ao anúncio sobre a nulidade da venda dos herdeiros de Jorge Negel Eduardo: as propriedades, no valor de 25:000$ rs., que entraram na massa falida da casa comercial,foram remidas por igual valor e entregues aos administradores, constituindo-se hipoteca delas por essa quantia; logo, a chácara não pertence à massa falida (JC, 19/01/1848; 20/01/1848). Pelas informações acima percebe-se que as propriedades de Carlos Raynsford foram entregues para os administrados e hipotecadas para fazer frente às dividas da empresa. O caso ainda permanecia aberto quase cinco anos depois da publicação do primeiro anúncio de falência. História e Economia Revista Interdisciplinar 37 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... Por fim, a falência dessas duas empresas inglesas mostram que o clima anti-britânico estava prejudicando interesses particulares e o andamento dos negócios. Se essa situação viria a contribuir para reforçar as pressões britânicas para finalizar o tráfico de escravos, pode ter sido à custa de interesses de negociantes ingleses, que eram considerados os maiores interessados no negócio. Tráfico, crédito e negócios estrangeiros no Brasil, na década de 1840 Na década de 40, o ingresso de africanos no Brasil foi mantido, quando não aumentado, apesar de toda vigilância inglesa. Essa atividade mercantil havia passado por alterações, na década anterior, que permitiu a continuidade dos negócios. Luis Henrique Dias Tavares identifica um novo período, em 1833-1834, na dinâmica do tráfico de escravos: “as casas comerciais inglesas passaram a atuar no Rio de Janeiro sobre um comércio de escravos que estava desacorçoado”, ou seja, boa parte dos negócios faziam uso de navios velhos, os traficantes “não tinha[m] capitais para comprar manufaturados e para corromper funcionários brasileiros e cônsules e funcionários de consulados que deviam legaliza cargas e registros navais”. (Tavares, 1988, 126) O autor vê vários motivos para explicar essa decadência: em primeiro lugar, em 1828-1829, os africanos desembarcados excederam a capacidade de compra do Brasil; logo em seguida, entre 1831 e 1833, com a saída de D. Pedro I do Brasil, muitos comerciantes portugueses, quase todos traficantes de escravos acompanharam o monarca para Portugal, levando seus capitais; por sua vez, grupos urbanos acreditaram na implementação da lei de 7 de novembro de 1831 e se opuseram ao tráfico negreiro, dentre 38 História e Economia Revista Interdisciplinar eles, Cipriano Barata, em Salvador. Porém, em 1837-1838, a situação era outra, o comércio de escravos para o Brasil estava atuante e em progresso. Tavares reconhece que a procura de mão-de-obra escrava havia crescido em razão do desenvolvimento da produção cafeeira no sudeste, assim como da produção de fumo, algodão e açúcar, no norte e nordeste do Brasil. Mas ele atribui essa mudança, principalmente, Como resultado dos créditos e dos largos prazos para pagamento concedidos pelas casas comerciais inglesas a comerciantes portugueses e luso-brasileiros que de outra forma não poderiam entrar ou reentrar num circuito de comércio de escravos que se tornava proibido e sofisticado e que exigia agora mais e mais manufaturados, navios rápidos e largos capitais. (Tavares, 1988, 127) É importante ressaltar que o autor referese à entrada de casas comerciais inglesas, que vão ter um papel importante em todo esse processo de reorganização do tráfico de escravos para o Brasil, principalmente no adiantamento de manufaturados, associado à concessão de longos prazos para pagamento. Tavares associou negociantes ingleses com o tráfico com base no relato de um antigo oficial da marinha do Império do Brasil, identificado como Alcoforado, que teria sido informante da Legação da Inglaterra no Rio de Janeiro, cujo texto contém informações sobre “todas as ocorrências de 1831 a 1853” do “infame negócio d’Africanos”, e constam nomes de traficantes e negociantes envolvidos, assim como destrincha de forma detalhada o funcionamento dos negócios. Foi a partir dessas informações que ficou evidente as mudanças ocorridas, em 1833 e 1834, quando comerciantes ingleses no Rio de Janeiro passaram a adotar: a prática de venderem a prazo as mercadorias exigidas para o comércio de escravos (‘a diversos prazos’ escreveu Alcoforado), com o que ‘muitos outros aventureiros tentavão fortunas quando não tinhão Capital seu nem outro meio honesto pelo qual o podessem obter’. Dessa forma, ‘a facilidade do tráfico era tal que facilmente encontravão qualquer especulador que lhes fiava as fazendas’ – quer dizer, os manufaturados de Birmingham, Manchester e Glasgow. (Tavares, 1988, 123-124) Assim, com o tráfico em maior escala, passou a ocorrer o que Alcoforado chamou de “o engodo de comprarem a crédito”, e até mesmo os fazendeiros passaram a comprar escravos por meio do mesmo sistema utilizado pelos comerciantes ingleses para a venda dos manufaturados – “a diversos prazos”, ou com pagamento feito com sacos de café. Na avaliação de Tavares, pelo que conta Alcoforado, “foi um verdadeiro subsídio do capitalismo ao comércio proibido de escravos; praticou-se usualmente no Brasil e em Cuba. Facilitados, assim, os pagamentos se cumpriam a prazos de dois, três e quatro anos, e até mais”. Valendo os mesmos prazos para os fazendeiros: “de dois, três e quatro anos, essas operações todavia oneradas com juros crescentes e garantidas por hipotecas. Temos, portanto, como certo que esse sistema de vendas a crédito e a prazo, sustentado pelas casas inglesas no Brasil até pelos menos 1848, e dos anos 40 em diante pelos norte-americanos, oxigenou o comércio luso-brasileiro de escravos e permitiu a sua manutenção depois de 1831”. (Tavares, 1988, 30) Ao longo da década de 30, as casas comerciais inglesas passaram a facilitar os negócios para comerciantes de escravos sem capitais, a quem Alcoforado “chamou-os ‘de aventureiros”, uma vez que vendiam-lhes a crédito (fiado) os manufaturados exigidos para o comércio de escravos, facilidade que correspondeu a uma verdadeira co-associação, ou co-sociedade, ou subsídio, e à qual ligou-se outra de não menor importância, a concessão de prazos (‘diversos prazos’) para o pagamento das mercadorias fornecidas. (Tavares, 1988, 125) Se na década de 1840 cresceu a pressão inglesa contra o comércio português de escravos, por outro lado, no Rio de Janeiro, os traficantes eram “protegidos pelo comércio inglês”. Hugh Thomas confirma o importante papel desempenhado por negociantes ingleses, na transição do tráfico legal para o ilegal, em 1831, referindo-se a um número significativo de negociantes que se instalaram no Rio de Janeiro, no começo da década de 1830. Segundo Thomas “there continued to be collaboration between slave dealers and British business who often, even now, provided what they knew would be used as ‘trade goods’ for the exchange of slaves in Africa”.(Thomas, 2006, 629) A presença dessa comunidade inglesa no Rio de Janeiro vai contribuir para a introdução de uma outra mudança para os negócio do tráfico: até a década de 1830, o fumo, o açúcar e a aguardente brasileiros ainda valiam bastante nas cargas dos navios negreiros; na nova prática do tráfico, foi estabelecida a prática dos créditos e prazos justamente para fazer frente à exigência de fuzis, mosquetes, pólvora e tecidos de algodão – fuzis, mosquetes, pólvora e tecidos que só eram manufaturados pela Inglaterra. Dessa maneira é com a dominância dos manufaturados que os tradicionais artigos brasileiros do tráfico negreiro vão caindo nele de importância. (Tavares, 1988, 126) Como as vendas dessas manufaturas eram a crédito, o pagamento ficava sob o risco do sucesso ou insucesso do desembarque dos escravos, sendo assim, os comerciantes ingleses eram “os mais interessados que todos na boa finaliza- História e Economia Revista Interdisciplinar 39 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... ção de uma expedição negreira. E isso porque só com o sucesso da venda dos escravos recebiam o pagamento do que haviam vendido a crédito”. Além disso, essa participação do capital inglês no comércio de escravos era operada pelo duplo sistema de créditos e de faturas: emitiam faturas de compra de manufaturados que eram aceitas e descontadas em Londres, Bristol, Liverpool, Nova York, Boston, Baltimore, Hamburgo. Essas operações também eram praticadas por comerciantes alemães e norte-americanos, que praticavam o mesmo sistema de crédito e “igualmente aceitavam faturas que seriam pagas em Nova York, Boston ou Hamburgo”. (Tavares, 1988, 129-130) Tavares ainda informa que as faturas podiam ser pagas com “letras de câmbio cruzadas”, que identifica como uma outra modalidade de “participação do capitalismo no comércio proibido de escravos”. Essas letras eram emitidas pelos próprios negreiros - Don Pedro Balnco, Caetano Nozollini e Francisco Felix de Souza – e eram reconhecidas e honradas nos grandes centros financeiros da Europa e dos Estados Unidos. (Tavares, 1988, 31) Se “letras de câmbio cruzadas” constituem ordens de pagamento ou reconhecimento de dívida, é importante ressaltar que as transações com as letras e papéis comerciais percorrem circuitos mercantis e financeiros – a “solidez do circuito financeiro é evidentemente primordial para as letras, que são uma solução cotidiana dos retornos. Esta solidez depende tanto do crédito pessoal dos correspondentes quanto da possibilidade de ligações eficazes”. (Braudel,1995, 122) Assim, se o negreiro tinha seus papéis reconhecidos na Europa e EUA, isso evidencia a solidez de suas ligações. Para isso, era importan- 40 História e Economia Revista Interdisciplinar te estar conectado com uma gama mais ampla de agentes - uma rede. Segundo Braudel: Toda rede comercial liga uns aos outros certo número de indivíduos, de agentes, pertencente ou não à mesma firma, situados em vários pontos de um circuito ou de um feixe de circuitos. O comércio vive desses revezamentos, dessas cooperações e ligações que se multiplicam como que por si sós com o crescente sucesso do interessado. (Braudel,1995, 125) Do mesmo modo, Tavares ressalta a participação de comerciantes portugueses nesse tipo de atividade financeira, organizados também em redes, muitas vezes internacionais. O autor enfatiza também que são os comerciantes lusos que mais aparecem no comércio proibido de escravos para o Brasil. Isso é corroborado por Pierre Vergé, para a Bahia, que justifica inclusive uma aproximação momentânea entre brasileiros e portugueses para resistirem às pressões inglesas contra o tráfico de escravos. (Verger, 1987, 377) Vergé destaca mudanças introduzidas pelos traficantes para burlar a vigilância inglesa: uma delas foi a adoção de dois passaportes a seus navios: um levava o verdadeiro nome para ir fazer o tráfico lícito de escravos ao sul do Equador, e o outro nome de um vaso, que ficava na Bahia, pertencendo geralmente ao mesmo proprietário para ir fazer o comércio de produtos africanos: óleo de dendê, ouro, marfim e tecidos da Costa da Mina. Um segundo modo de burlar os ingleses era a mudança das bandeiras dos navios, compradas das autoridades portuguesas das ilhas de São Thomé e do Príncipe ou das ilhas do Cabo Verde. Porém, a partir da adoção dos clíperes americanos, foi introduzido o tráfico em dois tempo, que fazia uso de duas embarcações, que podia se dar por dois sistemas: no primeiro, um navio era enviado para a África com carregamento apropriado para comprar os escravos em terra, deixando passar um tempo suficiente para reunir o carregamento de escravos, logo que estivessem reunidos, o mais rápido veleiro americano já chegava preparado com víveres, água e argolas de ferro, e o carregamento era feito em poucas horas; no segundo sistemas, enviava-se o navio ao local de embarque, esvaziava-se os produtos para pagamento e o navio seguia para outro local para reabastecer e se equipar, só voltando ao local de embarque, quando os escravos já estivessem reunidos. (Verger, 1987, 317-426) Luís Henrique dias Tavares confirma essas alterações, principalmente, na década de 1840, quando descreve a formação de uma espécie de mercado quadrangular, Inglaterra-ÁfricaBrasil-Estados Unidos: “os comerciantes ingleses vendiam no Brasil os manufaturados que iam servir para a compra de escravos na África; vendidos os escravos aos fazendeiros, davam curso à comercialização do café, que era comprado e exportado para os Estados Unidos.” (Tavares, 1988, 131). O mesmo relato sobre esses novos procedimentos aparece no texto de Hugh Thomas, para a década de 1830, chamado de “the technique of sending two ship to Africa”. O autor também destaca mudanças na demanda da mãode-obra dos plantadores de café, que tinham preferência por homens jovens, fazendo com que cerca de dois terço a três quarto dos africanos importados eram jovens. (Thomas, 2006, 629-631) Os negócios do tráfico foram se complexificando para conseguirem burlar a vigilância dos ingleses, ao mesmo tempo que se tornava um negócio verdadeiramente supranacional. Se os ingleses acusavam brasileiros, portugueses, americanos e outros mais de infringirem a legislação contra o tráfico internacional, Tavares cita depoimento do encarregado de negócios americano, afirmando que todos os comerciantes in- gleses no Rio de Janeiro participavam direta ou indiretamente do comércio de escravos. Porém, tudo leva a crer que quase todas as firmas e comerciantes estrangeiros no Brasil estiveram envolvidos com o comércio proibido de escravos. Com base nisso, Tavares destaca que a pressão do Cônsul Robert Hesketh sobre comerciantes ingleses para suspender as vendas a crédito e limitar o prazo de pagamento das compras dos manufaturados, em um ano, foi um duro golpe contra o tráfico negreiro para o Brasil. O resultado foi o comunicado de decisão conjunta, de 10 de maio de 1848, em que os comerciantes ingleses no Rio de Janeiro convencionaram exigir nas suas próximas transações: “faturas em duplicata, prazo de vendas a crédito de apenas 12 meses (um ano) e com juros de ¾ ao mês, recusando também qualquer nova conta antes de saldar-se a antiga e estabelecendo multas de 1 e 2 contos para os devedores reincidentes.” Assinam o documento: Carruthers and Co., Guilherme Moon and Co., Finnie, Brothers and Co., Mackay Miller and Co., Rostron Dutton and Co, Watson Spence and Co, Hogg Adam and Co, Astley Shepard and Co, Andrew and Edwards, Edson and Mellor, Phillips Brothers e outros 22.(Tavares, 1988, 133) Luís Henrique Dias Tavares estava convencido que os comerciantes ingleses eram os maiores interessados nos negócios do tráfico de escravos e essa decisão incidia justamente no mecanismo que possibilitou o renascimento do comércio dos africanos, na década de 1830. Por essa lógica, se os canais de financiamento para a obtenção de manufaturados ingleses fossem cortados, estaria sendo interrompido o comércio quadrangular do tráfico. Muitas firmas inglesas aparecem nos anúncios do Jornal do Comércio, em que são História e Economia Revista Interdisciplinar 41 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... identificados os respectivos comerciantes responsáveis. Essas informações vão ser apresentadas a seguir e podem trazer informações sobre a forma como se dava a participação desses negociantes no mercado do Rio de Janeiro. A primeira firma citada, Carruthers and Co., era “uma das mais ativas do Rio de Janeiro do seu tempo” e foi onde Irineu Evangelista de Souza, futuro barão e visconde de Mauá, aprendeu o ofício da mercancia: ele começou como caixeiro e chegou a sócio desta firma inglesa, quando Carruthers retirou-se para a Inglaterra, logo após as denúncias das transações negreiras na África. Por sinal, na comissão de fiscalização e aplicação do convênio dos negociantes ingleses, firmado pela pressão do cônsul inglês, consta o nome de Irineu Evangelista de Souza, juntamente com os negociantes John Mckinnel e Guilherme Finnie. Notícias encontradas sobre a sociedade Lallemant e Mac Gregor podem ajudar a entender a futura rede de negócios do barão de Mauá. Em 1 de janeiro de 1848, a sociedade Lallemant e Mac Gregor admite Pedro Augusto Miller como sócio. Anos depois, A.D. Mac Gregor anuncia, em 1 de janeiro de 1856, que retirouse da sociedade que tinha com Lallemant, cuja casa passa a girar sob a firma Lallemant e C. Desses anúncios, interessa o nome de A.D. Mac Gregor, porque, em 31 de julho de 1854, seria firmado o contrato da casa bancária Mauá, Mac Gregor & Cia, cujos sócios gerentes, “solidariamente responsáveis por todos os seus bens para com terceiros eram: nesta cidade – o barão de Mauá, Alexandre Donald Mac Gregor e João Ignacio Tavares, e, em Londres, os mesmos e mais um indivíduo escolhido pela administração”. (Mauá, 1943, 233) 42 História e Economia Revista Interdisciplinar Durante o funcionamento da casa bancária, Mauá coordenava as operações normalmente, do Rio de Janeiro, e Mac Gregor estava fixado em Manchester. Na sequência da lista de negociantes, a segunda firma aparece com o seguinte anúncio: em 1 de janeiro de 1844, Moon Irmãos e C. participam, que dissolveram a sociedade comercial; os sócios – Carlos Hopley e João Mac Kinell – ficaram encarregados da liquidação, e os mesmos formaram uma nova sociedade, sob a firma Guilherme Moon e Comp. O sócio Guilherme Moon retirou-se para a Inglaterra para realizar negócios da mesma nova casa. Nova alteração ocorreria dez anos depois, em 31 de dezembro de 1853, publicada em 3 e janeiro de 1854: Guilherme Moon e C. participam que João Mc Kinnell retirou-se da casa comercial; e foi admitido um novo sócio – Guilherme Ford. (JC, 01/01/1844; 03/01/1854) No primeiro anúncio, a sociedade deixa de ser familiar, de irmãos, permanecendo em um nome particular, porém com mais dois sócios, que parecem ter permanecido ao longo dos dez anos, quando houve a troca de um deles; observando ainda a ida de Guilherme Moon para a Inglaterra para realizar negócios da casa. Outra firma entre irmão é a terceira da lista acima, que aparece em anúncio em 3 de janeiro de 1855, quando Diogo Kemp comunica que saiu da firma Finnie Irmãos e C., de Manchester e do Rio de Janeiro; ficando representando as mesmas: Archibald Finnie, Diogo Finnie e Robert Finnie. (JC, 03/01/1855) No anúncio acima, com exceção do anunciante, todos os demais integrantes devem ser os irmãos Finnie, e é interessante reparar que o texto deixa claro suas ramificações - Manchester e Rio de Janeiro. Não foram encontradas referências a Mackay Miller and Co., Rostron Dutton and Co. O próximo da lista é Watson Spence, que aparecem em jornal de 1 de janeiro de 1854, divulgando que o sócio Ricardo B. Leyne retirou-se da firma, em31/12/1853; o anunciante comunica também que Heitor Shannon foi admitido como sócio. (JC, 01/01/1854) A próxima firma, Astley Shepherd and Co., já havia sido citada em casos de falecimentos, cujos sócios constavam, em 1845 com sendo os seguintes: Eduardo Astley e Diogo Williams, em Liverpool; e Francisco Algorri e Guilherme Shepherd, no Rio de Janeiro. (JC, 01/01/1845) Neste caso, há uma divisão entre os que ficam na Inglaterra e os que ficam no Brasil. Na sequência, a firma Hogg Adam e C. comunica, em 22 de abril de 1845, que, na ausência de Guilherme E. Hogg, fica encarregado da casa Thomas Marck Eubank. Em 5 de janeiro de 1847, sai a notícia de que Hogg Adam e C. Admitiram como sócio: Thomas Marck Eubank. (JC, 22/04/1845; 05/01/1847) Essa alteração é interessante porque o encarregado, no primeiro anúncio, ingressou como sócio e, no próximo, assume o negócio: no dia 1 de janeiro de 1857, é comunicada a dissolução da firma Hogg Adam e C., continuando os negócios a firma Eubank Lowndes e C., de que fazem parte: Thomas Marck Eubank, Hentique Baudinel Lowdes e Luiz Augusto Schmidt. (JC, 03/01/1855) Sobre as três firmas restantes, Andrew and Edwards, Edson and Mellor, Phillips Brothers não foram encontrados anúncios no período pesquisado, sendo que Edson and Mellor e Phillips Brothers constam frequentemente nas tabelas de mercadorias exportadas. Existe ainda a referência a Phillips Brothers and Co na História Geral da Civilização Brasileira, em que a empresa aparece com destaque dentre os exportadores de café, assim como o histórico da firma de E. Johnston & Co. O nome completo desta última é Edward Johnston & Co., residente no Rio de Janeiro desde 1821, que fundou a firma em 1842, sendo que, em 1845 transferiu-se para Liverpool, onde estabeleceu uma sociedade mercantil, que pode ter sido a firma Andrew and Edwards. (Holanda, 1965, 147) Vale ressaltar a trajetória de Thomas Marck Eubank, que além de passar de encarregado sócio, passou a constar na identificação da firma com Lowndes. Um dos motivos pode ter sido em razão de ter se destacado entre o corpo mercantil por fazer parte da comissão que passou a fiscalizar a aplicação do convênio, em 1848. Existe ainda uma alusão ao nome de Thomas Ewbank na obra de Hugh Thomas, quando cita seu texto de viagem, que relata a venda de escravos do Rio de Janeiro, na esquina da rua dos Ourives com a do Ouvidor, em meio a outras mercadorias. O negociante aparece identificado por Thomas como um viajante americano. (Thomas, 2006, 631)4 4 Ewbank já havia assinado individualmente o atestado de idoneidade a Manoel Pinto da Fonseca. Outras firmas inglesas são citadas no livro de Tavares, como as que assinaram a lista de negociantes ingleses que passaram o atestado de idoneidade a Manoel Pinto da Fonseca: Hildyard, Clegg ando Co.; Watson, Spencer and Co.; Miller, Le Cocq and Co.; Jas. Dalglish Thomson and Co.; Astley, Algorri and Co.; Freeland, Ker Collings and Co.; P.P. Hogg Adam and Co.; Thos. M. Ewbank; Hoyle Hargreave and Co; Samuel Phillips and Co.; Finnie Brothers and Co.; Naylor Brothers and Co.; Andrew and Edwards Co.; Mackay, Miller and Co.; Phillip Brothers Co.; William Moon and Co.; William Harrison and Co.; Pearson, Browne and Co.; Durham, Bunn and Co.; Samuel Brohers and Co. História e Economia Revista Interdisciplinar 43 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... Era o mais famoso traficante, fato corroborado por Tavares, Thomas e Vergé. De 1837 a 1838, a ascensão do traficante Manoel Pinto da Fonseca, de ‘quase falido’, mas que obteve créditos, navios carregados de fazendas, dinheiro e mantimentos de comerciantes ingleses, constituiu-se no modelo do “aventureiro”, descrito por Alcoforado. Tanto que sua alcunha na praça mercantil carioca era de “Pinto caixeiro”, pois havia chegado de Portugal, em 1833, sem nenhum tostão na carteira. (Tavares, 1988, 124) Sua trajetória não diferia muito da de Mauá, que também começou, em 1829, como caixeiro da casa Carruthers e Co., e chegou a sócio gerente. Mauá e Pinto da Fonseca tiveram a mesma iniciação no mundo dos negócios – caixeiro. Em sua Autobiografia, o negociante reconhece que todo seu aprendizado se deu no balcão da firmas Carruthers e Co. Posteriormente, quando centralizava os negócios bancários, as operações financeiras eram similares às que estão descritas para o tráfico - giravam em torno do desconto de letras e de saque e remessa de papéis comerciais. (Kuniochi, 1995) Para os dois ex-caixeiros, vale a máxima expressa por Braudel (1995, 332): “No vértice da pirâmide, está o orgulho daqueles que, nec plus ultra, entendem de câmbio”. Retornando aos negociantes ingleses, a primeira firma que aparece na lista de negociantes, Hildyard Clegg e C., publicou, em 4 de janeiro de 1844, que João Clegg e Henrique Hildyard uniram as suas casas – Clegg Irmãos e C. E Henrique Hildyard e C. – sob uma só firma: Hildyard Clegg e C., rua das Violas nº. 18, desde o primeiro dia do ano. (JC, 04/01/1844) Dez anos depois, dia 10 de janeiro de 1854, Clegg Greenup e C. anunciam que John Freeland é sócio de sua casa desde o primeiro dia do ano. 44 História e Economia Revista Interdisciplinar É interessante notar que no primeiro anúncio, duas firmas foram unidas. Nota-se que o ano em questão é 1844, quando houve a quebra de firmas inglesas. No mesmo ano, o nome de John Freeland aparece vindo também de uma antiga empresa: em 6 de janeiro de 1844, Freeland Ker Collings e Comp. comunicam que, em 31 de dezembro de 1843, Basil Freeland retirouse do negócio em favor do filho João Freeland; continuando a firma sem alteração. Alguns dias depois (29 de janeiro), a firma participa ingresso de novo sócio: A.F. Emeric de Saint Dalmas.(JC, 04/01/1844) Basil Freeland foi outro negociante inglês que se retirou, em 1844, porém o filho ficou no país e, dez anos depois, associou-se a outros ingleses. A firma Freeland Ker Collings e Comp. também assinou o atestado de idoneidade acima. Na sequência, a firma Miller Le Cocq, já havia sido citada por motivo de falecimento e a formação de nova firma foi comunicada em 1 de maio de 1845, com os seguintes sócios: João Le Cocq, Hugh Bain, Manger Smith Collings e Daniel Miller (residente em Londres). (JC, 04/01/1844) O mesmo nome seria mantido ainda por dez anos, conforme anúncio de 2 de janeiro de 1855: a firma Miller Le Cocq foi extinta, os sócios – Hugh Bain, Manger Smith Collings e João Le Cocq – são os liquidantes e continuam com o negócio, sob a firma Baird Le Cocq e C. (JC, 02/01/1855) Há casos que a dissolução é mera formalidade pela expiração do prazo de contrato: em 4 de janeiro de 1849, saiu comunicado da dissolução da firma Hoyle Hargreaves e C., pelo término do tempo de contrato; Henrique Hargreaves e Roberto Nattall continuam a firma. (JC, 04/01/1849) Da lista de negociantes ingleses, ainda aparece o nome de Willam Harrison, que era conhecido no Rio de Janeiro por Guilherme Harrison, conforme anúncio de James Buchanan, que comunica, em 13 de março de 1845, que deixou de ser sócio na casa de Guilherme Harrison e C.; o negócio continua com o sócio João Johson Jackson. Saiu publicado no mesmo dia que Ricardo Faner sai de viagem para a Inglaterra e deixa como procurador – Alexandre Miligan. (JC, 13/03/1845) Essa informação é importante, ainda mais que os dois anúncios anteriores foram publicados no mesmo dia, porque, no ano seguinte: em 1 de janeiro de 1846, Guilherme Harrison e Comp. comunicam que Alexandre Miligan ficou sócio da firma. Um outro sócio ainda é admitido em 1 de junho de 1846: Guilherme Harrison Jr., conforme anúncio publicado em 6 de junho. (JC, 01/01/1846; 01/06/1846) Neste caso, é importante assinalar que os dois comunicados de saída datam de 1845, com a posterior associação dos sócios remanescentes. Entre 1844 e 1845, os anúncios mostram que foram constantes as alterações nas firmas inglesas, seja de saída de sócio para a Inglaterra, seja de reestruturações, que envolviam a entrada de novos componentes, e os casos de falências e fechamento de firmas. Tudo leva a crer que a não renovação do tratado comercial entre o Brasil e a Inglaterra, associado ao sentimento anti-britânico, obrigou toda essa movimentação, pois na pior das hipóteses, foi necessário fechar a empresa e abrir falência. Da lista em apoio a Manoel Pinto da Fonseca, ainda resta comentar sobre Durham, Bunn and Co., que aparece em anúncio de 15 de março de 1846: D. Bunn e C. participam que admitira Guilherme Diogo Durnham como sócio, desde 01/01/1846. (JC, 15/03/1846) Alterações significativas ocorreriam no ano seguinte: no dia 1 de janeiro de 1847, saiu anúncio da dissolução das firmas: Durham Bunn e C., do Rio de Janeiro, e de James Durham e C., de Manchester; retirando-se das mesmas James Durham e Henrique Bunn. Aos outros sócios ficou a liquidação; os negócios continuam nas novas sociedades: Durham Filho e C., no Rio de Janeiro, e Durham e C., em Manchester; existindo as extintas firmas somente em liquidação. (JC, 01/01/1847) Se o comunicado conjuntos dos negociantes ingleses data de 1848, três anos depois, saiu publicado comunicado semelhante de negociantes: em 1 de janeiro de 1851 (JC, 01/01/1851): Os abaixo assinados participam a seus fregueses que tomaram as seguintes resoluções: De não vender, de 1.º de janeiro de 1851 em diante, a prazo maior de 12 meses por letras, ou 10 meses por contas mensais assinadas; De exigir o juro de 1% ao mês por qualquer excesso (desses ou outros prazos menores convencionados) que for concedido aos devedores; De não vender a qualquer pessoa cujas contas, a datar de 1.