Relações Federativas no Brasil: Uma Análise da Política Habitacional Autoria: Danielle Cavalcanti Klintowitz, Maria Fernanda Alessio Resumo Objetiva-se analisar a política habitacional brasileira a partir da teoria do federalismo, mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais das últimas décadas influenciaram o desenho da política habitacional, que hora teve como principal protagonista o governo federal, hora os governos subnacionais. Analisa-se primeiramente os arranjos institucionais construídos no âmbito federal, seguindo para uma análise das mesmas questões no âmbito estatual, com foco no Estado de São Paulo, a fim compreender de que modo a União influencia a formação dos arranjos institucionais e desenho das políticas públicas subnacionais. Introdução A política habitacional no Brasil teve um caminho descontínuo, desde seu início na década de 1960i, tendo sido marcada por períodos de extrema centralização no governo federal e por outros períodos de maior protagonismo dos governos locais. Enquanto, durante o Regime Militar, as relações intergovernamentais do Estado brasileiro eram mais similares às formas que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações, a partir da redemocratização, em meados da década de 1980, esta política, como outras políticas sociais, começa a ser repensada sob a perspectiva da descentralização. Em cada um destes momentos, pode-se observar diferenças significativas nas relações intergovernamentais, tanto verticais – caracterizadas pelas relações entre União, Estados e Municípios - como horizontais - caracterizadas pelas relações entre entes com a mesma hierarquia (Estados/Estados e Municípios/Municípios), que marcaram, em grande medida, a trajetória da política pública de habitação. O presente trabalho objetiva analisar a política habitacional no Brasil a partir da teoria do federalismo, mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais, ao longo das últimas décadas, influenciaram o desenho das políticas públicas na área habitacional. Recortamos o período que vai desde o Regime Militar até os dias atuais, quando é possível observar um movimento de maior coordenação dos entes federativos para a formulação e implementação das políticas habitacionais. Analisa-se primeiramente os diferentes arranjos institucionais construídos no âmbito federal e seu impacto no percurso da política nacional, seguindo para uma análise das mesmas questões no âmbito estatual, como foco no Estado de São Paulo, a fim compreender como os arranjos institucionais de uma determinada política pública, construídos na esfera federal, relacionam-se com a trajetória tanto dos arranjos institucionais, como da própria política pública, nos outros níveis federativos. Como referenciais teóricos para análise das relações intergovernamentais foram utilizados os modelos de Wright e Pierson, que apresentam três classificações de autoridade: independente, interdependente e hierárquica. Modelos Teóricos de Wright e Pierson No Modelo de Wright (1988), o termo relações intergovernamentais engloba todas as possíveis relações entre os governos (tanto horizontais como verticais), sendo, portanto, um termo mais amplo que federalismo. Este último, bastante adotado na literatura norteamericana, considera exclusivamente as relações entre estados e governo federal. Além disso, Wright (1988) destaca, além do caráter institucional das relações intergovernamentais, o papel dos atores no desenvolvimento dessas relações; esta atenção dada aos atores nos estudos sobre as relações intergovernamentais é, possivelmente, uma das principais contribuições à análise de políticas públicas, pois ultrapassa o aspecto institucional, até então considerado elemento central no desenho das políticas públicas, ao considerar a interação de tais variáveis institucionais com elementos advindos da ação dos atores (SANO, 2008). Além do peso atribuído ao papel dos atores, Wright (1988) utiliza outras duas categorias básicas para análise das relações intergovernamentais, relacionadas à divisão de poder numa federação: unidades governamentais (ou governos subnacionais) e critérios de financiamento das políticas públicas. A partir destas categorias, Wright (1988) desenvolve modelos para representar a distribuição do poder em sistemas federativos e analisar a relação entre os governos; tais modelos procuram identificar e compreender as formas de interação que podem ocorrer em um sistema federativo e são classificados em: autoridade independente, autoridade inclusiva e autoridade interdependente. No modelo de autoridade independente ou autoridade dual, os governos manteriam um relacionamento de total independência e autonomia, o que seria possível em situações nas 2 quais existe completa clareza acerca dos papéis de cada uma das esferas de governo. Este modelo é similar ao federalismo dual ou layer-cake (Pierson, 1995), segundo o qual diferentes esferas são responsáveis, de forma estanque, por problemas específicos de uma política pública (Sano, 2008). No modelo de autoridade inclusiva, autoridade hierárquica ou autoridade centralizada, o escopo de atuação dos governos subnacionais depende totalmente das decisões tomadas pelo governo nacional. Desta forma, estados e municípios acabam por se configurar como unidades administrativas e o governo nacional centraliza todas as decisões, estabelecendo uma relação hierárquica. Já o modelo de autoridade interdependente, também denominado de autoridade sobreposta ou coordenada, apresenta três características principais: 1) duas ou três esferas de governos podem atuar simultaneamente numa mesma questão; 2) as áreas de autonomia exclusiva de ação ou de jurisdição única são reduzidas e seriam espaços de ação similares ao modelo de autoridade independente e; 3) o poder e a influência disponíveis a qualquer esfera de governo são limitados, criando um padrão de autoridade em que prevalece a barganha, entendida como a necessidade de acordos ou trocas. Segundo Sano (2008), as três formas de autoridade identificadas por Wright (1988) estão presentes nas relações intergovernamentais; porém, com o aumento da sobreposição entre políticas e governos nas federações contemporâneas, cresce também a necessidade de maior coordenação nas ações, algo mais próximo do modelo de autoridade interdependente. Entretanto, mesmo nesse cenário, as formas dual e hierárquica permanecem nos países federativos, até