Artigo Original Associação entre CEC de laringofaringe e doença do refluxo gastroesofágico Pharyngolaryngeal squamous cell carcinoma and gastroesophageal reflux disease André Del Negro1 Caio Tosato Caliseo2 Alfio José Tincani3 Nelson Adami Andreollo4 Antônio Santos Martins5 RESUMO Introdução: o carcinoma espinocelular (CEC) de laringe e hipofaringe tem como seus principais fatores etiológicos o tabagismo e o etilismo. Muitos autores sugerem uma ação cocarcinogênica da inflamação crônica na mucosa escamosa do epitélio laringo-faríngeo devido ao refluxo do conteúdo gástrico em pacientes portadores de doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). Objetivo: avaliar a presença de refluxo laringo-faríngeo em pacientes portadores de CEC de laringe e hipofaringe, as características do tumor, tratamento realizado, sintomas de DRGE e evolução clínica dos doentes. Pacientes e Método: análise retrospectiva, entre 1998 e 2005, de 21 pacientes tratados cirurgicamente de CEC de laringe e hipofaringe no serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da UNICAMP. Resultados: vinte pacientes (95%) eram do gênero masculino. Dezessete tumores (81%) acometiam a laringe; dos quatro tumores (19%) que acometiam a hipofaringe, todos eram de recesso piriforme. Entre os portadores de CEC laríngeo, 10 (58,8%) apresentavam sintomas clínicos pré-operatórios típicos de DRGE; entre os portadores de CEC de hipofaringe apenas um (25%) apresentava sintomas. Conclusão: a DRGE e o refluxo laringo-faríngeo estão presentes em número significativo de pacientes portadores de CEC de laringe e hipofaringe. ABSTRACT Introduction: the laryngeal and hypopharyngeal squamous cell carcinoma (SCC) occurs due to the association of tobacco and alcohol abuse. Many authors suggest an association between chronic inflammation in the pharyngolaryngeal squamous epithelium due to reflux of the gastric contents to the laryngopharynx and the development of SCC. Objective: to evaluate the presence of pharyngolaryngeal reflux in patients with SCC in the larynx and hypopharynx, the tumor characteristics, treatment, reflux symptoms and clinical behavior of the patients. Methods: retrospective study between 1998 and 2005 of 21 patients treated surgically for laryngeal or hypopharyngeal SCC in the Head and Neck Department of UNICAMP. Results: twenty patients (95%) were men. Seventeen tumors (81%) occurred in the larynx; four tumors occurred in the hypopharynx (19%), all in the piriform sinus. Among the patients with laryngeal SCC, 10 (58,8%) showed preoperative symptoms of gastroesophageal reflux disease; among hypopharyngeal tumors, only one patient had symptoms (25%). Conclusion: pharyngolaryngeal reflux occurs in a significant number of patients with laryngeal or hypopharyngeal SCC. Key words: Gastroesophageal reflux. Larynx. Pharynx. Head and neck neoplasms Descritores: Refluxo gastroesofágico. Laringe. Faringe. Neoplasias de cabeça e pescoço. INTRODUÇÃO A associação de tabagismo e etilismo com as neoplasias malignas do trato aerodigestivo superior é bem conhecida há muitos anos1-3. Recentemente, outros fatores de risco têm despertado interesse no estudo da etiopatogenia do carcinoma espinocelular (CEC) dessa região, principalmente os refluxos gastroesofágico (RGE) e faringolaríngeo (RFL), os quais têm como agente irritante da mucosa o ácido clorídrico. No CEC da laringe, alguns autores já demonstraram a relação existente entre a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) e o desenvolvimento desta neoplasia4-19. Estudos animais têm confirmado esta hipótese20-26. No entanto, outros autores não confirmaram essa associação27. Devido à presença de CEC em pacientes não etilistas e não tabagistas30, torna-se necessário o estudo de outros fatores causais da doença para o entendimento da mesma e o avanço no seu tratamento. O objetivo é avaliar a presença de refluxo laringo-faríngeo em pacientes portadores de CEC de laringe e hipofaringe operados pela Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da UNICAMP, as características do tumor, tratamento realizado, sintomas préoperatórios de DRGE e evolução clínica dos doentes. PACIENTES E MÉTODO Foram analisados retrospectivamente os prontuários de 38 pacientes tratados cirurgicamente por CEC de laringe e hipofaringe no serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da UNICAMP entre 1998 e 2005. Avaliaram-se sintomas pré- 1) Médico Assistente, Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Departamento de Cirurgia – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas – SP – Brasil 2) Residente de Cirurgia Geral, Departamento de Cirurgia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas – SP – Brasil 3) Professor Assistente Doutor, Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Departamento de Cirurgia – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas – SP – Brasil 4) Professor Titular, Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo, Departamento de Cirurgia – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas – SP – Brasil 5) Professor Assistente Doutor, Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Departamento de Cirurgia – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas – SP – Brasil Instituição: Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Cirurgia Faculdade de Ciência Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Correspondência: André Del Negro, Rua Governador Pedro de Toledo, 2157 ap. 141 - 13400-075 – Piracicaba, SP. E-mail: [email protected] Recebido em: 08/09/2007; aceito para publicação em: 11/10/2007; publicado on line em: 10/11/2007. Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 36, nº 4, p. 219 -221, outubro / novembro / dezembro 2007 219 operatórios de DRGE, presença de lesão associada na endoscopia digestiva pré-operatória (EDA) com lugol a 2% e achados compatíveis com esofagite de refluxo; estadiamento do tumor, cirurgia realizada e tratamento complementar, além da evolução da doença. Foram excluídos da análise 17 pacientes por dados incompletos no prontuário. Para a análise estatística, foi utilizado o programa The SAS System for Windows (Statistical Analysis System), versão 8.02. SAS Institute Inc, 1999-2001, Cary, NC, USA. RESULTADOS Todos os tumores estudados foram CEC comprovados com biópsia pré-operatória. Vinte pacientes (95%) eram do gênero masculino. Dezessete tumores (81%) acometiam a laringe, sendo desses dez tumores glóticos (58,8%) e sete supraglóticos (41,2%). Quatro tumores (19%) acometiam a hipofaringe e todos eram de recesso piriforme. Entre os portadores de CEC laríngeo, 10 (58,8%) apresentavam sintomas clínicos pré-operatórios típicos de DRGE, como pirose, regurgitação e queimação retroesternal; entre os portadores de CEC de hipofaringe apenas um (25%) apresentava sintomas. Dezoito pacientes apresentavam EDA pré-operatória, dentre as quais se verificou seis (33,3%) exames normais e 12 com alterações: duas hérnias de hiato, duas duodenites, uma displasia de alto grau, quatro esofagites leves a moderadas, uma metaplasia espinocelular e cinco gastrites; havendo pacientes com mais de uma alteração ao exame. Um exame evidenciou granuloma de prega vocal secundário ao refluxo (figura 1). própria, sendo infreqüentes a pirose e regurgitação no primeiro. Observou também que o epitélio laríngeo é mais suscetível à injúria tecidual que o epitélio esofágico11. Relatos de câncer de laringe em pacientes com laringite crônica foram descritos inicialmente em uma série de 101 casos de laringite que progrediram para CEC de laringe, embora não haja menção de tabagismo ou etilismo entre os pacientes analisados12. Foram avaliados 35 casos de carcinoma laríngeo dentre 841 pacientes portadores de laringite crônica e disfonia persistente por mais de dois anos e encontrou-se, na análise histológica, focos multicêntricos de CEC permeando o infiltrado inflamatório. Mais uma vez, não há referência de tabagismo ou etilismo na série estudada13. Em análise de 274 pacientes com CEC de cavidade oral, faringe e laringe, encontraram-se 29,3% de DRGE confirmada com endoscopia digestiva. Dessa casuística apenas 92 pacientes não eram tabagistas, mas foi encontrada maior porcentagem de RGE nos portadores de CEC laríngeo (21,7%) do que na população em geral (5%), p=0,0001, mostrando que o refluxo pode ser considerado co-promotor da carcinogênese14. Os achados encontrados na população estudada não confirmam os dados acima, uma vez que não foi verificada significância estatística, muito embora, com uma amostra maior de pacientes, essa hipótese possa ser confirmada. Outros autores15-17 estudaram a possível ação do Helicobacter pylorii na carcinogênese laríngea, embora tenham apresentado resultados conflitantes. CONCLUSÃO A DRGE e o refluxo laringo-faríngeo estão presentes em número considerável de pacientes portadores de CEC de laringe e hipofaringe, mas estudos posteriores devem ser realizados para confirmar-se a hipótese da ação de co-fator na gênese desses tumores. REFERÊNCIAS Figura 1 – Granuloma de prega vocal em paciente portador de refluxo faringo-laríngeo. A presença de sintomas de RGE entre os portadores de CEC não teve diferença estatística (p>0,05), embora o número de pacientes estudados seja pequeno (n=21). DISCUSSÃO A relação do tabagismo e etilismo com a etiologia das neoplasias malignas do trato aerodigestivo superior é bem conhecida1-3. No entanto, aproximadamente 5% dos pacientes portadores de CEC de mucosa em cabeça e pescoço não tem antecedente de uso crônico de fumo ou álcool31, reforçando a existência de outros fatores envolvidos na gênese desses tumores. Um desses co-fatores pode ser o refluxo faringolaríngeo e vários autores demonstraram a ação cocarcinogênica dessa patologia4-10, cujo principal agente irritante sobre a mucosa é o ácido clorídrico. Demonstrou-se que os refluxos faringo-laríngeo e gastroesofágico são entidades diversas com sintomatologia 220 1. Burch JD, Howe GR, Miller AB, Semenciw R. Tobacco, alcohol, asbestos, and nickel in the etiology of cancer of the larynx: A case study. 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