º de janeiro de 1851, não se acharem pagas em 16 meses. Assinam: A. e R. Bartels Billwiller Gsell e C. Daenicker e Wegman (em liquidação) Daeniker e Ferber Emery e C. P. de Hamann e C., L.A. Prytz Klingelhoerfer, Gries e C. Limpricht Irmãos e C. Christian Reidner Saportas e C. Schroeder e C. Stockmeyer e C. Wegman, Moers e C. G.H. Weitzmann e C. De acordo com o comunicado, os negociantes pretendiam limitar os pagamentos a 12 meses e cobrar juros de 1% ao mês a todos que ultrapassem esse limite. História e Economia Revista Interdisciplinar 45 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... As novas condições são semelhantes àquelas apresentadas pelos negociantes ingleses, com uma mudança no valor do juro exigido, que, no comunicado de 1848 havia sido estipulado em ¾%, neste aparece o juro de 1%. Vale lembrar que a lei Euzébio de Queiros data de 4 de setembro de 1850, portanto, nem mesmo havia completado quatro meses, quando saiu o comunicado acima. Os negociantes identificados em anúncios começam com A. e R. Bartels, que comunicam, em 5 de janeiro de 1848, que deram interesse em sua casa de comércio a E.A. Bartels Jr., que assinará por procuração. (JC, 05/01/1848) O segundo da lista: J. B. Billwiller participa, em 3 de janeiro de 1844, a nova casa de importação Billwiller Gsell e Comp.- rua do Sabão nº. 39. Um ano depois, em 1 de janeiro de 1845, um novo sócio é admitido: R. Laqual. (JC, 03/01/1844; 01/01/1845) Uma nova mudança iria ocorrer, em 1 de janeiro de 1854, quando Billwiller e C. anunciam que passará a assinar Laquar David e C., da qual são os únicos sócios: R. Laquar e H. David, que continuam os negócios; F. Huber tem a procuração bastante da nova firma. (JC, 01/01/1854) No abaixo-assinado aparecem três firmas que eram entrelaçadas: Daenicker e Wegman, Daeniker e Ferber, Wegman, Moers e C., como pode ser comprovado nos anúncios: em 1 de janeiro de 1847, Daeniker e Wegmann comunicam que admitiram D. Moers como sócio na casa de comércio, sob a firma Daeniker Wegman e Comp.; quase dez anos depois, saiu nova alteração: no dia 1 de janeiro de 1856, Wegmann Moers e C. participam que E. Wegmann retirouse, e o Sr. Moers continua no negócio com novo sócio: C.W. Gross, sob a firma D. Moers e C.(JC, 01/01/1847, 01/01/1856) 46 História e Economia Revista Interdisciplinar Sobre o negociante J.F. Emery foi encontrado somente um anúncio em que consta que ele integrava a diretoria do Banco do Comércio do Rio de Janeiro, por ter assinado relatório, publicado em 11 de janeiro de 1844. (JC, 11/01/1844) Há pouca informação também sobre os dois próximos negociantes: saiu comunicado, em 1 de janeiro de 1854, de Klingelhoefer Gries e C., que fazem público que o Sr. Ernesto Volckmar é interessado na sua casa comercial, desde o primeiro dia do ano, e que assinará por procuração a firma da casa. (JC, 01/01/1854) Em 19 de dezembro de 1844, Limpricht Irmãos e C. avisam que Luiz von Bonninghausse assina sua casa por procuração. (JC, 19/12/1844) Em relação a Christian Reidner, há mais informações: as notícias começam com anúncio de 2 de janeiro de 1847, Honegger Reidner e C. participam, em, que dissolveram sociedade; Christian Reidner continua com a casa de comércio, sob firma singular. Um ano depois, em 5 de janeiro de 1848, Christian Reidner comunica que C.E. Treutlein está encarregado com a procuração de sua casa. No dia 1 de março de 1851, Christian Reidner, tendo de fazer uma viagem demorada à Europa, comunica que admitiu como sócio em sua casa: Maurício Hesse – de Hamburgo, sob a mesma firma. Verifica-se que o novo sócio faz parte da firma pelo anúncio de 1 de janeiro de 1856, Christian Reidner participa que expirou o prazo da sociedade entre Reidner e Maurício Hess; o primeiro continua com o negócio e Hess assina por procuração. (JC, 02/01/1847; 05/01/1848; 01/03/1851; 01/01/1856) Na sequência da lista, a notícia sobre A. D. Saportas é diferente das anteriores: no dia 15 de setembro de 1844, saiu anúncio de que, por ordem de A.D. Saportas, serão vendidas: 7 cai- xas com 210 espingardas com baioneta e 5 caixas com 159 espadas de cavalaria, com avaria de água salgada, vindas de Antuérpia (navio Octavie); “as caixas serão vendidas por conta do seguro, com presença do Sr. cônsul da Bélgica”. lista integra o restante da comunidade estrangeira que atuava no Rio de Janeiro, de origem européia. A partir das tabelas de comercio, é possível verificar que muitos destinavam mercadorias para Hamburgo, Havre e cidades da Inglaterra. A quantidade de armamento avariada é de monta e o tipo de mercadorias também levanta suspeitas, o que pode justificar a presença do cônsul da Bélgica e mostra que, em 1844, o consulado assumia “o direito de administrar as propriedades dos cidadãos dos seus respectivos países”. (JC, 15/09/1844) 5 Na maioria, as sociedades integram menos agentes e ocorre um menor número de alterações, não havendo evidências de mudanças significativas para um mesmo período, como foram os anos 1844 e 1845, para os ingleses. A exceção ficaria para o conjunto das firmas - Daenicker e Wegman, Daeniker e Ferber, Wegman, Moers e C. -, cuja dinâmica das alterações lembram as das inglesas, porém para anos posteriores aos apontados para os britânicos. Para a firma Schroeder e C., um anúncio inusitado: em 28 de janeiro de 1850, João C. Wirby comunica que vendeu seu estabelecimento de abridor – situado na rua dos Ourives nº. 157 – a Henrique Schroeder. (JC, 28/01/1850) Não se sabe o que poderia ser um negócio de “abridor”, ainda mais com uma firma estrangeira. Finalmente, informações sobre as duas últimas firmas tratam de alterações convencionais: a primeira comunica, em 1 de janeiro de 1854, Stockmeyer e C. participam que Alexander George Mosle e Victor Schaumann, que já tinham interesse, assinando por procuração, assinarão a partir dessa data a firma social Stockmeyer e C.; assim como Carlos Stockmeyer, que foi admitido como sócio; e a segunda refere-se à firma G.H.Weitzman, que publica, em 18 de maio de 1843, que G.H. Weitzmann e C. participam a esta praça que, desde o primeiro dia do ano, o Sr. Lud E. Pinckernelle está interessado em sua casa comercial e assina por procuração. (JC, 01/01/1854) As notícias sobre o comunicado dos comerciantes de 1851 abarcou quase todas as casas, com exceção de P. De Hamann e C. e L.A. Prytz, sobre os quais não houve anúncios. Essa 5 Pelo texto, os mesmos termos para os ingleses valiam para cidadãos belgas. Uma inferência poderia ser feita para o fato de que as datas das notícias concentram-se para os anos posteriores a 1845, o que pode ser evidência de que novas firmas estariam entrando para ocupar o espaço deixado pelos ingleses, que poderiam ter sido prejudicado pelo sentimento anti-britânico. Isso também explicaria a anuências dos negociantes da Inglaterra para assinarem o comunicado de 1848, porque os ingleses já tinham sido prejudicados em seus negócios e estariam cedendo à política britânica, contrária ao tráfico de escravos. De qualquer maneira, estava havendo um consenso entre todas as empresas estrangeiras para limitar o crédito, em um máximo de 12 meses, com a cobrança de juros para os atrasos. Essa tendência estaria de acordo com a própria política do governo brasileiro, que havia publicado, em 1850, o Código Comercial. Sem dúvida, o fim do tráfico estava apontando novos horizontes para a praça comercial do Rio de Janeiro. Considerações finais A participação do capital inglês no comércio de escravos era operada pelo duplo sis- História e Economia Revista Interdisciplinar 47 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... tema de créditos e de faturas: emitiam faturas de compra de manufaturados que eram aceitas e descontadas em Londres, Bristol, Liverpool, Nova York, Boston, Baltimore, Hamburgo. Os ganhos também poderiam vir de operações de saque e remessa dos papéis, emitidos por negreiros na África ou no Brasil, que possibilitava a especulação com a taxa de câmbio das moedas. O fato de o agente, que adiantava o dinheiro, remeter a letra para o país, onde ela seria paga, justificava o nome da operação de saque e remessa. Somente as redes de comércio com ramificações no mercado internacional tinham condições de realizar essas operações. Justamente, quando esses papéis chegavam em Londres poderia estar sendo fechado o circuito, aberto com a compra dos manufaturados. Dessa forma, a organização em redes podia transformar operações mercantis e financeiras em operações internas, havendo uma compensação de débitos e créditos. Assim, as empresas com representantes nas mais diferentes localidades, como muitos anúncios revelam, levavam vantagem por não terem de recorrer a banqueiros ou outros negociantes. Raymond de Roover estudou a origem da letra de câmbio e concluiu que seu aparecimento está inscrito no próprio funcionamento do comércio. Na Idade Média, o comércio era essencialmente um comércio de consignação, bastante especulativo como o câmbio o é por definição, e que se exerce por intermédio de correspondentes e agentes no estrangeiro. Em geral, ao exportar, o comerciante não vende diretamente, um agente se encarrega dessa venda no lugar de destinação e se esforça, às vezes sem sucesso, em obter um preço remunerador. Se o exportador precisa de fundos líquidos, ele procura obter uma letra de câmbio sobre o produto da venda de suas mercadorias. Assim se explica a freqüência de somas arredondadas 48 História e Economia Revista Interdisciplinar nos livros dos banqueiros. (Roover, 1953, 30) Para os negócios do tráfico, lucros excepcionais compensavam os riscos, por isso, se o empreendimento havia se concretizado, ou seja, se o navio escapara das investidas inglesas, os preços certamente seriam compensadores. Segundo De Roover, a transferência por letras de câmbio era por si só uma atividade lucrativa, pois o fato de estar sempre inteirado dos índices cambiais, por meio dos agentes instalados nas praças mais importantes, fazia com que a marcha do câmbio favorecesse, com maior freqüência, o emprestador de fundos. O alongamento dos prazos abria um tempo maior para que as remessas fossem feitas e nem sempre o circuito dos papéis fazia o percurso direto: se as taxas cambiais fossem favoráveis, eram enviadas para os destinos mais lucrativos, ou seja, de Angola à Londres, poderia haver uma parada em New York. Esse tipo de operação fazia parte do cotidiano bancário, conforme consta na correspondência de Mauá quando comenta, em carta de 22 de outubro de 1860, sobre remessas e câmbios, que se “bem combinadas estas operações de cambio são as melhores que podem realizar nas casas Bancarias, pela rapidez com que se realizão os interesses respectivos”. (Mauá, IHGB, Doc. 10, Lata 513) Mauá não diferia muito de “Pinto caixeiro”, apelido de Manoel Pinto da Fonseca, representativo daquilo que Alcoforado se refere aos ‘muitos outros aventureiros [que] tentavão fortunas quando não tinhão Capital seu nem outro meio honesto pelo qual o podessem obter’, afirmando que foram as facilidades introduzidas no tráfico, ao longo da década de 1830, que possibilitou recorrer a “qualquer especulador que lhes fiava as fazendas”, ou seja, os manufaturados de Birmingham, Manchester e Glasgow. Não é por acaso que, em 1854, Manoel Pinto da Fonseca integra a lista de sócios comanditários da casa bancária Mauá, Mac Gregor & Cia. (Mauá, 1943, 233) No entanto, esses ganhos extraordinários podiam incomodar proprietários de terra, endividados com essas redes de negócio. Em vista disso, o clima anti-britânico foi estendido principalmente para outras províncias brasileiras, distantes do mercado do Rio de Janeiro, onde estava concentrada grande parte das casas inglesas. Mesmo com os prazos estendidos para os compradores de escravos no Brasil, as dívidas se acumulavam, obrigando muitos fazendeiros a assinarem letras, que mesmo que fossem reformadas, tinham a cobrança de juros sobre juros e não tardaria para que a hipoteca fosse imposta e, logo mais, a tomadas das terras e escravos acontecia. O encadeamento das dívidas formava uma corrente, cujos anelos moviam o mercado financeiro e mercantil; o rompimento de um dos anéis podia causar problemas e emperrar o movimento dos negócios. Braudel descreve da seguinte maneira: Do pequeno lojista ao negociante, do artesão ao fabricante, todos vivem do crédito, isto é, da compra e venda a prazo (at time), sendo precisamente isso que permite obter, com um capital de, por exemplo, 5 mil libras, um volume anual de negócios de 30 mil libras. Os prazos de pagamento que todos dão e recebem por sua vez, e que são uma ‘maneira de contrair empréstimos’, são até elásticos: “Nem uma pessoa em cada vinte cumpre o prazo combinado e em geral não se espera que o cumpra, tamanhas são as facilidades entre mercadores nesse domínio. No balanço de qualquer comerciante, ao lado do estoque de mercadorias, há regularmente um ativo de créditos e um passivo de dívidas. A sabedoria está em salvaguardar o equilíbrio, mas em não renunciar a essas formas de crédito que, afinal, representam uma massa enorme, que multiplica por 4 ou 5 o volume das trocas. Todo o sistema mercantil depende disso. Cessando esse crédito, o motor enguiçaria. O importante é que se trata de um crédito inerente aos sistema mercantil, gerado por ele – um crédito ‘interno’ e sem juros. O seu particular vigor na Inglaterra parece a Defoe o segredo da prosperidade inglesa, do overtrading que lhe permite impor-se também no estrangeiro. (Braudel, 1995, 339)6 Quando Braudel afirma que prazos de pagamento é uma “maneira de contrair empréstimo”, fica evidente que a pressão do embaixador inglês, junto aos negociantes de seu país para limitar os pagamentos há 12 meses, com a cobrança de juros pelos atrasos, foi um duro golpe para os negócios do tráfico de africanos. Se a perseguição tenaz dos cruzadores ingleses não havia atingido o vil comércio, a limitação do prazo de pagamento ocasionou a quebra na corrente dos negócios do tráfico de escravos no Brasil. 6 Braudel cita o relato de Daniel Defoe – En Explorant l’île de GrandeBretagne, ed. de 1974 História e Economia Revista Interdisciplinar 49 Crédito e privilégios de comerciantes estrangeiros no Rio de Janeiro... Bibliografia. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995, vol. 1 e 2. Correspondência ativa, comercial do Barão de Mauá. Originais com cópias datilografadas. 1860-1861 - IHGB, Doc. 10, Lata 513. DE ROOVER, Raymond. L’Evolution de la lettre de Change. XIVe-XVIIIe. Paris: Librairie Armand Colin, 1953. HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, 1965, tomo II. 4º. Volume. Jornal do Comércio, 1842 a 1857 KUNIOCHI, Márcia Naomi. A prática financeira do barão de Mauá. Dissertação de Mestrado, São Paulo: FFLCH-USP, 1995. LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975. MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973. MAUÁ, Visconde de. Autobiografia. Rio de Janeiro: Liv. Ed. Zelio Valverde, 1943. OLIVEIRA, Geraldo de Beauclair M. de. A pré-indústria fluminense. 1808-1860. Tese de Doutoramento. São Paulo: FFLCH-USP, 1987. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Ed. da UNICAMP CECULT, 2000. TAVARES, Luis Henrique Dias. Comércio proibido de escravos. São Paulo: Ática, 1988 THOMAS, Hugh. The slave trade: the history of the Atlantic slave trade. 1440-1870. Londres: Phoenix, 2006. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987. 50 História e Economia Revista Interdisciplinar Um periódico em defesa da indústria nacional: análise da Tribuna Militar (1881-82)1 Guillaume Azevedo Marques de Saes (aluno de Doutorado do Programa de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Hideiki Nozoe, e bolsista FAPESP) [email protected] Resumo: O objetivo deste artigo é analisar as posições do periódico Tribuna Militar (1881-82) a respeito de questões econômicas, com destaque para sua defesa enfática da indústria nacional e sua crítica virulenta ao caráter agrário da economia brasileira. Para nós, este jornal, já estudado por autores como John Schulz e William S. Dudley, e publicado por militares brasileiros no início da década marcada pela grave crise político-militar que culminou na derrubada da monarquia, serve como indício de que por trás da rebelião contra as autoridades imperiais havia muito mais do que uma questão de orgulho corporativo: esta rebeldia poderia traduzir também, embora de forma não explícita, uma contestação da estrutura sócio-econômica vigente que era fundada na escravidão e na exportação de produtos primários. Palavras-chave: imprensa; militares; indústria. Abstract: This article intends to analyse the ideas of the journal Tribuna Militar (1881-82) about economic issues, especially its emphatic defense of national industry and its virulent criticism of the agricultural nature of the Brazilian economy. For us, this newspaper, already studied by authors like John Schulz and William S. Dudley, and published by the Brazilian military in the beginning of the decade of political and military crisis that brought about the fall of the monarchy, might indicate that the rebellion against imperial authorities was not only a matter of corporate pride. This rebellion expressed, even if not explicitly, the opposition to the dominant social and economic structure that was based on slavery and on the exportation of primary products. Keywords: press; military; industry. 1 Este artigo é uma versão modificada do texto Um projeto econômico: análise do jornal Tribuna Militar (1881-82), apresentado no Programa de Seminários de História Econômica promovido pelo Hermes & Clio – Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica, no Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, em 31 de março de 2009, e no VIII Congresso Brasileiro de História Econômica e 9ª Conferência Internacional de História de Empresas, promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE) e realizado no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, no período de 6 a 8 de setembro de 2009. Agradecemos aos professores participantes destas seções pelas sugestões que nos ajudaram a melhorar o texto. Agradecemos também ao Prof. Steven Topik pelas críticas e sugestões em seu parecer para este artigo. História e Economia Revista Interdisciplinar 51 Um periódico em defesa da indústria nacional... O nosso objetivo aqui neste artigo é analisar as posições do periódico Tribuna Militar (1881-82) a respeito de questões econômicas, com destaque para sua defesa da indústria nacional e sua crítica ao caráter agrário da economia brasileira. Para nós, este jornal, publicado por militares brasileiros no início de uma turbulenta década marcada por uma grave crise político-militar que culminou na derrubada da monarquia, serve como indício de que por trás da rebelião contra as autoridades imperiais havia muito mais do que uma questão de orgulho corporativo: esta rebeldia poderia traduzir também, embora de forma não explícita, uma contestação da estrutura sócio-econômica vigente, esta última fundada na escravidão e na exportação de produtos primários para o exterior. A defesa de um modelo de desenvolvimento antagônico à ordem sócio-econômica do Império já estava presente na imprensa militar na década de 1850. Apesar de leal ao Imperador, o jornal O Militar, que circulou nos períodos 1854-55 e 1860-61, contestava abertamente a ordem sócio-econômica vigente. Este periódico, estudado por John Schulz (1994)2, apresentava reivindicações voltadas tanto para o terreno técnico-profissional (defesa do serviço militar obrigatório) como para o progresso social (abolição da escravidão e política de incentivo à imigração européia) e para o desenvolvimento nacional (política de expansão das vias de comunicação [ferrovias, estradas e telégrafos] e de incentivo às atividades industriais). Acusando a elite imperial (a “classe legista”) de desprezar e de dificultar, através de um conjunto de leis e regulamentos, o desenvolvimento industrial, O Militar defendia uma política de crédito e tarifas protecionistas para a indústria. Encontramos posições similares na Tribuna Militar, jornal também estudado por John Schulz (1994)3 e que circulou no período 1881-82. Optamos por analisar aqui 2 Ver capítulo 2, Reformadores e revoltados. 3 Ver capítulo 4, O Exército desprezado. 52 História e Economia Revista Interdisciplinar as posições deste periódico no que diz respeito ao desenvolvimento econômico pelo fato dele ter circulado num momento correspondente à eclosão da rebelião militar contra a ordem imperial, suas posições podendo refletir melhor as posições da oficialidade revolucionária daquele momento histórico. O jornal Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz era bissemanal e circulou entre julho de 1881 e março de 1882, sendo publicado pela Typographia da Tribuna Militar, no Rio de Janeiro, e tendo como responsável o nome de J. A. de Castro Miranda.4 Os artigos deste periódico não são assinados, muito provavelmente para se evitar uma punição por indisciplina, já que se trata de uma publicação realizada por militares contendo fortes críticas à ordem vigente e a autoridades do regime imperial5. Segundo William S. Dudley (1975, 60-61), a Tribuna Militar, continuação sob outro nome do jornal O Soldado, que circulou entre março e julho de 1881, desapareceu sem razão aparente. Para nós, pode haver duas explicações para este desaparecimento: a primeira seria de ordem material e financeira, já que encontramos na primeira página de diversos números queixas sobre a situação precária do jornal e comentários sobre a necessidade de se aumentarem as assinaturas; a segunda seria de ordem política, as pressões de parte de setores civis e militares comprometidos com a ordem vigente, setores que viam este tipo de publicação 4 Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz. Rio de Janeiro: Typographia da Tribuna Militar, 1881-82. Este periódico está disponível em versão micro-filmada no Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil. Não encontramos referências sobre este J. A. de Castro Miranda. 5 As posições críticas do jornal para com a ordem vigente chegam a atingir um representante da alta oficialidade do Exército como o Visconde de Pelotas, numa série de artigos criticando a atuação deste à frente do Ministério da Guerra (1880-81) e apresentando-o como agente do Partido Liberal e de Silveira Martins e não como representante autêntico dos interesses de sua corporação (ver o sétimo artigo da série, O ministério do visconde de Pelotas – VII. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 8, 28 de julho de 1881, p. 2-3). Silveira Martins era naquele momento o grande líder liberal do Rio Grande do Sul, e se tornaria conhecido por suas posições conservadoras no que diz respeito à escravidão e por sua hostilidade aos militares. como uma ameaça à disciplina militar, tornando inviável a sobrevivência do jornal. Assim como O Militar, a Tribuna Militar não se ocupava somente de questões propriamente militares, como também de questões políticas, sociais e econômicas. No que diz respeito às primeiras, o jornal alerta para o despreparo militar do Império diante das eternas ameaças platinas, deixando claro sua preocupação com a modernização da organização militar argentina, em contraste com a estagnação da organização militar brasileira6. E de fato, o período pós-Guerra do Paraguai corresponde a uma fase de retração do Estado brasileiro na área militar, com redução proporcional do orçamento e do efetivo das forças armadas, enquanto que países como a Argentina e o Chile iniciariam um processo de modernização de suas forças militares, o primeiro com a vinda de instrutores europeus já no final da década de 1860, e o segundo com a contratação, na década de 1880, de uma missão militar alemã7. Já no que toca às questões políticas, o periódico se apresenta ao mesmo tempo como apartidário e representante da classe militar, alega que a princípio nenhum tipo de regime, seja ele monarquia ou república, é bom ou ruim, tudo dependendo na verdade de seu conteúdo e não de sua forma, e defende a tese de que a classe militar deve estar pronta para intervir em 6 Estas idéias estão presentes, por exemplo, no editorial do número de 18 de setembro de 1881 (Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 23, 18 de setembro de 1881, p. 1-2). O editorial de um dos últimos números do jornal, que comemora o 12º aniversário do final da Guerra do Paraguai, denuncia o sucateamento das forças armadas brasileiras no período posterior ao conflito (ver Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano II, no. 17, 2 de março de 1882). 7 Para a política militar do Império após a Guerra do Paraguai, ver SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 142-143, SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894, p. 75-76 e MOTTA, Jehovah. Formação do oficial do Exército: currículos e regimes na Academia Militar 1810-1944. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001, p. 147-151. Sobre a política de modernização dos exércitos argentino e chileno ver ROUQUIÉ, Alain. O estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984, p. 97 e 99. momentos de crise política da nação, apoiar os governos honrados e respeitadores da lei e se colocar contra os governos que não seguem os bons princípios8. Este tipo de posição política, moderada se a compararmos com as posições de outro jornal militar, O Nihilista, que já no ano de 1883 pregava abertamente a derrubada do regime imperial9, consiste no nosso entender numa manifestação, mesmo que embrionária, do conceito de “soldado cidadão”. Segundo este conceito, trabalhado por José Murilo de Carvalho (2005, 38-40), o soldado deveria deixar de ser um mero cumpridor de ordens e se tornar um cidadão capaz de interpretar a política do governo (no sentido de saber se ela é benéfica ou maléfica para a pátria), e de, a partir daí, tomar posição em relação a ela. Esta ideologia, desenvolvida durante as agitações militares desta década de 1880 e retomada quarenta anos depois pelos tenentes revolucionários que pegavam em armas contra a república oligárquica, leva logicamente a uma justificação do intervencionismo militar na vida política do país. Podemos constatar, a partir daí, que a Tribuna Militar é uma publicação essencialmente política na medida em que dedica boa parte de seus números a uma análise dos problemas do país. Sua visão crítica da vida política brasileira está manifesta neste artigo que faz lembrar as posições de Virginio Santa Rosa, grande ensaísta apologista do tenentismo, contra o poder dos coronéis da República Velha: O que dissemos do fazendeiro de café aplicase, mutatis mutandis, ao fazendeiro de açúcar, aos potentados das províncias do norte, aos estancieiros do sul, aos mineradores do centro, 8 Ver Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 4, 14 de julho de 1881, p. 1, Nossa missão na imprensa. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 40, 17 de novembro de 1881, p. 1-2, e Os princípios. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 43, 27 de novembro de 1881, p. 1. 9 Ver o editorial de O nihilista: orgao dos operarios, do exercito e da armada. Rio de Janeiro, ano I, no. 23, 6 de abril de 1883, p. 1). Os números 22 e 23 deste periódico estão disponíveis em versão microfilmada no Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil. Para mais informações sobre este jornal, que visivelmente representava as tendências mais radicais e revolucionárias dentro do movimento militar contra o Império, ver SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894, p. 95-98. História e Economia Revista Interdisciplinar 53 Um periódico em defesa da indústria nacional... etc. etc.; são os donos das terras, os proprietários territoriais. Eles e os negociantes formam a massa da gente que tem o que perder; eles constituem a nação brasileira, essencialmente agrícola e deles é que saem os eleitores e vereadores, os fagundes e os pais da pátria, os comendadores e os barões. O mais tudo é fósforo, é gente que não tem o que perder. São, como já dissemos, nove milhões de analfabetos, entestando com dois milhões de gente que tem, que sabe onde traz o nariz que é instruída. [...] Planta-se e colhe-se café, planta-se cana e faz-se açúcar como até aqui, porque o país é essencialmente agrícola. [...] Os nove milhões de fósforos não servem para nada; quando muito podem fornecer voluntários para o exército e a armada, cocheiros e condutores para bondes, guarda-freios e guarda-cancelas para estradas de ferro, foguistas e por algum milagre, maquinistas para locomotivas e vapores e disse. Nas fazendas e nas roças eles são os agregados, os peões, os tropeiros, os capangas. E como se vê bem claramente, em tempo de eleição essa caterva adquire uma tal ou qual importância, porque por meio dela é que se avança à conquista das urnas.10 Admiradores da Revolução Francesa11, os autores do periódico estão visando claramente, em suas críticas, a elite política do Império, isto é a elite do que mais tarde se tornaria o ancien régime. Apesar do editorial de 28 de julho de 1881 se mostrar otimista em relação ao futuro, elogiando a reforma eleitoral daquele ano, prevendo a extinção da escravidão, o desenvolvimento da instrução pública, da indústria, das estradas de ferro, do comércio e da lavoura, e o progresso cultural e religioso do país12, os artigos deste periódico tendem em geral a ser extrema10 Como são as coisas. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 3, 10 de julho de 1881. Observação: com exceção dos títulos, a ortografia dos trechos que transcrevemos aqui foi adaptada para a dos dias atuais. 11 Ver a efeméride O anniversario da Bastilha, homenageando o aniversário da revolução de 1789. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 5, 17 de julho de 1881. 12 Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, no. 8, 28 de julho de 1881. 54 História e Economia Revista Interdisciplinar mente críticos para com a ordem social e econômica vigente. Este é o teor do texto seguinte: Nós temos o defeito de aplicar a todas as nossas coisas o laissez passer da indolência que nos é congênita. Somos o país mais atrasado na instrução, na indústria, em tudo quanto determina a riqueza de outras nações. Tudo importamos, nada sabemos exportar. Nossos estaleiros servem apenas para concertos, e a não ser algumas Traripes, só uma ou outra canhoneira nela se constrói. Em geral somente escaleres, lanchões etc. Só agora é que se está experimentando o nosso ferro de Ipanema, fábrica esta custeada pelo estado desde os tempos coloniais (!) e até hoje única no país. A respeito de estradas de ferro a de D. Pedro 2º é o único espécime a que todos os governos dispensaram alguma atenção. Nossas fronteiras são solicitadas por ferrovias estrangeiras! e o nosso mais fidagal inimigo atinge-as de um modo assustador. A indiferença... por que não diremos a verdade? o nosso desastrado desleixo, porém, cruza os braços, e deixa que o inimigo nos cerque, nos comprima e esmague. Só quando levantar sobre nós a massa que nos há de derrubar o primeiro homem, e que os parentes deste gritem e ameacem ou o estrangeiro exija a garantia de sua colônia, então chega a vez do fervet opus, desordenado, cego, alucinado da defesa tardia, quando qualquer remédio ao mal for impossível, e a morte sobrevenha à crise. Nem o exemplo da questão inglesa – Christie; - nem a provação dolorosa que nos trouxe o Paraguai, nem a atividade de reorganização do exército argentino, nem o lançamento de suas vias telegráficas, de suas estradas de ferro convergindo todas às nossas fronteiras, nos movem, nos ensinam a fazer respeitar as nossas casas! Não se diga que somos pusilânimes e visionários. Os dois fatos acima citados, quando com a rapidez dos desastres caíram sobre o país, as vítimas primeiras fomos nós, - os militares – e temos receio de continuar a ser o hirco expiatório da desídia e do erro dos nossos governos.13 13 Se vis pacem... Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 24, 22 de setembro de 1881, p. 1. Encontramos aqui uma associação entre atraso econômico e vulnerabilidade militar, pensamento que será bastante difundido posteriormente nos meios militares. As vias de comunicação (no caso as estradas de ferro e as linhas telegráficas) aparecem como elemento de valor geopolítico e militar, por interligar o país e, desta forma, ajudá-lo a construir um sistema de defesa mais sólido. O texto menciona a famosa fábrica de ferro de São João de Ipanema, fábrica estatal fundada em 1810 pela monarquia portuguesa exilada no Brasil e que funcionou, com interrupções, na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo, até o seu fechamento em 1895; sua baixa produtividade e baixa competitividade diante do ferro importado da Europa (em especial do ferro inglês) fez com que a fábrica tivesse pouca utilidade militar, vindo a contribuir de fato para a fabricação de outro tipo de equipamento, como utensílios agrícolas e material ferroviário. 14 No que diz respeito às questões sociais, a Tribuna Militar apoiava a campanha abolicionista, o que pode ser constatado com base no artigo Escola Militar, de 28 de julho de 1881, que relata uma festa abolicionista do Clube da Emancipação ocorrida na Escola Militar15, 14 Ipanema não teve participação na fabricação de armamento durante a Guerra do Paraguai, os arsenais da Corte vindo a usar ferro importado. A pouca ou nenhuma utilidade militar da fábrica explica porque ela, a princípio submetida ao Ministério da Guerra, passou, em 1877, para o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (para maiores detalhes sobre a fábrica, ver SANTOS, Nilton Pereira dos. Um projeto geopolítico do governo Imperial Brasileiro: a fábrica de ferro São João de Ipanema (1860-1889). Trabalho apresentado no Seminário de pós-graduação em História Econômica, realizado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 a 5 de setembro de 2008). Para Wilson Suzigan (SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 257-258), fábricas brasileiras de ferro do século XIX como a de Ipanema e outras de vida mais curta situadas em Minas Gerais, como a Fábrica Patriótica, a do Morro do Pilar e a de Caeté, fundiram ferro em pequena quantidade e de forma intermitente; ao contrário do ferro europeu, e especialmente do inglês, que correspondia a um estágio mais avançado da indústria siderúrgica e que, portanto, era mais abundante, mais barato e de melhor qualidade, o ferro brasileiro era caro, de baixa qualidade e produzido em pequena quantidade. 15 Esta festa contou com a participação de nomes como o general Severiano da Fonseca (irmão de Deodoro da Fonseca), que distribuiu cinco cartas de liberdade em nome do clube, Jaime Benévolo, Saturnino Cardoso, Melquíades de Souza, Rodolfo Pau Brasil, Faria de Abuquerque, Cunha Teles, Ulysses Cabral, Godoy, Herculano de Araújo, Thomaz Alves, Servilio Gonçalves, João Clapp, Gomes dos Santos e Campos Porto (Escola militar. Tribuna militar: orgão das classes e no poema Os escravos, recitado pelo jovem militar Servilio Gonçalves em sessão magna do Clube dos Libertos, e publicado no número de 28 de agosto de 1881. 16 As posições da Tribuna Militar em relação às questões econômicas, além da defesa de medidas como a nacionalização da navegação de cabotagem17 e a nacionalização do comércio a retalho18 (que se tornariam bandeiras dos movimentos nacionalistas do início da República), consistem essencialmente numa defesa enfática da indústria nacional: Esta é uma águia19 que se impluma. Encara os espaços infinitos e ensaia o vôo de sua pujança. Desembaracem-lhe as asas, e ela voejará a princípio por sobre os abismos e por sobre a voragem das tentativas arriscadas; mas fortalecida depois, amparada com cautela, a medir a extensão de seus titubeantes e mal seguros planos, ganhará a firmeza do vôo, e moderadamente se lançará na vastidão de seu completo desenvolvimento. O governo que nos der a segurança de termos em bases sólidas o fundamento de nossa indústria, esse será por certo o salvador do país. Nossa fortuna, nossa riqueza, nossa glória, dependem desse esforço único. ]Desde que ele não for acolhido e praticado, teremos a confusão que nos rege desde que somos nação independente, a balbúrdia das finanças, o desequilíbrio já crônico constante entre a receita e a despesa, e por conseguinte o militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 8, 28 de julho de 1881, p. 1). 16 Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 17, 28 de agosto de 1881, p. 3. 17 Para sustentar esta posição, o editorial de 31 de julho de 1881 transcreve um artigo do periódico Agricultor Progressista, que defende a nacionalização da navegação de cabotagem com base na idéia de que cada navio e pelo menos dois terços de sua tripulação deveriam ser brasileiros; o proprietário poderia ser estrangeiro, tendo no entanto que se naturalizar no caso em que ele próprio comandasse o navio (Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 9, 31 de julho de 1881, p. 1). 18 O número de 29 de setembro de 1881publicava um artigo do advogado e político Henrique Alves de Carvalho, onde este anunciava a sua candidatura para a Câmara dos Deputados com base num programa defendendo uma reforma política liberal do Império (abolição do Poder Moderador, temporariedade do Senado e ampliação do direito de voto) e reformas econômicas como a nacionalização da navegação de cabotagem e do comércio a retalho e a redução de impostos (Aos eleitores da Corte. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 26, 29 de setembro de 1881, p. 3). 19 O artigo está se referindo à indústria nacional. História e Economia Revista Interdisciplinar 55 Um periódico em defesa da indústria nacional... descrédito e a ruína. Chega-nos de sobejo a longa experiência de 60 anos de provas, e aborrece-nos já a crença tão ridicularizada de que o – Brasil é um país essencialmente agrícola, para não dizermos – essencialmente do palavrório.20 Quem seriam os adversários do desenvolvimento industrial? Para o jornal, os livrecambistas, vistos aqui como teóricos influenciados por idéias estrangeiras sem pé na realidade brasileira: Continua a desgraçada mania das sabenças de livro, de princípios e regras decoradas, que sem critério nem reflexão querem aplicar-se a todo transe em circunstâncias inteiramente diversas. Nem a lição de meio século de existência como inculcada nação independente ainda nos escarmenta das perniciosas doutrinas que têm mantido o pobre Brasil no estado de país essencialmente agrícola. Na grande imprensa, no parlamento, no governo ainda predominam idéias e princípios financeiros absolutamente inaplicáveis às circunstâncias especiais do país, e os homens completamente imbuídos naquilo que lêem nos livros, mas não diferem, enrolados nas magnificências da frase dos mais eminentes escritores, continuam a apregoar os mesmos princípios, a reclamar pela rigorosa aplicação deles, e não têm olhos para ver as conseqüências desgraçadas que têm apresentado na prática. [...] Neste caso estão os defensores do livre-câmbio aplicando aos que condenam essa desordenada liberdade, o nome de protecionistas. [...] Os propugnadores do free trade aplicam o nome de protecionistas a todos os que não estão pelo livre-câmbio em absoluto, e sob o nome de protecionismo condenam toda e qualquer proteção às indústrias, proteção que aliás é de rigorosa obrigação para a governança de qualquer estado, cujo pessoal governativo se compenetre da missão que lhe é incumbida – A prosperidade da pátria.21 Este trecho, extraído do primeiro de 20 Indústria nacional. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano II, no. 18, 5 de março de 1882, p. 1-2. 21 Protecionismo. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 35, 30 de outubro de 1881, p. 1-2. 56 História e Economia Revista Interdisciplinar uma longa série de artigos intitulada Protecionismo, mostra a que ponto as tarifas protecionistas eram consideradas, pelo jornal, fator determinante para o desenvolvimento industrial do país. Associando-os aos escritores da escola realista, para ele falsos retratistas da realidade social, o jornal acusa os livre-cambistas de defender o livre comércio e condenar a proteção às manufaturas nacionais sem considerar (por ignorância ou por má fé) fatores como os privilégios e os monopólios, que tornam a liberdade de comércio, tal qual a concebem os teóricos, impossível22; além do mais, os livre-cambistas não levam em conta que a defesa do livre comércio é uma arma ideológica das nações imperialistas, em especial a Inglaterra, que procuram empurrar para as outras nações seus produtos manufaturados de má qualidade.23 Para ilustrar suas teses protecionistas, o jornal se apóia no exemplo dos Estados Unidos, que através do protecionismo conseguiram preservar sua indústria da concorrência européia e, desta forma, se transformaram numa grande potência econômica: Se fosse em absoluto verdadeira a doutrina do livre-câmbio, ela não seria pregada quase que exclusivamente pelos autores europeus, e teria igualmente voga nos Estados Unidos. Ainda mais, para formal e decisiva condenação das nossas teorias econômicas, nos Estados Unidos predomina realmente o protecionismo, um protecionismo racional, baseado sobre a observação das conveniências industriais que se apresentam, mas sempre protecionismo real e eficaz que faz com que a grande competidora das indústrias européias possa suplantar os outros países em todas as espécies de artefatos que lhe são convenientes. Basta-nos olhar para o que a grande nação nos apresenta nos produtos de litografia e marcenaria, nos quais deixa a perder de vista os similares que a indústria européia oferece. 24 22 Protecionismo. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 36, 3 de novembro de 1881, p. 1-2. 23 Ver o editorial da Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 37, 6 de novembro de 1881, p. 1. 24 Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 37, 6 de novembro de 1881, p. 1. O Estado deve ter, portanto, uma função central no desenvolvimento industrial do país, protegendo as manufaturas brasileiras da concorrência estrangeira e da ação maléfica dos financistas inescrupulosos: Quando se pede proteção para as indústrias 1º não se pede só elevação de direitos aduaneiros 2º não se pede essa elevação de direitos sobre produtos similares e baixamento dele sobre as matérias primas, senão para as indústrias viáveis, como as de tecidos [...] 3º que a proteção pedida é principalmente contra as fraudes comerciais, que fingem fornecer mais barato e fornecem um barato que sai caro. [...] O Estado é o pai, ou deve sê-lo, das indústrias honestas e o zeloso tutor que as deve defender da ganância dos traficantes. Se não fosse, não teria do direito de varejar as casas de negócio para mandar deitar ao mar os gêneros podres, para fazer respeitar a lei das marcas, para evitar que se venda gato por lebre ao consumidor etc. etc.25 Trata-se aqui, portanto, da defesa do papel do Estado como regulador da economia, como impulsionador do desenvolvimento manufatureiro, e não, ainda, da defesa de sua intervenção direta na produção. Por indústrias viáveis o autor do artigo entende as indústrias que têm condições de se desenvolver no país. No entanto, apesar do artigo mencionar o setor têxtil, não encontramos precisões sobre as demais indústrias “viáveis”, e também não encontramos uma relação das indústrias “inviáveis”. Aparentemente o artigo não está se referindo à famosa distinção entre indústria natural, cuja produção pode se basear exclusivamente nos recursos do país, e indústria artificial, que é obrigada a importar matéria-prima e maquinaria. Esta distinção era justamente usada pelos adversários do protecionismo industrial, que viam neste a defesa de setores parasitários e um fator de aumento do custo de vida no país; as indústrias “naturais”, ao con25 Exposição industrial. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 49, 18 de dezembro de 1881, p. 1-2. trário das “artificiais”, por serem menos custosas seriam para eles capazes de se desenvolver sozinhas, isto é sem a proteção tarifária do governo.26 Qual(is) setor(es) da indústria deveria(m) ser privilegiado(s)? No que diz respeito a esta questão, a Tribuna Militar não parece se definir. Embora encontremos referências a áreas como a militar (esta de forma bastante vaga por sinal)27, a siderúrgica, a têxtil e a alimentícia, não conseguimos perceber uma ênfase especial em alguma delas. Melhor dizendo, não encontramos um setor específico escolhido para a linha de frente do processo de industrialização, como a indústria pesada no projeto econômico dos militares da década de 1930. Os diferentes ramos da indústria são colocados dentro mesmo patamar, sem hierarquização em ordem de importância e prioridade, o que nos leva a crer que se trata aqui mais de uma defesa ideológica da indústria em geral, vista como o único caminho possível para o país atingir sua autarquia econômica, do que de uma defesa baseada em conhecimentos precisos e detalhados. O jornal, por exemplo, não parece se preocupar com o estado de atraso técnico das fábricas brasileiras, que num período em que a grande indústria estava em processo de con26 Sobre o debate indústria natural X indústria artificial, que adquiriu maior notoriedade durante a República Velha, ver LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil (1808 a 1930). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961, capítulo III, Aspectos do pensamento nacionalista brasileiro. 27 O único artigo que encontramos no jornal abordando um setor específico da indústria militar brasileira é o artigo intitulado Construção naval, publicado no número de 30 de outubro de 1881 para comemorar a construção, no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, da primeira canhoneira de ferro fabricada no país. O Ministro da Marinha, Lima Duarte, é homenageado como o grande pioneiro da construção de navios de ferro no Brasil. Para o artigo, “os inimigos de nossa indústria, os incapazes de se inspirarem no sentimento pátrio, aqueles que guerrearam essa gloriosa tentativa, os magister que supunham o operário brasileiro incapaz de seguir as leis evolucionistas do progresso como eles são incapazes de engrandecer nossa pátria senão pelo ridículo das citações de estrangeiros, devem a esta hora estar, não diremos arrependidos porque o arrependimento pressupõe virtude de emendar, mas envergonhados ante a inépcia de suas sentenciosas asseverações. O jornal aproveita, portanto, a ocasião para mais uma investida contra os inimigos da indústria nacional: “Tudo no Brasil padece perseguição, ainda que sejam as mais úteis idéias. Teme-se que o povo se ilustre, se emancipe da velha Europa, viva de si para si. O industrial, o artista, sofre a mais desnaturada guerra desses pedagogos de pergaminho, que com honrosas exceções, se inculcam os sábios, os únicos pensadores, os únicos árbitros do país” (Construção naval. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 35, 30 de outubro de 1881, p. 2). História e Economia Revista Interdisciplinar 57 Um periódico em defesa da indústria nacional... solidação nas grandes potências européias e nos Estados Unidos, não passavam em sua grande maioria de pequenas unidades artesanais ou manufatureiras.28 A ampla satisfação com o estado técnico da indústria brasileira é visível neste artigo sobre a exposição industrial de 1881 no Rio de Janeiro. O artigo revela um ufanismo sem pé na realidade: Deslumbra o aspecto daquele harmonioso conjunto industrial. Perante aquele certame do esforço individual ou coletivo ressalta o vigor e força de vontade de nossos patrícios tão perseguidos pela desgraçada preferência que no país se concede a tudo quanto de ruim nos envia o estrangeiro. Entrar naquela vasta praça de nossa produção é encarar de frente com o maior documento de nossa energia. Aqueles tecidos de algodão, as locomotivas, viaturas produtos de cerâmica... em uma palavra: todo aquele agrupamento da indústria nacional é uma pungente ironia, um sarcasmo vivo lançado àqueles que negam-nos os meios de sermos o que somos pela estulta presunção de que o Brasil é um país essencialmente agrícola. A exposição industrial de 1881 – precipitadamente imaginada, sofregamente resolvida, e atropeladamente realizada, é uma prova, um desmentido solene, que deve a estas horas haver confundido aos inimigos do movimento de nossa independência manufatureira. Aquele palácio está nos dizendo que tudo te28 Francisco Iglésias, ao comentar a evolução da indústria brasileira de 1850 ao fim do Império afirma o seguinte: “Foram empenhos consideráveis, de 1850 a 89: as antigas fiações e tecelagem, generalizadas pelas províncias; as fábricas de chapéus, inúmeras e por vezes bem montadas; retrós, calçados e artigos de couro, vidro, louça, produtos químicos, instrumentos de ótica, náuticos, engenharia; alimentos – açúcar, laticínios, carnes, massas, doces, vinhos, cigarros, sabão, velas; fundições. As unidades em regra são pequenas, as mais comuns são mesmo muito pequenas, destinando-se ao consumo de área restrita – algumas vilas ou a província. São inúmeras no interior, pelas dificuldades de comunicação, pois só em meados do século tem início a rede ferroviária e põe-se empenho nos caminhos de terra, possibilitando assim a chegada de mercadoria litorânea ou estrangeira. Em época de apreciável tecnologia em alguns centros europeus e nos Estados Unidos, o Brasil continua preso a padrões rotineiros, sem adotar o conseguido pelo empirismo ou pela ciência. A sociedade patriarcal resiste á máquina, temerosa de alteração da velha estrutura. Se poucos particulares, com sentido empresarial, instalam em fazendas ou fábricas urbanas a novidade, se o Estado incentiva o gosto e o emprego de inventos modernos, com a importação de alguns, com a concessão de privilégios, isenções e prêmios a quem os admite ou concebe, a extensão das experiências é reduzida” (IGLÉSIAS, Francisco. A industrialização brasileira. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 51-52). 58 História e Economia Revista Interdisciplinar mos e tudo podemos ter sem a cotação da indústria de além-mar. O ferro de nossas fábricas não tem rival, e as rodas de nossos trens aí estão para prova. A marcenaria do país sem competidora no universo ergue-se pujante, rica de matéria-prima. Os produtos naturais, os tecidos, os vinhos, cereais, tudo em uma palavra, do melhor, do mais puro e da mais perfeita aplicação. A agricultura aí está bem representada pela variedade de seus artefatos, máquinas, instrumentos de lavoura e engenhos diversos. Os trabalhos de arame, camas, viveiros, redes, grades e outros acessórios confundem tanto pela variedade como por sua útil aplicação. [...] O deslumbramento que nos deixou a Exposição industrial de 1881, bem como a História do Brasil, nos convence de uma coisa que já há muito vaticinávamos: e é que o Brasil caminha a passos de gigante para o termo de sua grandeza; e que não estará longe o dia de tamanha glória. Abra-se seu seio à [ilegível], e exonere-se nossa nascente e rica indústria das peias que a cercam, rejeitemos os maus produtos da importação estrangeira, e tanto basta para tocarmos a meta de nosso desenvolvimento social.29 Segundo o texto, portanto, a industrialização do país não estaria dependendo de um maior desenvolvimento técnico das fábricas, na medida em que estas aparentemente já produziam produtos de alta qualidade e em quantidade suficiente para abastecer o mercado brasileiro, e sim de uma legislação que dificultasse a entrada dos produtos estrangeiros que concorriam com os nacionais. Este tipo de argumentação se aproxima bastante das reivindicações dos industriais da época, reivindicações de caráter essencialmente classista que pediam medidas governamentais que beneficiassem as fábricas nacionais (aumento de tarifas para produtos estrangeiros similares aos fabricados aqui e redução de tarifas para máquinas e matéria-prima importadas necessárias para o funcionamento das fábricas), sem contudo 29 A exposição industrial. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 49, 18 de dezembro de 1881, p. 3. demonstrar preocupação com a modernização estrutural das unidades industriais e nem com o desenvolvimento geral do país. É este, por exemplo, o teor do discurso da Associação Industrial, entidade fundada em 1880 reunindo representantes de fábricas de tecidos, chapéus, velas, produtos químicos, construções navais, fundições, além de donos de estabelecimentos que ainda estavam no nível artesanal (caldeireiros, serralheiros, latoeiros, alfaiates, marceneiros, carpinteiros), e que se concentrava na defesa de uma política tarifária protecionista; o comprometimento desta associação com a conservação da ordem sócio-econômica pode ser ilustrado pela figura de seu primeiro presidente, o fabricante têxtil mineiro Antonio Felício dos Santos, que também era militante anti-abolicionista.30 Esta associação entre de um lado protecionismo e industrialismo e do outro livrecambismo e agrarismo precisa, inclusive, ser nuançada: num país cujo setor industrial não somente é arcaico como desinteressado em se modernizar, as medidas protecionistas, ao invés de estimular o desenvolvimento industrial do país, podem simplesmente freá-lo. É esta linha de pensamento que levou Napoleão III, o esclarecido chefe de Estado da França de 1848 a 1870, assim como grande defensor da industrialização, a adotar uma política livre-cambista: ao mesmo tempo em que defendia a intervenção do Estado na economia e punha em prática um vasto programa de desenvolvimento abrangendo as vias de comunicação (estradas, telégrafos, navegação fluvial e sobretudo a construção de uma imensa e complexa rede ferroviária), a infra-estrutura (modernização das cidades e dos portos), a modernização da agricultura e o desenvolvimento industrial (este último através da criação de 30 Toda esta discussão sobre a relação entre o desenvolvimento industrial autônomo do país e protecionismo alfandegário está presente no clássico de Nícia Vilela Luz (LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil). Para o anti-abolicionismo de Felício dos Santos, ver GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 23. um setor bancário dedicado especificamente ao financiamento das atividades industriais), realizava a partir de 1860 uma política de redução de tarifas permitindo a entrada dos produtos manufaturados ingleses e obrigando desta forma o arcaico setor manufatureiro francês a se tornar mais competitivo e a se transformar em grande indústria.31 Além do mais, apesar de abolicionistas, os articulistas da Tribuna Militar não parecem fazer a associação entre escravismo e atraso industrial, aparentemente não levando em conta os obstáculos, impostos pela escravidão, à formação de um mercado de trabalho baseado numa mão-de-obra livre e assalariada, sem o qual não pode haver desenvolvimento capitalista.32 O seu abolicionismo é mais de cunho moral e político, isto é, uma revolta contra o caráter injusto da ordem escravista, do que fundado em preocupações econômicas. Podemos dizer, portanto, que para a Tribuna Militar, uma política de desenvolvimento industrial deveria consistir essencialmen31 Através de um tratado comercial assinado com a Inglaterra em 23 de janeiro de 1860, a França se comprometia a reduzir as tarifas sobre o carvão e os produtos manufaturados ingleses, enquanto que a Inglaterra se comprometia a reduzir as tarifas sobre o vinho, o álcool e produtos acabados (como os de moda e de luxo) franceses. Apesar de a primeira vista parecer “agrarista” por prejudicar as manufaturas francesas, esta medida foi acompanhada por uma política de financiamento da indústria nacional através de um setor bancário dedicado especialmente ao investimento industrial (caso do Crédit Mobilier). De qualquer forma, a política de desenvolvimento de Napoleão III em seu conjunto foi decisiva para a posterior transformação da França em país industrial. Para a política tarifária e financeira de Napoleão III, ver GERSCHENKRON, Alexander. El atraso económico en su perspectiva histórica. In: GERSCHENKRON, Alexander. Atraso económico e industrialización. 2ª ed. Barcelona: Editorial Ariel, 1973, p. 17-25. Para uma visão geral do governo de Napoleão III, ver ANCEAU, Éric. La France de 1848 à 1870: entre ordre et mouvement. Paris: Librairie Générale Française, 2002. 32 Para Jacob Gorender, “o modo de produção capitalista é absolutamente incompatível com o trabalho escravo. Seu desenvolvimento depende da formação de um mercado de mão-de-obra despossuída, abundante e juridicamente livre para ser assalariada, sob contratos de trabalho rescindíveis quando convier ao empregador”. Para este autor, “esse tipo de mercado de mão-de-obra começou a se constituir no Brasil na segunda metade do século XIX, porém sua expansão permaneceu fortemente restringida enquanto subsistiu a instituição servil. A persistência da escravidão fazia do ócio apanágio do homem livre, de tal maneira que muitos despossuídos preferiam a marginalidade e a indigência ao trabalho assalariado. Também a imigração de trabalhadores europeus, enquanto sobrevivesse a escravidão, encontraria sérios impedimentos” (GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira, p. 19-20). História e Economia Revista Interdisciplinar 59 Um periódico em defesa da indústria nacional... te numa proteção às fábricas já existentes, o que de fato para nós está mais próximo da defesa dos interesses de uma fração de classe (a burguesia manufatureira nacional) do que de um verdadeiro projeto contestador e alternativo ao caráter agro-exportador da economia brasileira. Podemos, resumidamente, expor as principais posições da Tribuna Militar que analisamos atrás: no terreno militar, preocupação com a segurança do país ameaçada pelo expansionismo argentino; no terreno político, crítica virulenta ao atraso e ao exclusivismo da elite brasileira, isentando, no entanto, a monarquia e a figura do Imperador; no terreno social, apoio à causa abolicionista; e no terreno econômico, defesa da transformação do Brasil de país agrícola em país industrial. No que diz respeito especificamente às posições industrializantes do jornal, constatamos a pouca precisão dos artigos do periódico quanto aos setores da indústria que deveriam ser privilegiados numa política de desenvolvimento e a ausência de preocupação quanto ao atraso técnico das fábricas brasileiras, as tarifas protecionistas aparecendo aqui como suficientes para viabilizar o desenvolvimento industrial do país. Além do mais, a condenação da elite agrária que dominava o país não é acompanhada por uma contestação da estrutura fundiária: ao contrário do tenentismo do início da década de 1930, não encontramos aqui um projeto de reforma agrária e de destruição do latifúndio improdutivo, as críticas do periódico, já prenunciando o jacobinismo florianista, visando de preferência setores como o grande comércio urbano. 