porque certa dualidade é necessária para manter a autonomia e os direitos dos pactuantes de uma federação, ao passo que certo grau de inclusividade é fundamental em federações mais heterogêneas e desiguais. O modelo de Wright (1988) constrói uma tipologia interessante e bastante operacionalizálvel para entender as diferentes possibilidades de coordenação numa federação. Contudo, este autor não desenvolve um modelo analítico que permita identificar as variáveis que mais afetam a produção de determinados arranjos federativos. Esta contribuição é fornecida por Paul Pierson (1995) que observa que os sistemas federativos “superimpõem a questão do quem deve fazer isto’ sobre a tradicional pergunta o que deve ser feito”. Segundo o autor, este fenômeno decorre do fato de diferentes centros de poder atuarem sobre um mesmo espaço territorial; além disso, o fato de inexistir uma resposta clara sobre os papéis de cada ator leva à fragmentação das políticas sociais, seja pela ausência de ações governamentais, seja pela sobreposição das iniciativas de diferentes níveis de governo em um mesma política. Para Pierson (1995), em sistemas federais, autoridades do nível central coexistem com autoridades territorialmente distintas – denominadas unidades constituintes - da federação. Como os representantes do governo de ambos os níveis são parte de um mesmo sistema, embora parcialmente autônomos, suas iniciativas de políticas sociais são altamente interdependentes, mas em geral somente modestamente coordenadas; estes governos podem competir entre si, desenvolver projetos independentes cujos propósitos se chocam, ou cooperar para atingir fins que não poderiam alcançar sozinhos. Segundo Sano (2008), a falta de uma coordenação mais efetiva, como identificada por Pierson (1995), é uma das questões primordiais em sistemas federativos, principalmente com o aumento das áreas de intersecção entre os níveis de governo. Esta coordenação é tanto mais difícil quanto menor for a cultura política nesse sentido; assim, a transição de uma situação federativa mais inclusiva, na qual a coordenação ocorre por meio da relação hierárquica somente, para uma de maior autonomia dos atores e maior entrelaçamento de ações torna mais complexo o desenvolvimento de um processo de coordenação participativo, isto é, que leve em consideração o envolvimento dos diferentes níveis de governo nas decisões sobre as políticas. 3 Pierson (1995) também chama a atenção para uma outra característica decorrente da coexistência de diferentes centros de poder: a presença de um conjunto de atores institucionalmente poderosos – as unidades constituintes – que podem definir suas próprias políticas e influenciar a qualidade das ações da autoridade central. Ao considerar os governos subnacionais como atores com poder de influência no processo de tomada de decisão, o autor chama a atenção para quatro importantes aspectos institucionais que devem ser considerados na análise de políticas públicas: 1) a reserva de poderes específicos para as unidades federativas que, dessa forma, podem desenvolver políticas próprias; 2) a representação dos interesses das partes no centro, por meio da qual podem influenciar as ações nacionais; 3) o grau de comprometimento da equalização fiscal entre as unidades constituintes e sua capacidade administrativa; e 4) os dilemas do shared-decision making, referente à necessidade de coordenar tarefas e poderes compartilhados entre os níveis de governo. Trajetória da Política Habitacional Nacional Iniciamos a discussão a partir do Regime Militar (1964-1985), momento no qual as relações intergovernamentais do Estado brasileiro aproximaram-se mais das formas que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações. Neste período, os governadores e prefeitos das capitais eram destituídos de autonomia política e contavam com escassa autonomia fiscal. Embora os estados recebessem recursos federais via transferências, estes eram fortemente controlados pelo governo central (Arretche, 1999). Neste contexto, a política habitacional era conduzida pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), agente de fomento federal responsável pela definição das políticas públicas e liberação dos recursos para as demais esferas de governo; as esferas subnacionais, por sua vez, eram responsáveis pela execução dos programas de habitação de interesse social, implementados em grande parte pelas Companhias Habitacionais (COHABs), estruturas vinculadas aos governos municipais, estaduais e, em alguns casos, regionais. Observa-se, portanto, que o modelo de gestão da política habitacional era fortemente centralizado neste período: as entidades subnacionais dependiam inteiramente dos empréstimos concedidos pelo BNH; tais empréstimos eram condicionados à aprovação de projetos, pelo próprio BNH, para a implementação dos programas propostos. Assim, apesar de terem autonomia administrativa, estas entidades eram agentes de execução de uma política estabelecida e fortemente controlada pelo governo federal. Neste modelo não existia espaço nem institucional, nem financeiro - para iniciativas de inovações em política habitacional no âmbito dos governos locais (Arretche, 1999). Tendo em vista que a gestão centralizadora do governo federal estabeleceu as políticas e os recursos aos governos subnacionais, esse modelo de relacionamento estava caracterizado pelo modelo de Autoridade Hierárquica de Wright (1988) explicado anteriormente, uma vez que estabeleceu-se que a definição das políticas e liberação dos recursos era responsabilidade do governo federal, ao mesmo tempo em que as ações de execução eram realizadas pelos governos subnacionais. No período entre 1960 e 1980, a economia brasileira se encontrava em pleno crescimento, o que possibilitou que o governo federal disponibilizasse um significativo volume de recursos para o setor habitacional. Entretanto, a partir da década de 1980, a economia do país registrou uma profunda inflexão com a predominância de um longo ciclo de baixo dinamismo. Este novo cenário trouxe repercussões significativas ao Sistema Financeiro da Habitação (SFH), acarretando uma expressiva redução dos investimentos na segunda metade desta década. A crise do SFH e do BNH, bem como a disposição do governo federal de reduzir os valores dos financiamentos, acarretou um crescente ônus para os municípios ao transferir progressivamente aos entes a responsabilidade integral sobre os custos do terreno, infraestrutura, equipamentos coletivos dos empreendimentos habitacionais, equipe técnica e 4 mão-de-obra das políticas habitacionais. Embora tenha havido uma certa distribuição dos encargos entre o BNH e os municípios, as condições de produção e financiamento das COHABs foram deteriorando-se ao longo do tempo. Em 1986, o BNH foi extinto e suas atribuições transferidas para a Caixa Econômica Federal (CEF). Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor responsável pela gestão da habitação no governo federal esteve subordinado a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes ii , caracterizando a descontinuidade e ausência de estratégias para a consolidação de uma política habitacional nacional. Estes fatores, aliados à instabilidade econômica da época, restringiram as possibilidades de financiamento dos programas federais, de modo que as COHABs, que tinham altíssima dependência das transferências federais, tiveram sua capacidade de implementação dos programas habitacionais nos municípios prejudicada. A extinção do BNH, aliada à promulgação da Constituição de 1988, que determinou que a implementação de programas habitacionais fosse de competência comum a todas as esferas de governo, induziu, de certa forma, a um processo de descentralização não coordenado das políticas habitacionaisiii. Ao mesmo tempo em que se observava uma desarticulação da política federal de habitação, os estados brasileiros davam continuidade às suas políticas por meio das COHABs (mesmo considerando as dificuldades de obtenção de financiamentos federais), que haviam sido constituídas para participar da política implementada pelo BNH. Assim, a partir de 1987, os estados já tinham capacidade técnica herdada da política anterior e podiam se articular para implementar políticas próprias (Arretche, 2000). Segundo Melo e Jucá Filho (1990), com o desmonte institucional da política federal de habitação no final da década de 1980, observou-se uma “estadualização da política habitacional” com a proliferação de ações estaduais e municipais. Além de maior autonomia, os governos estaduais, agora eleitos pelo voto popular, passaram a apresentar maiores preocupações com o desenvolvimento de políticas públicas e com o atendimento de reivindicações populares, estabelecendo suas prioridades e delineando novos modelos de políticas sociais, de acordo com suas capacidades administrativas e recursos financeiros disponíveis (Royer, 2002). Desse modo, no final da década de 1980, em nível estadual, assiste-se à criação de mecanismos que viabilizaram um fluxo permanente de recursos financeiros, por meio do direcionamento de impostos ou taxas para o setor, e garantiram, em alguns estados, uma oferta contínua de serviços (Arretche, 1999; Royer, 2002). Podemos dizer que, após a promulgação da Constituição de 1988, o estabelecimento da competência comum da política habitacional para todos os entes federativos permite uma aproximação da definição do modelo interdependente de Wright (1988), na medida em que as três esferas de governo passaram a ser responsáveis pela mesma política pública, tornando necessário o estabelecimento de acordos para definição de papéis e responsabilidades para o desenvolvimento de ações no âmbito de tal política. O modelo descentralizador-municipalista adotado pela Constituição significou também uma maior autonomia para que os municípios experimentassem novas políticas habitacionais neste período, observando-se um grande número de iniciativas de provisão habitacional de interesse social. Sérgio Azevedo (2007) explica, que: “a crise fiscal do Estado, especialmente nos âmbitos federal e estadual, e a consequente diminuição de verbas para as necessidades habitacionais, aliada à pressão popular no novo contexto democrático, acarretaram um processo difuso e não planejado de descentralização, que poderíamos chamar de uma ‘municipalização selvagem’ da política habitacional para os setores de menor renda.” 5 De modo a viabilizar a implementação das políticas habitacionais, alguns municípios recorreram a convênios e parcerias com COHABs de atuação regional. Outros criaram empresas municipais para provisão habitacional que começaram a produzir unidades na década de 1990. Esta fase de atomização de experiências nas esferas municipal e estadual foi caracterizada por uma grande heterogeneidade e marcada pela diversidade de iniciativas, mas pouco articulada em decorrência da ausência de uma política nacional. Embora tenham surgido interessantes programas habitacionais que adotam pressupostos inovadores como desenvolvimento sustentável, estímulo a processos participativos, parceria com a sociedade organizada, projetos integrados e a articulação com a política urbana (MCidades, 2007; Bonduki, 1996), estas experiências foram pouco disseminadas entre outros municípios, podendo ser caracterizadas como experiências autônomas e isoladas, que não ajudaram, com raras exceções, a gestar políticas mais amplas e disseminadas no contexto nacional. No âmbito estadual, de modo geral, a participação dos estados na política habitacional no final dos anos 1980 e início da década de 1990 se desenvolveu em torno de duas estratégias: 1) a institucionalização de um sistema estadual de habitação, ou seja, a constituição de políticas habitacionais caracterizadas pela vinculação de fontes de recursos, instituições e programas habitacionais com mecanismos de acesso, desenho e sistema de crédito próprios – como veremos no caso do Estado de São Paulo; e 2) desenvolvimento de iniciativas de promoção pública associadas a gestões governamentais com recursos orçamentários próprios (como no caso de experiências do Rio Grande do Norte, Pará, Paraná, Goiás, Santa Catarina, Ceará e Rio Grande do Sul), mas com baixa institucionalização e sem garantia de continuidade no tempo (Arretche, 1996; Gonçalves, 2009). A retomada da política habitacional federal após a extinção do BNH ocorreu apenas em 1990, durante o governo Collor de Mello, com o Plano de Ação Imediata para Habitação (PAIH), ação de caráter emergencial, marcada pela subordinação institucional da habitação como questão de assistência social, para o atendimento de famílias com renda de até 5 salários mínimos e que se propunha a financiar em 180 dias cerca de 245 mil unidades, por meio da contratação de empreiteiras privadas. As linhas de crédito para as demais famílias permaneceram fechadas (Carvalho, 1991; Azevedo, 2007). Este programa marcou também a retomada das operações com recursos federais entre 1990 e 1991, já que neste programa as unidades eram totalmente financiadas com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Aprofundando a tendência de privatização da política habitacional iniciada no governo anterior, este programa transferia recursos públicos para a iniciativa privada, enquanto as COHABs continuavam desempenhando um papel secundário de órgãos assessores. Dessa forma, os agentes públicos receberam apenas 21% do montante de recursos emprestados pelo FGTS e as cooperativas habitacionais, que tinham contratos com empreiteiras visando às faixas de renda médias, receberam cerca de 70% dos recursos. Entretanto, este programa foi mal sucedido e acabou implicando na suspensão de financiamentos via FGTS entre os anos 1992 e 1995 (Arretche, 2000; Azevedo, 2007). A formulação de uma nova política nacional de desenvolvimento urbano, pós-BNH, só começou a ser elaborada a partir de 1995, na administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, com reformas que visaram rever o modelo das políticas de desenvolvimento urbano do Regime Militar. O novo modelo caminhou para descentralizar a alocação dos recursos federais e introduzir princípios de mercado na provisão de serviços. Esta descentralização da gestão da política urbana deu-se a partir da instalação de instâncias colegiadas nos estados, destinadas à tomada de decisões relativas à alocação dos recursos do FGTS para as áreas de saneamento e habitação. Com base nas disposições estabelecidas pelo Conselho Curador do FGTS, cada estado disporia de um orçamento anual para a aplicação em programas de desenvolvimento urbano (60% para habitação e 40% para o saneamento). Entretanto, apesar 6 das instâncias colegiadas terem sido instaladas rapidamente, a maioria dos projetos propostos pelos estados e municípios esbarrava na incapacidade de endividamento dos mesmos, de modo que o modelo descentralizado proposto jamais foi efetivamente implementado (Arretche, 2000). Com a retomada dos financiamentos por parte do FGTS, foram criados novos programas de financiamento para o setor habitacional; contudo, a maior parte dos financiamentos era voltada diretamente ao beneficiário final, absorvendo a maior parte dos recursos do fundo. Existia apenas uma modalidade que se destinava ao financiamento de estados e municípios, em alguns casos, a fundo perdido. Estes programas eram focados na recuperação de áreas habitacionais degradadas, ocupadas principalmente por população de renda de até 3 salários mínimos, por meio de melhoria ou da construção de unidades habitacionais e de infraestrutura (Programas Pró-Moradia e Habitar Brasil), e não mais na provisão de novas unidades habitacionais, como nos modelos anteriores (Shimbo, 2010). Os governos subnacionais passaram a ter participações muito pequenas na provisão de novas unidades habitacionais, com raras exceções de governos mais autônomos que contavam com capacidade técnica e fiscal própria. A gestão FHC queria reforçar o papel dos governos municipais como agentes promotores da habitação popular incentivando-os, inclusive, a adotar linhas de ação diversificadas, apoiando programas geradores de tecnologia simplificada que possibilitassem a construção de moradias de qualidade a custo reduzido. Estimulava, também, governos subnacionais a desenvolverem experiências inovadoras de gestão habitacional por meio do financiamento de programas voltados para este fim e estimulando o intercâmbio de experiências entre os governos subnacionais para que estas inovações se disseminassem de forma horizontal. No que se refere às potencialidades apresentadas por estes programas municipais, desenvolvidos especialmente nos anos 1990, estudos realizados no final desta década demonstraram as grandes possibilidades de inovação institucional e de adaptabilidade às especificidades locais. Estas iniciativas funcionaram como um grande “laboratório” que permitiu a socialização de inúmeras experiências bem-sucedidas, muitas das quais premiadas internacionalmente (Bonduki, 1996; Souza, 1997 apud Azevedo, 2007). Essa atividade coordenada entre governo federal e governos subnacionais, bem como o incentivo para a participação da sociedade civil na construção da agenda, caracteriza o modelo de Autoridade Interdependente, desenvolvido por Wright (1988). O Ministério das Cidades foi criado como nova institucionalidade para a área de desenvolvimento urbano, em 2003 (governo Lula), com o objetivo de retomar a agenda de uma política urbana nacional, integrando os setores de habitação, saneamento ambiental e transportes em um mesmo órgão. A opção do primeiro grupo dirigente do Ministério foi formular uma política de forma federativa e participativa, mobilizando os três níveis de governo e os distintos segmentos da sociedade civil para esta finalidade. O MCidades, desde sua origem, foi proposto como um órgão coordenador, gestor e formulador, envolvendo de forma integrada as políticas responsáveis pelos processos de urbanização e resgatando para si a coordenação política e técnica das questões urbanas, que a partir da Constituição de 1988 foram sendo delegadas às prefeituras municipais sem um projeto claro de coordenação intergovernamental, como discutido anteriormente. Coube-lhe, ainda, a incumbência de articular, qualificar e mobilizar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades. Assiste-se, portanto, a uma continuidade do movimento do Governo Federal em direção ao modelo de Autoridade Interdependente (Wright, 1988), porém com um projeto de coordenação intergovernamental mais claro, delineado pela construção de estratégias financeiras e institucionais mais concretas, onde cada ente federativo tem seu papel 7 claramente desenhado dentro da política. Assiste-se, portanto, com a instituição deste novo Sistema de Habitação, ao que Pierson (1995) caracterizou como transição de uma situação federativa mais inclusiva (onde a coordenação se dá apenas através da relação hierárquica) para o desenvolvimento de uma maior autonomia dos atores. Segundo este autor, esta transição de maior entrelaçamento de ações torna mais complexo o desenvolvimento de um processo de coordenação participativo, e por este motivo, o MCidades tem um grande desafio frente aos dilemas do shared-decision