33 Para o jor33 A preocupação do jornal com a ação nefasta dos comerciantes inescrupulosos e parasitários levaria à publicação de uma série de nove artigos intitulada Praxes comerciais, cujo objetivo, ao parafrasear artigos de Herbert Spencer sobre as práticas comerciais na Inglaterra, era denunciar as atividades parasitárias dos grandes grupos comerciais no Brasil (imaginamos que a comunidade portuguesa do Rio de Janeiro estivesse particularmente visada). No segundo artigo da série encontramos uma interessante análise das atividades do grande comércio atacadista, e mais especificamente da figura intermediária do comprador, funcionário das grandes casas comerciais cuja função era 60 História e Economia Revista Interdisciplinar nal, o papel reservado ao Estado no processo de industrialização deveria ser o de regulador das atividades econômicas e o de impulsionador do desenvolvimento industrial; não se trata ainda, portanto, de uma defesa da intervenção direta do Estado na produção, esta só acontecendo de forma sistemática mais de meio século depois, com a criação das indústrias estatais de base pelo Estado Novo. Os articulistas da Tribuna Militar, inclusive, não parecem fazer a distinção entre as atividades de transformação que ainda estão no nível artesanal (que acontecem em oficinas onde o trabalhador manual fabrica inteiramente o produto com seus próprios instrumentos de trabalho), as que estão no nível manufatureiro (que acontecem em unidades maiores, as fábricas, onde um tipo de mercadoria é produzido em escala maior e com maior velocidade, e onde há uma divisão do trabalho na qual cada trabalhador se especializa na fabricação de uma parte do produto, o trabalho sendo em geral manual com o uso de máquinas para tarefas secundárias) e as que já podem ser classificadas como grande indústria (que acontece em grandes unidades onde a mercadoria é fabricada em grande escala e velocidade e onde domina a produção mecanizada)34. Como pudemos constatar na leitura dos textos que transcrevemos aqui, setores da economia nacional que estão no nível manufatureiro, como o têxtil e a fabricação de ferro, e setores que estão no nível artesanal, como a comprar as mercadorias dos fabricantes e vendê-las para os pequenos comerciantes retalhistas, usando de todos os artifícios, inclusive da corrupção, para conseguir efetuar suas transações com o maior lucro possível, explorando desta forma a todos (fabricantes, comerciantes retalhistas e consumidores). Ver Praxes comerciais II. Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano I, no. 45, 4 de dezembro de 1881, p. 1-2. 34 A questão da diferença entre artesanato, manufatura e grande indústria está presente em SODRÉ, Nelson Werneck. História da burguesia brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, ver capítulo Antecedentes, item Capitalismo e burguesia (p. 17-30). Ver também SODRÉ, Nelson Werneck. Fundamentos de economia marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, capítulo Expansão manufatureira, onde o autor seleciona trechos de Karl Marx sobre a formação da manufatura e a transformação desta em grande indústria mecanizada. marcenaria e a cerâmica, são igualmente classificados como atividades industriais sem maiores distinções, o que nos leva a crer que o conceito de indústria ainda não era, naquele momento, muito preciso (talvez até por se desconhecer a amplitude que estava tomando o desenvolvimento industrial nas grandes potências européias e nos Estados Unidos). No entanto, é bom ressaltar, o jornal distingue bem essas atividades de transformação (sejam elas artesanais ou manufatureiras) das atividades agrícolas e pastoris: melhor dizendo, não encontramos em nenhum momento uma referência às atividades agrícolas e pastoris como sendo atividades industriais, não sendo encontradas expressões como “indústria do café”, “indústria do açúcar” e “indústria pastoril”. A indústria é encarada aqui como atividade de transformação de produtos primários em produtos artesanais ou manufaturados, e não simplesmente como “atividade econômica produtiva” (em contraposição a atividades econômicas “improdutivas” como o comércio e os bancos), na qual poderiam ser inseridas a agricultura e a pecuária. O que podemos dizer, de qualquer forma, é que as posições do periódico a respeito das questões econômicas apresentam uma desproporção entre a grandeza de seu principal objetivo (como dissemos, transformação do Brasil de país agrícola em país industrial) e os limites dos meios concebidos para atingi-lo (medidas de proteção a um setor manufatureiro embrionário e sem envergadura). Quem seriam os articulistas da Tribuna Militar? Como frisamos no início deste trabalho, os artigos do periódico não são assinados. No entanto, podemos levantar pelo menos três hipóteses sobre a sua autoria, hipóteses que no nosso entender se completam. A primeira delas é a de que os autores dos artigos pertenciam ao Exército, e não à conservadora e aristocrática Marinha, cuja identificação com a ordem vigente era maior.35 A segunda é a de que se trataria de alunos militares ou oficiais em início de carreira, já que para nós o tom inflamado dos artigos denuncia a juventude de seus autores. E a terceira é a de que seriam oficiais pertencentes às chamadas armas técnicas (estado-maior, artilharia e engenharia), isto é uma oficialidade qualificada, que por sua formação acentuadamente científica e baseada nos moldes dos exércitos da Europa burguesa, tenderia naturalmente a abraçar projetos econômicos industrializantes; acreditamos que esta preocupação atingiria com menos força, por exemplo, os oficiais pertencentes à infantaria e à cavalaria, menos influenciados por essa formação científica. 36 Esta questão do peso da formação científica no pensamento desenvolvimentista dos militares brasileiros é bastante enfatizada por autores como John Schulz37e Jehovah Motta38. Não descartamos, inclusive, a hipótese 35 A Marinha teria atuação apagada nas agitações político-militares da década de 1880, assim como aceitaria passivamente a derrubada do regime imperial, provavelmente por não possuir forças para enfrentar a ação política da oficialidade revolucionária do Exército. Posteriormente, já no início do período republicano, a alta oficialidade naval se envolveria nas lutas políticas, só que assumindo uma postura contrarevolucionária, encarnada no monarquismo de Saldanha da Gama. 36 Segundo as normas então vigentes no Exército, estabelecidas por lei de 1850, os oficiais de estado-maior, artilharia e engenharia eram obrigados a concluir curso de nível universitário para suas respectivas armas, enquanto que os oficiais de infantaria e cavalaria podiam ascender na carreira sem diploma (ver SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894, capítulo 1, 1850 – Uma carreira se abre ao talento). 37 Para Schulz, “não é de surpreender que os jovens oficiais tenham se rebelado contra a ordem imperial. Nos anos cinqüenta, a academia militar da capital continuou a ser uma ilha de instrução em uma sociedade constituída por uma maioria analfabeta. Os estudantes militares liam muito e tinham uma melhor noção dos acontecimentos internacionais do que a maioria dos seus compatriotas. Instruídos por engenheiros, os estudantes reconheciam a importância da indústria e de novos métodos de transporte como, por exemplo, as ferrovias. [...] Já na década de 50, os estudantes militares reconheciam que a abolição fornecia a base para a modernização. Os oficiais tampouco ignoravam que elite fazendeira, fundamentada na escravidão e no empreguismo, era o principal obstáculo ao progresso do Brasil” (SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894, p. 31). Ao falar dos “anos cinqüenta”, o autor está se referindo, neste trecho, à década de 1850. 38 Jehovah Motta assim descreve o peso da formação científica na mentalidade desenvolvimentista do militar brasileiro: “o Exército pode ostentar a glória de ter organizado os primeiros estudos de engenharia que se realizaram no Brasil. [...] Durante muitas décadas foram formados pelo Exército os engenheiros com que o Brasil contou. Os primeiros trabalhos de topografia e de geodésia, os primeiros canais, as primeiras e indecisas estradas rumo ao interior foram obras de engenheiros formados pela Academia Militar. Partindo desse fato, não é de estanhar-se a vocação do homem de farda brasileiro para encarar os problemas do País em termos de criação e administração da riqueza nacional. O História e Economia Revista Interdisciplinar 61 Um periódico em defesa da indústria nacional... de Serzedelo Corrêa, engenheiro militar que nasceu em 1858 e que se tornaria um notório militante em defesa da indústria nacional, ser um dos articulistas do jornal. 39 Embora seja notória a preocupação desses militares com a segurança do país e a modernização das Forças Armadas, não acreditamos que tenham sido, pelo menos prioritariamente, razões de defesa que levaram os militares brasileiros a abraçar um projeto industrializante; ou seja, no nosso entender não se pode confundir este projeto industrializante com reivindicações de caráter corporativo. Embora, à primeira vista, a idéia de que a frustração das reivindicações por melhorias na área militar (demandas por mais verba, melhores salários, melhor equipamento, infra-estrutura, etc.) teria levado a uma radicalização política da oficialidade contra o Império e à adoção de um projeto de desenvolvimento alternativo seja atraente, se analisarmos mais detalhadamente o contexto histórico da rebelião militar contra a monarquia veremos que uma insatisfação de cunho exclusivamente corporativo não pode justificar, por si só, a adoção de um projeto político, social e econômico para o país. O oficial preocupado exclusivamente com questões de cunho técnico-profissional exercerá uma militância que não transcenderá a área militar. Podemos perfeitamente encontrar oficiais defendendo ao mesmo tempo melhorias na área militar e a manutenção da ordem política, social e econômica vigente: militares ligados ao estabelecimento imperial como Caxias, Osório, Pelotas e o conde d’Eu, por exemplo, por diversas vezes pleitearam medidas para corrigir as deficiências Exército, no Brasil, tem estado presente, sempre, nas lucubrações e nas realizações do pioneirismo administrativo. Isto no passado, quando se tratou de estradas de ferro, de linhas telegráficas, de siderurgia e, no presente, quando as questões se chamam petróleo e industrialização” (MOTTA, Jehovah. Formação do oficial do Exército: currículos e regimes na Academia Militar 1810-1944. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001, p. 22). As observações deste autor são particularmente interessantes na medida em que foi oficial de estado-maior do Exército e técnico de ensino para as escolas desta instituição. 39 Agradecemos ao nosso orientador, Prof. Nelson Hideiki Nozoe, por ter levantado esta hipótese. 62 História e Economia Revista Interdisciplinar da organização militar brasileira.40 Esta distinção entre militares voltados para um projeto de país e militares voltados exclusivamente para a modernização das Forças Armadas será mais nítida durante a República Velha, quando encontraremos oficiais como Hermes da Fonseca, Cardoso de Aguiar, Tasso Fragoso, Caetano de Faria e o grupo dos jovens turcos defendendo a modernização do Exército e até a implantação de indústrias estratégicas (siderurgia e armamento) sem, contudo, contestar a natureza sócio-econômica da república oligárquica.41 Para nós, portanto, como expomos no parágrafo anterior, o projeto econômico industrializante que encontramos de forma embrionária na Tribuna Militar e que marcaria a atuação política dos militares brasileiros por muito tempo, teria como origem uma oficialidade qualificada, educada com base nos padrões da oficialidade militar das grandes potências européias e com acentuada formação técnica, e que estaria insatisfeita, conseqüentemente, com a estrutura sócio-econômica, agrária e atrasada, de seu país.42 Esta linha de pensamento, caracte40 A questão das reivindicações da oficialidade em prol da modernização da organização militar brasileira no período posterior à Guerra do Paraguai é trabalhada em SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894, capítulo 4, O Exército desprezado, DUDLEY, William S. Institucional Sources of Officer Discontent in the Brazilian Army, 1870-1889 e DUDLEY, William S. Professionalization and Politicization as Motivational Factors in the Brazilian Army Coup of 15 November, 1889. Journal of Latin American Studies. Cambridge University Press, Vol. 8, Part I, May 1976, p. 101-125. Para este último autor, a frustração dessas reivindicações corporativas pode no máximo, no caso do 15 de novembro de 1889, explicar a má vontade da oficialidade menos politizada em defender a monarquia diante da ação dos militares rebeldes, mas não a ação revolucionária em si. 41 A questão das reivindicações modernizantes de caráter corporativo dos militares brasileiros ao longo da República Velha é bastante explorada por Franck D. McCann (ver McCANN, Frannk D. Soldados da Pátria: história do exército brasileiro, 1889-1937. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, especialmente os capítulos 4 (Patriotismo e modernização), 5 (Profissionalismo e rebelião) e 6(O Exército na década de 1920)). Quando falamos dos jovens turcos, estamos nos referindo a um grupo de jovens oficiais do exército brasileiro que estagiaram na Alemanha no final da década de 1900 e no início da década de 1910 e que de volta ao seu país passaram a militar pela modernização de sua instituição com base nos moldes alemães, ganhando o apelido de jovens turcos por lembrarem a jovem oficialidade reformista do exército turco naquele mesmo período (ver CARVALHO, José Murilo de. As Forças Armadas na Primeira República: o poder desestabilizador, p. 27-28, e McCANN, Frannk D. Soldados da Pátria: história do exército brasileiro, 1889-1937, o mencionado capítulo 4). 42 Para Nelson Werneck Sodré, oficial do Exército e defensor convicto do papel desenvolvimentista das Forças Armadas no Brasil, a função destas últimas deveria ser a de assegurar as liberdades democráticas e “assegurar o livre desenvolvimento da economia nacional”. Em obra publicada originalmente em 1965 o autor citado diz o seguinte: “Não rística de grupos militares do mundo subdesenvolvido, guiaria não somente, como dissemos, as posteriores intervenções políticas dos militares brasileiros, como também, por exemplo, a ação de Mustapha Kemal na Turquia, de Nasser e do grupo dos Oficiais Livres no Egito e de Velasco Alvarado e seus correligionários do Centro de Altos Estudos Militares no Peru. Finalmente, encontramos no editorial do último número um trecho que de certa forma sintetiza a ideologia do jornal: A exemplo das nações mais adiantadas, o Brasil precisa fazer-se respeitar, e para que o seu pavilhão seja elevado à altura que lhe compete nunca poderá prescindir do eficaz, sempre eficaz apoio das suas baionetas. Há no progredir dos povos tantos interesses divergentes, tantas ambições mal entendidas, e diremos mesmo, tantas anomalias em seus modos de pensar, que somente pelo respeito que impõe o exército, a força armada de um deles, poderá sempre ter a primazia e ser respeitado, se não pela força do direito, ao menos pelo direito da força. Longe de nós a propaganda da Nação em constante pé de guerra. Não. Nunca! O Brasil deve prosperar pela indústria, pela agricultura e pela ciência. O exército, o seu exército, servir-lhe-á então somente de escudo, a cuja sombra descanse garantida toda a sua riqueza, todo o seu futuro. 43 Esta preocupação com o desenvolvitem sido mera coincidência, evidentemente, a participação das Forças Armadas na solução de problemas como o da exploração petrolífera em regime de monopólio estatal, como o do aproveitamento dos nossos recursos em minerais atômicos, como o do desenvolvimento da siderurgia, e tantos outros. Tem derivado, naturalmente, do cumprimento daquela parte da missão que lhes cabe, e que se conjuga com a outra parte, a da manutenção das liberdades democráticas. Não seria possível a existência de Forças Armadas nacionais sem o cumprimento daquela missão, com o distanciamento de seu cumprimento, com o alheamento do que interessa ao país para a realização de seu desenvolvimento material: ao participar, como instituições, da gigantesca tarefa de desenvolvimento em bases nacionais, pelo aproveitamento das riquezas naturais em benefício do país, e não de outros países, as Forças Armadas colocam-se, inevitavelmente, ao lado das forças populares, e distanciam-se, inevitavelmente, do latifúndio e do imperialismo, os interessados em transferir tais riquezas ao exterior, em entregá-las aos trustes e monopólios externos” (SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil, p. 409). 43 Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz, ano II, no. 20, 12 e 16 de março de 1882. mento industrial dentro dos meios militares (pelo menos nos setores mais progressistas das Forças Armadas) aumentará durante os primeiros anos do regime republicano, com a ascensão, mesmo que por pouco tempo, do grupo militar ao poder. Cabe um destaque especial para o florianismo, movimento político-militar que girou em torno de Floriano Peixoto, que por sua vez é em geral considerado pela historiografia como um dos presidentes que mais dedicou esforços à indústria durante a Primeira República. 44 Em seus discursos, o Marechal de Ferro defendia, entre outras coisas, uma política industrializante e uma política de expansão das vias de comunicação; durante seu governo (1891-1894), sua política de apoio às atividades industriais se baseou essencialmente na introdução de tarifas protecionistas e num vultoso empréstimo público concedido a empresas manufatureiras em dificuldades financeiras. 45 Outro exemplo histórico a ser destacado dentro deste contexto é a militância do já citado Serzedelo Corrêa em defesa da indústria nacional: integrante da jovem oficialidade do grupo de Benjamin Constant que participou ativa e decisivamente da conspiração militar que derrubou a monarquia, Serzedelo se notabilizou como Ministro da Fazenda de Floriano Peixoto em 1892-1893 por sua responsabilidade nas já mencionadas medidas deste governo em apoio ao setor manufatureiro, e posteriormente, na década de 1900, se tornaria um arauto dos interesses da indústria nacional (para ele o único caminho para o país atingir sua independência econômica) 44 É o caso, por exemplo, dos trabalhos de Nícia Vilela Luz (LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil (1808 a 1930)), de John Schulz (SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894), de Steven Topik (TOPIK, Steven. A presença do Estado na economia política do Brasil de 1889 a 1930. Rio de Janeiro: Record, s/d) e do grupo História Nova do Brasil (ver o ensaio O significado do Florianismo. In: SANTOS, Joel Rufino dos. História nova do Brasil. Vol. IV: Abolição – Advento da República – Florianismo. São Paulo: Brasiliense, 1964, p.103-159). 45 Para uma análise da política econômica do governo Floriano, ver LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil (1808 a 1930), p. 169-172, SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894, p. 176-181, TOPIK, Steven. A presença do Estado na economia política do Brasil de 1889 a 1930, p. 157-162, e o ensaio O significado do Florianismo. In: SANTOS, Joel Rufino dos. História nova do Brasil. Vol. IV: Abolição – Advento da República – Florianismo, p. 125-130. História e Economia Revista Interdisciplinar 63 Um periódico em defesa da indústria nacional... no parlamento e na imprensa, vindo a ser, entre 1904 e 1912, o primeiro presidente do Centro Industrial do Brasil. 46 No entanto, como vimos, este tipo de projeto é moderado se o comparamos com o projeto econômico dos militares da década de 1930, os militares do final do século XIX se limitando a uma defesa genérica da indústria e a uma política econômica no fundo ainda situada dentro dos moldes liberais (incentivo às atividades industriais sem intervenção direta do Estado na produção), além de não mostrar preocupação com o estado arcaico das fábricas brasileiras. 46 Para uma síntese da trajetória política de Serzedelo Corrêa, ver LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil, capítulo III, Aspectos do pensamento nacionalista brasileiro. 64 História e Economia Revista Interdisciplinar Para um maior desenvolvimento do projeto econômico militar seria preciso o surgimento de fatores externos, como a Primeira Guerra Mundial, onde a ligação entre de um lado o poderio bélico e do outro a grande indústria e o planejamento econômico ficaria mais evidente, e fatores internos, como o desenvolvimento industrial proporcionado pela expansão da economia cafeeira ao longo da República Velha, desenvolvimento que tornaria o contexto sócio-econômico mais favorável à elaboração de projetos de maior envergadura. BIBLIOGRAFIA O nihilista: orgao dos operarios, do exercito e da armada. Rio de Janeiro, 1883 (números 22 e 23 disponíveis em versão micro-filmada no Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil, Coleção de Periódicos). Tribuna militar: orgão das classes militares e dos interesses geraes do paiz. 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This capital was mainly British and was allocated to building railroads. This paper tells the story of the main elements in the formation and financing of railroads in Argentina within the context of the territorial expansion and the role played by them in this period of large outflows of British capital. The subject is divided into three segments. In the first one, the focus will be on the 1860s, when the railroads began to be built in Argentina and the British capital was already predominant. The second one deals with the process of territorial expansion, showing the relation between the Desert Campaign and the railroads. The third one approaches the consolidation phase of the Argentine railroad companies which began in the 1880s. Key words: Argentina; foreign investments; railroads; territorial expansion; border Resumo No final do século XIX a Argentina experimentou uma fase de expressivo crescimento econômico, a Belle Époque, representada por uma forte presença de produtos, trabalho e de capital externo. Este capital foi principalmente britânico e destinado a construção de estradas de ferro. Este trabalho examina a formação e o financiamento das estradas de ferro na Argentina no contexto da expansão territorial e do papel assumido pelas mesmas no período de grande expansão do capital britânico. O tema do artigo é desenvolvido em três partes. Na primeira é examinado o início da construção das estradas de ferro na Argentina nos anos 1860, período em que já existe a preponderância do capital britânico. A segunda trata do processo de expansão territorial, destacando a relação entre a Campanha do Deserto e as estradas de ferro. A terceira aborda a fase de consolidação das companhias de estradas de ferro argentinas iniciada nos anos oitenta. Palavras-chaves: Argentina; investimento externo; estradas de ferro; expansão territorial, fronteira JEL CLASSIFICATION: N16; L92; F21 * This paper is a slightly modified version of a presentation given in the Annual Conference of The Economic History Society, held in Leicester, England, 8-10 April, 2005. I would like to thank Roberto Camps de Moraes for the final revision of the English translation and the addition of new items to the bibliography. Of course, any errors or omissions are the responsibility of the author. História e Economia Revista Interdisciplinar 67 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... Introduction I n the late 19th century Argentina went through a period of major economic growth, the so-called Belle Epoque, characterized by a strong foreign component in products, labor and especially capital. The latter was mainly British and was directed to the construction of railroads. The need for these railroads came from the impressive territorial expansion that occurred in the country at the time and whose outcome determined the dimension of the Argentine territory of today. This huge border expansion included the incorporation of large areas of fertile land, which enabled the country to produce goods in high demand in the international market. Hence, this “export-led” economic expansion was the product of two interconnected factors: the Desert Campaign and the construction of railroads. This paper intends to examine the formation and financing of railroads in Argentina within the context of the territorial expansion and the role played by them in this period of large inflows of British capital. The subject will be divided into three main segments. In the first segment the focus will be on the 1860s, when the railroads began to be built in Argentina the British capital was already predominant. The second segment will deal with the process of territorial expansion, showing the relation between the Desert Campaign and the railroads. The third one will approach the new expansion and consolidation phase of the Argentine railroad companies which began in the 1880s and were part of a larger period in Argentine economic growth, made possible by the massive British capital inflow in the country. This paper shows that the great territorial expansion due to the Desert Campaign impacted and was impacted by the construction of railroads, via the incorporation of vast areas of fertile land which, by their production, not only made 68 História e Economia Revista Interdisciplinar possible the final territorial consolidation of the country but also revolutionized its economic development. 