making (Pierson, 1995). No mesmo ano de criação do MCidades, avançou-se também na construção da instância de participação e controle social da política urbana com a realização da 1ª Conferência Nacional das Cidades, que traçou as linhas gerais e as diretrizes da política nacional de desenvolvimento urbano, resultando, ainda, na eleição da primeira composição do Conselho Nacional das Cidades. Na área de habitação, no início da década de 1990, os movimentos populares aliados haviam construído uma proposta de Sistema Nacional de Política Habitacional com o apoio de diversos atores técnicos. Muitas destas propostas, posteriormente incorporadas ao Sistema instituído, haviam sido experimentadas e aprendidas em iniciativas de governo subnacionais durante meados dos anos 1980 e 1990. Estas idéias resultaram em um dos primeiros projetos de lei de iniciativa popular (PL 2.710/1991), que após 13 anos de tramitação, viria a ser aprovado (Lei 11.124/2005), instituindo o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). A importância política e institucional da regulamentação do SNHIS e do FNHIS está no compromisso do MCidades de buscar viabilizar e articular fontes de recursos permanentes para o financiamento da habitação de interesse social, dispersas e sobrepostas em diversos programas nos três níveis governamentais. O SNHIS foi organizado a partir da montagem de uma estrutura institucional, composta por uma instância central de coordenação, gestão e controle, representada pelo MCidades, pelo Conselho Gestor do FNHIS (CGFNHIS), por agentes financeiros e por órgãos e agentes descentralizados. A adesão ao SNHIS por parte dos entes federativos é voluntária e se dá a partir da assinatura do termo de adesão, por meio do qual os estados e municípios se comprometem a constituir, no seu âmbito de gestão, um fundo local de habitação de natureza contábil, gerido por um conselho gestor com representação dos segmentos da sociedade civil, e a elaborar um plano local (estadual, distrital ou municipal) de habitação. Essa estrutura espelha, no âmbito local, a estrutura institucional e financeira montada no âmbito federal e visa permitir, por meio da adesão ao Sistema, que os agentes locais possam obter acesso aos recursos do FNHIS. No modelo proposto, parte dos recursos seria destinada às transferências fundo a fundo que ficariam condicionadas ao oferecimento de contrapartida do ente federativo. O Plano Nacional de Habitação estabeleceu, também, a construção de um índice de capacidade institucional (ICI), que serviria como indicador para a distribuição de recursos do SNHIS. Até o momento, entretanto, as transferências fundo a fundo ainda não ocorrem, e o ICI não foi construído, ficando os recursos do FNHIS, assim como os dos demais programas, sujeitos à apresentação e aprovação de propostas junto à CAIXA e ao Ministério. Assim, apesar de o modelo de Sistema que se desenhou na lei do SNHIS representar claramente um direcionamento ao modelo de autoridade interdependente (WRIGHT, 1988), na prática não se tem caminhado para um modelo verdadeiramente de shared-decision making (Pierson, 1995), segundo o qual o processo decisório é compartilhado entre as diferentes esferas federativas. O modelo institucional adotado pelo SNHIS prevê a descentralização da sua implementação mediante a transferência de atribuições para as esferas subnacionais e para agentes privados e públicos (estatais ou não). Desta forma, estados e municípios passam a participar da gestão do Sistema. A descentralização, por sua vez, deve cumprir a premissa da sintonia entre os entes integrantes do Sistema de forma que exista um fio condutor único da política que garanta que 8 políticas locais, elaboradas de forma autônoma, estejam em harmonia com a política nacional. Desta forma, o SNHIS se desdobra e se fundamenta na articulação e na integração entre os planos, programas, ações habitacionais e recursos financeiros e humanos dos três níveis de governo. O MCidades acredita que a obrigatoriedade de planos habitacionais nas três esferas governamentais estabelecida na lei do SNHIS poderá ser capaz de definir o fio condutor da articulação entre os governos, e que no processo de construção gradual do SNHIS, a qualificação e o alinhamento de diretrizes e prioridades entre os governos podem se converter em uma meta a ser alcançada pelos gestores do Sistema, atuando como uma espécie de elemento de atração e polarização em torno da efetiva construção de uma política nacional integrada (MCidades, 2009). Atualmente, 98% dos municípios brasileiros e todos os estados já aderiram ao Sistema; entretanto, quase a metade dos municípios (49%) ainda não cumpriu as condições legais – constituição de plano, fundo e conselho - exigidas para que se integrem ao Sistema (MCidades, 2011). A partir do ano de 2007, a SNH avançou na mobilização estratégica de estados e municípios no intuito de aproximar a gestão federal das esferas subnacionais e estruturar formas institucionalizadas de negociação e pactuação com estas esferas. Fazem parte desta iniciativa o processo de negociação com estados e municípios para a distribuição dos recursos federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), coordenado da Casa Civil da Presidência da República e orientado pela SNH, e, também, a agenda de reuniões mensais, iniciada em 2007, mantida pela SNH com o Fórum Nacional de Secretários de Habitação e Desenvolvimento Urbano (FNSHDU). Entretanto, ainda que tenha estabelecido a negociação entre os entes tanto na gestão, quanto na distribuição dos recursos, o governo federal ainda permanece com algum grau de concentração; o conselho gestor e o agente financeiro do FGTS, a CEF, definem as regras de operação dos programas e detém o poder para autorização definitiva, constituindo órgãos de controle majoritário do governo federal, mas não contam com representação federativa em suas instâncias decisórias (Arretche, 2004). A Política Habitacional no Estado de São Paulo Enquanto a política habitacional federal teve uma atuação inexpressiva na década de 1990, no Estado de São Paulo observou-se um extraordinário desempenho no mesmo período. O caso de São Paulo é paradigmático entre os estados, pois, dentre os que buscaram uma estratégia de institucionalização de um sistema estadual de habitação no final da década de 1980, este foi o que mais conseguiu promover o fortalecimento e a autonomização