1. The Beginning and the Meaning of the Construction of Railroads in Argentina: the Influence of the British Companies The construction of railroads was fundamental in Argentina, being a main factor in the Desert Campaign and in the inflow of English capital which molded the country’s economic growth process. The Argentine politicians and leaders were very aware of, and actively pursued, the goals of economic expansion. In the early 19th century most leaders in Latin America were eager to increase the quality of their countries’ social conditions but few went as far as Argentina where her Constitution of 1853 had a law that mandated the construction of railroads in the country. The choice of railroads as the main means of development for the country came from the understanding that the territorial safety and consolidation were the two essential elements to reach development. The territorial consolidation was key, particularly in areas where the borders were poorly defined or where vast areas were inhabited by indigenous Indians. Also, the issue of safety did not apply only to foreign aggression: domestic instability, as well as regional rivalries and antagonisms were equally powerful forces confronting the central government, making the establishment of safety essential for the national authority over the provinces. There is a lengthy literature emphasizing the innovative nature of the railroads. They are usually shown as elements that generate new patterns of economic activity and consolidate existing products, as they allow the discovery of new regions and new alternatives for the exportable surplus . On the other hand, some scholars have argued that the construction of railroads in Latin America seldom promoted national consolidation since the configuration of the railways, instead of promoting endogenous diversification, their construction is almost exclusively determined by the requirements of export production and foreign trade. The railroads were always viewed as a fundamental part in the Argentine national construction project, where the appropriation of the Pampas was a strategic achievement. This is why it is not difficult to find very explicitly the link between the development of infrastructure and the consolidation of the state in the writings of the great Argentinean statesmen. At its beginnings the construction of the railroads was slow due to several circumstances. One of these was the large distances between the points where the thinly spread population lived. Another was the difficulty to raise domestic capital due to the traditional lack of public confidence in steam transportation, which was then seen with suspicion and fear and often with open hostility. The pioneering railroads linked Buenos Aires, the capital, to the port of Rosário, which was considered a natural route toward the rich provinces of Córdoba, Mendoza, San Juan, Tucumán, Salta, and others. Despite the enormous influence the British companies would have on the country, the first railroad came from a private initiative by Argentine citizens from Buenos Aires, under the leadership of William Bragge1, an English citi1 William Bragge is considered a “railroad pioneer”. In his youth, he began to study railroads as a representative of Bellhouse and Company of Manchester and he was sent to Buenos Aires in 1855 to construct the first Argentinean railroad. Hennessy (1992). zen born in Birmingham. In 1854, the province of Buenos Aires was authorized to create a jointstock company of Argentine investors in order to construct the Camino de hierro del Oeste or Ferrocarril Oeste company. In its original plan it would have 24,000 ells of extension2, and the government had the right to buy one-third of the stocks. The inaugural ride took place on August 29th, 1857 as its first 10 km of length were complete. It must be stressed that this first railroad suffered from several inconveniences, the most serious being the brackish water available, which ruined the locomotives. According to Lewis (1985), the establishment of this first section of the Ferrocarril Oeste Company in 1857 is inseparable from Argentine economic history3. In 1860 Ferrocarril Oeste was already 39 km long and had five stations, constituting a small but complete and working railway system. However, its financial status was critical, experiencing deficits of 24,000 gold pesos in 1856 and 1860, that led to its becoming a state company in January of 1863. On April 29th, 1890, 33 years later, Ferrocarril Oeste was incorporated in to a British company, the Buenos Aires Western Railway. The deal was made with H.G. Anderson who bought Ferrocarril Oeste through a labor union that in fact represented the Western Railway company for 8,134,920 pounds, equivalent to 41,000,000 peso/gold, or peso, the nation’s currency. (Ortiz, 1983). Despite this local experience, the large railroads were established in Argentina only when the British companies arrived, what leads 2 What stands for 20,784 meters. 3 Stone (1992, p.1) states, however, that the adoption of railroads was late, even considering the efforts of the Argentine government, because in 1857 they already existed in the British Guyanas, in Peru, Chile and Brazil. Besides, Cuccorese (1969) states that, considering the fact that the inauguration of the American railroads took place in 1830, when Argentina inaugurated its first company 30 years later, the United States had already built over 30,000 miles. História e Economia Revista Interdisciplinar 69 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... to the statement that it is impossible to talk about railways without mentioning British capital because their paths are intertwined from the start. It is important to highlight that when the railways era began in Argentina, Great Britain was at the peak of its prosperity in relation to coal and railroads, which were the main source of its second Industrial Revolution in the 19th century. Also, Great Britain had entered the Climacteric, a term used by Lewis (1978) to refer to this period when British capital, instead of being invested domestically, flowed out to the rest of the world4. Hence the two countries complemented one another and Argentina chose England to seek for technical and financial help to construct its railways that eventually became the largest and most important in South America. The first British-owned railway in Argentina was the Buenos Aires Northern, a company which was constituted in London in 1860 to take over a concession to build a short broad gauge line from Buenos Aires to San Fernando, a distance of 16 miles. The first section was opened in 1862 and was finally extended a further two miles from San Fernando to the riverside re- sort of Tigre in 1865. The Buenos Aires Northern was the second to be constructed in Argentina and the subsequent growth and development of the British-owned railways is illustrated in Table 1, up to 1948, when they were nationalized (Stone, 1993). Looking at table 1, we identify the great share of mileage under the control of the British companies at that time. In the early development period six British railway companies worked in Argentina. They were created through deals between the national government and the provincial government. Among them, two – Central Argentine Railway and Buenos Aires Great Southern Railway – came to top the ranking among the Argentine railways and became large transportation systems. The others – Buenos Aires Northern, Buenos Aires and Enseada Railway, Buenos Aires Campana and East Argentine Railways – were all small ones. The organization, administration, and “modus operandi” of the British railways in Argentina were based largely on the system adopted in Great Britain and adapted to meet local conditions and requirements. The Board and official headquarTable 1 Relation between the Total Railways and British-Owned ters of each comRailways- 1862 - 1948 pany were located Milage in Operation in London with adTotal of all railways Year Britsh-owned railways % under British control ministrative offices 29 1862 5 17 and a legal repre155 1865 98 63 sentative in Bue1870 455 74 339 1890 5861 4766 81 nos Aires or other 17395 1910 12955 74 23688 1930 city in Argentina. 16349 69 1940 25285 15198 60* The latter acted as 1948 26710 15198 57 an intermediary (Stone, 1993, p.3) between the Board of directors and the Argentine government on the 4 This climacteric was the subject of an academic controversy in economic history. J. Bradford De Long (1996) summed up its outcome one hand and the General Manager on the other. as “Attempts to find a ‘climacteric’ or a ‘productivity’slowdown’ in the pre-World War I British economy have failed to find anything save a Each company also had a local board in Argenpossible one-decade period of Edwardian stagnation in real wages.” tina comprising the General Manager, Legal Re(De Long, 1996). For this topic see Saul (1985). 70 História e Economia Revista Interdisciplinar presentative, and several resident directors. The local boards met at frequent intervals and were empowered to deal with questions of policy requiring immediate attention, leaving the day to day railway affairs to be handled by the respective administrations organized generally on a departmental basis. (Stone, 1993). It is important to remark that the role of government in Argentina was very strong concerning the orientation of investment. The federal and provincial governments not only recommended that the private businesses search for loans in the international capital markets in order to finance railroads and ports, but also guaranteed their profits. Thus, from the start the Argentinean government treated generously the British investor who took risks in the railroad project. In the initial contract the government not only gave a guarantee of 7% of the subscribed capital and the per mile construction, but also agreed to grant the possession of one league (approximately three miles, or 4, 8 kms) of land on each side of the total constructed line to the railroad company, with certain limitations near important cities such as Rosario and Córdoba. Later on the contractors accepted from the companies one half of this land as a means of a partial payment in the prices of their contracts. Although the guarantee of minimum profits on the capital given by the government was a strong factor to attract foreign investment in railroads, many of these companies opted out of this guarantee, since frequently their profits surpassed the established limits and then they were free to define their fares. For their size and importance, the Central Argentine Railway and the Buenos Aires Great Southern Railway, the second and the first railway companies, respectively, had a different character, history and purpose. The construction of the Central Argentine Railway began in 1854 through a petition formulated by Guillermo Wheelwright5 to explore an important railway between Rosario and Córdoba. The construction began in 1863 and it was inaugurated on May 18th, 1870. In the words of the then Secretary of Interior, Dr. Dalmacio Velez Sarsfield: Os diré solamente que los ferrocarriles han puesto también en evidencia una verdad también comprobada en los principios de economia social. Que ellos sirvan en igual grado a intereses que parecen inconciliables, los del productor y el consumidor, siempre el principio de la armonía en todas las profisiones, en todas las industrias, siempre la solidaridad en todos los intereses de la vida de los pueblos, la industria de uno crea la industria de otro; la riqueza particular es una riqueza en expectativas para todos.”6 (Inauguración- 18 de Mayo de 1870. Argentina, Biblioteca do Banco Central “Ernesto Tornquist. Los Ferrocarriles Britanicos en la Republica Argentina, sn, 1948, p.15). It is important to relate the construction of railways to the formation of the Argentine banking system since often the British personnel involved in both were the same people. The table below was obtained in the Archivo Nacional among important historical documents; it lists the first founders of the Bank of Buenos Aires. Table 2 indicates that the bank was formed by leading local figures who would become important political individuals in the country. It includes politicians such as Julián Aguero, ministers of such state as Bernardino Rivadavia and Vicente López, and also influential people of British origin such as Tomás Manuel de Anchorena (Stewart y Ca) and Guillermo Cartwright. Likewise if one examines the formation of the Banco de la Provincia, founded in 1883, 5 Although American by birth, William Wheelwright was a member of the “British Group”, promoters of railways in Argentina. 6 Translation of the original: I only say to you that the railways have also put in evidence a truth that exists in the principles of social economy. That they serve to the same degree seem ingly irreconcilable interests, the producer and consumer, with the principle of harmony in all the professions, in all industries, where solidarity in all the interests of peoples’ lives, whwn the of one creates the industry of the otherindustry . Pprivate wealth is a wealth of expectations for all. História e Economia Revista Interdisciplinar 71 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... Table 2 List of the Founding Shareholders of the Bank of Buenos Aires-1822 BANCO DE BUENOS AIRES NOMINA DE ACCIONISTAS - SELECCION (1) Números ler. 3er. 49 Quinto Quinto Quinto 20 1 Julián Agüero 200 200 200 Quinto 200 25 1 Bernardino Rivadavia 200 200 200 200 26 a 30 5 Joaquín Achaval (a Félix Castro) 1.000 1.000 1.000 1.000 35 a 39 5 Braulio Costa 1.000 1.000 1.000 1.000 40 1 Vicente López 200 200 200 200 60 a 64 5 Stewart Mc. Call y Ca. 1.000 1.000 1.000 1.000 65 a 74 10 Félix Castro (a Guillermo P. Robertson) 2.000 2.000 2.000 2.000 75 a 79 5 Juan José de Anchorena (a Stewart y Ca) 1.000 1.000 1.000 1.000 80 a 84 5 Nicolás de Anchorena (a Stewart y Ca.) 1.000 1.000 1.000 1.000 97 a 106 10 Juan Pedro Aguirre 2.000 2.000 2.000 2.000 113 y 114 2 Rosas, Terrero y Ca. (a Stewart y Cai) 400 400 400 400 115 José María Roxas 200 200 200 200 122 a 131 10 Diego Brittain 2.000 2.000 2.000 2.000 132 a 136 5 Roberto Montgomery 1.000 1.000 1.000 1.000 137 a 141 5 Guillermo Cartwright 1.000 1.000 1.000 1.000 142 a 146 5 Juan Miller 1.000 1.000 1.000 1.000 117 a 151 5 Miguel Riglos 1.000 1.000 1.000 1.000 152 a 156 5 Guillermo P. Robertson 1.000 1.000 1.000 1.000 157 a 151 5 Tomás Fair 1.000 1.000 1.000 1.000 182 a 187 6 Sebastián Lezica (a Stewart y Ca) 1.200 1.200 1.200 1.200 228 y 229 2 Nicolás de Anchorena (a Stewart y Ca) 400 400 400 400 400 400 400 400 1 230 y 231 2 Tomás Manuel de Anchorena Ca Stewart Ca.) 237 a 239 3 José Maria Roxas 241 a 245 5 Tomás Armstrong 600 600 600 600 1.000 1.000 1.000 1.000 200 255 1 Luis Dorrego 200 200 200 26.5 1 Mariano Fragueiro 200 200 200 200 1.000 1.000 1.000 1.000 266 a 270 5 Brown Buchanan y Ca 279 a 282 4 Dr. José Valentín Gómez 2.400 800 285 a 289 5 Diego Brittain 3.000 1.000 298 a 302 5 Tomás Newton 3.000 1.000 Fonte: Cuccorese (1971) Nota: ARCHIVO Y MUSEO HIS TORICOS. BANCO DE LA PROVINCIA DE BUENOS AIRES. Libro Mayor. N.1 Folios 11, 12, 13 y 14. table 3, and it shows that in the original group of founding customers of there was a considerable 72 História e Economia Revista Interdisciplinar number of British citizens, which were very likely connected to the railroad business. Table 3 Bank of the Province 1883 Then, the Central Argentine Railway was a pioneer railroad that did not intend to respond to an existing demand for railway service: it, instead, intended to create such a demand. From its beginning it was a project of great proportions, and its success depended on its effectiveness in establishing a complete system. It was in fact both a railway company and a land company, and a large volume of capital was necessary to build a railroad and develop the land that belonged to the company. The idea was to invest in both aspects, as one would stimulate the other, but actually the company executives obtained less than the necessary capital to build , and theydid not allot any resource to the settlement part. The Central Argentine Railway, according História e Economia Revista Interdisciplinar 73 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... to Ferns (1979), tried to stimulate the Argentines to invest and participate in the project of the company with no success. Table 4 shows the composition of the capital paid-up in Central Argentine Railway in 1863. The importance of the British capital is clear, subscribing $f 72,275,000. As to the domestic capital, the Argentinean government was the second most important shareholder, followed by the Argentine public subscription and finally by the Buenos Aires province. In 1871 there were more stockholders living in Argentina that in Great Britain, although none of them, except the Argentine government, owned more than 10 shares. The main feature in the organization of the Great Southern Railway of Buenos Aires was that it was composed of British capitalists individually. Thus, the labor unions and the speculative financial groups did not participate in its constitution, and its shares were placed in the London stock market although they were seldom traded. The concession was granted in July of the next year, but Lumb was unable to raise enough capital in Argentina, so he went to London where he received financial aid from Baring Brothers. From these contacts an arrangement was settled whereby Lumb’s concession was transferred to a new London-based company in 1862 under the name Table 4 – Initial capital of Central Argentine “Great Southern Railway of BueRailway -1863 nos Aires” with an initial capital Capital necessary for construction $f 5,000,000 of 750,000 pounds in 20-pound Argentinean Capital: shares each. Lumb’s concession8 Subscribed by the national government $f 1,700,000 had a guarantee of 7% on a capital Subscribed by the province of Buenos Aires $f 25,000 of £10,000 per mile for 40 years, Subscribed by the Argentine public $f 1,000,000 but the government had the right Total of Argentine capital $f 2,725,000 to determine the prices during the Maximum British capital $f 2,275,000 period in which the guarantee was in effect and to assume control Source: Ortiz (1983, p. 153). of the company by returning the The early history of the other compacapital a 20% premium. Upon the inauguny, the Great Southern Railway of Buenos Aires, ration of the Great Southern Railway of Buenos is very different from the history of the Central Aires on March 7th, 1864, the Argentine presiArgentine Railway. It was constructed along a dent, General Mitre made an enthusiastic speech, relatively populated territory, whose inhabitproclaiming his faith in the railroads and in Engants were eager for the service. Its history began lish capital. through the initiative of Edward Lumb, considered to be the wealthiest British businessman The Great Southern Railway of Buein Buenos Aires by the mid-century. He always nos Aires displayed its English character9. The had strong relations with the political leaders 8 According to Stones (1993, p.7) the local Board of directors of the new company had Lumb, the English consul in Buenos Aires, Mr. Frank of the province of Buenos Aires and in August Parish, and the great landowner, John Fair. 9 The English influence on the railroads did not concern only to the 1861 he requested permission to build a railroad ownership of capital, since, although the design of the railroads was French-inspired, the architecture of the covers in the rural stations was from Buenos Aires to Chascomús (71 miles in a vivid remembrance of the British presence as was the English spoken by the employees, engineers and drivers. Since the British owned three distance) to the Buenos Aires Legislative. 7 $ f means pesos fuertes, currency used in Argentina at that time. 74 História e Economia Revista Interdisciplinar small companies, their control of the transportation system was almost total. According to Lewis (1985) the same was true in the urban system initial list of shareholders shows prominent English noblemen and English residents, a few Scotsmen and Argentines and no other person of European descent. It was a company rule that the existing shareholders should be given the preference in acquising future share issues. The amount of shares increased year after year going from more than 200 in 1864 to 1,000 in 1875, 2,000 in 1880, 14,000 in 1900 and about 36,000 in 1914. The relations between the Great Southern Railway of Buenos Aires and the government of the city were not always peaceful. Its executives preferred to extend the lines toward areas of more intense traffic while the government and the representatives of the rural sector wanted the extended line to lead the expanding economic frontier so that people could reach the unpopulated land and begin to produce. The results of the exploration of the Great Southern Railway of Buenos Aires were quite satisfactory from the first day it was opened to the public, and in December 1865 the proceeds reached approximately 1,000 sterling per week. It took a while for farmers to understand the advantages of the railway and to aborderthe operation of their carts. It was only in 1869 that for the first time, wool transported to Buenos Aires by the Great Southern Railway of Buenos Aires surpassed the amount carried by the previous means. (Los Ferrocarriles Britanicos en la República Argentina, (sn), 1948). Whenever railroads are mentioned in Argentina, England is remembered as the country that most invested in Argentina because of the financial difficulties of the Argentine State to make important investments. in Buenos Aires where, from 1876 to 1940, the streetcars systems were controlled by the British. The British influence was extended to the other infrastructure systems: the docks, the gas, water, sewer systems and the first South American subway, all financed by the British. 2. Territorial Expansion: the Desert Campaign and the Railroads The growth in exports and the opening of foreign markets were only made feasible bya great territorial expansion which allowed the incorporation of huge areas of fertile land in the Pampasthis expension took place during, the socalled Desert Campaign. This was possible due to the construction of railroads that crossed along the Argentine territory. The two movements were closely linked: the Desert Campaign and the consolidation of the railroads. This will be discussed here. The territorial expansion that made the present Argentinean territory reality is without a doubt one of the most interesting parts of Argentina’s economic history. In the 19th century, around the 70’s and 80’s, the South of the Buenos Aires province was occupied by Indians, and their expelling and further appropriation of their land for production purposes were reached through a number of military operations that appear in the literature by the denomination Desert Campaign. Landes (1998, p.347) states that the lack of unoccupied land was one of the worst legacies of the colonial regime when vast Argentinean areas were given gratuitously to the church and to powerful men. The remaining land was grabbed during disturbances after independence and when new territory was acquired, the same pattern of distributions followed. Then, “the campaign of 1879 against the Indians (what the Argentines bizarrely called La Conquista del Desierto10 was preceded and financed by sales of land, around 8.5 million hectares to 381 people”. According to him, the buyers needed all the 10 According to Bandieri (2000, p.129) since the Desert Campaign in 1879, the word “desert” must be understood as “barbarism” or “civilization void”. História e Economia Revista Interdisciplinar 75 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... land they could purchase because as one headed southward the climate became arid and the soil, infertile. Patagonia could support perhaps one flock of sheep per area that was equivalent to one-tenth that of Buenos Aires. Although there had already been a border shift in Buenos Aires in the 18th century and in the 19th century with Rosas in 1883, the major shifts came with the Desert Campaign: Alsina’s in 1876 and mainly Roca’s in 1880. The first known Campaign was Alsina’s, the minister of War under president Avellaneda. Its goal was to secure the Negro river border in order to obtain vast land areas for the Pampa inhabitants and to use them in production. Minister Alsina proposed a plan which included advancing the Southern border, occupying strategic sites. This incursion would be made by successive lines that would have telegraph communication with Buenos Aires. The forts would connect with one another aiming at blocking the Indians’ entrance. Alsina’s plan included the construction of an economic railway between Bahía Blanca and Salinas Grandes, as well as the enlargement by 771 km of the telegraph lines that existed in the province of Buenos Aires as a means to connect the capital with other regions. Although the Campaign had its origin in the strategic issue of land appropriation, in this period there was in fact a resurgence of the Indian menace due to problems with frontier countries, the structural crisis of the Argentine State and the internal disturbances of the Indian society. The Indians also competed with the population for water that was needed for the cattle, this being a reason for frequent invasions in villages and major threats to the populations making it hard to guarantee safety and a growing agriculturalcattle breeding profitability in the plana pampa. All these reasons combined to lead the 76 História e Economia Revista Interdisciplinar Indians to promote bolder invasions at a time when Argentina was less prepared or less capable to use its resources to defend her domestic border. Obviously it was not the Indians’ boldness what provoked a change of behavior by the State. What took the authorities to a different position was the realization that for the first time the insecurity of the Indian border began to produce a deep impact on the rhythm of the country’s development. It is important to make clear that the phrase “Indian border” does not define a precise limit or a precise division between colonized and non-colonized areas. This was the context when Alsina’s border consolidation phase occurred in 1876. This Campaign marks a new system of hostility against the Indians and it was fundamental that the troops could reach ever farther regions. So, better infrastructure and communication were needed along the border. In the same period, Julio Roca, as the commander of the West Border, was already in favor of a more offensive policy. In July 1878 he commanded a true military devastation, with the imprisonment of Indian tribal chiefs, thousands of Indians killed and thousands made prisoners. Besides, the fact that General Roca was the commander in the frontiers of Córdoba, San Luís and Mendoza gave him the opportunity to become fully informed about the problem of the desert fight and really came to know in detail the habits, the situation and the tactics of the main tribes. Alsina’s endeavors to conquer the desert allowed him to incorporate 56,000 square km of virgin land and also the creation of new territories by the end of his Campaign. On December 29th, 1877, with Alsina’s death, president Avellaneda nominated Roca as his successor. He then could elaborate a strategy for the final deserto Campaign and this time it would be in the Negro river border. Roca’s Campaign was no doubt the most important, because it incorporated a huge volume of land for economic activities. Roca’s designation as minister of War in June of 1878 enabled him to apply his three lines of work that can be summarized as follows: 1) maintain the task of soothing the tribes to the South and Southeast of Buenos Aires province and the ones to the South of San Luís, Córdoba and Mendoza; 2) put in effect simultaneous tasks of exploration of new territories; 3) logistical preparation to reach the Negro river. The military expeditions were extremely favorable and set the conditions for reaching the Negro river in 1879 without major problems. The outcome was the occupation and the development of over 550,000 km of national territory. It is important to stress that the federal government, already foreseeing such an outcome, proclaimed the organization of borders in the nation’s territories, thereby creating the administrations of Pampa, Neuquen, Río Negro, Chubut, Santa Cruz and Tierra del Fuego in October of 1884. In the 1900’s the nation occupied Patagonia definitively, closing the final part of the Campaign of new territories. Roca’s success came to depend on two signs of modernization which also influenced the period: telegraph and railroads, the latter being the best feature in Argentina’s modernization. By carrying provisions, men and horses swiftly to outposts, the railroads allowed Roca to enjoy further mobility, a factor that had always been emphasized by him and that was considered a main element in the Indians’ earlier victories. The consolidation and the effective expansion of the borders became a feasible proposition, maybe for the first time since the early century. During the 80’s the capitalization of the Great Southern Railway of Buenos Aires rose from around one million to around three million sterling, an indication of the reach of buildyngand the volume of the financial resources involved. According to Lewis (1985), in the same period the federal and the provincial authorities had gathered huge amounts, almost all for public projects, especially the construction of railroads and telegraph wires that almost reached the border. Part of this capital was invested in the south and the west of the province of Buenos Aires. The destination of huge amounts to these projects – both in terms of the funds directly invested by foreign capitalists in railroad shares and in subscriptions of national and provincial shares – was a sign of trust in Argentina. The reality of the economic progress led the shareholders of the Great Southern Railway of Buenos Aires to annul the guarantee clause and at the same time to allocate large amounts to Argentinean development believing that there was little need of a governmental guaranteeof 7% per year onthe capital. When the traffic ona line expanded quickly, it produced enough revenue to pay much higher dividends. This way, the railroads allowed Roca to successfully implement his strategy to eradicate the Indian menace, a strategy that depended on the maintenance of a substantial military force with an extensive time onactive duty and a final coordinated attack by the front against Indian land to safeguard, capture and clean the southern Pampa territory. Due to the Desert Campaign in 1880 the volume of land incorporated in economic activity increased by approximately 30 million hectares, almost half of what was then available. So, in the 80’s, the Great Southern Railway of Buenos Aires was running through the heart of those regions that four years earlier História e Economia Revista Interdisciplinar 77 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... were being devastated by the Indians. It became the number 1 company in the country in terms of its freight volume and the amount of capital invested, owning the longest constructed line in 1880: 563 km. 3. The Consolidation of the Railroads in the Belle Epoque Period. As of 1880, a new phase of expansion of the Argentine rail companies began, and this new period of expansion started cautiously in that year with the extension of lines that were part of existing railways. The great territorial expansion granted by the Desert Campaign influenced and was influenced by the construction of railroads, in terms of incorporation of vast areas of fertile land which, through their production, were profitable both to the Argentines and the British capital invested in railroads. This new period of construction of railroads happened within a bigger picture, the Belle Epoque, a golden time in terms of the Argentine economic growth, made possible by the massive amount of English capital that entered the country.11 This new investment phase distinguished from the previous one because it did not depend on the development of foreign trade anymore, though in the medium term it had affected it. Again it was up to the Argentine State to propitiate the right environment for the arrival of the new investments.It is essential to say that a large portion of the foreign investment, both public and private, was meant to form infrastructure, mainly transportation services. The funds were used first for the direct purchase of foreign production goods, such as railroad equipment. Then, what was left was transferred to Argentina to finance railroad construction. According to Alemann (1990), in 1880 there were 11 For this period of economic growth in Argentina see Cortés Conde (1997), Di Tella, Zymelman (1967), Díaz Alejandro (1970); and Lenz (2004). 