da política habitacional, chegando a ter, no final dos anos 2000, uma das maiores companhias habitacionais do mundo, com orçamento maior do que o de muitos estados e municípios brasileiros. Este processo contou com recursos estaduais e resultou, em linhas gerais, no desenvolvimento de programas próprios e na expansão da oferta (Royer, 2007; Arretche, 1996; Gonçalves, 2009). Criada em 1949 como uma autarquia com a denominação de Companhia Estadual de Casas Populares (CECAP), a estrutura da administração indireta responsável pela política habitacional no estado passou por diversos processos de transformação até chegar ao atual estágio de desenvolvimento (Royer, 2007). Em 1981, o então governador Paulo Maluf, ainda durante o Regime Militar, criou a Codespaulo, que tinha, além das funções da companhia anterior (CECAP) de promoção da habitação no Estado, a função de “promover a desconcentração do desenvolvimento industrial e urbano em São Paulo”, atuando também, “como indutora do desenvolvimento regional (ao menos no planejamento)” (Royer, 2002). Assim, após a pesquisa em 96 municípios, foi traçada uma meta de construção de 12.380 unidades em 25 municípios paulistas; entretanto, os investimentos e contratações feitos pelo programa originaram dívidas que perduraram no governo seguinte. 9 Em 1983, após o primeiro ano de governo Montoro (o primeiro governo de gestão democrática após a experiência autoritária), a enorme inadimplência da antiga companhia com o Governo Federal (com unidades construídas pelo financiamento habitacional do BNH e dívidas não saldadas no período acumulado) mostrou a necessidade de uma reformulação interna, destinada a estabelecer uma nova organização administrativa, com a contratação de novos técnicos e a valorização dos técnicos já atuantes nesta política. Em março de 1984, a empresa foi transformada na Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Estado de São Paulo (CDH). A Codespaulo operava com recursos advindos de transferências federais, mas com a crise do sistema, somada à indisposição da convivência do regime democrático nos estados com o autoritarismo do governo central, não era mais possível contar com os aportes federais para o enfrentamento das necessidades habitacionais; assim a nova proposta da Companhia foi operar com recursos orçamentários próprios. O Estado de São Paulo, entretanto, não dispunha de nenhum mecanismo que permitisse segregar recursos da arrecadação para financiar políticas públicas de habitação, nem receitas disponíveis para inclusão de despesas com tal vulto em seu orçamento (Royer, 2007). Com esta meta de realizar e assumir a política habitacional sem a dependência da transferência de recursos, o Estado de São Paulo passou a reivindicar fontes de financiamento, propugnando por maior autonomia financeira e pela desconcentração das competências tributárias. Tais teses, defendidas pelo Governo de São Paulo, vão marcar o processo constituinte e dar origem aos instrumentos tributários que possibilitaram o desenvolvimento acelerado da Companhia na segunda metade da década de 1980 (Royer, 2002). Em 1988, com a aprovação da Constituição que garantia autonomia financeira para os governos estaduais, o Estado de São Paulo pôde aprovar uma nova legislação tributária que aumentava os recursos orçamentários com a elevação das alíquotas de impostos. Em novembro de 1989, a Lei 6.556 instituiu um adicional de 1% ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do estado, sendo que a receita resultante desta elevação da alíquota seria destinada inteiramente ao financiamento, pela Caixa Econômica Estadual, de programas habitacionais de interesse social, desenvolvidos e executados pela CDH. A aprovação desta lei garantiu um vultoso aumento nos recursos destinados ao setor habitacional do Estado de São Paulo: entre 1991 e 1996, de um total de U$ 2,6 bilhões dos recursos para habitação, U$ 2 bilhões foram oriundos do ICMS (Royer, 2002, 2007). Com a implementação desta nova fonte de recursos e outras mudanças estruturais e de conceito que foram instituídas no período, a CDHU, como empresa pública, passou a administrar, em 1989, o terceiro orçamento de investimentos entre as estatais paulistas, atrás apenas da Companhia Energética de São Paulo (CESP) e do Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) (Royer, 2002). A adoção da alíquota do ICMS (fonte permanente, não-onerosa e vinculada de recursos para a implementação de programas sociais de habitação) e a criação da CDH em 1984 (posteriormente transformada em CDHU, em 1989) representaram decisões segundo as quais passariam a ser formulados programas estaduais cujas características seriam distintas daquelas oferecidas pelas agências federais (Arretche, 1996). Após estabelecida uma volumosa e estável fonte de recursos financeiros, tornou-se possível a orientação da política habitacional para a produção em grande escala de unidades habitacionais no Estado. Houve também uma significativa mudança na forma de gestão da política de habitação: todas as obras passaram a ser licitadas e administradas pela CDHU. A política passou a ser centralizada no Governo do Estado e, para ter acesso às unidades habitacionais oferecidas pelo programa estadual, as prefeituras deveriam oferecer o terreno e a infra-estrutura urbana. Com estas medidas, o Governo do Estado de São Paulo, assim como a maioria dos governos estaduais na década de 1990, instituiu uma política habitacional com gestão centralizada, 10 usando o modelo adotado anteriormente pelo governo federal (Melo e Jucá Filho, 1990). Nesta política, cabia aos municípios aderir aos programas formulados e implementados pelos agentes estaduais e firmarem a parceria por meio da concessão de terrenos e/ou infraestrutura, não cabendo aos governos locais nenhum poder decisório sobre o volume de recursos investidos, a gestão do empreendimento e a distribuição das unidades habitacionais aos beneficiários finais. Dessa forma, a política estadual deste período aproximou-se do modelo de autoridade hierárquica de Wright (1988). Nos primeiros anos da década de 2000, a atuação da CDHU foi marcada pela continuidade de programas e ações formuladas na década anterior, ainda com o financiamento através dos recursos advindos do ICMS, não ocorrendo mudanças institucionais do setor habitacional do Estado de São Paulo no período. A partir de 2005, o governo estatual começou a estabelecer uma divisão maior entre planejamento e produção habitacional, delimitando mais claramente as funções institucionais dos órgaos envolvidos no setor. Atualmente, o Estado conta com uma Secretaria de Habitação (SEHAB) na administração direta, com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), empresa vinculada a esta Secretaria, e, mais recentemente, com a Casa Paulista - Agência Paulista de Habitação Social, constituída como um novo braço da Secretaria da Habitação para viabilizar a operação dos fundos habitacionais recém-instalados: o Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social (FPHIS) e o Fundo Garantidor Habitacional (FGH). Apenas em 2007, o Estado de São Paulo aderiu ao SNHIS (Lei Estadual 12.801/2008) e só regulamentou esta adesão em dezembro de 2008 por meio do Decreto 53.823/2008, que também insituiu o Conselho Estadual de Habitação (CEH), o Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social (FPHIS) e o Fundo Garantidor Habitacional (FGH). Em 2009, começou a elaboração do Plano Estadual de Habitação (PEH-SP), que objetivou estabelecer estratégias e metas para a eliminação progressiva das necessidades habitacionais, por meio de ações conjugadas nas três esferas de governo. A elaboração deste Plano inaugurou um novo marco nas relações intergovenamentais desenvolvidas entre o Governo do Estado de São Paulo e os municípios de sua jurisdição. Até então, a política habitacional estadual era extremamente centralizada no governo estadual, tanto em termos de formulação, quanto da própria implementação. No PEH, ainda não publicado na integralidade, já aparecem indícios de uma mudança de postura do Governo Estadual, que passa a buscar para si um papel mais de coordenação e formulação, delegando aos municípios o papel de implementadores e demandantes das necessidades específicas de cada município. Enquanto, na década de 1990, o Governo do Estado assumiu uma postura que parecia ignorar as reais necessidades dos municípios, produzindo unidades habitacionais segundo os interesses políticos eleitorais, no final da década de 2000 o planejamento habitacional do Estado assume outra postura, desenvolvendo uma série de estudos e indicadores para determinar as especificidades das necessidades habitacionais das diferentes regiões do Estado e desenvolvendo programas voltados para estas características, além de uma tentativa de estabelecer um maior diálogo com os municípios. Seguindo esta tendência de maior descentralização, o Governo do Estado de São Paulo está promovendo a criação da Rede Estadual dos Planos Locais de Habitação (PLHIS) com a intenção de criar um sistema de coordenação intergovenamental, no qual o governo estadual ajudará os governos municipais a desenvolverem seus planos locais de habitação como instrumento do planejamento municipal. Nesta rede, coordenada pelo governo estadual, deseja-se também promover a troca de experiências entre os municípios sobre a elaboração de instrumentos de planejamento locais e regionais, a fim de construir uma visão articulada e compartilhada sobre os desafios e as estratégias de ação, estimulando o desenvolvimento das relações intergovernamentais, tanto verticais quanto horizontais. Observa-se, então, que de 11 1990 a 2000, o modelo de relacionamento passou por uma transição do modelo centralizado para o modelo de autoridade interdependente (WRIGHT, 1988). Considerações finais A trajetória da política habitacional, brevemente descrita neste trabalho, nos mostra que os desenhos institucionais e políticas desenvolvidas dialogam com o percurso do Estado brasileiro de forma mais ampla, uma vez que o desenho desta política pública no âmbito da União parecer ter caminhado sempre alinhada com o desenho macro-institucional do Estado, ou seja, acompanhando os movimentos de maior centralização ou descentralização do poder na esfera federal. Percebe-se, também, que os arranjos institucionais implementados no âmbito nacional têm impactos profundos no desenho institucional e na política pública habitacional implementada pelos estados e municípios, mesmo que de forma desarticulada e com pouca coordenação intergovernamental, como se deu em grande parte do período estudado. A literatura aponta que, sobretudo os estados mais dependentes de recursos federais para executar a prestação de políticas e serviços sociais têm maior tendência a se pautarem pelas orientações das políticas federais (Arretche, 2004; Gonçalves, 2009). Assim, o caso de São Paulo é paradigmático, na medida em que conseguiu instituir um fluxo de recurso permanente para o setor habitacional, podendo desenvolver uma política autônoma com a implementação de linhas programáticas próprias e diversificadas. Ao mesmo tempo, este Estado tem maior resistência à adesão das políticas desenvolvidas pelo governo federal, como podemos verificar no caso da adesão e implementação tardia do programa mencionado e na resistência observada em utilizar os indicadores desenvolvidos pelo governo federal, como o déficit habitacional, ignorado no PEH-SP, mesmo sendo o indicador base utilizado em todos os outros planos habitacionais do país. Contudo, ao admitir a adesão ao SNHIS, este Estado tem buscado assumir seu papel de coordenação intergovernamental induzindo e fomentando os municípios a desenvolverem tanto ações de adesão ao Sistema, como de ações de produção habitacional, mesmo que com recursos federais e estaduais, além de induzir algumas práticas de relações intermunicipais. Entretanto, como destaca Gonçalves (2009), ainda não está claro, dentro do desenho do SNHIS, qual é exatamente o papel dos governos estaduais. A autora destaca, contudo, que aos estados não cabe exatamente um único papel ou uma única forma de atuação, pois nas regras previstas, por um lado, observa-se que os estados são os coordenadores do sistema no nível estadual e que devem formular políticas, diagnósticos e planos, e criar seus conselhos e fundos. Tendo, assim, tanto um importante papel de executor direto da política habitacional, como um importante papel de indutor de ações e de coordenação do desenvolvimento institucional nos municípios dentro de sua jurisdição. Por outro lado, ainda segundo Gonçalves (2009), o SNHIS também prevê financiamento direto da União para os municípios e, nesses casos, a política cabe diretamente ao governo local e a relação entre município e governo federal independe do estado, tendo