78 História e Economia Revista Interdisciplinar already 2,500 km of lines and 10 railroad companies. According to Ferns (1965), from the total British capital investments in Argentina, which amounted to 23.06 million pounds, 56.2% corresponded to loans to the government and 28.6% to railroads and in 1890 the British investments reached approximately 20 million pounds. This explains why the funds originated in this period were devoted to railroad extensions promoting the State activity, in similar proportion to the direct foreign investments. Table 5 presents the new international bond issues in London, compared to Argentine bonds . It confirms the peak of the English investments in Argentina in the period, reaching the highest point in 1888 with. Argentine raising an amazing 23,4% off all bonds issued in London that year. Table 5 New capital issues by London for investments abroad and in Argentina -1885-1891 (1) For investments abroad 2) For Argentina 1885 48.4 1.8 1886 47.7 11.2 1887 60.9 11.3 1888 95.5 23.4 1889 99.2 12.8 1890 91.1 4.9 1891 46.6 - Source: Ford (1975, p.124). Although the construction of railroads was mainly conceived in essentially political terms, as a means of security in border areas that were more at risk or as an imposition of central authority over refractory provinces, many constructions were viewed as economically regenerative, showing not only coercive intentions but also a commitment to regional welfare. The Central Argentine Railway could hold together the scattered provinces of the Confederation, discouraging turmoil, and could also promote the development of the northwest region, stimulating local production and encouraging trade relations with neighboring countries. The railroads practically revived an area that was previously prosperous but that had lagged behind since the independence because of inadequate means of communication (Lewis, 1985). Table 6 shows the status of the railroads in 1884 in relation to capital, wagons and constructed km. It shows the importance of the Great Southern Railway of Buenos Aires and the Central Argentine Railway for the volume of the capital invested, the number of locomotives, wagons, passengers, maintaining this same trend through the 80’s. Argentina had 3,848 miles of rails, from when this growth started to decline. In 1895 the first railroad system was already well-advanced, but around 1914 the gathering of the integrated areas was dominant and all the main regions were connected to the nation’s capital and were making arrangements for some junctions of strategic intra-regional routes, besides Buenos Aires, over main ports, such as Rosário’s and Bahía Blanca’s. The railroad system also determined a substantial decrease in transportation costs. According to Cortez Conde (1997), it is estimated that between 1855 and 1884 the cost of railroad freight decreased 71.9% in relation to cart transportation and between 1884 and 1910, it was 23.33%. Table 6 – Railroads in Argentina -1884 Lines West South Km 779 Capitals Locomotives Wagons (freight) Coach (passengers) 15 442 855 90 2 749 101 1 024 26 571 733 65 1 932 173 Central 396 11 088 000 34 551 24 Buenos Aires 303 9 238 320 13 591 19 57 4 048 144 12 382 20 Ensenada Source: Cuccorese, (1969, p.40) The Argentine railway that had around 1,200 miles in 1875 more than doubled around 1885, again by the late 80’s and by the late century. In 1920 it reached 21,000 miles and in 1935, 25,000 miles. According to Rapoport (1988), the concession of land adjacent to the railways, the introduction of tax-free material and finally, the Mitre Law of 1907, that exempted the companies from paying all kinds of federal, local or provincial taxes in exchange for a single taxation of 3% over the net profits, constituted a powerful stimulus for railroad investment. According to Ferns (1979, p.414), by the end of 1887 Despite the rhetoric of the promotional literature, only a few companies did not apply really low tariffs, and the railroads needed favors nor dramatic savings in transportation costs. The railroad companies, eager to guarantee access to the European capital market, charged the most the market could tolerate, as a way to assure returns and to avoid reliance on the State’s assistance. 12. 12 According to Ferns (1979, p.409), the dispute among the companies might have had some beneficial consequence if the companies had made an effort to obtain the right to render services, but too often they restrained from investing in essential things, as wagons, to invest in extensions of rails for a government that was eager to be popular in regions where they owned land. História e Economia Revista Interdisciplinar 79 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... The competition in transportation was a lasting phase in the history of the railroads in Argentina during the third-quarter of the 19th century. The establishment of the railroads’ operational cost was probably the most significant factor to support competition in transportation in Argentina. Prices that were fixed at high levels, while the volume of traffic was limited, bringing about a dependence on State aid. Nevertheless, as the marginal costs of operation of railroads were relatively low, the tariffs could be dramatically reduced when the freight volume increased. There were significant economies of scale in the railway business. By the end of the century, when the pampas were producing an expensing volume of grain and cattle, the Argentine railroads had little to fear in competitive terms because besides implying a fast and sharp reduction in transportation costs, only the rails and not the mules or any other transportation could have formed a true national market (Lewis, 1985). There were also significant network externalities in the railway business. The liquidations that followed the Baring crisis13 made most of the existing lines to be passed over to British companies that exchanged the interest’s warranties for payment in govern13 The Baring crisis or the “Bubble of 1890” was a crisis that brought profound consequences to the Argentinean economy, as well as to the financial world, as it is indicated below in this footnote. It started in November of that year when London did not allow the advancement of the debt payment neither the continuity of the quarterly transference of funds to Argentina. The Baring bank had a great amount of bonds of the Argentinean government, with a face value of around 25 million dollars. There was a crisis y confidence in the capacity of payment of the Argentine government that was solved later through foreign deals, as below indicated. Because the main bonds were of railroads companies, one of the main consequences of the crisis for the companies was that several of the new concessions were canceled. According to Eichengreen (1996), the Bank of England had to borrow three million pounds worth of gold from the Bank of France and a commitment of one and a half more million from Russia to keep the British central bank within the rules of the gold exchange standard. Also, with the help of other London banks, it allowed the financing of a fund to help the Baring Brothers to be saved without compromising the gold exchange rules. Of course, there are several interpretations of the Barings Brothers crisis : on the one hand barings are viewed as providers of “bad loans” and, on the other, as victims of the Argentine government, as the latter incurred in the first of several defaults in its history. For this see Reinhart & Rogoff (2004). The investors were soothed and the crisis was ended. 80 História e Economia Revista Interdisciplinar ment bonds. According to Ferns (1979, p. 409), around 65-70% of the total British capital invested in Argentina during the four prosperous years (1886-1889) were used to finance the railroads directly through companies or indirectly through loans to the government. The 1880’s were a period of great expansion and profit for all established railroad companies, large or small. The fact that the productive and physical increase lagged in time by a significant period the increase in investments partly helps in explaining the sudden stop in capital inflows that precipitated the Baring crisis of 1890. As a consequence, Argentine railway affairs during the late 1880s exhibit a dual image: increasing difficulties in new lines and, at the same time, untroubled operating lines; until the latter were overtaken by the crash. (Lewis, 1983). As a result, Argentina soon became a railroad inferno, when in 190014 no less than 21 private railroad companies and three State ones fought to serve a public of more or less 4 million people. Table 7 presents a detailed and complete description of the railroad system in Argentina collected by the 1914 census and presented by Vázquez-Presedo (1971): Hence, the Argentine railroad system could be considered at that time as one of the most outstanding examples of railroad development in the world: the 10th in the world and the 1st in Latin America. Discussion. Among the countless characteristics 14 The British-owned railroad companies would eventually have to face the radical political nationalism that would rule Argentina after the 1930’s when they came to be seen as a prominent symbol of foreign domination, a process that would culminate in the nationalization implemented by president Juán D. Perón in 1948, which included, besides the railways, the financial, telecommunications and the electric power sectors. Table 7 – Railroad statistics - 1875/ 1914 Years Extension Kms. Recognized capital Thousands $ gold Passengers transported in thousands Freight transported thousands of tons Total revenue thousands $gold Total expenditure thousands $ gold 1876 1 665 49 534 2 338 733 4 586 2 746 1878 2 262 59 491 2 474 733 5 332 3 155 1880 2 313 62 964 2 751 772 6 560 3 072 1882 2 266 65 672 3 646 1 307 8 496 4 527 1884 3 728 93 794 4 819 2 421 14 030 7 144 1886 5 964 148 610 4 658 2 948 16 158 9 214 1888 7 644 197 518 10 106 4 410 22 427 12 505 1890 9 254 346 493 10 069 5 420 26 049 17 585 1892 12 920 389 152 11 788 6 037 19 538 11 707 1894 14 029 461 865 13 928 8 143 22 904 13 081 1896 14 489 496 426 17 248 10 914 31 251 16 080 1898 15 314 522 433 16 478 9 429 33 241 19 103 1900 16 767 551 515 18 296 12 659 39 958 22 634 1910 27 713 1 099 700 59 849 32 561 111 448 65 967 Source Vázquez-Presedo - V.Estadísticas históricas argentinas (Comparadas): First part 1875-1914. Buenos Aires: Machi, 1971. NotaTercer Censo Nacional – Año 1914 – Tomo X.1 Estadísticas correspondientes al año 1912. experienced by the Argentine economy in the late 19th century, one of the most interesting was the role played by the British railroads, in the context of the importance of the Desert Campaign for the construction and consolidation of the domestic market. The Desert Campaign was the means to appropriate fertile land needed for agricultural-cattle breeding production and it was implemented by a sequence of military operations, supported by the central government, aiming at eliminating the Indians that occupied the land. Both Campaigns, Alsina’s in 1874 and General Roca’s in 1878, had the explicit goal to rescue the desert occupied by Indians and colonize it as a means to assure its ownership. By the end of Alsina’s Campaign 56,000 km of territory were incorporated and by General Roca’s, over 550,000 km. The Desert Campaign was always interconnected with the construction of railroads,. The importance of the railroads as a fundamental element for the integration and the access to new land and for the construction of the Argentine nation, mainly through the incorporation of the Pampa region, was always present in the speeches of politicians and statesmen of that time. Alberdi (1999) even compared them, as cultural agents, to the Middle Ages’ monasteries. The arrival of the large railroad companies only occurred with the arrival of British capital, making the two simultaneous and inseparable. The Argentine railroad network became the largest and most important in Latin America. Two English capital companies – Great Southern Railway of Buenos Aires and the Central Argentine Railway – were at the top of the ranking. História e Economia Revista Interdisciplinar 81 The Construction of Railroads in Argentina in the Late 19th Century... While the Central Argentine Railway was a large company, creating its own demand, with intense State participation and low Argentine national private capital participation, the Great Southern Railway of Buenos Aires was constructed in an already densely populated area and had as its main shareholders a great number of English citizens. The large territorial expansion propitiated by the Desert Campaign came to influence and be influenced by the construction of railroads, in terms of incorporation of vast areas of fertile land that, when producing, demonstrated to be profitable both for the Argentines and for the British capital invested in railroads. As of 1880, a new phase of expansion of Argentinean railroad companies was inaugurated, within a bigger context, the Belle Epoque, a golden period in terms of Argentine economic growth, greatly made feasible by the massive arrival of English capital in the country. 82 História e Economia Revista Interdisciplinar As a consequence, Argentina soon became a “railroad inferno”: in 1900 at least 21 private railroad companies and three public companies fought to serve around four million people. The railroad system grew every year and by the late 1910 it totaled about 30,000 km and another 8,000 were under construction. Considering the small population number, the Argentine railroad system could be considered one of the top developed systems in the world at the time. Thus, the construction of railroads, although required by the foreign trade demands, performed a remarkable role the national consolidation, facilitating access to new areas, and cooperating in geographical terms by taking the place of rivers and canals the country didn’t have and also in economic terms, allowing the regional exchange. The importance of the railroads as indispensable elements for the integration and access to the new regions and for the building of the Argentine nation especially through the incorporation of the Pampa area was always mentioned by the politicians and statesmen of the time. References Argentina. Archivo General de la Nación, Anexo 13 -597, Anexo 15 - 609, Sala 14- sétimo Piso: Legajes de Julio Roca. (período 1884 a 1889). Argentina. Archivo General de la Nación, Red Ferrocarriles -1882 -I.1.2. (II-2) e II.1.7 (II-9) Mapas Líneas Ferreas II. 1. 4 e II.5-37 (II.211) Argentina.Archivo Roca- Documentos “Guerra, Inspección” - 1886. 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História e Economia Revista Interdisciplinar 85 86 História e Economia Revista Interdisciplinar Padronização técnica no Brasil: História e mecanismos de governança Sandra Milena Toso Castro Acosta Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná E-mail: [email protected] Victor Pelaez Professor Associado do Departamento de Economia da UFPR E-mail: [email protected] Resumo A padronização técnica envolve atividades de metrologia, calibração, certificação, normalização e regulamentação. Este artigo tem como objetivo resgatar a história institucional da padronização técnica no Brasil, a partir da criação e transformação dos principais órgãos públicos e privados envolvidos nessas atividades. A experiência brasileira na padronização técnica revela um modelo com forte intervenção estatal, cuja evolução levou à criação de uma concepção sistêmica de governança público-privado por meio do Sistema Nacional de Metrologia (Sinmetro). A governança da padronização técnica no Brasil, entendida como a coordenação de interesses diversos, apresenta-se como uma atividade pouco eficaz devido à falta de aderência das políticas públicas a um tecido produtivo ainda pouco organizado no sentido de garantir a combinação técnica das relações intra e intersetoriais. Palavras-chaves: História. Tecnologia Industrial Básica, Padronização Técnica, Governança, Brasil. Abstract Technical standardization comprise activities such as metrology, calibration, certification, voluntary standards and mandatory standards. This article aims at retracing the institutional history of standardization in Brazil, beginning with the creation and transformation of the main public and private organisms related to these activities. The Brazilian experience in technical standardization reveals a model based on strong state intervention whose evolution has led to the creation of a systemic conception of public-private governance through the Sistema Nacional de Metrologia (Sinmetro). The governance of technical standardization in Brazil, want effectiveness due to the lack of organization among competing interests. Key words: History. Standardization. Co-ordination. Governance. Brazil. História e Economia Revista Interdisciplinar 87 Padronização técnica no Brasil... 1. INTRODUÇÃO A A padronização técnica no Brasil é reconhecida pelo termo Tecnologia Industrial Básica (TIB)1. Esse termo foi concebido pela Secretaria de Tecnologia Industrial (STI) do antigo Ministério da Indústria e do Comércio (MIC), no início da década de 1980, e refere-se a um conjunto de atividades que engloba as funções básicas do Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro): metrologia, normalização, qualidade industrial, propriedade intelectual e informação tecnológica. A padronização técnica corresponde a uma classe especial de regras, institucionalizadas por organizações provenientes do setor público, setor privado e sociedade civil2. Ao fornecer a infra-estrutura técnica básica para o desenvolvimento tecnológico, os padrões técnicos estão diretamente relacionados à forma pela qual os diferentes atores econômicos estabelecem canais de comunicação e interação entre si, por meio da criação de códigos de linguagem técnica comuns. As atividades de padronização técnica asseguram uma intensificação da coordenação existente no conjunto da economia, aumentando a possibilidade de planejamento e organização da produção. Existem basicamente dois tipos de padrões: de caráter voluntário e involuntário. Os padrões voluntários são reconhecidos no Brasil como normas e representam um conjunto de regras e diretrizes comuns para produtos e processos. As normas surgem como resultado de coope1 Em outros países, o conjunto de atividades de padronização técnica recebe outras denominações. Os alemães chamaram esse conjunto de funções de MNPQ (Messen, Normen, Priifen, Qualitat), explicitando o encadeamento das funções relativas a Medidas, Normas, Ensaios e Qualidade. Nos EUA, usa-se o termo Infrastructural Technologies (FLEURY, 2007). 2 Envolve o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), os laboratórios de calibrações e de ensaios, os Institutos Estaduais de Pesos e Medidas (IPEM), as Redes Metrológicas Estaduais, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, os organismos de certificação acreditados, de inspeção e de treinamento e a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). 88 História e Economia Revista Interdisciplinar ração mútua e consenso de todos os envolvidos, sendo utilizadas voluntariamente pelas partes interessadas. Já os padrões involuntários, representados no Brasil pelos regulamentos, compõem um grupo de procedimentos normativos de caráter compulsório, cuja conformidade obrigatória é determinada e inspecionada por órgãos públicos. Outra atividade de padronização técnica que se inclui na TIB é a metrologia, que permite o respaldo técnico-científico para a criação, a calibração e a rastreabilidade de padrões, tanto para as normas técnicas quanto para os regulamentos técnicos. A avaliação da conformidade, por sua vez, é utilizada para determinar o cumprimento das prescrições pertinentes aos regulamentos técnicos ou normas. Verifica-se no Brasil uma interação cada vez maior entre os padrões voluntários e involuntários nas relações internas e externas da TIB, o que implica em mudanças institucionais significativas em termos da capacidade de negociação e de governança dos diferentes atores envolvidos na geração e na difusão de padrões técnicos. Além disso, ao congregar em suas funções técnicas agentes provenientes dos setores público, privado e da sociedade civil, a TIB revela um caráter de coordenação não apenas técnico, como também político, ao articular diferentes interesses e perspectivas de produção, de competitividade e de legitimação social. Dessa forma, a TIB adquire importância tanto como instrumento de coordenação e organização industrial, como de política pública. O objetivo desta comunicação é resgatar a história da TIB no Brasil de forma a traçar a evolução institucional das principais organizações envolvidas nas atividades que a integram, com ênfase nos mecanismos de governança voltados à promoção de uma integração maior entre as agências governamentais, o setor privado e a sociedade civil. Pretende-se mostrar que a go- vernança, aqui entendida como a coordenação de interesses diversos, revela-se no caso da experiência da TIB no Brasil como um processo ainda incipiente em termos de representatividade e de articulação inter-institucional. Para tanto, o trabalho está dividido em duas partes. A primeira parte (seção 2) faz um retrospecto histórico das principais organizações criadas no Brasil com a finalidade de estabelecer e difundir a padronização técnica e o controle de qualidade no setor produtivo. Utilizou-se nesta seção fontes secundárias baseadas em bibliografia sobre a história das instituições voltadas à padronização técnica. A segunda parte (seção 3) aborda especificamente a formação dos mecanismos de governança do modelo institucional atualmente em vigor, instituído pelo Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro), por meio de uma análise comparativa das ações dos diferentes comitês técnicos assessores do seu órgão regulamentador, o Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro), que tem como função formular, coordenar e supervisionar a política nacional relativa à implementação da TIB no Brasil. Adotou-se nesta seção fontes de informações primárias que correspondem às atas das reuniões dos comitês técnicos assessores do Conmetro. 2. A formação de um sistema de padrões técnicos no Brasil A institucionalização da padronização técnica insere-se no contexto da Segunda Revolução Industrial na qual a incorporação do conhecimento científico ao processo produtivo dependia da uniformização de unidades de medida capazes de garantir a precisão, confiabilidade e combinação operacional dos diversos equipamentos voltados à atividade produtiva em larga escala. A instituição precursora na pesquisa e im- plementação de padrões técnicos foi o Instituto Imperial de Física e Tecnologia (PhysikalisheTechnishce Reichsanstalt - PTR), criado na Alemanha em 1887, cujo foco inicial era a difusão da energia elétrica e o aperfeiçoamento de instrumentos óticos3. O funcionamento do PTR baseava-se em uma cooperação entre o governo e o setor privado no desenvolvimento científico e tecnológico de padrões e instrumentos de controle. A ativa participação do setor privado alemão, na demanda por padrões técnicos, tem suas origens nas décadas que antecedem a unificação alemã em 1871. Naquele período, as associações empresariais, notadamente as Câmaras de Indústria e Comércio dos estados germânicos, buscavam harmonizar as suas transações comerciais, sobretudo no que tange aos produtos manufaturados (ECKERT e SCHUBERT, 1990; FEAR, 1997). A padronização técnica na Alemanha resultou assim de um processo endógeno de construção de relações empresariais e intersetoriais, inerentes à complexificação de um tecido produtivo que surgia no contexto da industrialização da economia. No caso do Brasil, o desenvolvimento institucional da padronização técnica dependeu fundamentalmente da ação estatal. Inicialmente caracterizada por iniciativas isoladas e funções meramente fiscalizadoras (restritas à metrologia legal), a padronização técnica evoluiu para uma atividade considerada com infra-estrutura de apoio ao desenvolvimento industrial do país. Nessa perspectiva, identificam-se estratégias de transformação de um modelo de intervenção estatal a um modelo de governança público-privada, cuja coordenação permanece centralizada no poder público. A padronização técnica como instrumento de governo 3 Instituições equivalentes ao PTR surgiram posteriormente na Inglaterra, com a criação do Laboratório Nacional de Física, em 1900, o National Bureau of Standards nos EUA, em 1901, e o Instituto de Pesquisa Física e Química no Japão, em 1917 (FEAR, 1997). História e Economia Revista Interdisciplinar 89 Padronização técnica no Brasil... No Brasil, a padronização técnica teve seu início efetivo marcado pela supressão, em 1862, do uso de medidas herdadas de Portugal e pela adoção do sistema métrico francês no que concerne às medidas lineares, de superfície, capacidade e peso4 (Lei n° 1.157). Entretanto, ainda que houvesse a implantação de um sistema de padrões em plena sintonia com a tendência mundial, que D. Pedro II se associasse a cientistas ligados ao tema e que o Brasil participasse da Conferência Diplomática do Metro5, a legislação expedida não foi suficiente para promover a utilização do sistema por parte do setor produtivo. Não havia ainda nesse período um aparato institucional para a guarda e conservação dos padrões e para a pesquisa científica na área. Pode-se dizer que a nascente atividade metrológica era uma prática diletante com pouca ou nenhuma articulação com as atividades produtivas características de uma economia primário-exportadora. Nessas condições, sua frágil estrutura era ainda mais afetada pelas constantes crises políticas e pela desarticulação da administração pública (DIAS, 1998). A importância da metrologia como instrumento de apoio formal à regulamentação das atividades do setor privado e como referência às transações comerciais só veio a ser resgatada pelo Estado brasileiro a partir da reforma administrativa adotada pelo Governo Vargas. Em 1938 foi assinado o Decreto-Lei n°592, que deu ao Brasil sua 1ª legislação metrológica. Criou-se assim um sistema legal de unidades de medida, definido pelas Conferências Gerais de Pesos e Medidas6 (CGPM), além de uma Comissão de 4 As medidas até então utilizadas, a Vara para comprimento e o Marco para massa, tiveram um período de carência de dez anos para que fossem totalmente convertidas à nova realidade (DIAS, 1998). 