a coordenação federal na política que assumir um importante papel, dado que os arranjos institucionais atuais podem gerar inúmeras situações, seja de cooperação, competição, vazio ou sobreposição. A pesquisa demonstrou que, dos anos 1940 aos 1980, o modelo de autoridade hierárquica foi predominante. Dos anos 1980 aos 1990, no nível federal, predominou a autoridade interdependente. Já no plano estadual, em especial São Paulo, o modelo da década de 1980 refletia o nível federal; contudo, não completamente, comportamentos que refletiam a competição e cooperação entre os entes federativos coexistiram paralelamente e permaneceram por mais duas décadas. Em meados de 2000, no nível federal, o modelo relacional espelhava o dos estados: da autoridade interdependente e os de competição juntamente com o de coordenação. Essas teorias contribuem para explicitar e delinear os 12 movimentos da política habitacional brasileira, pois corresponderam às peculiaridades existentes em cada época; entretanto, os modelos relacionados não são suficientes para apontar a intensidade dessas características, ou seja, em que medida ou grau a centralização ou descentralização e a participação ou autonomia fiscal, por exemplo, se apresentaram. 13 Anexos Ano / Período Instituição A partir de 1946 FCP – Fundo da Casa Popular A partir de 1964 BNH – Banco Nacional de Habitação SFH – Sistema Financeiro de Habitação 1988 SEAC – Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária 1995 A partir de 2004 SEPURB – Secretaria de Política Urbana SEDU – Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano Ministério das Cidades PNH – Plano Nacional de Habitação SNH – Sistema Nacional de Habitação SNHMM – Sistema Nacional de Habitação de Mercado SNHIS – Sistema Nacional de Habitação e Interesse Social Gestão Centralizada / Fragmentada: interação do governo federal (política habitacional) e governo estadual (arrecadação de recurso) Centralizada (criação de órgão subnacionais - COHAB’s e outros – para execução da política definida na esfera federal) Descentralizada: maior iniciativa aos estados e municípios – transição para autonomia de estados e municípios Modelo de Relacionamento intergovernamental Hierárquica Hierárquica Interdependente Descentralizada: ausência de estratégia nacional / iniciativas fragmentadas Hierárquica Descentralizada, democrática e participativa; adesão dos entes é voluntária Hierárquica / Cooperação e Competição Figura 1: Quadro síntese das instituições, modelos de gestão e de relações intergovernamentais na política pública habitacional federal (de 1946 até o período atual) Fonte: autoria própria Ano / Período A partir de 1946 (meados de 1950 e 1960) Instituição Gestão Modelo de Relacionamento intergovernamental Entidades criadas por governos estaduais e categorias profissionais Centralizada: aplicação da política habitacional estabelecida pela União; arrecadação do recurso junto ao governo federal Hierárquica 14 A partir de 1970 COHAB’s e outros órgãos A partir de 1988 Criação de sistemas estaduais A partir de 2008 Adesão ao SNHIS – Sistema Nacional de Habitação e Interesse Social Centralizada: subordinação ao governo federal (operacionalização do SFH) Descentralizada: atuação não definida dentro do SFHI; política pulverizada; efeitos: desigualdades regionais; adesão voluntária ao SFHIS Descentralizada, democrática e participativa; Estado assume uma postura de coordenação intergovernamental em relação aos municípios Hierárquica Interdependente / Cooperação e Competição Hierárquica / Cooperação e Competição Figura 2: Quadro síntese das instituições, modelos de gestão e de relações intergovernamentais na política pública habitacional do Estado de São Paulo (de 1946 até o período atual) Fonte: autoria própria Referências Bibliográficas ARRETCHE, Marta. 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Habitação Social, Habitação de Mercado: A Confluência entre Estado, Empresas Construtoras e Capital Financeiro. São Carlos: Escola de Engenharia de São Carlos, 2010. WRIGHT, D. S. Understanding Intergovernmental Relations. 3rd ed. California: Books/ColePublishing Company, 1988. i A política habitacional no Brasil só foi verdadeiramente estruturada em 1964 com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). Em 1946, antes do BNH, houve a criação da Fundação Casa Popular (FCP) que propunha uma visão de política nacional de habitação, mas que, devido à falta de recursos e às regras de financiamento então estabelecidas, conseguiu desenvolver apenas a produção de pequeno número de unidades habitacionais populares, mas sem promover uma política estruturada de habitação. ii A Caixa Econômica Federal (CEF) tornou‐se o agente financeiro do SFH, absorvendo algumas das atribuições, pessoal e acervo do BNH. O Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), que havia incorporado as funções do Ministério do Interior em 1985, foi transformado em Ministério da Habitação, Urbanismo e Desenvolvimento Urbano (MHU), ao qual também inicialmente se vinculou a CAIXA. Em 1988, o MHU foi transformado em Ministério da Habitação e do Bem‐Estar Social (MBES) ficando responsável pela política habitacional, mas desvinculado da política de saneamento que foi transferida para o Ministério da Saúde. O MBES foi extinto em 1989 e a CAIXA passou a ser vinculada ao Ministério da Fazenda, tendo a formulação da política habitacional sido atribuída novamente ao Ministério do Interior. Em 1990, foi criado o Ministério da Ação Social (MAS), posteriormente transformado em Ministério do Bem‐Estar Social, onde passaram a funcionar as Secretarias Nacionais de Habitação e Saneamento. No Governo Fernando Henrique Cardoso, a Secretaria Nacional da Habitação foi subordinada ao Ministério do Planejamento e Orçamento e foi instituída a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à presidência da República, que se responsabilizou pelas instituições ligadas à política habitacional até 2003, quando foi criado o Ministério das Cidades, no qual foram alocadas a Secretaria Nacional de Habitação (Mcidades, 2007; Arretche, 2000; Cymbalista, 2005). iii A Constituição Brasileira de 1988 faz referência à habitação em cinco diferentes artigos, nos quais determina competências comuns à União, aos Estados e Municípios, como: “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos” e “promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. 16