5 A CM é um tratado diplomático assinado em 1875 em Paris no qual 17 países, incluindo o Brasil, decidiram criar uma estrutura para coordenar e uniformizar as medições nos países participantes visando dar suporte e facilitar o comércio internacional. 6 Conferência formada pelos países signatários da CM, responsável pela manutenção, atualização e disseminação do Sistema Internacional de Unidades (SI), o qual define os procedimentos sobre o uso de medidas e instrumentos de medir. 90 História e Economia Revista Interdisciplinar Metrologia, que possibilitou o inter-relacionamento entre os órgãos governamentais e o setor privado sobre o assunto. Os principais órgãos executivos escolhidos para aplicação da política metrológica foram o Observatório Nacional do Rio de Janeiro e o Instituto Nacional de Tecnologia (INT). Na nova legislação, coube ao INT7 adquirir e conservar os padrões nacionais, elaborar e rever o regulamento do Decreto-lei n°592, estabelecer o quadro de medidas e instrumentos de medir, fiscalizar a execução da regulamentação, aplicar penalidades quando necessário, organizar um registro de fabricantes idôneos, analisar pedidos e inspecionar órgãos e entidades que pleiteassem o exercício de atribuições metrológicas (DIAS, 1998). Nesse período, ganhou força a idéia de se criar uma entidade nacional de normalização, voltada a atender os interesses do setor privado. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) foi criada em 1940, por um grupo de sete pessoas, motivadas sobretudo por uma demanda da associação de grandes empresas da indústria de cimento (Associação Brasileira de Cimento Portland). Inicialmente, houve uma participação importante do Instituto Nacional de Tecnologia (INT – RJ) e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT – SP). Esses órgãos elaboravam especificações para compras dos órgãos governamentais do Estado de São Paulo e da prefeitura e Estado da Guanabara. Muitos desses documentos, assim como métodos de ensaios regionais, serviram de base para as normas da ABNT. Poucos anos mais tarde, a participação dos laboratórios foi sendo substituída pela presença de grandes grupos industriais advindos do crescimento industrial do pós-guerra, os quais dispensavam o trabalho dos laboratórios (ABNT, 2006). 7 O INT havia sido criado em 1933 como Instituto de Tecnologia e sua tarefa principal era, até então, a de determinar as unidades padrão de medidas físicas. Em decorrência de uma ampla reforma do Ministério da Indústria e do Comércio, ao longo do Governo Juscelino Kubitschek (19561961), as atividades de cunho metrológico deixaram de ser responsabilidade do INT para ser de um novo órgão totalmente subordinado a esse Ministério, o INPM (Instituto Nacional de Pesos e Medidas), criado em 1961. O INPM deu origem a um processo de construção da metrologia legal no país, na forma de aquisição de veículos para fiscalização e de organização de convenções nacionais sobre o tema. Essa orientação na alocação dos recursos do INPM tinha como objetivo obter um controle maior das transações comerciais, repreendendo o considerável número de fraudes metrológicas no país. O enfoque do INPM, nessa época, refletia uma conjuntura de elevado crescimento econômico ainda sustentado no modelo de substituição de importações, com significativa proteção à produção doméstica (Dias, 1998). Em 1962, a ABNT foi reconhecida por lei como órgão de utilidade pública. Instituíase, assim, um regime obrigatório de preparo e observância das normas técnicas nos contratos de compras do serviço público. Em 1967, na ocasião de uma reforma administrativa implementada no fim do Governo Castello Branco (1964-1967), foi criada a 1ª Política Nacional de Metrologia (Decreto-Lei n° 240/67), que consistia no planejamento centralizado das atividades metrológicas pelo Governo Central, associado à execução descentralizada atribuída aos governos estaduais, empresas estatais ou à administração indireta. De acordo com Reis (1972), esse mecanismo de delegação vinha da impossibilidade de formação imediata de uma rede nacional com cobertura extensa o bastante para cobrir a fiscalização metrológica das principais regiões do país. A estrutura descentralizada de execução das atividades mostrava-se, no entanto, desvinculada do seu núcleo central, na medida em que os institutos tecnológicos tinham interesses diversos aos do INPM, e viam as atividades metrológicas mais como uma fonte de receitas face à constante escassez de recursos. O próximo passo na implementação da política de 1967 foi a criação de órgãos metrológicos estaduais, os IPEMs (Instituto de Pesos e Medidas), subordinados ao INPM, com autonomia gerencial. Ocorria também neste caso uma série de problemas derivados do controle compartilhado com as autoridades estaduais, que iam desde o desgaste em negociações até a gestão de pessoal, prejudicada pelo uso eleitoral da liberdade em contratar e demitir (DIAS, 1998). O Sinmetro e a perspectiva de uma coordenação público-privada Durante os primeiros anos da década de 1970, quando a economia brasileira passava por um período de crescimento acelerado, foi instituído o I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND, 1972/ 1974). A partir desse PND foi concebido o I Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (I PBDCT, 1973/ 1974), que apresentava objetivos ligados à tecnologia aplicada na indústria nacional. Criado com apoio da UNIDO (United Nations Industrial Development Organization), o I PBDCT foi o primeiro documento de política explícita de desenvolvimento científico e tecnológico no país. De acordo com esse documento, as atividades de C&T organizar-se-iam sob a forma de um sistema. Dele fariam parte todas as unidades organizacionais de qualquer grau que utilizassem recursos governamentais para realizar atividades de planejamento, supervisão, coordenação, execução ou controle de pesquisas científicas e tecnológicas (FILHO, 2002). Do total de recursos mobilizados em 1973 e 1974 (algo em torno de US$ 700 milhões História e Economia Revista Interdisciplinar 91 Padronização técnica no Brasil... em valores da época), uma parcela desse total foi destinada à Tecnologia Industrial, compreendendo a Tecnologia de Infra-estrutura e das Indústrias de Transformação. Como responsável pela aplicação desses fundos e coordenação das organizações participantes estaria a Secretaria de Tecnologia Industrial (STI), criada em 1972, dentro do âmbito do Ministério da Indústria e Comércio (MIC). Essa Secretaria cuidaria do planejamento e coordenação do INT, do INPI e do INPM, visando ordenar as atividades de pesquisa tecnológica sob a autoridade do Estado e acelerar o desenvolvimento da indústria nacional (DIAS, 1998). Seguindo a mesma linha proposta pelo I PBDCT, que valorizava a organicidade do sistema de ciência e tecnologia nacional, a Lei n° 5.966 de 1973 objetivou agregar metrologia, normalização e certificação da qualidade em uma só organização. Dessa forma, criou-se o Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro), um arranjo institucional que possibilitasse a articulação das diferentes atividades ligadas à padronização técnica. O Sinmetro deveria assim proporcionar a coesão necessária para o funcionamento de um sistema único de padronização técnica, o qual passou a contar com um conjunto de elementos maior e mais heterogêneo em relação à antiga estrutura do INPM. Uma nova estrutura de governança deveria lidar com a diversidade de interesses advindos dos diferentes Ministérios, agências reguladoras, empresas estatais, confederações setoriais, associações de consumidores, academia, organismos de padronização técnica estrangeiros e internacionais, entre outros. A cúpula do novo sistema estava baseada em seu órgão normativo, o Conmetro, que assumiu as funções de formular, coordenar e supervisionar a política nacional de metrologia, normalização e qualidade industrial, prevendo 92 História e Economia Revista Interdisciplinar mecanismos de consulta que harmonizassem os interesses públicos e privados, assegurando a uniformidade e a racionalização das unidades de medida. Como forma de integrar todas as áreas afins do governo, o Conmetro reuniu um grande colegiado de ministros ao qual seriam agregados representantes dos diferentes setores e ramos empresariais. Presidido pelo ministro do então Ministério da Indústria e Comércio (MIC), o Conmetro foi concebido para funcionar a partir de um plenário de câmaras setoriais (Dias, 1998). Para execução das políticas definidas pelo Conmetro, foi criado o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), uma autarquia federal vinculada ao MIC, com personalidade jurídica e patrimônio próprio, com funções bem mais extensas do que o INPM. Dentre suas atribuições executivas está a aplicação das políticas nacionais de metrologia e da qualidade; verificação da observância das normas técnicas e legais; manutenção e conservação dos padrões das unidades de medida; implantação e manutenção da cadeia de rastreabilidade dos padrões das unidades de medida no País (harmônicas internamente e compatíveis no plano internacional); promoção do intercâmbio com entidades e organismos estrangeiros e internacionais; planejamento e execução das atividades de acreditação de laboratórios de calibração e de ensaios, de provedores de ensaios de proficiência, de organismos de certificação, de inspeção, de treinamento e de outros; e coordenação, no âmbito do Sinmetro, da certificação compulsória e voluntária de produtos, de processos, de serviços e a certificação voluntária de pessoal (INMETRO, 2008). Nos primeiros anos do Sinmetro, dada a necessidade de se contornar a escassez de recursos para equipar o Laboratório Nacional de Metrologia, uma oportunidade foi vislumbra- da com a formulação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), fruto de um acordo de empréstimo negociado entre o governo brasileiro e o Banco Mundial. Originalmente, os recursos deveriam ser direcionados a programas de ciência básica e a projetos de educação para a ciência. Porém, o então secretário de Tecnologia Industrial José Israel Vargas conseguiu convencer os consultores do Banco de que sem o desenvolvimento da metrologia científica não haveria condições para consolidar no país a ciência básica. Sendo assim, a infra-estrutura de metrologia, normalização e qualidade industrial merecia receber parte desses recursos. Nascia então, em 1984, o subprograma do PADCT de Tecnologia Industrial Básica (TIB), a partir da união da Agência CAPES, CNPq, Finep e STI. Nesse programa foram agregadas não só as atividades de metrologia, normalização e avaliação de conformidade, como também as tecnologias de gestão (ênfase na gestão da qualidade), os serviços de suporte à propriedade intelectual e à informação tecnológica e a capacitação de recursos humanos nessas áreas. O termo TIB surgiu a partir de uma proposta de José Israel Vargas de criar um conceito que chamasse a atenção dos diferentes órgãos do governo e do setor produtivo, para uma tecnologia indiferenciada, de aplicação universal aos processos produtivos materiais e não-materiais, procurando assim criar um consenso quanto à necessidade de mobilização de recursos para esse tipo de conhecimento (DIAS, 2007). débitos, que se estenderam até a década de 1990, somaram-se aos problemas econômicos (inflação e bloqueio das poupanças em 1990, durante o Governo Collor) e à instabilidade política do período, intensificando as dificuldades financeiras da instituição. Além disso, a ABNT precisava lidar com a falta de interesse e estímulo das empresas privadas em participar das suas atividades, de caráter essencialmente voluntário (ABNT, 2006). Tais dificuldades passaram a ser superadas com a implementação das normas ISO 9000 no Brasil, em função da crescente importância da adoção dessas normas para a manutenção e o aumento da participação das empresas brasileiras no mercado internacional (DIAS, 2007). Em 1992, houve o reconhecimento oficial da representatividade da ABNT, sendo credenciada como único Foro Nacional de Normalização. A ABNT passou a ocupar um lugar de destaque de representação no Sinmetro, ao participar em praticamente todos os comitês técnicos do Conmetro. A partir da 2ª metade dos anos 1970, durante o Regime Militar, a ABNT passou por um período de crise, com a tentativa de estatização de suas atividades de normalização. As anuidades de participação da ABNT nos organismos internacionais de normalização, pagas então pelo governo, deixaram de ser liquidadas como forma de pressão para a ABNT tornar-se estatal. Esses 3. Os mecanismos de governança do Sinmetro Segundo Dias (2007), o desenho institucional centralizado do Sinmetro passou a representar um experimento em termos internacionais, ou seja, uma novidade entre os países industrializados cujos sistemas de padronização técnica apresentam uma participação mais intensa de entidades vinculadas ao setor privado. Tal centralização representa um desafio, em termos de governança institucional, na coordenação de uma diversidade de atores cujos interesses são muitas vezes dispersos e/ou conflitantes, como se verá a seguir. O Conmetro, sendo o órgão normativo do Sinmetro, assumiu então a tarefa de dinamizar as atividades de padronização técnica por meio da coordenação dos diversos representantes públicos e privados. Isso se deu por meio de seus História e Economia Revista Interdisciplinar 93 Padronização técnica no Brasil... comitês técnicos assessores, abertos à sociedade, os quais contam com a participação de entidades representativas dos setores agrícola, industrial e de serviços, de representantes da sociedade organizada (consumidores) e de órgãos de ensino e pesquisa. O Conmetro é constituído por cinco comitês técnicos: o Comitê Brasileiro de Metrologia (CBM), o Comitê Brasileiro de Normalização (CBN), o Comitê Brasileiro de Avaliação da Conformidade (CBAC), o Comitê Brasileiro de Regulamentação (CBR) e o Comitê do Codex Alimentarius do Brasil (CCAB). Além disso, o Conmetro conta com uma Comissão Permanente dos Consumidores (CPCon). Nesta seção, serão analisadas as estratégias de coordenação dos agentes, adotadas nos respectivos comitês técnicos8 a partir do conceito de governança. Esse conceito está ligado às condições para a criação de regras ordenadas de ação coletiva e aponta para a formação de uma estrutura ou uma ordem que não pode ser imposta desde fora, mas vem da interação de uma multiplicidade de atores cujos interesses são coordenados em prol de objetivos em comum (STOKER, 1998). No processo de constituição de um sistema de padronização técnica a governança está associada a estruturas de tomada de decisão que variam de modelos de representação tecnocráticos, baseados em conhecimento de especialistas dos setores público e privado, dominados em geral por grupos empresariais (consórcios) nos quais a participação do público é excluída; a modelos de participação mais democráticos, cujas decisões são baseadas em consenso entre os agentes, e nos quais se prevêem a inclusão de novos atores, sobretudo do público leigo por meio de associações de consumidores (ACOSTA; PELAEZ, 2008). 8 Optou-se neste trabalho por não se incluir a avaliação do CPCon em função da falta de espaço. Pode-se rapidamente observar que essa Comissão tem tido uma participação inexpressiva junto ao Conmetro, pela baixa representatividade e mobilização da sociedade civil organizada e dos Procons estaduais. 94 História e Economia Revista Interdisciplinar Por meio das atas das reuniões dos respectivos comitês, procurou-se identificar como as agendas de trabalho e de tomada de decisão são criadas, qual o papel exercido pelos diferentes atores envolvidos, e como os mesmos interagem e coordenam seus interesses diversos. Assim, para cada Comitê, foram observadas a representatividade e a participação das entidades-membro, bem como a agenda de discussões desenvolvidas. 3.1 Comitê Brasileiro de Normalização (CBN) A normalização no Brasil é organizada no âmbito do Sistema Brasileiro de Normalização (SBN), um sistema interno ao Sinmetro, destinado ao desenvolvimento e coordenação das atividades de normalização, inclusive no que se refere a sua relação com a atividade de regulamentação técnica. São integrantes do SBN, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), os Organismos de Normalização Setorial (ONS), as entidades governamentais com autoridade de regulamentação técnica9 e o Comitê Brasileiro de Normalização (CBN). O CBN surgiu em 1992 como Comitê Nacional de Normalização (CMN) e tem como principal objetivo estabelecer o envolvimento dos diversos segmentos da sociedade no processo de normalização. Além disso, o CBN busca assessorar e subsidiar o Conmetro nos assuntos relativos à normalização, analisar e aprovar o planejamento do SBN, estabelecer a articulação institucional entre CBN e os demais Comitês do Conmetro, e também entre os setores privado e governamental, assessorando na relação entre a normalização e a atividade de regulamentação técnica. Cabe ainda ao CBN a elaboração, discussão e submissão à aprovação do Conmetro 9 Podem ser citadas como exemplo de instituições de autoridade de regulamentação técnica a Agência Nacional de Águas (ANA), a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ). do Plano Brasileiro de Normalização (PBN), um documento plurianual, que harmoniza as demandas do Governo e da sociedade e contêm as diretrizes, prioridades e os temas a serem considerados no âmbito do SBN. Além de criar esse documento, o CBN articula, acompanha a sua aplicação e verifica, por meio da avaliação dos resultados, sua efetividade, tomando as necessárias ações para a sua revisão (Comitê Brasileiro de Normalização, 2008b). Das 19 reuniões ordinárias realizadas em seis anos de existência do CBN, excluindo a ABNT e o Inmetro (secretaria-executiva do CBN), apenas quatro entidades-membro compareceram a mais da metade das reuniões do CBN: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (ABINEE) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), que estiveram em 79% das reuniões, e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que participou de 68% dos encontros. Os sete Ministérios10 representados no CBN tiveram participação pouco significativa nesses últimos seis anos de reuniões do CBN. Quando são considerados apenas os Ministérios ligados à área produtiva e de serviços, a participação ainda se mantém reduzida: o Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio (MDIC) compareceu às nove primeiras reuniões (47% do total) e há três anos não se observam registros de participação de algum representante desse Ministério. Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) não esteve presente em nenhuma reunião. Verifica-se, neste caso, a pouca importância atribuída pela esfera pública às normas técnicas como instrumento de desenvolvimento e organização da produção, além de base para influenciar a criação de regu10 Meio Ambiente; Justiça: Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Relações Exteriores; Defesa; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Ciência e Tecnologia. lamentos técnicos. Da mesma forma, o setor privado tem demonstrado pouco interesse na normalização técnica. Somente três associações setoriais compareceram em reuniões do CBN: ABINEE (com 79% de participação), Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos - ABIMAQ (com presença em 37% das reuniões) e Associação Brasileira de Cimento Portland ABCP, presente em 32% dos encontros11. Durante a 19ª reunião do CBN, realizada em Curitiba, havia apenas duas entidades-membro de associações produtivas provenientes de setores privados (ABIMAQ e ABCP, cujo representante é o atual presidente do CBN), que pouco se manifestaram durante as discussões. Segundo a ABNT (COMITÊ BRASILEIRO DE NORMALIZAÇÃO, 2003b), esses são os ramos que mais elaboram normas e as utilizam em seus processos produtivos. Os Comitês Brasileiros desses setores (ABNT/CB-02 Construção Civil, ABNT/CB-03 Eletricidade e ABNT/CB-04 Máquinas e Equipamentos Mecânicos) são justamente os com o maior número de normas criadas no âmbito dos Comitês Brasileiros, concentrando cerca de 43% de todos os textos normativos produzidos. São ramos industriais normalmente caracterizados pela presença de empresas de grande porte, com elevada participação no comércio internacional ou que são sujeitos a uma forte fiscalização de agências reguladoras, o que as forçam a ter uma participação ativa nas discussões voltadas à criação e implementação de normas e regulamentos em suas áreas de atuação. Essa situação poderia ser caracterizada como típica de consórcios de normalização, no quais um grupo, constituído por empresas fornecedoras e grandes clientes, acaba definindo normas de acordo com seus in11 Cabe salientar que desde a 4ª RO do CBN (Comitê Brasileiro de Normalização, 2003), o representante da ABCP, Sr. Mário Esper esteve na Vice-Presidência ou Presidência do CBN. Logo, participou das reuniões do Comitê exercendo tais funções, de forma que a porcentagem de participação pode estar subestimada justamente por constar nas atas sua representação do CBN e não a do ABCP. História e Economia Revista Interdisciplinar 95 Padronização técnica no Brasil... teresses (AUSTIN e MILNER, 2001). Ainda que as normas brasileiras relativas a esses ramos de atividade sejam definidas por meio de um sistema institucionalizado de normalização, o consenso necessário para a aprovação de uma norma ABNT acaba sendo marcado pela falta de diversidade dos membros participantes, o que induz a um processo com pouca discussão e definição de resultados já esperados. Os representantes dos demais Comitês do Conmetro também não tiveram assiduidade nas reuniões do CBN: o Comitê Brasileiro de Avaliação da Conformidade (CBAC) compareceu a 47% das reuniões, enquanto o Comitê Brasileiro de Metrologia (CBM) participou de 37% das reuniões. Quando houve participação, grupos de trabalho chegaram a ser criados entre Comitês12 como forma de integração e complementação temática. Apesar da necessidade de uma articulação efetiva entre os diferentes comitês percebe-se no CBN a falta de instrumentos capazes de identificar a demanda por normalização oriunda dos demais Comitês. As Confederações Nacionais do Comércio (CNC) e da Indústria (CNI) participaram em 47% das reuniões do CBN, enquanto a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) participou de apenas uma reunião. Percebem-se aqui ao menos quatro possibilidades para explicar a ausência das entidades públicas e privadas do setor agropecuário (e das demais instituições ausentes) neste fórum de discussão: (i) falta de interesse ou conscientização sobre a importância da normalização; (ii) falta de organização das entidades de classe do setor e dos órgãos públicos; (iii) falta de capacidade de articulação do próprio CBN; (iv) ou uma combinação das possibilidades anteriores. 12 Um exemplo foi o grupo de trabalho formado entre o CBN e o CBAC sobre o uso de normas estrangeiras em programas de avaliação da conformidade e a discussão sobre a utilização de normas não-oficiais em compras governamentais. 96 História e Economia Revista Interdisciplinar Um tema recorrente nas reuniões foi a relação entre normas técnicas e regulamentação técnica. Com o intuito de identificar as demandas governamentais por normas a serem utilizadas como regulamentos técnicos, o CBN incentivou um ciclo de apresentações por parte das agências reguladoras, como forma de destacar suas principais deficiências em termos de regulamentação técnica, tornando o CBN um órgão de ligação entre a esfera pública e a esfera privada no contexto da normalização. Entre os pontos debatidos estavam, por exemplo, normas em segurança ambiental (Comitê Brasileiro de Normalização, 2004), os elevados custos de instalações da NBR 5410, norma do setor elétrico que diz respeito a instalações de baixa voltagem, cuja referência é a norma internacional IEC 60364 (Comitê Brasileiro de Normalização, 2006) e falta da padronização nos medidores de vazão de água no país, impedindo uma melhor fiscalização (Comitê Brasileiro de Normalização, 2007). A partir dessas demandas específicas, o CBN sugeriu o encaminhamento dos problemas às instituições mais competentes para solução. A leitura das atas correspondentes a essas reuniões sugere que não houve desfecho satisfatório para essas solicitações governamentais, ou pelo menos de que ainda não se encerraram as discussões a respeito das mesmas, apesar de passados praticamente dois anos desde a data de apresentação das agências. De qualquer forma, ambas as hipóteses sugerem o lento processo de debate a respeito de normas técnicas no CBN, que não se restringe, portanto, à criação de normas na ABNT13. No entanto, o tema de maior recorrência nas reuniões do CBN foi a definição dos objetivos do próprio CBN e a revisão de seus participantes. Das 19 reuniões, 12 delas tiveram em algum momento uma discussão sobre as estra13 Para mais detalhes acerca das decisões do CBN em cada uma das demandas citadas, vide Acosta (2008). tégias do CBN ou do PBN, e sobre os possíveis interessados em participar do CBN. Pode-se perceber por meio das atas que o pouco tempo disponível (distribuído em quatro reuniões anuais) para os encontros com as entidades interessadas na normalização e discussão das demandas prioritárias acabou sendo utilizado para explicar a própria existência do CBN e para tentar compreender o ambiente econômico e político por meio do qual se estabelece a demanda pelas normas técnicas no Brasil. Nesse contexto, a elaboração do Plano Brasileiro de Normalização (PBN) acabou sendo um importante motivo para justificar as reflexões sobre os objetivos do CBN. Em 2008, o CBN realizou uma revisão institucional de suas atribuições, com o intuito de atualizar o PBN, após quatro anos de vigência do plano anterior14. Assim, foram definidas diretrizes baseadas em três grupos temáticos (Funcional, Regimental e Legal), as quais foram discutidas com as entidadesmembro da CBN, em reunião realizada no dia 18/06/2008, em Curitiba. Nessa data, estavam presentes representantes do Inmetro, ABNT, do Governo (Ministério da Defesa, ANATEL, MCT) e do setor privado (ABINEE, SEBRAE, CNC, Rede Metrológica do Paraná e ABCP, e o próprio Presidente do CBN, Sr. Mário Ésper) (Comitê Brasileiro de Normalização, 2008a). Nessa reunião, foram discutidos os principais temas que mobilizam o CBN tais como a necessidade de uma maior dinamização do funcionamento do CBN, o aumento da transparência, maior articulação com demais comitês e com a ABNT, aperfeiçoamento da composição das 14 O último PBN foi elaborado em setembro de 2004 e abordou quatro temas estratégicos: papel estratégico da normalização para a economia brasileira; normas brasileiras – identificação de necessidades e prioridades; normas brasileiras, regulamentos técnicos e normas internacionais; e sustentabilidade do Sistema Brasileiro de Normalização. Esses temas se desdobravam em conjuntos de diretrizes às quais, por sua vez, foram associadas propostas de ação para implementação do PBN. entidades-membro do CBN15, a reduzida participação das associações de consumidores nas discussões ligadas a normas técnicas. Além disso, foi relembrado que o CBN não tem papel de instituição executora nem de julgadora de conflitos entre os participantes, mas sim de órgão assessor e que não cabe ao CBN realizar acompanhamento das atividades da ABNT, já que essa função seria do Inmetro (órgão operativo do Sinmetro). Essas questões primárias sobre quais seriam as atribuições do Inmetro e do CBN, são um tema recorrente nas reuniões, fazendo com os resultados das reuniões sejam redundantes e pouco efetivos. 3.2 Comitê Brasileiro de Regulamentação (CBR) O Comitê Brasileiro de Regulamentação (CBR) foi criado como comitê assessor do Conmetro em 2005, com as atribuições de aprimorar as práticas de regulamentação nacionais e definir os elementos básicos que devem nortear o conteúdo dos regulamentos técnicos no âmbito do Sinmetro. Além disso, o CBR deve articular-se com os demais Comitês do Conmetro, bem como com os demais órgãos de governo, no que diz respeito à regulamentação, objetivando, sempre que possível, a integração das ações e a utilização de uma mesma base técnica (BRASIL, 2005). Segundo o depoimento do Sr. Alfredo Lobo, diretor de Qualidade do Inmetro, o objetivo do Conmetro ao aprovar a criação do CBR era equacionar duas questões primordiais que vinham dificultando e causando alguns entraves aos órgãos públicos: a harmonização da interface entre Normas e Regulamentos Técnicos; e a cobrança de normas e a referência às mesmas em regulamentos técnicos. Foram ainda ponderadas as questões relativas à dificuldade enfrentada no 15 Foi relatado que atualmente o quorum das reuniões é baixo. A ABNT destacou a diferença daquela reunião com a reunião do Comitê Brasileiro de Avaliação da Conformidade (CBAC), que havia sido realizada no mesmo dia e local com um quorum bastante significativo de representantes de associações produtivas e órgãos públicos. História e Economia Revista Interdisciplinar 97 Padronização técnica no Brasil... âmbito da regulamentação no comércio internacional, e à necessidade de uma atuação integrada entre as entidades regulamentadoras. Dadas essas dificuldades, o Conmetro estabeleceu um grupo de trabalho, sendo o Inmetro incumbido de organizar as discussões pertinentes. Foram realizadas algumas reuniões com as entidades regulamentadoras e demais setores envolvidos no sentido de formular propostas e definir direcionamentos. Assim, foi definido pelo Conmetro que seria criado o CBR, que tem sua base legal na Resolução nº 02, de 09 de junho de 2005 (COMITÊ BRASILEIRO DE REGULAMENTAÇÃO, 2005a). São membros permanentes do CBR o Inmetro (que exerce a função de Secretaria Executiva do CBR), a ABNT e os Presidentes do CBAC, do CBN e do CBM. A presidência do CBR, desde janeiro de 2006, é exercida pelo Secretário de Tecnologia Industrial do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Além dessas instituições, o CBR é composto por membros formalmente indicados pelas autoridades regulamentadoras, de caráter federal16. As decisões da Plenária são tomadas com base no consenso entre os representantes das entidades-membro presentes à reunião (COMITÊ BRASILEIRO DE REGULAMENTAÇÃO, 2008b). Até Outubro de 2008, foram realizadas sete reuniões ordinárias (RO) do CBR (seis estão disponíveis no site do Inmetro) e duas reuniões extraordinárias (RE). Foram realizados também dois Workshops, nos quais foram discutidos assuntos pertinentes ao CBR. As reuniões do CBR apresentam características diferentes em relação às reuniões do 16 Durante a 1ª RO do CBR, um representante do Inmetro indagou sobre a possibilidade de convidar entidades privadas tais como a CNI, CNA e CNC para fazerem parte do CBR. Entretanto, houve manifestações contrárias de alguns membros, que acreditam que o Comitê deve ficar restrito aos órgãos governamentais. Essa situação permitiria uma maior liberdade no tratamento dos temas (ComitÊ Brasileiro de REGULAMENTAÇÃO, 2005a). 98 História e Economia Revista Interdisciplinar CBN. Com exceção da ABNT17, o CBR conta com a participação predominante de órgãos públicos (Ministérios e agências reguladoras). Destaca-se a importância da pluralidade de órgãos reguladores nas reuniões do CBR, como forma de garantir que suas necessidades em regulamentação sejam discutidas e abordadas no comitê. De 2005 a 2008, as atividades do CBR estiveram concentradas nas discussões para criação, aprovação e implantação de um Guia de Boas Práticas Regulatórias. Na seqüência, foi criado um Grupo de Trabalho sobre o Acesso a Documentos Normativos de Caráter Voluntário, com o objetivo de equacionar a venda de normas, consultando todos os atores envolvidos no tema e respeitando a soberania das agências reguladoras. Na discussão desses assuntos, verificava-se um desconhecimento, por parte de alguns representantes das entidades-membro, da terminologia e funcionalidade concernentes não só à regulamentação técnica e ao CBR, mas a todo o sistema de padrões técnicos. Por exemplo, em uma reunião foi apontada a dúvida com relação à diferença existente entre o Programa de Avaliação da Conformidade e o Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade. Outro equívoco observado foi igualar fiscalização à avaliação da conformidade (COMITÊ BRASILEIRO DE REGULAMENTAÇÃO, 2007). Na 6ª RO do CBR, um dos presentes desconhecia a função do CBR (COMITÊ BRASILEIRO DE REGULAMENTAÇÃO, 2008a). Como forma de contornar esse problema, foi realizado um seminário para homogeneizar os conhecimentos sobre a missão do CBR (oportunidade em que também foi discutido o 17 Quando indagado pelo representante do MCT a respeito da participação da ABNT no Comitê, durante a 2ª reunião ordinária do CBR, o representante da ABNT explicou que toda a discussão que culminou na criação do CBR foi precisamente da necessidade de uma interface entre as normas e regulamentos técnicos. A ABNT foi convocada por ser precisamente o Fórum Nacional de Normalização reconhecido pelo Conmetro (Comitê Brasileiro de regulamentação, 2005b). Termo de Referência para elaboração do Guia) e foi criado um Glossário de terminologia (disponível no site do Inmetro). Sobre esse Glossário, foi pedido que todos o lessem e comentassem. Mais uma vez, foi constatado o reduzido comprometimento e/ou priorização das instituições nas atividades do CBR, já que somente a ABNT, MCT, ANP e Inmetro opinaram, enviando seus termos e definições (COMITÊ BRASILEIRO DE REGULAMENTAÇÃO, 2006b). 3.3 Comitê Brasileiro de Avaliação da Conformidade (CBAC) No Brasil, a atividade de Avaliação da Conformidade é desenvolvida e coordenada no âmbito do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade (SBAC), um subsistema do Sinmetro, criado pelo Conmetro. O SBAC é constituído por representantes das partes interessadas nos diferentes mecanismos da avaliação da conformidade, que se organizam por meio do Comitê Brasileiro de Avaliação da Conformidade (CBAC). O CBAC foi criado como comitê assessor do Conmetro em 2001, em substituição ao Comitê Brasileiro de Certificação (CBC) e ao Comitê Nacional de Credenciamento (Conacre). O Comitê tem como principal objetivo articular e empreender ações relacionadas ao planejamento e formulação das estratégias para o Programa Brasileiro de Avaliação da Conformidade (PBAC), um documento plurianual, de caráter estratégico, que contém as principais diretrizes para o desenvolvimento e consolidação do SBAC, aprovado pelo Conmetro. O CBAC deve também acompanhar e avaliar a execução e os resultados dessa política. Isso se dá, principalmente, pela proposição e revisão das políticas de acreditação de organismos e laboratórios; pelo acompanhamento da participação nacional em fóruns internacionais e regionais de avaliação da conformidade, por meio da avaliação periódica do SBAC; e pela criação de Comissões Permanentes, Sub-Comitês e Grupos de Trabalho para empreender as atividades que lhe são atribuídas. Além disso, cabe ao Comitê a articulação com os demais Comitês do Conmetro e com os órgãos de governo, buscando a contínua integração de suas atividades e a utilização de uma mesma base técnica (COMITÊ BRASILEIRO de Avaliação da Conformidade, 2008b). Desde 2002, foram realizadas 23 reuniões ordinárias (RO) do CBAC e nove reuniões extraordinárias (RE). Nessas 23 RO, 86 instituições diferentes participaram em alguma das reuniões, sendo que foram verificadas as participações de nove ministérios, 21 associações empresariais, seis agências reguladoras, três comitês assessores do Conmetro, além de sindicatos, laboratórios, institutos de pesquisa, empresas estatais e outros órgãos públicos. Cerca de 14 instituições participaram em mais da metade das reuniões do CBAC. Dentre as entidades que compõem o Comitê, a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (ABINEE), a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA) e Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (ELETROS) foram as instituições com maior participação em ROs, com presença em 100%, 96%, 87% e 83% das reuniões, respectivamente. As quatro associações são ligadas à iniciativa privada, sendo que três delas representam os interesses de setores produtivos formados principalmente por empresas grandes, com elevado peso na pauta industrial nacional. Com relação às associações de classe, empresas privadas e sindicatos, essas têm a maior participação no total das RO, sendo 62% das entidades presentes nos encontros do CBAC. História e Economia Revista Interdisciplinar 99 Padronização técnica no Brasil... Ao contrário do CBN, que contava com apenas três entidades interessadas em suas reuniões, existe no CBAC um reconhecimento por parte das associações produtivas do benefício advindo das discussões acerca da avaliação da conformidade. O setor público, por meio de Ministérios e Agências Reguladoras, está presente; no entanto, não apresenta o grau de envolvimento observado tanto no CBN quanto no CBR. Ao longo de seis anos de atuação, o CBAC propiciou discussões sobre avaliação da conformidade no âmbito do Conmetro. Foram, em média, oito assuntos diferentes abordados em cada reunião, tratando de temas como ensaios de produtos, modalidades de avaliação da conformidade, relação com os demais Comitês do Conmetro, definições estratégicas do CBAC, articulação com os setores público e privado, apresentações de entidades, posicionamento do Inmetro como órgão acreditador, entre outros. O dinamismo da agenda de trabalho das reuniões, bem como a intensa formação de grupos de trabalho para análises específicas dentro desse tema, pode ser justamente um reflexo da maior participação ou maior interesse de suas entidades-membro. As reuniões do CBAC demonstraram ter um caráter mais aplicado em relação aos demais comitês do Conmetro, no sentido de estar mais voltado às necessidades práticas do setor produtivo. Isso pode ser constatado no próprio PBAC, cujas diretrizes não se restringem à definição de áreas e ações estratégicas mais abrangentes. O PBAC também identifica produtos considerados estratégicos, cujo desenvolvimento na área de certificação e acreditação deve ocorrer no espaço de quatro anos. Além disso, nas reuniões foram registradas discussões sobre diversos produtos, como a certificação de produtos hospitalares (uniformes e artigos de cama, mesa e 100 História e Economia Revista Interdisciplinar banho), de brinquedos18, debates sobre ensaios realizados em colchões, cadeiras plásticas, bicicletas, certificados para a cachaça, entre outros produtos e processos. O relacionamento do CBAC com os demais comitês do Conmetro foi também um dos assuntos discutidos, sob o enfoque da necessidade de interação e coordenação das interfaces dos trabalhos a serem desenvolvidos pelos comitês. Por exemplo, com a reativação do CBN em 2002, foi questionada a atribuição desse comitê, visto que o CBAC também possui atividades relacionadas à atividade de normalização (COMITÊ BRASILEIRO DE AVALIAÇÃO DA CONFORMIDADE, 2002). Foi esclarecido que ao CBAC caberia a identificação do conjunto de normas e regulamentos a serem elaborados para atender as suas necessidades, e ao CBN, as diretrizes gerais da normalização a ser aplicada nos diferentes setores da economia. Esse tipo de discussão, recorrente nos diversos comitês, revela ainda a falta de clareza e familiaridade dos representantes legais com a diversidade de funções da TIB e suas instâncias de decisão burocráticas. 3.4 Comitê Brasileiro de Metrologia (CBM) Criado em 1995, o Comitê Brasileiro de Metrologia (CBM) é um colegiado assessor do Conmetro que tem por objetivo empreender ações relacionadas ao planejamento, formulação e avaliação das diretrizes básicas relacionadas à política brasileira de Metrologia. O CBM é formado por instituições governamentais e outros representantes da sociedade civil. Nesse Comitê, o Inmetro também assume a função de Secreta18 O Presidente da Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ) foi pessoalmente à 15ª RO do CBAC (Novembro de 2005) para solicitar, junto à Plenária, a participação da instituição como entidade-membro. Mais uma vez, verifica-se um forte interesse das associações produtivas em participar dos encontros de certificação e acreditação, ao contrário do que ocorre no CBN, cujas entidades-membro constantemente estudam a possibilidade de que novos convidados possam se envolver nas atividades do Comitê (COMITÊ BRASILEIRO DE AVALIAÇÃO DA CONFORMIDADE, 2005). ria Executiva, assim como nos demais Comitês Assessores do Conmetro. Quanto à Presidência, quem assume esse posto no CBM é o Diretor de Metrologia Científica e Industrial do Inmetro. Ao contrário dos demais Comitês do Conmetro, o CBM não possui suas atas disponibilizadas ao público no site do Inmetro. É necessária a utilização de uma senha (fornecida aos seus membros) para que seja possível o acesso às informações do Comitê. Dessa forma, fica impossibilitada a análise dos participantes e da dinâmica de discussões obtida por meio das reuniões do Comitê, tal qual realizada nos subitens anteriores. Quando questionado em entrevista a respeito da não-divulgação das atas, o responsável pelo CBM, o Sr. Aldo Dutra comentou sobre o considerável número de atividades do Comitê, que o impedia de atualizar o site. Essa indisponibilidade da visualização das atas, ainda que nãointencional, denota a ausência de transparência da instituição, o que impede a sociedade de ter acesso a suas decisões. Os efeitos e motivações que movem os interessados no tema, tanto sob os aspectos tecnológicos como econômicos, tendem a ser pouco claros e excludentes. A própria participação nessas decisões igualmente se mostra impossibilitada pelo fato de não haver divulgação das datas de reuniões do Comitê. 3.5 Comitê do Codex Alimentarius do Brasil (CCAB) O Codex Alimentarius é um programa conjunto da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). É um fórum internacional de normalização sobre alimentos, criado em 1962. Suas normas têm como finalidade proteger a saúde da população, assegurando práticas eqüitativas no comércio regional e internacional de alimentos. Além disso, busca criar mecanismos internacionais dirigidos à remoção de barreiras tarifárias, fomentando e coordenando todos os trabalhos que se realizam em normalização (COMITÊ CODEX ALIMENTARIUS, 2008). Como o CBM, o CCAB não possui suas atas disponibilizadas no site do Inmetro. Dado a importância deste comitê nas discussões e participações em fóruns internacionais que afetam diretamente tanto a competitividade das exportações do agronegócio do país quanto a saúde dos consumidores, percebe-se aqui mais uma fragilidade institucional no que tange à transparência e à coordenação das decisões que afetam as ações dos demais comitês técnicos. 4. Considerações finais Apesar do esforço governamental em instalar um conjunto de atividades de infraestrutura tecnológica em um país no qual o desenvolvimento tecnológico é ainda incipiente, o Sinmetro ainda conta com uma representatividade baixa dos principais agentes interessados no desenvolvimento de uma coordenação produtiva mais eficaz, capaz de aumentar a competitividade do parque produtivo nacional e, ao mesmo tempo, de fazer valer os direitos dos consumidores. Verifica-se pouca identificação do setor produtivo nacional e da sociedade com agentes capacitados a participar do processo de criação e adoção de padrões técnicos. Aliado a isto, a grande quantidade de representantes de ministérios e agências reguladoras envolvidas nos Comitês do Conmetro também dificulta as atividades de coordenação de uma diversidade de atores governamentais que também apresentam seus próprios conflitos de interesses políticos, e lógicas próprias na execução de suas atividades. Neste caso, o Sinmetro perde muitas vezes seu propósito de sistema coordenador de atividades complemen- História e Economia Revista Interdisciplinar 101 Padronização técnica no Brasil... tares, adquirindo um caráter mais burocrático de agregação de funções similares por meio de reuniões – realizadas no âmbito do Conmetro - cujas discussões tendem a se tornarem inócuas, face à desarticulação e pouca representatividade dos participantes. O senso de oportunidade ou de improviso de alguns gestores acabou permitindo a evolução do sistema, indicando um ponto de vista muito mais individual do que institucional no processo de criação do Sinmetro. A própria criação do Programa TIB foi um exemplo de uma oportunidade gerada pelo Sr. José Israel Vargas de se aproveitar um aporte de recursos do Banco Mundial, dada a necessidade de recursos para finalização do Laboratório Nacional de Metrologia. Por outro lado, percebe-se a pouca qualificação e falta de preparo no assunto padronização técnica por parte da grande massa de representantes de instituições públicas, muitas vezes incapaz de dialogar com o setor empresarial e representá-lo de maneira plena. Como pôde ser constatada, a agenda de discussões dessas atividades (analisada por meio das atas dos Comitês do Conmetro) mostra-se muitas vezes vazia, na qual se busca preenchê-la por meio da revisão de seus planos estratégicos que carecem de efetividade, representatividade e transparência. Tal fragilidade institucional acaba por deixar espaço para uma ação paralela de decisão por meio de consórcios formados por grandes grupos empresariais que possuem um interesse mais imediato, na definição e implementação de padrões, e dispõem de recursos financeiros necessários para fazer valer seus interesses. Isto limita as possibilidades de uma governança baseada na coordenação de uma diversidade maior de interesses, como também as possibilidades de se exercer uma coordenação voltada à troca de informações e experiências capazes de contribuir para uma agenda de traba102 História e Economia Revista Interdisciplinar lho voltada ao incentivo da aprendizagem e da inovação tecnológica. Por outro lado, pôde-se constatar, ao menos no CBAC, um processo crescente de participação e interação de atores do setor público e privado na criação de uma agenda mais dinâmica e efetiva de trabalho. Isto poderia resultar em um efeito positivo de aprendizagem de práticas de governança capazes de ampliar as possibilidades de coordenação do setor produtivo e dos órgãos governamentais envolvidos em outras esferas de discussão e decisão do Sinmetro. Da mesma forma, pode-se identificar uma tomada de consciência significativa por parte do setor empresarial nacional em participar de espaços de decisão vinculados à criação de padrões internacionais, os quais têm implicação direta na competitividade do país em nível internacional na medida em que esses padrões podem tornar-se barreiras técnicas ao comércio. Pode-se enfim constatar que ainda existe no Brasil um grande caminho a percorrer no sentido de se construir um aparato institucional eficiente e participativo, voltado à criação e implementação de padrões técnicos. Identificam-se, neste caso, duas causas principais: uma capacidade técnico-científica limitada do país; e uma fragilidade político-institucional oriunda de um modelo de democracia representativa, na qual os processos decisórios permanecem restritos a uma tecnocracia vinculada a grandes empresas e a um número reduzido de órgãos públicos. Essa deficiência institucional revela enfim a falta de aderência das políticas públicas a um tecido produtivo ainda incipiente, no que tange ao aproveitamento das relações de sinergia estabelecidas entre o conhecimento científico e tecnológico, desencadeadas pela Segunda Revolução Industrial. Bibliografia ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. Histórico ABNT. Rio de Janeiro: ABNT, 2006. ACOSTA, Sandra. Tecnologia Industrial Básica e seus Mecanismos de Governança. Dissertação. Curitiba: UFPR. 2008. ACOSTA, Sandra; PELAEZ, Victor. Elementos para uma economia política da padronização tecnológica. Anais do XI Encontro de Economia da Região Sul. Curitiba: ANPEC. 2008. AUSTIN, Marc; MILNER, Helen. Strategies of European standardization. Journal of European Public Policy, v. 8, n. 3, p. 411-431, 2001. BRASIL. Resolução CONMETRO. Resolução n. 2, de 09 de junho de 2005. Diário Oficial da União. Brasília. 13 jun. 2005. COMITÊ BRASILEIRO DE AVALIAÇÃO DA CONFORMIDADE. Regimento Interno do CBAC. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/comites/cbac_regimento.asp>. Acesso em: 20/10/2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 22 de mar. 2002. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/comites/atas/ata1ro.pdf>. São Paulo. Acesso em: 12 out. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 09 de nov. 2005. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/comites/atas/ata15ro.pdf >. São Paulo. Acesso em: 14 out. 2008. COMITÊ BRASILEIRO DE NORMALIZAÇÃO. Ata da sessão realizada no dia 19 de mar. 2003. Disponível em: <http://www.inmetro.gov.br/qualidade/comites/Ata4_RO_CBN.pdf>. São Paulo. Acesso em: 14 ago. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 24 de set. 2003. Disponível em: <http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/Ata6_RO_CBN.pdf>. Rio de Janeiro. Acesso em: 15 ago. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 23 jun. 2004. Disponível em: <http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/Ata9_RO_CBN.pdf>. São Paulo. Acesso em: 18 ago. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 23 mar. 2006. Disponível em: <http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/Ata14_RO_CBN.pdf>. Rio de Janeiro. Acesso em: 30 ago. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 21 mar. 2007. Disponível em: <http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/Ata18_RO_CBN.pdf>. Rio de Janeiro. Acesso em: 01 set. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 18 jun. 2008a. Disponível em: <http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/Ata19_RO_CBN.pdf>. Curitiba. Acesso em: 05 set. 2008. ______. Termo de Referência do SBN. Disponível em: <http://www.inmetro.gov.br/qualidade/comites/termo_sbn.asp>. Acesso em: 10 set. 2008 História e Economia Revista Interdisciplinar 103 Padronização técnica no Brasil... . COMITÊ BRASILEIRO DE REGULAMENTAÇÃO. Ata da sessão realizada no dia 23 ago. 2005a. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/comites/atasCBR.asp>. Brasília. Acesso em: 01 set. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 06 out. 2005b. Disponível em: < http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/atasCBR.asp>. Brasília. Acesso em: 01 set. 2008. ______. Ata da sessão realizada no dia 14 mar. 2007. Disponível em: < http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/atasCBR.asp>. Brasília. Acesso em: 05 set. 2008 ______. Ata da sessão realizada no dia 13 mar. 2008a. Disponível em: < http://www.inmetro. gov.br/qualidade/comites/atasCBR.asp>. Brasília. Acesso em: 05 set. 2008 ______. Regimento Interno do CBR. Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br/qualidade/ comites/regimento_CBR.pdf>. Acesso em: 10 out. 2008. COMITÊ CODEX ALIMENTARIUS. Disponível em: <http://www.inmetro.gov.br/qualidade/ comites/codex.asp>. Acesso em: 10 out. 2008. DIAS, José. Metrologia, Normalização e Qualidade – Aspectos da História da Metrologia no Brasil. Rio de Janeiro: Inmetro, 1998. ______. Os Mercados Medidos: A Construção da Tecnologia Industrial Básica no Brasil. Rio de Janeiro: INK Produções, 2007. ECKERT, Michael; SCHUBERT, Helen. Crystals, electrons, transistors: from scholar’s study to industrial research. New York: American Institute of Physics, 1990. FEAR, Jeffrey. German Capitalism. In: McCRAW, Thomas (Org.) Creating modern capitalism. Cambridge: Harvard U.P., 1997, p. 133-182. FILHO, Sergio. 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História e Economia publishes articles on financial history, economic history and the history of economic ideas. 2. A revista também recebe resenhas de livros e comunicações sobre dissertações de mestrado e doutorado. 2. We accept book reviews and dissertation summaries. 3. A publicação dos artigos ocorre conforme a aprovação dos textos pelo conselho editorial. 4. Os artigos não devem exceder 30 páginas (espaçamento duplo), incluindo notas de rodapé e referências bibliográficas. 5. O texto submetido para a revista deve ser original. Em casos especiais, poderemos aceitar a publicação simultânea em revista estrangeira. 6. Recebemos artigos em português, espanhol, inglês e francês. 7. Os originais devem ser editados em MS Word. 8. As figuras, tabelas e gráficos devem ser editados em preto e branco. Caso tais figuras tenham sido geradas em outros programas que não MS Word (por exemplo: Excel, Power Point), o autor deve enviar um arquivo separado contendo o objeto no seu formato original. 9. Devemos receber um arquivo adicional com o(s) nome(s) do(s) autor(es), endereço completo para correspondência contendo afiliação institucional, posição, titulação, telefone para contato e e-mail. É necessário que o autor inclua neste arquivo o título do artigo no idioma original e sua tradução para o inglês. Além disso, o autor deve incluir uma resenha do texto no idioma original e em inglês. A resenha em ambos os idiomas não devem exceder 150 palavras. 3. The journal publishes papers according to their approval by the editorial board. 4. The articles must not exceed 30 pages (double spaced), including references and footnotes. 5. The manuscript submitted to the journal should be original. In special cases, we may accept the simultaneous publication in another foreign journal. 6. We welcome articles in Portuguese, Spanish, English and French. 7. The originals must be edited in MS Word. 8. The figures, tables and graphics should be edited in black and white and included in the file containing the article. In case the original figure, table or graph was created in a program different from MS Word, we must receive a separate file containing the object in its original format. 9. We must receive an additional file with the name of the authors, complete mailing address containing the institutional affiliation, position, title, phone number and email address. We request the author to include the title in its original language as well as its English translation. In addition, the author should enclose an executive summary in the original language and in English. The executive summary and the English translation should not exceed 150 words. História e Economia Revista Interdisciplinar 105 10. As referências bibliográficas devem ser detalhadas e completas, elaboradas de acordo com a NBR 6023 da ABNT. Os dados históricos e as tabelas devem especificar as fontes utilizadas. Em caso de fontes primárias (originais), o autor deve fornecer o nome do Arquivo (ou Instituto, Instituição), a caixa, seção (se for aplicável) e todas as demais informações que julgar relevantes. 11. Os arquivos podem ser enviados por e-mail para: [email protected]. De modo alternativo, recebemos arquivos em disquetes ou CD-ROM. 12. Somente artigos que satisfizerem os requerimentos acima serão submetidos para o comitê editorial. 13. Todos os textos submetidos à revista receberão avaliações escritas dos membros do comitê editorial. 14. O recebimento do texto pela revista automaticamente implica em autorização para futura e eventual publicação. A revista não paga qualquer tipo de royalties para o autor. 15. A revista História e Economia deve enviar uma carta e um e-mail para o autor acusando o recebimento dos originais (caso o artigo seja aprovado, algumas mudanças podem ser sugeridas). 16. A revista não devolverá nenhum texto recebido. Envio de artigos Os artigos podem ser enviados para: Rafael Balan Zappia BBS – Brazilian Business School Instituto de História e Economia Alameda Santos, 745 • 1º andar Cerqueira César • São Paulo, SP CEP 01419-001 • Brasil e-mail: [email protected] 106 História e Economia Revista Interdisciplinar 10. The references must be detailed and complete. Historical data and tables should specify the sources used. In case of original/ primary sources, the author must provide the archive’s name, section, box (if it is applicable) and all the relevant information. 11. The files can be sent by email to: he@ bbs.edu.br, in a 31/2 “ floppy disks or CD-ROM. 12. Only the articles that meet the above requirements are submitted to the Editorial Board. 13. All the manuscripts submitted to this journal will receive written evaluations by the board members. 14. The submission of a manuscript to us implies authorization for future publication by its author. No royalties will be paid. 15. História e Economia will send a written letter and an email to the author. In case of approval, some changes may be suggested. 16. The journal will keep the originals. Submission of originals Originals should be sent to: Rafael Balan Zappia BBS – Brazilian Business School Institute of History and Economics Alameda Santos, 745 • 1º andar Cerqueira César • São Paulo, SP CEP 01419-001 • Brazil email: [email protected] História e Economia Revista Interdisciplinar 107